O retorno do real – HAL (NE-C)

HAL, Foster. O retorno do real. Trad. Célia Euvaldo. São Paulo: Cosac Naify, 2014. Resenha de: LEONÍCIO, Otavio. O real e a História. Novos Estudos – CEBRAP, São Paulo, n.101, Jan/Mar, 2015.

Os problemas em torno dos quais O retorno do real se constitui são imensos. Eles têm pautado o pensamento e a prática de críticos e artistas desde meados dos anos 1960 – ou seja, há exatamente meio século; de um modo ou de outro, e sobretudo no que concerne à questão do significado da arte dita contemporânea, dizem respeito a uma questão crucial: a crise da concepção de história sobre a qual a arte vinha sendo (e,parcialmente pelo menos,ainda vem sendo) produzida desde o romantismo. Mais especificamente, a questão central de O retorno do real é a eventual superação de um “historicismo persistente que julga a arte contemporânea atrasada, redundante e repetitiva” (p. 30). Em certo sentido, portanto, Foster se vê aqui às voltas com os mesmos desafios e dilemas de uma geração de artistas e críticos que, como afirmou um de seus maiores expoentes, Robert Smithson, percebeu que “uma consciência transistórica emergiu nos anos sessenta”1.

A agenda de Foster não coincide, todavia, com a dos artistas sessentistas. Pois o que está em jogo para ele é também, e talvez sobretudo, a viabilidade de uma modalidade discursiva (a crítica de arte) que, desde o romantismo, busca o significado das obras de arte na interseção entre qualidade estética (vinculada à noção transcendental de experiência estética) e pertinência histórica (vinculada à situação das obras de arte no quadro geral da História da Arte). Ou seja, o que está em jogo para Foster são as condições de possibilidade de um discurso crítico cujos fundamentos em larga medida coincidem com o próprio advento (em fins do século XVIII) do historicismo – precisamente os fundamentos que a arte dos anos 1960 pôs em xeque. Quer dizer, diferentemente do que ocorre com boa parte da práxis artística dos anos 1960 e 1970, Foster pretende salvaguardar a prática crítica tradicional. Como? Dotando-a de um vocabulário conceitual “pós-histórico” (p. 25) não apenas operativo mas igualmente legitimável num ambiente de crescente desprestígio das “grandes narrativas” – as históricas, sobretudo2.

A solução encontrada por Foster lança mão do conceito de “neovanguarda”, compreendido aqui de modo idiossincrático, i.e., em termos da noção de “Nachträglichkeit” (“efeito a posteriori” ou, literalmente, “ação retardada”). Tomada de empréstimo à teoria psicanalítica, a noção supõe que “um evento só é registrado por meio de outro que o recodifica; só chegamos a ser quem somos no efeito a posteriori(Nachträglichkeit)”. Toda a argumentação de Foster parte pois da hipótese de que “a vanguarda histórica e a neovanguarda são constituídas de maneira semelhante, como um processo contínuo de protensão e retenção, uma complexa alternância de futuros antecipados e passados reconstruídos” (p. 46). Nessa perspectiva, supostamente cairia por terra o argumento (levantado por Peter Bürger em Teoria da vanguarda, contra o qual O retorno do realexplicitamente se volta)3 de que a arte dos anos 1960 se restringiria a uma repetição farsesca e acrítica das ações empreendidas pelas chamadas vanguardas históricas. Para Foster,ao contrário,a neovanguarda dos anos 1960 consistiria na plena efetivação daquilo que apenas de modo incompleto ou inacabado foi empreendido no início do século XX por movimentos como construtivismo, dadaísmo e surrealismo.

Obviamente, pode-se arguir o rendimento heurístico do modelo psicanalítico proposto por Foster, quer dizer, questionar em que medida ele constitui de fato um ganho de conhecimento sobre a arte dos anos 1960.Significativamente,a questão é levantada pelo próprio autor, o qual, numa nota de pé de página desconcertante, admite que “[a]inda que eu combine o desenvolvimento com o efeito a posteriori, minha extensão da (re)construção do sujeito individual até a (re) construção de um sujeito histórico é problemática”. Donde a dúvida: “Será que posso abordar historicamente a lógica do sujeito se meu modelo da história pressupõe essa lógica? Esse vínculo duplo seria produtivo ou paralisante”.

O fato de Foster ter ido adiante com seu modelo psicanalítico (sem o qual este livro não existiria) não dá por encerrada a questão. De fato, em termos epistemológicos, o livro apenas explicita os dilemas de uma geração de intelectuais progressistas que, tendo sido formada num ambiente francamente desconstrutivista, viu-se nos anos 1980 (ou seja, num contexto em que grassavam sem resistência institucional tanto Aids quanto Reaganomics) à procura de um aparato teórico porventura menos irrealista que o desconstrutivismo. A advertência de Foster acerca dos limites de sua própria empreitada intelectual, voluntariamente destinada a resgatar não todo e qualquer real, mas apenas a uma reconstrução subjetiva sua4, soa nesse sentido duplamente sintomática: por um lado, evidencia um incontido desejo de realidade; por outro, denuncia o mal-estar para com a própria noção de realidade – ao menos com relação àquelas noções de realidade que, advertidamente ou não, possam evocar uma referencialidade minimamente estável. Mais do que um dilema, a posição de Foster expõe a condição porventura aporética do projeto pós-pós-modernista, do qual Foster é um avatar. Significativamente, no capítulo final de O retorno do real, Foster se pergunta acerca das desconstruções operadas por Foucault e Derrida: “Esses pós-estruturalismos reelaboram os acontecimentos do pós-colonial e do pós-moderno criticamente? Ou servem de ardis por meio dos quais esses acontecimentos são sublimados, deslocados ou, ao contrário, desativados?” (p. 199). Enredado numa espécie de limbo epistemológico, Foster – como muitos de nós, aliás – procura abrigo num mundo pós-transcendental particularmente inóspito a desconstrutivistas não irrealistas e sobretudo não pluralistas (avessos portanto ao “falso pluralismo do museu, do mercado e da academia pós-históricos” [p. 7]).

