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Gênero e Desigualdades: os limites da democracia no Brasil | Flávia Biroli
Como garantir a maior participação política (nas diferentes esferas) das minorias? De que maneira é possível superar as dificuldades enfrentadas pelas mulheres (como limitação temporal, causada pelo acúmulo de responsabilidades do trabalho doméstico, cuidado e maternidade) para um maior envolvimento político? Que direitos ainda são negados às mulheres e às pessoas LGBTQI+ pela democracia 1 brasileira? Como os feminismos têm contribuído para uma sociedade mais igualitária no que tange aos direitos e à participação política? Quais foram os avanços, os limites e as desigualdades ao longo das últimas décadas no Brasil? Essas e muitas outras questões foram respondidas por Flávia Biroli no livro Gênero e Desigualdades: os limites da democracia no Brasil, publicado no ano de 2018, no qual enfatiza, como anunciado no título, as limitações, as desigualdades e as relações de gênero presentes na democracia brasileira, a partir de uma análise que entrelaça local/global e as diferentes teorias feministas.
Flávia Milena Biroli Tokarski é formada em Comunicação Social pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita (UNESP), e possui mestrado e doutorado em História pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Ao longo de seus anos de pesquisadora e professora no Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília (UnB), tem se dedicado às temáticas da democracia, política, estudos de gênero e teoria feminista, sobretudo, com enfoque nas áreas de mídia e política. Suas principais publicações, além do livro resenhado aqui, são: Caleidoscópio convexo: mulheres, política e mídia (2011, publicado com Luis Felipe Miguel), Autonomia e desigualdades de gênero: contribuições do feminismo para a crítica democrática (2013), Família: novos conceitos (2014) e Feminismo e Política (2014, também com Luis Felipe Miguel). Leia Mais
Reproducción social y creación de desigualdades – discusiones desde la antropologia y la arqueologia suramericanas – HENDERSON; BERNAL (RAP)
HENDERSON, Hope; BERNAL, Sebastián Fajardo (comp.). Reproducción social y creación de desigualdades – discusiones desde la antropologia y la arqueologia suramericanas. Cordoba: Encuentro Grupo Editor, 2012. 232 p. Resenha de: SILVA, Bruno Sanches Ranzani. Revista de Arqueologia Pública, Campinas, n.8, dez., 2013.
O livro compilado por Hope Henderson e Sebastián Bernal trata de um tema candente na arqueologia contemporânea. Pensar em agência tem sido uma alternativa conceitual para desalinhar as propostas estruturalistas que permeavam a interpretação arqueológica, tanto de aspectos funcionais como de aspectos simbólicos da cultura material.
Os textos compilados nesta obra tentam mostrar as possibilidades e desafios do uso deste conceito na América Latina.
Os compiladores introduzem a temática e os artigos do livro com um pequeno texto de sua autoria. Nele, definem como objetivo do livro tratar os processos de reprodução social em sociedades pré-hispânicas, históricas e contemporâneas. O conjunto de trabalhos compilados faz jus à proposta geral da obra, defendendo casos em que determinados indivíduos ou setores sociais logram (ou não) intervir na ordem das coisas. 1) Papel social do(a) investigador(a) e relações sociais contemporâneas; 2) Sociedades históricas e relações sociais coloniais; 3) Os agentes, as desigualdades e as mudanças sociais em sociedades préhispânicas. Os artigos seguem a ordem temática proposta pelos compiladores, e darei sequência a essa ordem por julgá-la apropriada.
A primeira série de artigos, de Myriam Jimeno, Andres Salcedo e Alejandro Haber, contempla a arqueologia e seu papel social na Colômbia e Argentina. Se preocupam em esclarecer a subjetividade inerente ao trabalho de investigação eos consequentes problemas gerados por cartografias étnicas desenhadas pela suposta neutralidade científica.
