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Direitos Humanos, Religião e Democracia/Revista Brasileira de História das Religiões/2022
A dignidade humana é fundamento do Estado Democrático de Direito, com fulcro no artigo 1º, inciso III da Constituição da República Federativa do Brasil. Para a consolidação e fortalecimento da democracia, constitui essencial a promoção da dignidade humana, que também é fundamento dos direitos humanos. Nesse contexto, a religião desempenha papel fundamental, razão pela qual, a presente chamada temática da Revista Brasileira de História das Religiões traz como tema Direitos Humanos, Religião e Democracia. Leia Mais
Tempos de Pandemia | Estudos Históricos | 2021 (D)
Pexels | Imagem: Juliana Vitoria – Reprodução |
Este número da Revista Estudos Históricos é marcado especialmente pela contemporaneidade e interdisciplinaridade de seus artigos. A ideia do dossiê Tempos de pandemia surge pela urgência de debates e análises científicas promovidos em diferentes áreas com o advento da pandemia de COVID-19, decretada mundialmente no dia 11 de março de 2020. Como resultado, temos uma edição robusta, composta de trabalhos com pontos de vista metodológico e temático diversos.
Como linha comum dos artigos, observamos o debate sobre o tempo em diferentes perspectivas. A própria edição deste número pressupõe uma reflexão sobre tempo, na medida em que reunimos nesse conjunto incursões acadêmicas desenvolvidas no auge da pandemia, no seio de seus acontecimentos. Encontramo-nos, ainda, sem respostas concretas e objetivas sobre o curso desse longo processo. Reflexões sobre o tempo histórico e sobre a produção de pesquisas científicas pela ótica dinâmica do momento histórico são fruto de debates e discussões de longa data.
O tempo social, como proposto por Fernand Braudel (1949), pode ser dividido metodologicamente em três momentos: média, curta e longa duração. O exercício de pesquisa deve, sempre, levar em consideração a construção e o recorte temáticos nessas três perspectivas, que caracterizam o tempo múltiplo, compondo as principais características do tempo social.
Em suma, temos a longa duração como o âmbito das estruturas, a média duração como o tempo das conjunturas e a curta duração como a medida da atualidade, da vida do dia a dia. Os artigos que compõem este dossiê sobre a pandemia, acontecimento histórico contemporâneo, assim como as pesquisas e as autorias, pode dar uma primeira impressão equivocada. O distanciamento analítico na área das ciências humanas, há tempos colocado como essencial para o desenvolvimento de pesquisas científicas, caiu por tese há algumas décadas, especialmente com a eclosão do campo da história do tempo presente.
Nesse bojo, temos a proposição do tempo histórico de Reinhart Koselleck (2014), o tempo estratificado, formado por diferentes camadas de tempo, independentes e interdependentes entre si, proporcionando a base reflexiva de continuidades e rupturas de processos históricos. A proposta de Koselleck subsidia as análises do tempo presente com base no entendimento desses processos como constructos sociais inter-relacionados, proporcionando a base analítica da compreensão de eventos contemporâneos por seus cientistas sociais.
O coletivo de reflexões analisa em sua complexidade questões estruturais como as desigualdades sociais da sociedade contemporânea, refletindo diretamente no acesso à educação e à saúde no Brasil e no mundo. Nesse conjunto, encontramos reflexões de longa duração com perspectivas históricas, demonstrando os impactos políticos e sociais da gripe espanhola de 1918 na sociedade, o processo de exclusão digital de setores sociais e seus impactos na educação à distância e a questão da aprendizagem, bem como os muros epidemiológicos construídos ao longo de décadas.
Encontramos também análises estruturais sobre as democracias latino-americanas e sobre os Estados Unidos, o impacto econômico em populações historicamente em situação de vulnerabilidade, apontando as continuidades de um processo histórico estrondosamente desigual. Ainda pensando na perspectiva da longa duração, vemos a construção da memória social ao longo dos anos e os desafios enfrentados pela gestão e recuperação de documentos produzidos em meio digital. Análises sobre a estrutura midiática brasileira e as fronteiras entre o público e o privado, a construção social de contextos afrorreligiosos e suas nuances políticas, a utilização midiática para defesa de pautas específicas e práticas culturais de uma sociedade em isolamento compõem o tempo histórico de longa duração presente neste dossiê.