O que a solução proposta por Foster revela, no entanto, é um vício de origem – qual seja, a suposição de que, como queria Bürger, a arte dos anos 1960 caracterizar-se-ia por um resgate (aos olhos de Bürger, acrítico e anacrônico, aos de Foster, deliberado e pertinente, porquanto produto de uma inusitada e lúcida “consciência histórica”) de práticas próprias às “vanguardas históricas”. De fato, nas palavras de Foster, “os artistas da década de 1960 tiveram de elaborar [os procedimentos da vanguarda histórica] criticamente; a pressão da consciência histórica não permitia nada menos do que isso” (p. 25). Este, de fato, o pressuposto não problematizado de O retorno do real: dar por suposto (contra inúmeras evidências de que o que de fato caracteriza a arte dos anos 1960 não é em absoluto o predomínio de uma consciência histórica, senão a emergência e disseminação de uma consciência meta ou anti-histórica) que a questão crucial para a neovanguarda seria “remodela[r] procedimentos da vanguarda para fins contemporâneos” (p. 8). Como se vê, a divergência de Bürger é apenas parcial, a diferença residindo no modo como um e outro interpretam um mesmo fenômeno, Bürger condenando-o, Foster exaltando-o.

Os limites insuperáveis de O retorno do real vêm daí. A começar pela evidente dificuldade do autor de dar conta da arte com a qual, aparentemente, tem maior empatia – o minimalismo. Pois se de um modo ou de outro o minimalismo (mas também uma parte importante da arte produzida em sua esteira) põe em xeque a ideia de vanguarda (em função justamente da consciência de seus vínculos com a visão de mundo historicista), Foster se revela incapaz de conceber quaisquer práticas artísticas “ambiciosas” que não sejam igualmente “avançadas” ou “inovadoras” (passim), ou seja, que não suponham a noção de “desenvolvimento histórico”. Dito de outro modo, o que Foster não parece estar pronto a conceber (a exemplo de Bürger) e mais ainda aceitar é – parafraseando T.J. Clark – uma arte sem futuro5. Donde o descompasso: ali onde uma parte significativa da arte dos anos 1960 e 1970 buscava conjurar uma experiência temporal meta-histórica (em cujo contexto o conceito de vanguarda simplesmente não faz sentido), Foster se empenha a todo custo em preservar a ideia e o valor não apenas da vanguarda, mas acima de tudo de uma historicidade supostamente inerente à arte – em suas palavras, a “historicidade de todas as artes, incluindo a contemporânea” (p. 33). De par com essa historicidade essencial, o que Foster pretende salvaguardar é a criticalidade da arte – mais especificamente, a criticalidade histórica da arte. Uma vez mais, estamos diante de uma posição axiomática. Pois, aos olhos de Foster, simplesmente não há criticalidade num ambiente em que predomina a “desatenção à historicidade” e no qual, portanto, a crítica resulta marcada pela “perda de influência histórica” (p. 13).

Os pressupostos modernistas dessa salvaguarda da historicidade da arte (e com ela de uma crítica baseada num conceito supostamente renovado de “desenvolvimento histórico”, não mais progressista e teleológico) são evidentes: com a noção de neovanguarda o que se quer preservar é uma tradição: a tradição do novo, i.e., de uma ideia de arte segundo a qual,como afirmou um de seus mais influentes praticantes – Harold Rosenberg –, “ter um lugar na história da arte é o valor”6.

Obviamente, Foster não há de concordar com essa leitura; de toda evidência, ele está convencido de que seu modelo alternativo de desenvolvimento histórico foi de fato capaz de complexificar categorias fundamentais como “causalidade”, “temporalidade” e “narratividade” (cap. 1, passim), e, assim, superar o modelo historicista de desenvolvimento, na qual a narrativa modernista se baseia. Até onde percebo, no entanto, o que Foster logrou superar não foi propriamente o modelo historicista, mas uma versão bastante simplória deste.

Não que Foster ignore a complexidade dos problemas teóricos com os quais está lidando aqui. Notadamente, o autor está a par da centralidade que aqui adquire a noção de evento – o fato de que, como adverte Zizek, uma das referências teóricas de O retorno do real, “o ponto crucial aqui é o status modificado do evento”7. Mas aqui também fica claro como o diálogo com Bürger resultou pouco produtivo. Pois a noção de evento que Foster pretende complexificar, tomada emprestada de Bürger, não vai muito além daquela que subjaz à boutade marxiana de que “todos os grandes acontecimentos da história mundial ocorrem duas vezes, a primeira como tragédia, a segunda como farsa” (p. 32). A escolha de Foster é curiosa – mesmo de parte um intelectual marxista; surpreende sobretudo que Foster tome como contramodelo uma noção tão estereotipada de evento histórico – noção que ignora a evidência de que o traço principal da noção de evento no contexto do historicismo não é nem a originalidade nem a autonomia, senão, conforme a formulação de Reinhart Koselleck, o fato de estar sempre pronto a “alterar sua identidade em função do status cambiante que adquire no progresso da história”8. Nessa perspectiva, fica claro como a noção de evento que Foster deriva de Marx (na qual, em parte pelo menos, se baseiam os realismos de um e de outro) deixa de lado a questão central do significado dos eventos num contexto epistemológico (o historicismo) comandado pela noção de “processo” – mais especificamente, por um processo que, como percebeu Hannah Arendt, “torna por si só significativo o que quer que porventura carregue consigo, adquirindo assim um monopólio de universalidade e significação”9. A suposição de que Foster logrou complexificar as noções de evento e, por conseguinte, de desenvolvimento histórico é, como se vê, enganosa. O que Foster complexificou foi um par de estereótipos.

A opção de Foster por operar a partir de tal contramodelo não é injustificada, contudo; ela se adéqua à perfeição a uma argumentação que pretende requalificar historicamente as neovanguardas, vistas não mais como repetição farsesca mas, alternativamente, como plena realização histórica. Uma vez mais, fica claro quão limitada é a divergência de Bürger. Pois a leitura de Foster permanece atravessada pelas noções – e, além dessas, pelos valores – tipicamente modernistas de autenticidade e originalidade. Afinal, o que Foster pretende sustentar por meio de seu modelo alternativo de desenvolvimento senão a tese de que as neovanguardas não são farsescas e espúrias? A argumentação de Foster é, de fato, sem ambiguidade: se as neovanguardas repetem eventos históricos, isso se deve ao fato de que, de acordo com o conceito de “efeito a posteriori”, sua primeira manifestação/ocorrência se restringiria apenas a uma dimensão incompleta, reprimida. Em vez de mera repetição, sua segunda ocorrência nos anos 1960 seria portanto da ordem do desrecalque de algo que por trinta, quarenta anos havia permanecido reprimido. O que a teoria de Foster sustenta, portanto, é a ideia de que, em sua integridade e plenitude, as ações retardadas da neovanguarda constituem um evento histórico autêntico, original, verdadeiramente vanguardista. Ora, mas uma posição de fato meta-historicista não deveria, ao contrário, simplesmente descuidar das noções de autenticidade e originalidade, não obstante os enormes problemas que esse deslocamento coloca para um sistema de arte dependente – hoje como ontem – da ideia de vanguarda?