Myriam Jimeno apresenta o desenvolvimento da antropologia como ciência acadêmica na Colômbia, tentando resumir, com êxito, 60 anos de uma disciplina em algumas páginas. Seu percurso tem três momentos: o surgimento da antropologia na Colômbia, vinda do estrangeiro, como uma disciplina de densas descrições etnográficas; o choque geracional entre a primeira geração de antropólogos colombianos e seus mestres estrangeiros; a institucionalização da disciplina e sua participação mais ativa em causas indígenas e diversidade nacional.
De acordo com a autora, a antropologia colombiana passou de atividades de “salvaguarda” de culturas a serem extintas pelo avanço da civilização ocidental, com etnografias meramente descritivas nos anos 1940, para uma postura mais engajada de defesa dos direitos das populações tradicionais. Nos anos 1970 e 1980, as comunidades indígenas constituíram canais de interação diretos com o governo colombiano, e o fortalecimento dos exércitos paramilitares fizeram com que os antropólogos buscassem outras áreas de atuação (especialmente as comunidades rurais).
A principal bandeira daantropologia colombiana contemporânea, ressalta Myriam, é a ampliação da cidadania – entender os indígenas e comunidades tradicionais em seus próprios termos, ensinando o Estado a respeitar e reconhecer a diversidade de modos de viver. O que ela chamou de naciocentrismo marcou o surgimento da antropologia na Colômbia e a empreitada das novas gerações tem sido guiada rumo ao multicentrismo, no engajamento da disciplina com a causa libertária e representativa de diferentes grupos sociais, procurando a constituição de uma condição civil cada vez mais democrática.
Andrés Salceda, em seu artigo, comenta o mesmo processo de conformação da nacionalidade, só que mais preocupado com a cartografia. As políticas segregacionistas com raízes coloniais se materializam na segregação espacial promovida pelo governo colombiano ainda nos dias atuais.
Durante o período colonial, Salceda fala do deslocamento compulsório de indígenas para trabalhar nas encomiendas mineiras, da dependência administrativa de aldeias a centros coloniais maiores e do esvaziamento de territórios não ocupados por colônias espanholas (independente de sua ocupação por povos nativos). Ou seja, os territórios não ocupados por colonos espanhóis eram considerados como baldíos, sujeitos a exploração com respaldo governamental. Essa política continuou após a independência do país em 1821, com a Lei 61 permitindo a colonos e fazendeiros tomarem posse de baldios para extração de recursos e empreendimento da colonização (assim se fez colonização da Antioquia e LlanosOrientales).
Os embates legais pela posse de terra, direitos de exploração de recursos e mão de obra colocou em choque diversos setores constituídos durante o período colonial e que tentavam manter seus privilégios na nova ordem (especialmente conflitos entre republicanos iluministas e católicos monarquistas). No entanto, esses conflitos deixaram de lado os interesses de grupos indígenas e trabalhadores rurais mestiços, maioria da população, explorada como arrendatários ou em trabalhos semiescravos.
Os conflitos agrários se intensificaram no país, e a conformação de forças armadas rebeldes seguiu uma onda de revoltas camponesas a partir dos anos 1940 (com maior intensidade nos anos 1970 e 1990). As FARC, entre outros grupos, se dizem bolivaristas defensoras do campesino contra a opressão do estado e dos grandes fazendeiros. No entanto, muitas comunidades rurais saem lesadas dos embates entre forças rebeldes, governo e forças paramilitares (sob custódia dos grandes fazendeiros do vale do Magdalena).
A situação atual é a de um Estado que o autor chama de multicultural. Por um lado, reconhece e redefine a identidade e direitos de comunidades indígenas e tradicionais, com base em sua comprovada ancestralidade. Por outro, falha nas negociações de paz com os grupos militares rebeldes e se propõe a defender os direitos dos cidadãos ao “combater a violência com violência”. Seu propósito, como defende o autor, não é aparecer como o “defensor do ilusório interesse comum da sociedade” (p. 34). “Ele surge como um intermediário que legaliza e legitima formas de extração e acumulação de riqueza e formas de estatalidade privativas, mercenárias e corruptas” (Aretxaga 2003 apud p. 34).