No contexto de média duração, no tempo das conjunturas, podemos inferir importantes recortes com elementos de continuidades e rupturas subsidiando o estudo do tempo presente. Envolvendo elementos como os citados no contexto de longa duração, observamos o recorte analítico de média duração no que diz respeito à compreensão conjuntural dos temas em questão. Como linha comum aos artigos, observamos a reconstrução de contextos históricos anteriores à pandemia de COVID-19, buscando alinhar as expectativas de análise políticas, econômicas e culturais na camada mais ampla do tempo histórico a fim de reconhecer os aspectos atingidos pelo momento atual. A preocupação com o contexto histórico conjuntural é inerente e presente em todas as análises, independentemente do tema trabalhado. Ainda que pareçam temáticas bastante diferentes, os textos aqui reunidos nos permitem traçar um quadro conjuntural de extrema qualidade para compreender o advento histórico da pandemia, nosso elemento de curta duração.
Nesse ponto, vemos detalhadamente o recorte mais específico dos artigos. Em grande parte, o ano de 2020 atua como medida da atualidade. Seja no debate acerca de questões educacionais como nos artigos “Direito ou privilégio? Desigualdades digitais, pandemia e os desafios de uma escola pública”, de Renata Mourão Macedo, e “Aprendizagem histórica em tempos de pandemia”, de Cristiano Nicolini e Kenia Erica Gusmao Medeiros, cujos recortes dão conta da urgente mudança para o ensino a distância e suas consequências, seja no debate sobre questões culturais e de memória nos textos de Alejandra Josiowicz, “Humanidades digitais e literatura nas redes sociais: ‘um placebo sanador em tempos de COVID-19’”, o artigo de Isabella Vivente Perrotta e Lucia Santa Cruz, “Objetos da quarentena: urgência de memória”, e o texto de Vítor Queiroz, “Quando o ser-humano cria, Iku vem à Terra: as mediações de Exu, a onipresença da morte e a COVID-19 em dois contextos afrorreligiosos”.
Tratando especificamente de questões políticas e econômicas que envolvem a gestão da pandemia em países da América Latina, temos o artigo de Rafael Araujo e Érica Sarmiento, “A América Latina, a COVID-19 e as migrações forçadas: perspectivas em movimentos, muros epidemiológicos e sombrias imagens”, apontando as medidas atuais do tempo histórico e os reflexos na migração forçada de populações vulneráveis, e a contribuição especial de André Pagliarini, “Possible Futures: COVID-19 as Historical Turning Point”, recortando a análise específica sobre a importância desse debate para a historiografia presente.
Analisando especialmente o aspecto midiático da pandemia, temos os artigos de Flavia Pinto Leiroz e Igor Sacramento, “Cronotopias da intimidade catastrófica: testemunhos sobre a COVID- 19 no Jornal Nacional”, mostrando o recorte do maior jornal diário do Brasil e seus impactos sobre a relação entre público e privado em nossa sociedade, e o texto de Luciana Almeida, “Pandemia, ‘agro’ e ‘sofrência’: jornalismo, propaganda e entretenimento no debate público sobre o modelo agrícola”, mostrando a relação instantânea da pandemia na indústria cultural nacional.
Em entrevista concedida por James Green, realizada por mim e por Ronald Canabarro, em que aplicamos a temporalidade múltipla no decorrer das perguntas, buscou-se criar uma narrativa que abarcasse suas opiniões estruturais das sociedades brasileiras e norte-americanas, chegando às análises conjunturais mais recentes de ambos países de maneira que confluísse no momento atual da pandemia, suas consequências políticas, econômicas e culturais da COVID-19 no mundo pela ótica do historiador e militante norte-americano.