O que Foster não é capaz de conceber, em revanche, é uma história que não seja desenvolvimental, isto é, que não se oriente naturalmente em direção ao futuro – mais especificamente, a um futuro entendido como “horizonte de expectativa”, i.e., como campo aberto a transformações mais ou menos utópicas. Dito de outro modo, desenvolvimento é compreendido aqui não como categoria adstrita a um regime de historicidade específico (o historicismo), senão como condição antropológica e transistórica,e nesse sentido insuperável, da experiência temporal humana. Como se vê, o argumento em favor de uma “historicidade de todas as artes” tem uma origem definida.

Que a defesa de um marxismo renovado (em contraste com o marxismo alegadamente ossificado de Bürger) esteja no centro da reflexão de Foster não é, como se vê, fortuito: é sempre preservar a ação historicamente empenhada – isto é, a ação empreendida na e para a “História” – aquilo que está em jogo aqui. Para Foster, afinal, prática artística ambiciosa é também, necessariamente, prática engajada. Dito de outro modo, aos olhos de Foster o que cabe à práxis artística não diverge muito do que cabe à ação política: viver no front da História, fazer com que esta avance, combater a ameaça de estagnação. O pressuposto tem, é claro, um desdobramento no âmbito da crítica: se não se faz arte ambiciosa fora da História, o mesmo se dá com respeito à crítica. Esta, de fato, a função precípua, e a decorrente legitimidade, da crítica modernista (mas também, como se vê, da crítica supostamente pós-modernista de Foster), cuja principal incumbência, na prática, é de fato a atribuição da situação histórica das obras, quer dizer, a definição do lugar preciso ocupado pelas obras de fato avançadas e inovadoras em cada etapa do “desenvolvimento histórico”. Tanto quanto a práxis artística, a atividade crítica deve pois obedecer ao preceito de que “a compreensão histórica não depende do apoio contemporâneo, mas um engajamento no presente, seja artístico, teórico e/ou político, é indispensável” (p. 11).

Mas, repare-se: tanto quanto o “engajamento no presente”, o argumento supõe um “presente” definido essencialmente como tempo e espaço de “engajamento”, quer dizer, como tempo e espaço de uma ação historicamente engajada e transformadora. Ora, como destacou Hans U. Gumbrecht, tal concepção do presente é um dos pressupostos mais básicos, ainda que tácitos, do historicismo. Segundo Gumbrecht, é de fato apenas no contexto do regime temporal historicista que “em cada momento presente, o sujeito deve imaginar uma gama de situações futuras que têm de ser diferentes do passado e do presente e dentre as quais ele escolhe um futuro de sua preferência”; é apenas nesse contexto que a “subjetividade pode integrar o componente de ação na autoimagem que ela oferece à humanidade. E é essa inter-relação entre tempo e ação que cria a impressão de que a humanidade é capaz de ‘fazer’ sua própria história”. Coerentemente, é também apenas nesse contexto que o tempo, compreendido como agente absoluto de mudança, “dá à inovação o rigor de uma lei compulsória”10. Como fica claro, modernismo e consciência histórica (mas também marxismo) são astros de uma mesma constelação epistemológica, em cujo centro jaz o regime de historicidade historicista. O que tal evidência expõe é o tamanho dos desafios que a crise do historicismo coloca para a crítica “progressista”. Pois o que está em jogo neste caso é nada menos do que a viabilidade não apenas de uma esquerda sem futuro (nas palavras de Clark, uma esquerda apta a “não ver uma forma ou uma lógica – um desenvolvimento desde o passado até o futuro”, e que portanto diz adeus às “reflexões [afterthoughts] e imagens da vanguarda”)11, mas de uma esquerda historicamente desengajada, ou pelo menos eventualmente disposta a engajar-se numa concepção alternativa de história. Não por acaso, Foster conclui O retorno do real indagando-se em que medida um sujeito pós-moderno disfuncional (o sujeito “suspenso entre a proximidade obscena e a separação espetacular”) não se limitaria a obedecer à lógica de “uma razão cínica [que] não elimina mas renuncia ao poder de ação [agency]” (p. 206).

Que o apego de Foster à episteme modernista/historicista constitui tanto a marca registrada quanto os limites de O retorno do real fica evidente na afirmação de que Michael Fried (como se sabe, o grande detrator do minimalismo)12 “é um excelente crítico do minimalismo não porque tem razão em condená-lo, mas porque, para ser persuasivo, tem de entendê-lo, e isso significa entender sua ameaça ao modernismo tardio” (p. 66). A tese é absurda; Fried jamais compreendeu o minimalismo, fenômeno que ele – como tantos outros depois dele, aliás – se restringia a ver do ponto de vista de sua suposta objetidade literal, uma visão que, como destacou Anne M. Wagner, é francamente reducionista13. O que tal afirmação deixa claro, no entanto, é a afinidade entre os fundamentos vanguardistas (e portanto modernistas/ historicistas) das práticas críticas de Fried e Foster.

Não surpreende, nesse sentido, que, não obstante a ressalva que faz à ênfase excessivamente fenomenológica que Rosalind Krauss dá ao minimalismo14, Foster tenda sempre a ver o minimalismo como expressão essencialmente fenomenológica e de tipo site specific (específico do lugar) – em suas palavras, como uma arte na qual o espectador “é instigado a explorar as consequências perceptivas de uma intervenção particular num determinado local [site]. É esta reorientação fundamental que o minimalismo inaugura” (p. 53). Que tal definição (afeita à obra tipicamente antiminimalista do segundo Robert Morris, mas também aos objetos e operações fenomenológicos de um Richard Serra) implica uma redução absurda do significado da obra crucial de Donald Judd é uma das consequências do enviesamento conceitual/ ideológico de Foster. Que ela não acomode, ou acomode de modo canhestro, no espaço minimalista a obra essencialmente antifenomenológica e anti-site specific de Robert Smithson, é outro. Numa chave psicanalítica, pode-se dizer que, em sua busca pelo desrecalque do real, Foster acabou reprimindo o real minimalista – algo, aliás, que Joseph Kosuth já havia destacado com respeito às construções historiográficas perpetradas ainda nos anos 1970 pelo grupo de críticos ao qual Foster está ligado, a começar por Krauss. De fato, como afirmou Kosuth, “a fácil assimilação do minimalismo no mainstream como mais um tipo de forma na história da escultura constitui basicamente a limpeza [cleansing] de seu peso filosófico”15.

