Deslocamentos e alteridades / História – Questões & Debates / 2013

O tema do dossiê do volume 58 de nossa revista é “Deslocamentos e Alteridades”, com quatro artigos que discutem questões contemporâneas de deslocamentos culturais, atrelados a imigrantes e viajantes, cuja presença desperta a reflexão sobre alteridades, estranhamentos e familiaridades entre indivíduos de diferentes nações e territórios.

No artigo “Eu nasci no Brasil mas o Líbano é o meu país – jovens descendentes de libaneses em Foz do Iguaçu: identidade plural”, da antropóloga Poliana Fabiula Cardozo, observamos os jogos identitários realizados pelos jovens em questão, tanto em suas comunidades de origem como no contexto brasileiro que os cerca e, ao mesmo tempo, perpassa-os, entre interditos e permissões islâmicos e brasileiros. A autora demonstra quando é conveniente para estes jovens ser brasileiro e ser libanês no espaço de Foz do Iguaçu.

O caso analisado por Poliana Cardozo é típico do contexto globalizado, no qual o Islã se insere de forma múltipla e dinâmica. Tal inserção é analisada pela primeira contribuição internacional a este volume, trazida pela geógrafa Shadia Husseini de Araújo, no artigo “O ‘Islã’ como força política na ‘Primavera Árabe’: uma perspectiva da teoria do discurso”. A estudiosa do Islã moderno analisa em que medida a religião do profeta Maomé pode ser considerada um aspecto importante da chamada “Primavera Árabe”, caracterizada pelas revoltas que derrubaram regimes autoritários no mundo islâmico desde janeiro de 2011. Em que medida os deslocamentos culturais em curso no mundo islâmico têm influenciado seus movimentos políticos?

O tema do deslocamento cultural predomina também no artigo “Imperialismo, missão e exotismo: narrativas de viajantes de língua alemã no Brasil nas primeiras décadas do século”, da historiadora Karen Macknow Lisboa, em que se destaca a questão da alteridade nos relatos de cinco viajantes alemães, nas três primeiras décadas do século XX: um político colonial, um escritor exotista, dois expressionistas e um membro do partido nacional-socialista alemão (NSDAP). Sua discussão também almeja contribuir para os estudos sobre a literatura de viagem da primeira metade do século XX a respeito do Brasil, um assunto ainda pouco explorado, sobretudo em relação aos viajantes de cultura germânica e que não eram antropólogos.

Encerramos este dossiê com um artigo que faz o sentido inverso da alteridade explorada no texto anterior – o historiador René E. Gertz, em “De Otto von Bismarck a Angela Merkel: do ‘perigo alemão’ ao ‘neonazismo’ no Brasil”, explora os medos que a presença alemã no Brasil despertou em diferentes momentos da história contemporânea. Ainda que a maioria dos neonazistas presos e identificados recentemente no Brasil não seja de origem germânica, o neonazismo é considerado pelo senso comum – e por vezes por trabalhos acadêmicos – como uma iniciativa de descendentes de alemães. Por que, após tantas décadas de presença de descendentes de alemães em solo brasileiro, determinados preconceitos ainda persistem?

Os estudos trazidos por este dossiê procuram responder a estas perguntas a partir de uma análise dos efeitos que os deslocamentos culturais suscitam nos últimos dois séculos.

Na seção de artigos, apresentamos três textos: o primeiro é da antropóloga Lisa Cligget, da Universidade de Kentucky, que traz a segunda contribuição internacional para nosso volume, com o texto “Componentes sociais da migração: experiências da Província Sul, Zâmbia”. O artigo revela a importância das estruturas do poder local – ao nível da comunidade e da família – para entender a migração, ao contrário das suposições comuns que atribuem causas econômicas e ambientais às decisões de migração. São examinados os processos migratórios na Província Sul da Zâmbia por meio do uso de informações coletadas de dois projetos de pesquisa qualitativa. Contextos locais econômicos e ambientais eram os fatores decisórios na migração das populações; o controle sobre os recursos da zona rural e a habilidade de mobilizar as redes de apoio social nos vilarejos também demonstraram influenciar as decisões para deslocar-se. As informações apresentadas nesse trabalho são do Projeto de Pesquisa longitudinal Gwembe Tonga (GTRP) e de um estudo de dois anos sobre emprego e mercados de trabalho na Província Sul, liderados pelo Centro de Estudos sobre Desenvolvimento da University of Bath, Inglaterra.