Quando falamos em tempos de pandemia, estamos definindo tempo como social, como o tempo composto de diacronias e sincronias, continuidades e rupturas. A urgência evidenciada pelas necessidades informacionais e analíticas, que perpassam diferentes temas, nesse último ano pandêmico pelo qual nossa sociedade passou em todo o globo estão reunidas nesse dossiê interdisciplinar e diverso que montamos. Nosso desejo é o de que possamos reler suas páginas como documentos históricos em alguns anos, proporcionando compreensões fundamentadas e científicas da história presente.
Por fim, e em nome da Escola de Ciências Sociais da Fundação Getulio Vargas (FGV CPDOC), prestamos nossa solidariedade coletiva às famílias de 3 milhões de pessoas1 em todo mundo vítimas da COVID-19.
Nota
1. Dados coletados em: https://www.worldometers.info/coronavirus/. Acesso em: 12 abr. 2021.
Referências BRAUDEL, F. La Méditerranée et le monde méditerranéen à l’époque de Philippe II. Paris: Armand Colin, 1949.
KOSELLECK, R. Estratos de Tempo: estudos sobre a História. Rio de Janeiro: Contraponto/Ed. PUC-RJ, 2014.
Martina Spohr – Doutora em História Social, Universidade Federal do Rio de Janeiro (martina.spohr@fgv.br). Escola de Ciências Sociais, Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil, Fundação Getulio Vargas – Rio de Janeiro (RJ), Brasil.
SPOHR, Martina. Editorial: Tempos de Pandemia. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 34, n.73, p.1-3, p.235-238, maio/ago. 2021. Acessar publicação original [IF]. Acessar dossiê
Educação, democracia e diferença | Educar em Revista | 2020
O organismo vivo, na situação determinada pelos jogos da energia na superfície do globo, recebe, em princípio, mais energia do que é necessário para a manutenção da vida: a energia (a riqueza) excedente pode ser utilizada para o crescimento de um sistema (de um organismo, por exemplo); se o sistema não pode mais crescer, ou se o excedente não pode ser inteiramente absorvido em seu crescimento, é preciso necessariamente perdê-lo sem lucro, despendê-lo, de boa vontade ou não, gloriosamente ou de modo catastrófico. […] Ai de quem, até o fim, quisesse ordenar o movimento que o excede com o espírito limitado do mecânico que muda um pneu (BATAILLE, 2013, p. 22-23).
Este dossiê é um emaranhado, ao mesmo tempo, teórico, político e afetivo. Supõe, antes de mais da nada, uma inquietação. Deriva, sobretudo, de um desejo de intervir na relação entre democracia e educação, emergido de uma amizade nos diferentes tempos e espaços de nossas interlocuções. Das escolas quilombolas na Bahia às drag-queens em festas escolares no Rio de Janeiro, nossos campos de investigação estão conectados aos estudos de gênero, sexualidade e raça a fim de analisar como essas categorias fazem teia no pensamento curricular brasileiro. A tríade que lhe serve de título e os problemas que suscita emergiram de nossas histórias múltiplas de conversas e trocas; histórias que dão consistência às nossas trajetórias intelectuais e de pesquisa1 e que, se não explicam, ao menos localizam o convite que guia este dossiê, tão gentilmente acolhido pela Educar em Revista 2. Nosso ponto de escora, nesse contexto, é a conjunção entre educação, democracia e diferença, sugerindo que o sintagma em questão demonstra uma relação possível e não uma identidade dada. Nesta apresentação, portanto, condensamos, mesmo que brevemente, provocações dos estudos de gênero, sexualidade e raça aos pressupostos ontológicos do ordenamento jurídico-colonial da democracia liberal. Leia Mais
Big Data, pós-verdade e democracia | PerCursos | 2020