Nada disso diminui a importância de O retorno do real. Publicado originalmente em 1996, mas contendo partes fundamentais apresentadas ainda em meados dos anos 1980, o livro deixa claro como as questões levantadas pela arte dos anos 1960 ainda pautam, e em grande medida assombram, a arte e a crítica atuais. Nesse sentido, a importância do livro está menos em seus achados que no modo como revela, ainda que involuntariamente, os desafios e dilemas que a crise do conceito moderno de história coloca para o pensamento crítico (ou metacrítico) contemporâneo, o de Hal Foster inclusive. Em tempo: a presente edição conta com tradução de Célia Euvaldo, especialmente eficaz na manutenção da fluidez da leitura16.

Notas

1 SMITHSON, Robert. “Ultramodern”. Arts Magazine, v. 42, nº 1, set.- out. 1967, p. 31. Minha tradução.

2 LYOTARD, JF. A condição pós-moderna. Rio de Janeiro: José Olympio, 2004.

3 BÜRGER, Peter. Teoria da vanguarda. São Paulo: CosacNaify, 2008.

4 “Reprimido por numerosos pós-estruturalismos, o real retornou, mas como real traumático” (p. 46, n. 38). Em sua formulação original, tal restrição era ainda mais rigorosa: “Reprimido por vários pósestruturalismos, o real retornou – mas não um real qualquer, apenas o real traumático”. Foster, Hal. “What’s new about the neoavantgarde?”October, v. 70, outono 1994, p. 29. Minha tradução.

5 CLARK, T.J. Por uma esquerda sem futuro. São Paulo: Ed. 34, 2013.

6 ROSENBERG , Harold. “O novo como valor”. In: ___. Objeto ansioso. São Paulo: CosacNaify, 2004.

7 ZIZEK, Slavoj, apud Foster, p. 46, n. 42. Minha tradução.

8 KOSELLECK, ReinhartFuturo passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio; Contraponto, 2006.

9 ARENDT, Hannah. “O conceito de história: antigo e moderno”. In: ____. Entre o passado e o futuro. São Paulo: Perspectiva, 1988, p. 96.

10 GUMBRECHT, Hans U. “Cascatas de modernidade”, In: ___. Modernização dos sentidos. São Paulo: Ed. 34, pp. 15-16.

11 CLARK, T.J., op. cit. Minha tradução.

12 Cf. FRIED, Michael. “Arte e objetidade”. A/E Revista da Pós-Graduação em Artes Visuais, Rio de Janeiro, EBA-UFRJ, 2002, pp. 130-147.

13 WAGNER, Anne M. “Reading minimal art”. In: BATTCOCK, GregoryMinimal art: a critical anthology. Berkeley: University of California Press, 1995.

14 Ver, em especial KRAUSS, Rosalind. “Sense and sensibility: reflection on post ‘60s sculpture. Artforum, v. 12, nº 3, nov. 1973, pp. 43-53.

15 KOSUTH, Joseph, “History for”. Flash Art, Milão, nº 143, nov.-dez. 1988, p. 101. Minha tradução.

16 Agradeço a leitura e os comentários de Marcelo G. Jasmin, Felipe Charbel e Henrique Estrada.

Otavio Leonidio – Arquiteto, doutor em História, professor do Departamento de Arquitetura e Urbanismo da PUC-Rio.

Acessar publicação original

Força de lei: o fundamento místico da autoridade – DERRIDA (C)

DERRIDA, Jacques. Força de lei: o fundamento místico da autoridade. São Paulo: M. Fontes, 2010. Resenha de: BELTRAMI, Fábio. Conjectura, Caxias do Sul, v. 18, n. 3, p. 196-199, Set/dez, 2013.

Jaques Derrida foi um filósofo nascido em El-Biar, na Argélia, em 1930. Ensinou na Sorbonne, na École Normale Supérieure e École de Hautes Études. Viveu grande período de tempo na França e alternou docências tanto na França como nos Estados Unidos da América. Faleceu em Paris, em outubro de 2004.

O livro Força de lei: o fundamento místico da autoridade, no original [Force de loi…] (1994), com segunda edição no Brasil pela Editora M. Fontes, no ano de 2010, com 145 páginas e tradução realizada por Leyla Perrone- Moisés, consta de duas exposições realizadas por Derrida. A primeira parte do livro, intitulada “Do direito à justiça”, foi apresentada pelo filósofo em um colóquio organizado por Drucilla Cornell na Cardozo Law School, em outubro de 1989. Já a segunda parte, intitulada “Prenome de Benjamin”, foi apresentada em 26 de abril de 1990, em colóquio organizado por Saul Friedlander, na Universidade da Califórnia, em Los Angeles, EUA. Leia Mais

Desconstruindo a história – MUNSLOW (HH)

MUNSLOW, Alun. Desconstruindo a história. Petrópolis: Vozes, 2009, 271 p. Resenha de: CASTELO, Sander Cruz. O sublime, a narrativa e a história The sublime, the narrative and history. História da Historiografia. Ouro Preto, n. 6, p.213-217 março 2011.

Alun Munslow, professor visitante de história da Universidade de Chichester (Inglaterra), é coeditor da Rethinking History: The Journal of Theory and Practice, publicação acadêmica vanguardista criada, em 1997, para expandir os limites de uma disciplina engessada em pressupostos modernistas por meio da divulgação de produções historiográficas experimentais e do debate teórico do assunto. Não surpreende, logo, que a obra analisada destoe das traduções que sumariam as teorias contemporâneas da história, correntemente, lançadas no Brasil.

Como? Basicamente, de duas formas interligadas: salientando a historiografia pós-moderna, pouco divulgada no país, excetuando-se a produção foucaultiana, e privilegiando a narrativa dentre os elementos envolvidos na produção historiográfica. Outra singularidade da obra, derivada das duas características anteriores, advém da publicização, no Brasil, da historiografia anglo-americana, cuja linhagem, originada na filosofia analítica, é, comumente, desconsiderada em prol daquela esteada na antropologia, de matriz francesa.

Por isso, a linguagem norteia as proposições do autor a favor da revisão da forma como os historiadores abordam o passado. Esses, grosso modo, resistiriam, não obstante alguns avanços (novo empirismo, Annales, etc), a abandonar uma ingenuidade epistemológica fundamental: a ideia de que a realidade do passado pode ser revelada. Essa crença na objetividade do saber derivou do método científico, erigido, na modernidade, para abordar a natureza e estendido ao mundo social com o Iluminismo, período em que o ideal civilizatório adquiriu matizes teleológicos. Compreende-se, logo, que a história estabeleça-se como disciplina, no século XIX, reproduzindo dualismos como sujeito-objeto, fato-ficção e progresso-atraso.