O segundo artigo é do historiador José Geraldo Costa Grillo, “A representação da mulher na iconografia de Ájax carregando o corpo de Aquiles na pintura da cerâmica ática (570-480 a.C.)”. Segundo o autor, da perspectiva dos estudos de gênero, a representação da mulher na pintura da cerâmica ática tem sido entendida basicamente de duas maneiras: 1) os pintores revelam o mesmo preconceito discriminatório encontrado nos textos literários; 2) tanto nos textos quanto na iconografia, a posição social da mulher não é assim estanque. Partilhando dessa segunda concepção, o autor demonstra, a partir da análise iconográfica da cena de Ájax carregando o corpo de Aquiles, que se, por um lado, a mulher por vezes desempenha um papel secundário, podendo implicar sua desvalorização social, por outro, ocupa, em inúmeros e significativos casos, o lugar central como protagonista do evento, demonstrando seu prestígio e valor aos olhos de sua sociedade.

Por fim, o artigo “Arqueologia Histórica – Abordagens”, de Diego Antônio Gheno e Neli Teresinha Galarce Machado, aborda as potencialidades teóricas e metodológicas da Arqueologia Histórica, destacando como esta subdisciplina passou a ser aplicada em diferentes contextos, relacionada a modelos teóricos amplos, como o histórico-culturalismo, o processualismo e o pós-processualismo. A Arqueologia Histórica, no continente americano, é uma fecunda via de estudo da cultura material proveniente do período Moderno. O artigo problematiza a definição de Arqueologia Histórica, entendida pelos autores como o estudo dos grupos humanos, em seus mais diversos aspectos, através da sua cultura material e das formações sociais desaparecidas, tendendo a variar a partir da área de atuação do arqueólogo conforme seu objeto de pesquisa. Outro aspecto abordado no texto é a breve revisão sobre pesquisas em perspectiva da Arqueologia Histórica no Brasil, Rio Grande do Sul e na região geopoliticamente conhecida como Vale do Taquari.

Apresentamos três resenhas para encerrar este volume. Na primeira, Daniel Afonso da Silva analisa o livro de Anderson Lino, Bom Jesus da Cana Verde: conflitos e celebrações no Norte do Paraná, 1886-2008 (2011), que versa sobre o processo de constituição da romaria em culto ao Senhor Bom Jesus da Cana Verde, na pequena Siqueira Campos, no norte pioneiro do Paraná, um dos maiores e mais marcantes acontecimentos religiosos do país. O autor defende que a imagem e a festa em seu elogio, que existe desde 1934, derivam de disputas e conflitos depositários de modificações estruturais na relação entre Estado e igreja em todo o mundo ocidental ao longo dos últimos cento e cinquenta anos.

Já Bruno Torquato Silva Ferreira e Marcos Hanemann analisam o livro Tributo de sangue: exército, honra, raça e nação no Brasil (1864-1945) (2009), do brasilianista Peter M. Beattie. A obra desenvolve a maneira pela qual ocorreu a transição do recrutamento forçado para a conscrição através de sorteio como forma de preenchimento dos claros (vazios) das fileiras do Exército brasileiro entre 1864 e 1945. O corte é pouco usual para os que acompanham os estudos nativos sobre o tema e refere-se às duas mais importantes mobilizações militares que o Brasil conheceu: a Guerra contra o Paraguai e a Segunda Guerra Mundial. Coincide ainda com importantes alterações nas estruturas social, econômica e política brasileiras, que se materializaram na expansão das atividades capitalistas, no processo de urbanização, na industrialização, na expansão do sistema viário, na integração nacional, no avanço do nacionalismo e no aumento do poder do Estado.

Por fim, o livro Ancient Judaism. New Visions and Views (2011), de Michael Stone, é resenhado por Jonas Machado. Stone discorre sobre elementos considerados de suma importância para as concepções atuais sobre o judaísmo da antiguidade. Essa obra destaca as origens, a complexidade, a transmissão e a recepção das tradições contidas na literatura que constituem as fontes para o estudo do judaísmo antigo, eixo central em torno do qual gira esse trabalho, com o propósito de desafiar ortodoxias tardias que engendraram histórias teologicamente condicionadas sobre o judaísmo antigo.

Karina Kosicki Bellotti


BELLOTTI, Karina Kosicki. Apresentação. História – Questões & Debates. Curitiba, v.58, n.1, jan. / jun., 2013. Acessar publicação original [DR]

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