As tecnologias de informação e comunicação têm permitido capturar, armazenar e disseminar quantidades massivas de dados, sejam eles de indivíduos, governos ou corporações. Por seu volume e complexidade, tais dados exigem um tratamento cada vez mais sofisticado, o que traz novos desafios para diferentes profissionais, com destaque para cientistas da informação, programadores, estatísticos e matemáticos. Simultaneamente, o uso massivo desses dados no ambiente de negócios acende a luz de alerta para ameaças a direitos fundamentais dos cidadãos-consumidores. Dados pessoais são registrados de múltiplas formas e com frequência cedidos inadvertidamente, nas numerosas interações dos usuários da Internet. Com isso, os sistemas de monitoramento e vigilância se tornam uma constante, num fluxo quase indiscriminado entre as dimensões do público e do privado. Construir, analisar e controlar esses gigantescos repositórios de dados torna-se vital para conquistar ou assegurar hegemonias (econômicas, políticas, culturais) e exercer poder. Em paralelo, conjuntos expressivos de registros escritos, visuais e audiovisuais têm sido propositadamente disseminados, em larga escala, de forma errônea e distorcida, com grande peso na formação de opinião e, de forma bastante visível, enorme influência nos processos eleitorais recentes, em vários países, pondo em xeque os mecanismos tradicionais de garantias democráticas. Leia Mais
Cooperação Sul-Sul/ Democracia e Decolonialidade: estudos sobre os Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa (PALOPs) | AbeÁfrica – Revista da Associação Brasileira de Estudos Africanos | 2020
O presente Dossiê surgiu a partir do contato dos organizadores com a discussão sobre a realidade social, cultural, econômica e política dos Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa, os PALOPs, no âmbito da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab), que completou dez anos em 2020, e cujo projeto se relaciona à cooperação solidária para o desenvolvimento entre o Brasil países de África e Ásia através da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP). A pluralidade cultural e social destes países, suas trajetórias políticas de independência e transição democrática, somada aos laços históricos e políticos de cooperação cultural, educacional e econômica com a sociedade brasileira vem alimentando uma rede de estudos, de pesquisas e de mobilidade que consolidam o destaque destas sociedades na área de Estudos Africanos no Brasil.
Com base nesta experiência, pautamos a necessidade de congregar reflexões teóricas e estudos empíricos considerando dois aspectos: 1. as diversas disciplinas das Humanidades (Antropologia, Ciência Política, História, Relações Internacionais e Sociologia, Geografia, Filosofia), em uma perspectiva que relacione Cooperação Sul-Sul, Democracia e Decolonialidade, no sentido de um fazer acadêmico crítico e de qualidade, tendo em vista um desenvolvimento emancipatório; 2. a maior diversidade possível de nacionalidade, etnia/raça e gênero nas contribuições recebidas. Nesse sentido, embora não tenhamos conseguido contemplar todos os PALOPs, o presente número reúne reflexões e estudos de brasileiros(as) e africanos(as) de/sobre Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau e Moçambique, sem perder de vista possibilidades de comparações com o Brasil e visadas mais amplas sobre o conhecimento produzido sobre África. Leia Mais
Cultura e democracia: convergências, conflitos e interesses públicos / Albuquerque: revista de história / 2020
Até ontem a palavra do alto César podia resistir ao mundo inteiro. Hoje, ei-lo aí, sem que ante o seu cadáver se curve o mais humilde. Ó cidadãos! Se eu disposto estivesse a rebelar-vos o coração e a mente, espicaçando-os para a revolta, ofenderia Bruto, ofenderia Cássio, que são homens honrados, como vós bem os sabeis. Não pretendo ofendê-los; antes quero ofender o defunto, a mim e a vós, do que ofender pessoas tão honradas. (Marco Antônio, em Júlio César de William Shakespeare)
O dossiê Cultura e Democracia: convergências, conflitos e interesses públicos, ainda que esteja ligado a temas e problemas temporais próximos ao que estamos vivendo no imediato presente, abrange uma temporalidade mais ampla que envolve os diversos meandros que compõe a estrutura do mundo e do Estado modernos. Desde as revoluções burguesas, que marcaram o surgimento de uma nova sociedade, homens e mulheres em vários espaços geográficos passaram por diferentes tipos de instabilidades políticas, o que gerou muitos debates intelectuais além de lutas e disputas frequentes pelas formas de entendimento sobre o poder de atuação das pessoas no espaço público.