Para combater esse legado, elegendo a forma, e não o conteúdo, como âncora da história, Munslow mapeia as forças em negociação e em confronto no campo historiográfico. A mais tradicional ou a mais infensa às mudanças é devota do “reconstrucionismo”. Filho do historismo rankeano, para o “reconstrucionismo”, resumidamente, o passado pode ser desvelado mediante a reconstituição das intenções e das ações dos agentes históricos na sua sucessão no tempo. O “construcionismo”, por sua vez, reconhece, mais do que o anterior, o caráter apriorístico do conhecimento, fazendo uso, em decorrência, de modelos de análise provindos de disciplinas afins, como a sociologia, a economia e a antropologia. Sem descurar, contudo, dos vestígios históricos, por meio dos quais se escolhem e se testam as teorias utilizadas, passíveis, consequentemente, de abandono ou de reformulação. O “desconstrucionismo”, enfim, renega a possibilidade de acessar o pretérito, dada a impropriedade da teoria da correspondência ou da referencialidade. Sendo a relação entre significante, significado e signo, fundamentalmente, social e cultural – ou seja, a um tempo arbitrária e convencionada –, a “realidade do passado” (MUNSLOW, 2009, p. 12) apresentando-se, pois, mais como um “relato escrito” do que “como ele realmente foi, resta à história “não o estudo das mudanças através do tempo per se, mas o estudo das informações produzidas pelos historiadores ao se lançarem nesta tarefa”(Idem, Ibidem).

O autor verticaliza sua abordagem dirigindo quatro questionamentos a essas três correntes da historiografia contemporânea. O fato de que o faça aglutinando, nos mesmos capítulos, a história “reconstrucionista” e a “construcionista” demonstra, de imediato, que, para ele, elas mais se aproximam do que se distanciam. Somando-se a isso a existência de dois capítulos expondo as críticas mútuas entre elas e a linha “desconstrucionista” e de outros dois dedicados a Michel Foucault e a Hayden White, autores baluartes da história pós-moderna, evidencia-se a intenção de firmar e ampliar as posições conquistadas pelo “desconstrucionismo” na historiografia. Aliás, suas próprias respostas às questões explicitadas, no último capítulo do livro, arrimam-se em uma “estratégica combinação da concepção de infraestrutura tropológica/ epistêmica” do filósofo francês com o “modelo formalístico de imaginação histórica” do historiador estadunidense (Ibidem, p. 218).

A primeira indagação, de cunho epistemológico, versa sobre a suficiência do empirismo para legitimar o estatuto autônomo da história. A resposta de Munslow é negativa. A disciplina é, na verdade, uma variante da literatura que almeja produzir conhecimento. Logo, a epistemologia da história dista do indutivismo, na medida em que reconhece a existência do efeito de realidade e não a noção fantasiosa da verdade histórica; nega que possamos descobrir a intencionalidade do autor; aceita a cadeia de significação interpretativa e não o significado original recuperável; recusa as seduções de um referente fácil; debate a objetividade do historiador em seu trabalho com a estrutura figurativa da narrativa; aceita a natureza sublime do passado imaginada como o sentido do “outro” e admite que a relação entre forma e conteúdo é mais complexa do que como é frequentemente concebida nas duas tendências similares principais [construcionismo e reconstrucionismo] (Ibidem, p. 221).

A segunda trata do caráter e da função da evidência ou das fontes primárias. Inicialmente, Munslow afirma que as evidências são recontextualizadas a cada época: “[…] por exemplo, a evidência do Império se tornou, para a próxima geração de historiadores, a evidência para uma nova interpretação pós-colonial (Ibidem, p. 224). Em seguida, afirma não crer que a proximidade da evidência equivalha à verdade: Não discuto que a correspondência da evidência com a realidade funciona de forma razoavelmente satisfatória no nível básico da sentença única que tem como suporte a evidência (o presidente dos Estados Unidos, Abraham Lincoln, foi baleado em 14 de abril e morreu no início da manhã de 15 de abril de 1865). Porém, tal correspondência não existe quando passamos para o nível da interpretação através da imposição de um enquadramento ou um argumento (Abraham Lincoln foi assassinado antes que pudesse colocar seus planos de reconstrução em ação). É preciso repetir: a narrativa histórica não é o passado, é a história” (Ibidem, p.224).

A terceira, com escopo na teoria, diz respeito ao imposicionalismo [sic] do historiador, especificamente, com o uso de teorias sociais como suportes explicativos. Apoiado em Vico e Foucault, o autor receita ao historiador uma conceitualização distinta do dedutivismo. Este, formulado para estudar a natureza, é insuficiente para a análise da sociedade ao longo do tempo, o que exige atenção ao discurso (episteme). A história depende mais da retórica do que da lógica para gerar a ilusão de transparência do passado: A maneira complexa como usamos a linguagem e a linguagem nos usa para mediar a realidade do passado sugere que nenhuma quantidade de sofisticada verificação hipotética da ciência social pode evitar a relação interativa entre o historiador, a palavra e o mundo. A narrativa não é simplesmente uma representação do mundo da realidade do passado, uma reprodução das coisas e das relações que subsistem entre elas. Embora a linguagem seja usada pelos principais historiadores como se ela tivesse a capacidade de reprodução, ela é principalmente um meio inovador que tem o poder de inventar e criar nosso conhecimento do passado (Ibidem, p. 230).

A quarta, por fim, diz respeito à significação da narrativa na explanação histórica. Apresentando o pensamento de White, Munslow assevera que a narrativa é o dispositivo por excelência da história, funcionando primeiro no plano da linguagem e da consciência, através da articulação de quatro níveis de explanação, seguidamente, implicados: tropo, enquadramento, argumento e ideologia. O tropo (metáfora, metonímia, sinédoque, ironia) refere-se à prefiguração mental do objeto de estudo, ou seja, sua base poética. O enquadramento (romântico, trágico, cômico e satírico) diz respeito ao poder do protagonista da trama em relação ao meio, gerando o efeito estético. O argumento (formista, mecanicista, organicista e contextualista) consiste na inter-relação de eventos, de personagens e de ações, produzindo o efeito cognitivo. A ideologia (anarquismo, radicalismo, conservadorismo e liberalismo), por fim, desvelando as opções políticas do historiador, homem situado no presente, atesta os efeitos éticos da disciplina.[1] Pode-se, logo, afirmar, resumidamente, que a função do historiador é […] oferecer uma estória que seja possível de ser acompanhada. Tal possibilidade de ser acompanhada emerge da coerência e da plausibilidade da estória que o historiador conta, à luz da evidência disponível. A realidade do passado não existe em um mármore bruto, necessitando apenas da habilidade do historiador de desbastá-lo para revelar o objeto existente dentro dele (Ibidem, p. 230).