Os trabalhos anteriores mostram não só a relação conflituosa entre o estado e comunidades tradicionais sobre os direitos por terra e vida, mas mostra também como as ciências humanas se prestam a essa relação conflituosa. Alejandro Haber reflete sobre o aparato conceitual e teórico que guia a arqueologia e antropologia. Seu artigo interpreta os sítios arqueológicos de Ingaguassi e Tebenquiche Chico, no altiplano de Catamarca, Argentina, pela perspectiva do uywaña, palavra indígena que indica, grosso modo, uma relação constitutiva baseada na reciprocidade entre os agentes (humanos ou não humanos).
Em seu caso, as relações humanas e não humanas envolvidas no cultivo da terra, construção de moradias e canais de irrigação. Sua escolha conceitual reforça o caráter agentivo da população local e, de fato, possibilita uma arqueologia descolonizadora, uma vez que Haber desqualifica as interpretações estruturalistas e hierarquizantes para a existência dos canais.
Por meio da etnoarqueologia e de plantas arquitetônicas, o autor procura enxergar a intencionalidade cotidiana dos indígenas na interação com o poder colonial. Inclusive, tenta subverter a historiografia corrente ao atribuir o fim do assentamento de Ingaguassi, a mais rica mina do altiplano durante a colônia, ao abandono voluntário dos indígenas após uma revolta fracassada contra o governo colonial durante o carnaval – eles foram embora para suas aldeias de origem porque preferiam não mais se submeter às demandas e relações insanas do poder colonial com a terra e com o ouro. A “vitória colonial” não foi o decisivo na história do assentamento, assim com a “vitória” norte-americana no Vietnam prova-se mais sobre o papel que sobre suas perdas.
Além da agência das populações no passado, a abertura conceitual ao uywaña possibilita a simetria interpretativa com saberes não-arqueológicos. Ao perguntar para o autor “se ele achava que a vala crescia durante a noite”,um morador local pode buscar a validação científica de seu conhecimento, ou por apenas estar colocando esse conhecimento estrangeiro à prova (nada impede que a resposta “não” seja motivo de chacota do pesquisador). No entanto, há o ponto de encontro cosmológico entre o estrangeiro e o local, um momento de interação de saberes. Haber, e isso é importante, não apenas usa a palavra indígena, mas sim o conceito, sua forma viva e cotidiana (como uma possibilidade, claro, do passado). E a questão está colocada: porque nosso aparato teórico é mais apropriado para lidar com o passado de grupos indígenas do que o “aparato teórico” (enfim, os modos de pensar sobre o empírico) dos próprios grupos indígenas? Esses trabalhos defendem claramente e com fortíssimos argumentos e casos estudados, que a preocupação sobre os modos de vida de povos nativos e minorias sociais não é uma questão de boa-vizinhança e humanidade, mas sim de políticas nacionais e acessibilidade a recursos naturais (especialmente a terra). As ciências humanas, antropologia, arqueologia, história, que são os casos, têm um papel fundamental na orientação dessas políticas públicas ao serem contempladas com o direito de argumentar pela veracidade, qualidade e merecimento dessas populações quase “depositárias” de culturas ditas milenares. Exigir a ancestralidade de populações que foram compulsoriamente desalojadas de suas terras de origem pelo processo colonizador seria cômico, se não fosse cruel.
Vale observar, brevemente, que o Brasil possui uma história similar aos parceiros latino-americanos. Lucio Menezes Ferreira (FERREIRA 2005a, 2005b, 2009, 2010)analisa o surgimento da arqueologia e antropologia ainda no Brasil imperial, com pesquisadores naturalistas associados aos três principais museus do então Império – Museu Nacional, Museu Paulista e Museu Paraense. Nos três casos, as discussões eram claramente orientadas para a avaliação das possibilidades de ingresso dos indígenas brasileiros como cidadãos da nova nação (recém-independente).