O século XIX, por exemplo, é caracterizado no âmbito do continente europeu por numerosas lutas de trabalhadores que perceberam as possibilidades de transformação de suas condições de sobrevivência e de atuação política inaugurada pelo enredo liberal no final do século anterior. Um dos exemplos mais importantes nesse sentido ocorreu em Paris em 1848 quando a utopia da transformação atingiu inúmeras pessoas que incendiaram e subverteram as ruas da capital. A população invadiu e saqueou o Palácio das Tulherias, então residência do rei Luís Felipe. E antes que um governo provisório fosse formado e a Dinastia dos Orleans perdesse o poder, populares arrastaram o trono pelas ruas e o incendiaram na Bastilha. A força política e simbólica do que ocorreu a partir desse acontecimento foi retratada por imagens e palavras, mas nada mais forte que a análise produzida por Karl Marx em O 18 de Brumário de Luís Bonaparte.
Escrito entre dezembro de 1851 e fevereiro de 1852, Marx elaborou no calor dos acontecimentos uma análise cortante sobre a amplitude da atuação política de setores sociais explorados na vida democrática da França à época. O mesmo país que poucos anos antes havia legado ao mundo o lema “Liberdade, Igualdade e Fraternidade” e a “Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão” utilizou o discurso da democracia para que as subversões e lutas de 1848 fossem acalmadas e conformadas. A derrota imediata dos trabalhadores que ocupavam as ruas de Paris ocorreu a partir de junho de 1848, quando a Assembleia Nacional Constituinte foi formada e começou a elaboração das bases da Segunda República Francesa. O trono queimado de 1848 foi calmamente reconstruído até que, em 1851, o sobrinho imitou o tio e fez do dia 2 dezembro o seu 18 de Brumário.
Esse é apenas um exemplo onde os temas da democracia e da cultura estiveram fortemente imbricados em um “momento de perigo” do século XIX. Nele podemos observar muitas coisas e tirar diversas conclusões, mas o mais importante é perceber que o discurso democrático, por si mesmo, não garante a ampla e profunda participação política de diferentes estratos sociais. Aqui é desnecessário realçar a habilidade de Marx em tratar desse tema, inclusive porque O 18 de Brumário é inquestionavelmente um clássico, mas é impressionante perceber que desde 1852, quando ele foi publicado, temos condições de desdobrar essa discussão principalmente para entender que a democracia não é um bem em si, mas um constructo social que depende de variáveis históricas e, portanto, de condições sociais que precisam ser cotidianamente pensadas e, claro, reescritas. Inclusive o próprio Marx nas linhas iniciais de seu texto chama a atenção para o fato de que “Os homens fazem a sua própria história; contudo, não a fazem de livre e espontânea vontade, pois não são eles quem escolhem as circunstâncias sob as quais ela é feita, mas estas lhes foram transmitidas assim como se encontram” (MARX, 2001, p. 25). A participação política requer responsabilidade de todos. As noções de cidadania, igualdade e direitos, entre outros, como todos os aparatos discursivos, possuem correspondentes na prática. O autor alemão nos mostrou no século XIX, que quando alguns grupos colocam em prática a igualdade, outros reagem, inclusive no campo do discurso lançando mão do vocabulário de participação política inaugurado pelas revoluções burguesas.
Tomando essa reminiscência do século XIX como referência, podemos buscar outras no século posterior. O que nos motiva nesse caminhar é o vocabulário político do Estado Moderno, lembrando sempre que nosso escopo são as convergências entre democracia e cultura.
Ao longo do século XX, as duas guerras mundiais foram acontecimentos que alteraram profundamente os debates sobre democracia. Se antes de começar, o primeiro conflito fora saudado em prosa e verso por inúmeras pessoas embaladas pelo nacionalismo e o imperialismo de fins de século na Europa, 1918 apresentou um quadro muito distinto. Além dos problemas econômicos decorrentes da guerra e do novo quadro de forças políticas mundiais, o nacionalismo adquiriu cada vez mais traços xenófobos e chauvinistas. Isso sem contar o peso que a Revolução Russa de 1917 teve para os debates ideológicos da época bem como a acentuada gravidade do processo de exploração do continente africano para a política internacional. Não por acaso, as derrotas mais duras para o campo democrático não tardaram a chegar. Em 1922, Benito Mussolini promoveu a conhecida Marcha sobre Roma, com isso o fascismo entrava triunfal na cena pública contemporânea e, em 1933, Adolf Hitler foi nomeado chanceler da Alemanha pelo presidente Paul von Hindenburg. Daí até a Segunda Guerra Mundial foi uma questão de tempo e novamente o mundo se viu diante de inúmeros debates sobre a questão democrática.