Para finalizar, duas questões, ainda referentes à narrativa, permanecem não resolvidas pelo autor (e os desconstrutivistas em geral). Haveria uma narrativa pré-existente àquela inventada pelo historiador, ou melhor, os historiadores recontariam uma história já explanada pelos personagens históricos? Finalmente, é suficiente saber que a história é um empreendimento que envolve, ao mesmo tempo, estética, lógica e ética; que a “vontade de saber” (lógica) deriva da “vontade de poder” (ética), como disse Foucault; que White, mesmo, aventou a possibilidade de situar a ideologia como primeiro nível trópico; para afirmar, como o faz Munslow, que se “a estética precede à história, então a ética precede à estética” (Ibidem, p. 212).

Acredita-se que é necessário prudência aqui. O desejo de distinguir o bem do mal é, certamente, o motor do conhecimento (BLOOM 1989, pp. 49-50).  Mas a vontade imperativa de saber não resulta, por vezes, de uma vontade de morrer, como alertava Nietzsche? A árvore do conhecimento não abriga uma serpente? Babel não atesta a benignidade de um pouco de relativismo, impedindo que bem e mal se irmanem em razão do dogmatismo? Por esse prisma, a história não podia servir à vida prezando, igualmente, o esquecimento, o incognoscível, a beleza, o mistério, o sublime, como o próprio autor intui, em algumas passagens da obra? Referência bibliográfica BLOOM, Allan David. O declínio da cultura ocidental. 2 ed. São Paulo: Best Seller, 1989.

1 Esses quatro tropos corresponderiam a quatro epistemes que se sucederam na modernidade, identificadas por Foucault: a da Renascença (até o final do século XVI), baseada na semelhança; a Clássica (séculos XVII e XVIII), ancorada na diferença; a Moderna ou Antropológica (final do XVIIIinício do XX), amparada no homem; e a Pós-Moderna (em andamento), fundada nas transformações da linguagem.

Sander Cruz Castelo – Professor assistente Universidade Estadual do Ceará sandercruzcastelo@uol.com.br Rua Marechal Deodoro, 1395/322 B 60020-061 – Fortaleza – CE Brasil.

Desconstruindo a história – MUNSLOW (HH)

MUNSLOW, Alun. Desconstruindo a história. Tradução de Renata Gaspar Nascimento. Petrópolis: Vozes, 2009, 272 p. Resenha de MELLO, Ricardo Marques. Um desconstrucionista desconstruindo a história. História da Historiografia. Ouro Preto, n. 05, p.232-238, setembro 2010.

Alun Munslow é professor visitante de teoria da história da universidade inglesa de Chinchester. É também editor de Rethinking History: The Journal of Theory and Practice, um dos principais periódicos internacionais dedicado a publicar textos inseridos nas discussões a respeito das condições cognitivas do saber histórico a partir de perspectivas comumente nomeadas pós-modernas, que, em certo sentido, são desdobramentos de considerações nietzschianas, de insights da linguística saussuriana e de discussões oriundas da filosofia da linguagem.

Desconstruindo a história, cuja primeira edição data de 1997, insere-se nesse debate. Especificamente, Munslow questiona-se sobre as possibilidades de recuperação e representação precisa do conteúdo do passado por meio da narrativa. Ele é adepto da tese de que a linguagem, diferentemente do que acreditam muitos historiadores, não é um meio transparente para descrever e explicar a realidade pretérita, mas um fator que impõe ao passado um dado formato que não lhe é próprio, criando, destarte, um significado para os indivíduos do presente.

O livro de Munslow, porém, não se reduz à defesa de uma perspectiva teórica sobre o conhecimento historiográfico. Nele, seu autor identifica e descreve três abordagens, coexistentes contemporaneamente, sobre o saber historiográfico, o reconstrucionismo, o construcionismo e o desconstrucionismo, de modo que o leitor possa situar-se a respeito dos principais argumentos usados pelos praticantes dessas três vertentes.

Na Introdução, Munslow apresenta as quatro questões que nortearam os sete capítulos e a conclusão do livro: 1) O empirismo pode constituir-se como uma epistemologia? 2) Qual o caráter e a função da evidência? 3) Qual o papel do historiador e como ele usa as teorias sociais para compreender e explicar a história? 4) Qual a importância da forma narrativa para a explanação histórica? (MUNSLOW 2009, p. 12). Toda a estrutura de Desconstruindo a história gira em torno de uma estratégia: colocar essas quatro questões a cada uma das três abordagens. Em outros termos, Munslow pretende expor como as perspectivas reconstrucionista, construcionista e desconstrucionista responderiam, cada uma a sua maneira, a esses quatro questionamentos.

No capítulo um, o autor apenas apresenta cada uma das três abordagens de modo breve. Além disso, identifica o estruturalismo, o pós-estruturalismo e o que denomina de novo historicismo (estadunidense) como origens das atuais revisões sobre o estatuto da história como disciplina.

No capítulo dois, Munslow caracteriza as abordagens reconstrucionista e construcionista da história, tendo em conta os quatro pontos supracitados que nortearam seu trabalho (epistemologia, evidência, teorias sociais, narrativa).