O artigo de Pedro Paulo Funari nos ajuda a pensar essa seara de possibilidades interpretativas na arqueologia e seus fundos políticos. Funari menciona três estudos diferentes sobre o mesmo sítio, o Quilombo de Palmares. Estudararqueologicamente esse importante lugar da história nacional pode tomar diversas vias: pensá-lo como um ponto local de conexão entre diferentes redes constituintes do mundo moderno global, pensá-lo a partir de uma etnogênese própria da miscigenação colonial ou pensá-lo como uma exacerbação da lógica colonial, chegando a ameaçar as colônias portuguesas como entreposto comercial é jogar com as estruturas sociais e os agentes que nelas participam. O autor vai além ao nos lembrar das preferências e usos distintos dessas interpretações por parte de múltiplosagentes sociais no presente (Movimento Negro, mídia independente, poder público), embora não se detenha nesse tema.
Esse trabalho coloca em pauta a segunda temática anunciada pelos compiladores do livro: Os problemas de pensar os enfoques relacionais para contextos específicos como os de contato colonial (Brasil, Colômbia e Argentina). Pedro Paulo Funari, Alejandro Bernal Velez, Silvana Buscaglia e Marcia Bianchi Villella trazem estudos de caso nos quais Pierre Bourdieu, Anthony Giddens e Michel Foucault são referencias constantes no exercício de compreensão das subjetividades em atuação direta nas estruturas, seja para tentar modificá-las, seja para tentar tomar proveito delas. Quais seriam os limites das estruturas estruturantes e estruturadas? Alejandro Bernal Velez, por exemplo, trabalha com inventários e apelos às ouvidorias reais da Argentina colonial no século XVI, para entender como os caciques de Don Juan e Don Pedro foram bem sucedidos no manejo das instituições coloniais para enriquecer.
A tese de Alejandro pretende fugir da dicotomia “dominador/dominado”, pois reconhece a possibilidade de transgressão, e observa como a própria estrutura colonial, enquanto nega a autenticidade do exótico, se assenta sobre ele. Se, por um lado, as encomiendas eram divididas entre os espanhóis mais ricos, por outro, os encomenderos precisavam manter uma relação de certa parceria com as lideranças indígenas das comunidades em território de sua posse, de modo a garantir acesso a recursos e mobilização de mão de obra. Por outro lado, os caciques reconheciam sua posição política estratégica, e muitas vezes usavam métodos coercivos e fraudulentos para ganho de causa de encomenderosmais promissores aos seus interesses. E, a meu ver, aí reside uma contrapartida importantíssima no argumento de Velez.
Ele deixa claro que a aproximação dos caciques aos colonizadores não representa um ganho sem perdas, uma vez que os abusos registrados do poder cacical entre os seus deslegitimava a liderança e crescia o desgosto entre os camponeses pela chefia corrompida. Ao mesmo tempo, muitas lideranças indígenas viam na ouvidoria real uma instituição colonial que valia o risco (e o custo) na tentativa de criminalizar os excessos dos encomenderos em defender seus benefícios.
A institucionalização do cacicado e criação de capitanias familiares nas comunidades indígenas destroem as relações de reciprocidade antes existentes e estabelece uma série de interesses acumulativos típicos do capitalismo moderno. O autor defende que agência é justamente o modo como os indivíduos testam a elasticidade das estruturas presentes.
Seguindo a mesma proposta, Silvana Buscagliaapresenta parte dos estudos arqueológicos desenvolvidos em Floridablanca, um dos primeiros assentamentos da Coroa Espanhola no deserto Patagônico, durante o século XVIII (na Baia de San Julian, atual província de San Julian, Argentina). O malgrado assentamento durou quatro anos apenas, sendo desmantelado e queimado por ordem real, após considerar que seus colonos não tinham meios para viverem por si próprios. Floridablanca possuía mais que um propósito agrícola e ocupacional, seu planejamento, como nos mostra a documentação oficial, previa uma colônia moldada pelas normas do iluminismo patriarcal, igualitária, pacífica e geradora de cidadãos úteis. Munida de Bourdieu (1977), Lightfoot (1998) e Sahlins (1981, 1985 e 1995) na compreensão teórica dos espaços criados pelos encontros coloniais, a autora pretende aguçar a percepção das formas cotidianas e “subliminares” do habitus colonial, debruçando-se no material arqueológico. Em poucas palavras, é possível ver como se constitui, no dia-a-dia, o esquema colonial e as tentativas de subvertê-lo.