Muitos autores se dedicaram à discussão sobre democracia e espaço público nesse amplo contexto que abarca também o período posterior a 1945, quando inclusive se coloca em prática no ambiente europeu o Estado de bem estar social. Uma das reflexões mais marcantes da época surge das letras da filósofa Hannah Arendt, em especial por ela entender que o espaço da ação política é o espaço da ação pública por excelência. A política se efetiva onde os Homens se unem aos seus iguais, são capazes de assumir posicionamentos, persuadem, sofrem e aceitam derrotas.
Arendt se dedicou, desde As Origens do Totalitarismo (1951), amplamente às reflexões que envolvem “ação” e “pensamento” no ambiente dos autoritarismos inaugurados no século XX. Os leitores atentos encontram nos seus livros análises primorosas sobre as incongruências que o tema da democracia carrega, entre eles Sobre Revolução (1963), Entre o passado e o futuro (1968) e Crises da República (1969). Nesse último, tratando especificamente da realidade dos Estados Unidos, país que acolheu a autora quando ela fugira do Nazismo, a análise se volta para a revisão da ideia de representatividade política frente às questões da liberdade pública:
Queremos participar, queremos debater, queremos que nossas vozes sejam ouvidas em público, e queremos ter uma possibilidade de determinar o curso político do nosso país. Já que o país é grande demais para que todos nós nos unamos para determinar nosso destino, precisamos de um certo número de espaços públicos dentro dele. As cabines em que depositamos as cédulas são, sem sombra de dúvida, muito pequenas, pois só têm lugar para um. Os partidos são completamente impróprios; lá somos, quase todos nós, nada mais que o eleitorado manipulado. Mas se apenas dez de nós estivermos sentados em volta de uma mesa, cada um expressando a sua opinião, cada um ouvindo a opinião dos outros, então uma formação racional de opinião pode ter lugar através da troca de opiniões. (ARENDT, 2010, p. 200)
É perceptível pela ótica da autora, entre outras coisas, que a participação democrática ampla depende de fatores que vão além do depósito do voto nas urnas e inclui a ampliação dos espaços públicos, a capacidade de diálogo, o processo formativo cultural e educacional, daí a importância do ambiente escolar e da escolarização, discutidos de maneira tão contundente no texto A Crise na Educação. Ninguém nasce em um mundo livre de construções humanas, por isso cada nova geração tem responsabilidade com o passado e com o futuro. Portanto, sem o processo educacional, corremos o risco de ignorar o que as gerações anteriores construíram e, com isso, desprezamos os perigos autoritários inaugurados no passado. E isso, infelizmente, é possível sem o diálogo frequente e a expansão da esfera pública.
Com tantos e profundos autoritarismos no século XX percebemos, lendo autores diferentes e refletindo sobre momentos e sociedades distintas, que é impossível não ser constantemente vigilantes com o processo formativo das pessoas. É ele que minimamente pode garantir um debate mais consistente sobre os meandros democráticos e, principalmente, condições de sobrevivência onde existam conflitos e convergências de interesses públicos.
Apesar de termos percorrido apenas vinte anos do século XXI, está claro que a força autoritária recrudesce imensamente no mundo e no Brasil nos últimos anos. Há inclusive uma extensa bibliografia sobre o tema que vem colocando acentos interpretativos distintos e importantes sobre a ideia de democracia. Desde a publicação de Como as democracias morrem (2018), de Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, temos acesso no Brasil aos livros Como a democracia chega ao fim (2018), de David Runciman; O povo contra a democracia (2019), de Yascha Mounk; Na contramão da liberdade (2019), de Timothy Snyder, entre outros. Já entre autores e pesquisadores brasileiros a situação não é diferente e merece destaque o livro do sociólogo Leonardo Avritzer, O pêndulo da democracia (2019).