Epistemicamente, ambas compartilham a crença geral na capacidade do historiador em conhecer o que realmente ocorreu no passado por meio da análise do material empírico. Ademais, seus praticantes acreditam que há uma separação nítida entre fato e valor, história e ficção, sujeito e objeto, e de que a verdade, fim último de um trabalho historiográfico, não é uma perspectiva (MUNSLOW 2009, p. 57). O mecanismo que assegura a verdade pretérita é a referenciação. Crê-se, portanto, na relação de correspondência entre o que ocorreu no passado e o que é descrito sobre ele, entre os significados de então e os apresentados pelos historiadores do presente. A evidência, dessa perspectiva, assume o caráter de fonte comprobatória. Para os reconstrucionistas, essa característica da evidência emerge por um processo indutivo: é a análise do material empírico que permite as descobertas sobre o acontecimento pesquisado. Para os construcionistas, porém, a verdade pretérita não surge apenas das evidências, mas pode ser combinada com teorias sociais em um processo, também, dedutivo. O uso de teorias sociais na compreensão do passado pelos construcionistas é justamente o que os diferenciam dos reconstrucionistas, avessos a qualquer tipo de apreensão a priori. Os reconstrucionistas conservadores (termo do autor) criticam o uso de teorias, pois elas dizem respeito a situações universais de comportamento e, por isso, são impróprias para entender realidades e agentes históricos singulares. Os construcionistas, por sua vez, contra-argumentam dizendo que seus modelos são “conceitos” que emergem das evidências como um auxílio para a própria compreensão da evidência. Além disso, toda teoria poderia ser colocada à prova pelo material empírico. Na questão da narrativa, em linhas gerais, os reconstrucionistas conservadores sustentam que ela funciona apenas como um veículo para conclusões inferidas a partir das fontes. Os reconstrucionistas moderados e os construcionistas sustentam que a narrativa constrói significado, mas permanece como uma dimensão secundária (MUNSLOW 2009, p. 79- 80).

No capítulo três, Munslow caracteriza a abordagem da qual é adepto, o desconstrucionismo. E o faz marcando as diferenças entre este, o reconstrucionismo e o construcionismo. No quesito epistêmico, o desconstrucionismo nega o pressuposto teórico que atribui à historiografia condições de conhecer o passado como realmente aconteceu, seja pela análise empírica, seja por meio do uso de teorias sociais. Entre os resquícios pretéritos e sua representação narrativa no presente, existe uma série de elementos que se interpõem, como a ideologia, a linguagem, as preferências pessoais e as discussões historiográficas, impedindo, assim, de haver imparcialidade e objetividade. Para os desconstrucionistas, os significados do passado são antes criações circunstanciadas que descobertas reveladas pelos historiadores. A evidência a partir dessa perspectiva, não reflete e/ou representa o passado, mas serve ao historiador na composição de sua narrativa. Munslow, contudo, ressalta que a abordagem desconstrucionista não é antirreferencialista, mas ela nos adverte sobre as fronteiras e o papel que a evidência exerce no trabalho do historiador: a evidência não emite os significados do passado, por um lado, nem permite que qualquer coisa seja escrita sobre ele, restringindo, destarte, a poiesis historiográfica. Em outros termos, nem primazia nem insignificância.

Em relação às teorias sociais, ele limita-se a mencionar que a discussão a respeito do uso ou não de teorias como um recurso é irrelevante. No aspecto relativo à narrativa, porém, o autor de Desconstruindo a história despende uma longa descrição, uma vez que as principais diferenças entre as três abordagens são oriundas justamente da forma como cada uma compreende a narrativa.

Com base em Roland Barthes, Michel Foucault, Stephen Bann, Frank Ankersmit, Paul Ricoeur e, sobretudo, Hayden White, Munslow afirma que no desconstrucionismo a narrativa historiográfica não é apenas um meio de apresentação dos resultados de pesquisa. O historiador, ao reunir, selecionar e usar informações pretéritas na elaboração de um texto coerente, vale-se da imaginação figurativa, impondo um enredo ao passado a fim de criar e constituir um significado ao presente. Não há, portanto, uma relação precisa de correspondência entre o passado e sua representação narrativa.

Baseado nos argumentos dos reconstrucionistas e dos construcionistas, Munslow ocupa-se, no quarto capítulo, em assinalar o que há de errado com a história desconstrucionista. Em linhas gerais, o grupo dos contendores radicais, representados por Geoffrey Elton, Michael Stanford e Arthur Marwick, reitera os pressupostos mais conservadores do reconstrucionismo. O grupo dos denominados reconstrucionistas moderados ou realistas-práticos, baseados nas obras de Edward Carr e Robin G. Collingwood, e representados, principalmente, por Joyce Appleby, Lynn Hunt, Margaret Jacob, James Kloppenberg, James Winn, James Mcmillan, Frederick Olafson e Behan McCullagh, aceitam parcialmente as proposições desconstrucionistas, sem, contudo, se desprenderem dos princípios empiricistas: eles admitem certas limitações da linguagem, a presença da subjetividade, certo grau de manipulação das evidências, a construção social da verdade e até um apriorismo – com a pergunta inicial apresentada pelos historiadores às suas fontes. Porém, insistem que alguma objetividade há de existir: e ela provém da referenciação, a qual permite a vinculação entre presente e passado. Os moderados fogem, assim, do absolutismo do reconstrucionismo conservador, por um lado, e do desconstrucionismo relativista, por outro.

No quinto capítulo, Munslow faz o caminho inverso, perguntando-se o que há de errado com o reconstrucionismo/construcionismo, reiterando as críticas feitas pelos adeptos do desconstrucionismo. O argumento geral consiste em, uma vez mais, defender a parcela de imposição e criação do historiador em relação ao passado. Nesse sentido, o desconstrucionismo renega, entre outras, a crença dos reconstrucionistas na relação de correspondência entre a evidência e a verdade histórica; reafirma que a construção do significado dos eventos pretéritos é fruto da adoção de uma dada estrutura narrativa; contesta a convicção de que é possível encontrar a estória, sentido, significado dos fatos pretéritos, simplesmente por que eles não têm um sentido em si; e refuta o argumento dos construcionistas, os quais posicionam o arcabouço teórico em primeiro plano e a narração como algo secundário.

No sexto e sétimo capítulos, Munslow comenta as contribuições dos dois principais autores que fornecem suporte teórico para as proposições desconstrucionistas, Michael Foucault e Hayden White. De acordo com Munslow, o pensador francês rejeita a relação de correspondência entre as palavras e as coisas ou, em outros termos, a correspondência entre o mundo empírico e os discursos a seu respeito: a evidência, por exemplo, não expressa a realidade em si, mas ela mesma é uma representação/interpretação historicamente determinada: pelas disputas por poder, pela episteme dominante de uma época, pelas forças constitutiva e formativa que a linguagem exerce. O historiador, portanto, não tem acesso direto ao passado. Ele seria alguém que faz uma interpretação das representações pretéritas, que não é objetiva, imparcial e linguisticamente transparente. A linguagem usada por ele molda os dados do passado – a partir de uma dada episteme, isto é, uma forma específica de produção do conhecimento – de tal modo que estes façam sentido e tenham significado para os indivíduos do presente: em vez de refletir a realidade, a linguagem, na tentativa de apreendê-la, a constitui.