O corpo documental analisado é composto, basicamente, pelas cartas escritas pelo superintendente da colônia, Don Antonio de Viedma, à Coroa Espanhola. Entre escritos e omissões, a autora faz três observações: 1) o único contato interétnico que se afirma é daquele entre o superintendente e o cacique (Julián); 2) O fluxo de bens é registrado como indo dos espanhóis aos indígenas (em sua maioria bens recebidos da metrópole), enquanto que dos indígenas só se registra a entrada de “favores” (força de trabalho, carne de guanaco); 3) Não há menção sobre o mundo lúdico (consumo de álcool ou participação de jogos) em nenhum dos lados. A documentação constrói a imagem de uma sociedade pautada pelas normas cristã, produtiva e civilizadora.
Para os propósitos deste pequeno artigo, Buscagliaanalisa a indústria lítica do sítio, e, para tanto, nos dá três razões: 1) O material é resultado de diversas práticas cotidianas das populações indígenas (de práticos a lúdicos); 2) Seria uma novidade para os colonos espanhóis, e aposta no argumento de Pfaffenberger (1988) de que a circulação desses materiais seria acompanhada de relações e interações sociais; 3) Nesse momento de interações é possível expressar, construir e negociar identidades. A distribuição do material lítico pelo sítio e sua qualidade é base para seu argumento pela interação entre os colonos e a população indígena em torno da tecnologia de lascamento. Das casas e do forte, o segundo é o que apresenta uma quantidade maior de materiais líticos, seguido pela (suposta) casa do soldado casado e as casas dos colonos civis. Sua interpretação é de que os militares, responsáveis pela proteção do bem-estar e ordem da colônia, teriam tido um contato mais direto, e talvez mais livre, com os indígenas que circundavam a exótica colônia.
Ainda em Floridablanca, Marcia Bianchi Villelliargumenta sobre as mesmas condições normativas documentadas, mas tenta analisar sua subversão pela arquitetura e organização espacial. Partindo da teoria da estruturação social de Giddens, trabalha com a ideia de que a ocupação é planificada seguindo pautas de interação social. Sendo assim, é relevante perguntar quais são os comportamentos previstos nas edificações existentes, quais foram efetivamente desenvolvidos e quais foram executados além da previsão (e por quê?).
Ou seja, analisar os processos de criação, reprodução e transformação da ordem social, percebendo que as estruturas sociais não são entidades acima do comportamento humano, pelo contrário, são resultado de práticas do dia-a-dia (e aqui aparece o conceito de habitus de Bourdieu).
Sobre essa teoria, Floridablanca nos brinda com um excelente exemplo ao revelar, nas escavações, estruturas que não estavam previstas no plano oficial da coroa. Além dos vestígios de consumo de álcool em uma delas e do cuidado estético na construção da soleira em outra, a própria existência dessas estruturas já nos permite pensar sobre os limites de alcance dos interesses estruturadores no cotidiano.
Até este momento do livro, os trabalhos têm sido felizes e positivos no uso do conceito de agência como categoria analítica para pensar o poder individual e coletivo de mudar a sociedade em que vivem. Victor Gonzáles Fernandés, Hope Henderson, Andrea H.
Cuéllar, Carlos Sanchéz, autores na sequência da obra, discutem problemas conceituais e teóricos de pensar agência em sociedades pré-hispânicas. As principais questões giram em torno da visibilidade da intenção humana no registro arqueológico (choque entre correntes funcionalistas e simbólicas) e mesmo a permeabilidade dos sistemas culturais para tais atos de subversão.
Retomando o tema da hierarquização social, brevemente levantado pelo artigo de Alejandro Haber, Victor González Fernandés propõe que a complexificação social não partiu de elementos externos às sociedades (ele retoma as propostas de Elman Service, Robert Carneiro, Boserup, Cohen, e Reichel-Dalmatoff e as discussões entre 1960 e 1980), tampouco por dinâmicas que enfatizam o exercício de poder de poucos sobre muitos (proposições trazidas por Timothy Earle e Charles Spencer entre 1970 e 1990). Citando o caso de San Agustín, Huila, região de Mesitas (ocupada desde 1000 a.C.) e o gradual aglomeramento populacional em torno de tumbas monumentais.
Estruturas existentes nos sítios estudados mostram certa igualdade produtiva (ausência de diferenciação de materiais) que teria durado cerca de 2000 anos. Segundo o autor, a quantidade de vestígios encontrados durante todo o Formativo 1 ao 3 (1000 a.C. e 1º século d.C.) cresceu proporcionalmente à população e não parece haver distinção quanto ao acesso nos modos de produção, e as aglomerações parecem ser feitas em torno de centros/famílias cerimoniais. Durante o clássico regional (1000-900 d.C.) esses centros cerimoniais e suas famílias regentes parecem ganhar importância com a construção de tumbas monumentais, acompanhado do crescimento populacional em seu entorno e uma marcada distinção de vestígios presentes nos sepultamentos associados aos monumentos, daqueles não associados.
A tese do autor é de que as elites religiosas não teriam se conformado por nenhum tipo de grande diferenciação nas atividades de produção nem em acesso aos recursos. Sua única diferença seria um poder ritual concebido pela tradição (tendo em vista a longevidade do processo de complexificação aqui exposto). A fonte de mudança parece estar, defende Fernandés, na própria estruturação e repetição de atividades religiosas durante 80 gerações, e não no acesso exclusivo de uma elite aos excedentes ou modos de produção.
Essa proposta me parece instigante, mas fica a dúvida sobre o papel da intencionalidade e da complexificação social em seu texto. Primeiro, seu argumento parece atribuir agência nem a indivíduos nem ao coletivo, mas à própria estrutura (a repetição de atividades rituais). Nesse contexto, o coletivo teria angariado a estabilidade dos sistemas rituais por uma política de taxação baixa e receptiva. Não há uma relação bem estabelecida entre como a elite religiosa teria ponderado sobre a manutenção de seu poder, o controle simbólico e a política de taxas. Ou seja, há uma superestrutura que organiza as funções sociais e há uma população que a repete, com pequenas doses de reformulação, uma premissa inquestionada. O que tem força, assim me parece que conclui o autor, é a estrutura social e não os seres humanos.
Segundo, nem ele, nem os autores que seguem, explicitam o que querem dizer por “sociedades complexas” e “complexificação social”. Uma sociedade complexa é uma sociedade hierarquizada? No texto de Victor, ficamos com essa impressão. Apesar de derrubar barreiras sobre as origens da complexificação social, não faz uso crítico desse conceito. A divisão de papeis sociais indica a existência de categorias sociais? Seriam todas as formas de prestígio igualmente formas de hierarquização? Não seria hora de repensar o uso do adjetivo “complexo” para sociedades humanas? Afinal, é preciso ser hierárquica e desigual para ser complexa? Em suma, seria interessante fugir também das categorias evolucionistas de classificação social se quisermos alcançar formas menos colonialistas de interpretação arqueológica.
Hope Henderson vai um pouco mais além ao procurar em Eric Wollf as reflexões sobre diferentes graus de acesso ao poder social. Para ela, há que desarticular as capacidades de agenciamento das imagens de grandes chefias políticas. Em seu estudo de caso sobre a antiga ocupação Muisca, no Vale do Leiva, Colômbia, entre os séculos XI e XVI da era cristã, percebe que o possível surgimento de categorias sociais distintas (marcada pela leve predominância de cerâmica em algumas residências, combinado com seu cercamento) não impediu que a ocupação territorial ocorresse de maneira independente. Ou seja, em todo o processo de ocupação Muisca no Vale de Leiva, a organização dos assentamentos parecia obedecer a parâmetros não associados com os de uma elite que surgira desde o quarto século antes da chegada dos espanhóis. Sua sugestão é de que o status social não era suficiente para limitar os campos de ação dos demais setores da sociedade.