Depois da análise das contribuições de Foucault, Munslow interpreta os princípios teóricos de Hayden White “provavelmente o mais radical desenvolvimento na metodologia histórica nos últimos trinta anos” (MUNSLOW 2009, p. 187). Alguns pressupostos whiteanos ressaltados são relevantes para compreendermos a base das argumentações dos desconstrucionistas. Entre eles, o de que os eventos em si não trazem consigo uma dada história originária: isto é, os acontecimentos não são inerentemente trágicos, cômicos, satíricos, etc. Não existe um enredo a descobrir nos acontecimentos pretéritos. Estes são, em termos de enredo, neutros e amorfos. É o historiador, no presente, que organiza as informações de uma determinada maneira a fim de que a narrativa tenha um dado significado, impondo ao passado um enredo de um tipo específico. Essa organização é condicionada pelo uso, consciente ou não, de um tropo (metáfora, metonímia, sinédoque e ironia), que, por sua vez, condiciona as opções éticas, estéticas e epistêmicas do discurso historiográfico.

Outro pressuposto relevante refere-se à relação entre parte e todo: os enunciados de uma obra historiográfica podem ser verdadeiros; porém, uma narrativa historiográfica, considerada um todo integrado, não é a mera soma de suas partes. Trata-se de outro nível do discurso dos historiadores, no qual se constrói e atribui significado ao seu objeto. Esse significado é, em grande medida, uma consequência do tropo escolhido e não das próprias fontes. Esses dois pressupostos sustentam as afirmações de White, e as apropriações de Munslow, sobre o caráter imposicionalista do historiador, por meio da linguagem, na construção das narrativas sobre o passado e, consequentemente, de seus significados.

Na conclusão do livro, Munslow refuta a ideia de que a aceitação dos argumentos desconstrucionistas possa acarretar algum descrédito para o status da história como disciplina. A exemplo do que fez no capítulo cinco, ele sugere que reconhecer o papel da narrativa não é um novo tipo de essencialismo, isto é, algo que substitui o empirismo. Mas um princípio que abre espaço para novas maneiras de descrever o passado, com maior consciência do processo de produção do discurso historiográfico. Ter conhecimento do papel que a formalização da linguagem exerce no estudo do passado e pôr em questão a verdade/imparcialidade/objetividade da historiografia “pode levar a uma forma mais abrangente de análise histórica, menos provável de excluir o marginalizado e ‘o outro’” (p. 225). Depois da conclusão, Munslow ainda incluiu um glossário com parte dos principais verbetes usados no livro, bem como um “Guia para leituras adicionais”, no qual cita obras ligadas às três formas de abordagens descritas por ele.

Em termos gerais, compreendo que o livro como um todo apresenta alguns problemas. O primeiro é relativo às categorias usadas para designar as três abordagens (reconstrucionismo, construcionismo e desconstrucionismo): qualquer tentativa de delimitar autores tão distintos entre si em apenas três modalidades tende a abreviar a complexidade de posições. Roger Chartier, por exemplo, ora é colocado ao lado de autores desconstrucionistas, como White – o que é, no mínimo, curioso –, ora é incluído, juntamente com outros historiadores da École des Annales, na plêiade de construcionistas. O segundo diz respeito à falta de discussão e/ou conceituação do que se compreende por termos como objetividade, verdade histórica, imparcialidade, entre outros.

Embora possa parecer, essa não é uma discussão vã, contemplação vazia ou fuga do que realmente interessa. Mas um ponto de partida que não deve ser ignorado. Outro problema teórico refere-se ao uso do termo desconstrucionismo como uma forma de abordar a história, isto é, uma prática da mesma natureza do reconstrucionismo e do construcionismo. Apesar de alguns historiadores aceitarem as proposições ditas desconstrucionistas, essa maneira de conceber a produção do conhecimento histórico não se consubstanciou ainda como uma forma de investigar o passado, mas, até o momento, como uma reflexão teórica sobre a forma como os historiadores transformam os fragmentos do passado em historiografia. De outro modo, é, antes, uma teoria a respeito das possibilidades cognitivas do saber historiográfico (metateoria) e não propriamente uma abordagem da história em seu acontecer. E, por fim, o autor usa, por vezes e indistintamente, a palavra história para designar tanto a disciplina como os acontecimentos no tempo, dificultando o entendimento de determinados trechos.

Todavia, Desconstruindo a história tem muitos méritos. Conquanto a originalidade de ideias não seja um atributo a ser destacado, sobretudo por ser baseado nas proposições de Foucault e White, o livro de Munslow organiza didaticamente complexas maneiras de se entender o conhecimento histórico em três termos e apresenta ao leitor importantes tópicos e pressupostos das discussões atuais sobre teorias da história, que, em certo sentido, são muito úteis para aqueles que se interessam pelo tema. Outro ponto a ser ressaltado é que, por ter o foco em uma discussão que é encaminhada majoritariamente em ambiente anglo-saxão, Desconstruindo a história torna visível autores pouco citados entre pesquisadores nacionais. Além disso, embora Munslow seja adepto do desconstrucionismo, ele, a rigor, não reduziu totalmente as outras duas abordagens (reconstrucionismo e construcionismo) a esquematismos simplistas.

Diferentemente disso, ele cita e apresenta um número razoável de autores alinhados com essas duas “correntes”, mostrando-se, inclusive, simpático com algumas “soluções” encontradas pelos realistas-práticos (reconstrucionistas moderados), ainda que tenha enfatizado, o que é compreensível, determinadas ideias e encaminhado o debate de modo que o desconstrucionismo, ao final, fosse considerado a melhor maneira (senão única) de se conceber a produção do conhecimento historiográfico.

Embora repetitivo e com uma tradução problemática, Desconstruindo a história, enfim, pode ser considerado um livro que introduz o leitor em um ambiente intelectual bem delimitado, defende uma perspectiva no debate contemporâneo acerca do fazer historiográfico e estimula-nos a refletir sobre o ofício de historiador. Ainda que não se concorde com os pressupostos e ideias do “desconstrucionismo”, conhecê-lo por um de seus defensores parece ser uma maneira astuta de discordar, com fundamento, das proposições dessa vertente. Por isso, Desconstruindo a história pode ser um ponto de partida proveitoso àqueles que pretendem pesquisar e escrever a respeito da história e/ou pensar sobre esse complexo e atraente processo.

Ricardo Marques de Mello Doutorando Universidade de Brasília (UnB) ricardo.mm@hotmail.com Campus Darcy Ribeiro, ICC Norte, Subsolo, Sala 679 Brasília – DF 70910-900 Brasil.