Por essa razão, a autora defende as formas de exercício de poder delimitadas por Wollf e acredita que o poder organizativo (capacidade de controlar os contextos que permitem criar as organizações e expressões das pessoas) e o poder estrutural (capacidade de gerar configurações sociais que permitem as possibilidades e limites de atuação) podem ser mais úteis em contextos pré-hispânicos que as reflexões sobre agenciamento centradas no poder individual (capacidades pessoais de influência sobre os demais) e poder de mandar (capacidade de forçar obediência).
Os casos de agenciamento individual que aqui foram contemplados não puderam ser pensados sem as referências documentais a indivíduos específicos, além de ser mister pensarmos nas possibilidades de vontade coletiva como importante agente na condução e modificação da sociedade.
Andrea M. Cuellartoca na questão da visibilidade individual versus visibilidade coletiva no registro arqueológico de populações pré-históricas; e como é possível combinar os interesses trazidos pela agência com as conquistas teóricas de proposições clássicas como a do cacicado. Seu estudo de caso é no Vale de Quijos, a partir do quinto século a.C., e argumenta contra o rechaço do conceito de cacicado e sua referência à centralização social. Se, por um lado, o crescimento populacional não teve aparente relação com a distribuição de recursos (assentamentos estudados mantinham uma aparente independência na produção de gêneros alimentícios – preponderando aqueles adequados ao ambiente local – e de ferramentas líticas de obsidiana), por outro é evidente a tendência ao agrupamento em torno de centros específicos. Ou seja, pode ser que a centralização não tenha ocorrido por razões econômicas, mas não há por que ignorar os indícios de centralização geográfica, indicando alguma forma de centralidade política.
O artigo da autora não apresenta nenhum argumento contra a proposição de agenciamento. No entanto, está mais preocupada em defender a hierarquia como princípio organizativo do que efetivamente refletir sobre as capacidades individuais ou coletivas de mudança social.
Finalmente, o artigo de Carlos Augusto Sanchéz é um ataque direto ao conceito de agência ao propor que ele nos traz uma visão ilusória de mobilidade social, enganando-nos quanto aos reais efeitos da hierarquia social. O poder não é uma inerência a todas as relações humanas, como o querem Giddens, Bourdieu e Foucault, mas “outorgado pelo controle econômico da sociedade” (p. 210). Em um projeto de arqueologia regional pelo alto do Magdalena, Colômbia, o autor vê a transição de uma sociedade agrícola sedentária com independência produtiva, para uma sociedade centralizada em torno de centros políticos, com claras delimitações de paisagem, construção de canais não-comunitários (associados a umas poucas casas) e tumbas megalíticas a partir do primeiro século a.C. Para ele, fica clara a relação entre a centralidade e o controle econômico dos meios de produção (agricultura), com respaldo de instâncias da vida religiosa (tumbas monumentais). Os dados etnohistóricos mencionam sociedades indígenas centralizadas já no século XVI e reafirma a estabilidade e força dos mecanismos de controle da produção e subordinação dos “caciques secundários” aos “caciques principais”.
O trabalho de Carlos Sanchéz aborda o registro arqueológico por uma perspectiva marxista e acredita que dotar os protagonistas históricos de liberdade de atuação é deixar para segundo plano as forças coercivas e constritoras da estrutura social. Em poucas palavras, lhe parece uma proposta interpretativa viciada na pretensa liberdade empreendedora típica da sociedade capitalista, que discursa pelo liberalismo meritocrático enquanto esconde seus mecanismos de controle da produção.
Esse último artigo parece fechar o livro como um ciclo que percorre as vantagens e desvantagens interpretativas de pensarmos o conceito de agência. De sua liberdade ao seu liberalismo, do rompimento das correntes forçosas do estruturalismo para a ilusão traiçoeira do capitalismo. As discussões propostas neste livro deixam clara a carência epistemológica que ainda cerca o uso das teorias de agência em arqueologia. Ao mesmo tempo em que não parece mais viável buscarmos respostas atemporais apenas nos mecanismos coletivos previstos pela sociologia, história e antropologia, devemos tomar cuidado para não desbancar no livre-cambismo de forças. Se não podemos perder de vista as pautas vivas dos movimentos de minorias sociais, perceber o poder de mudança e manejo que reside nos indivíduos ou em determinados setores além das elites é politicamente reconfortante. Embora a vida em coletivo não seja suficiente para impedir o desvio de conduta e a subversão da ordem imposta, não podemos dedicar toda a história de um povo a breves figuras exaustivamente historiografadas.
Pensar agência é pensar em atuação, nas forças que constroem as normas sociais e naquelas que tentam alterá-las.
Vale observar, ainda, que há uma lacuna geral entre os artigos de arqueologia – os métodos, descrições de materiais e imagens ilustrativas deixam muito a desejar. Entendo que a ideia central desta obra não seja uma apresentação precisa das coleções e métodos de campo, mas os argumentos dos autores, quando tem como objeto os vestígios arqueológicos, devem ser mais explícitos nos modos de registro e coleta de dados. Os mapas costumam ser de baixa resolução e pouco ilustrativos dos argumentos, e há poucas (quando há) imagens dos artefatos descritos. Particularmente frustrante é a pouca reflexão e descrição dos métodos de campo.
Como encontrar a intencionalidade no registro arqueológico? Como fazer uma arqueologia que escape dos moldes colonialistas nos quais a disciplina foi engendrada? Essas questões são centrais no desenvolvimento de uma arqueologia mais democrática e diversificada. O único artigo que me pareceu ponderado na apresentação dos materiais, imagens ilustrativas, planos claros e legíveis e descrição dos métodos foi o de Silvana Buscaglia.
De todos os artigos de arqueologia, os métodos de escavação, ou o que foi possível conceber deles, não parecem se distanciar muito do que usamos cotidianamente. A chave parece residir na própria escolha teórica. Se compararmos dos dados apresentados por Carlos Sanchéz, Hope Henderson, Andre Cuellar, por exemplo, podemos ver que todos trabalham projetos de escala regional, tratando de populações pré-hispânicas, discutindo o surgimento de hierarquias sociais, mas com resultados analíticos muito diferentes. Certamente que são diferenças oriundas de múltiplos contextos (populações distintas, regiões distintas), mas a similaridade dos dados apresentados (crescimento populacional, vestígios de tecnologias produtivas e simbólicas, diferenciação social) deixa claro que muito do que foi entendido parte das escolhas dos próprios autores.
Referências
FERREIRA, Lucio Menezes. “Diálogos de arqueologia sul-americana: Hermann von Ihering, o Museu Paulista e os museus argentinos no final do século XIX e início do XX.” Revista do Museu de Arqueologia e Etnologia Vol. 19 (2009): 63-78.
FERREIRA, Lucio Menezes. “Footsteps of the American Race: archaeology, ethnography and romanticism in imperial Brazil.” In: Global Archaeology Theory: contextual voices and thoughts, por Pedro Paulo A. FUNARI, Andrés ZARANKIN e Emily STOVEL. New York: Springer, 2005b.
FERREIRA, Lucio Menezes. “Solo civilizado, chão antropofágico: a arqeuologia imperial e os sambaquis.” In: Identidades, discursos e poder: estudos da arqueologia contemporânea, por Pedro Paulo A. FUNARI, Charles E. ORSER Jr. e Solange Nunes de O. SCHIAVETTO.São Paulo: Annablume/PAFESP, 2005a.
—. Território Primitivo – A institucionalização da arqueologia no Brasil (1870-1917). Porto Alegre: EDIPUCRS, 2010.
Bruno Sanches Ranzani da Silva – Doutorando em Arqueologia pelo MAE/USP.
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