Levando em conta toda essa discussão e entendendo, desde os escritos mais contundentes do século XIX, que a democracia é um tema sempre a ser discutido, construído e cultivado que estruturamos a proposição deste dossiê. Assim, a articulação entre Cultura e Democracia não é apenas um jogo de palavras que diz respeito às urgências intelectuais da época em que vivemos, mas é um retorno ao passado carregado de historicidade e de respeito aos contínuos movimentos das lutas de homens e mulheres que formaram nossa sociedade ao longo do tempo. Está também relacionada à constatação de que o conhecimento acadêmico é fundamental para uma época que despreza a ciência e a racionalidade como sintoma de autoritarismos políticos e sociais que desprezam a vida e a multiplicidade humana.
Abrindo o dossiê, Durval Muniz de Albuquerque Júnior no texto Narrar vidas, sem pudor e sem pecado: as carnes como espaço de inscrição do texto biográfico ou como uma biografia ganha corpo problematiza a noção de biografia histórica, trazendo à tona como o ato de escrever biografias maneja a dimensão temporal e carnal da existência. Para tanto, o historiador lança mão da obra Roland Barthes por Roland Barthes (2017) e permite que os leitores compreendam que o ato de narrar e ler sobre vidas é carregado de significados variados. No campo do debate sobre democracia, o texto adquire singularidade por nos permitir compreender que quando lidamos com agentes do passado por meio de biografias estamos diante de uma “potência carnal que corporifica a escrita biográfica”.
Na sequência, disponibilizamos as reflexões de Rosangela Patriota sobre as incertezas contemporâneas em torno de práticas democráticas, por meio do artigo A questão democrática em tempos de incertezas. Com essa preocupação, a autora realiza um mergulho no cenário político internacional das últimas décadas para, posteriormente, discutir o tema do antissemitismo em sociedades contemporâneas, a partir do revisionismo na historiografia do Holocausto e por intermédio da peça teatral Praça dos Heróis de Thomas Bernhard. Articulando diálogos entre passado / presente, Patriota problematiza dúvidas e impasses de nossa história imediata.
Ainda no contexto de elaboração de narrativas históricas, cabe destacar o artigo do historiador Antonio de Pádua Bosi, Trabalho, Imigrantes e Política em “Greve na Fábrica”: o maio de 68 para Robert Linhart. Homem público francês, que viveu um dos momentos mais intensos dos debates democráticos da segunda metade do século XX, Linhart produziu um texto revelador sobre identidades culturais e experiência de trabalho industrial a partir da vivência de operários de diferentes nacionalidades na linha de montagem da Citroën, em 1969. Bosi recupera esses escritos e dá dimensão histórica e crítica ao livro do autor francês. Ler o artigo nos ajuda a perceber o quanto a dinâmica do trabalho e o debate sobre democracia se alterou ao longo do tempo, ao mesmo tempo que trouxe consequências marcantes para a vida e a luta dos operários.
Caminhando para a compreensão das discussões da democracia no Brasil, o artigo Paulo Freire: el método de la concientización, em la educación, para analizar y compreender el contexto actual de la Globalización, escrito por José Marin Gonzáles, traz para o debate sobre democracia o tema da educação por meio do método de Paulo Freire no atual contexto de Globalização. O texto é fundamental para um momento em que muito se critica o educador brasileiro sem nenhum tipo de fundamentação acadêmica e mais ainda quando o processo educacional é pensado prioritariamente como corpo que oferece aos sujeitos, desvinculados de quaisquer coletividades, ferramentas exclusivas para o mercado de trabalho. Freire é um chamamento à coletividade, à noção de educação voltada para o bem comum e principalmente para a justiça social, temas caros às experiências democráticas.
Entrando especificamente no diálogo com linguagens artísticas no Brasil dos últimos anos, o dossiê conta com quatro artigos. Em O homem de La Mancha: aspectos da utopia no teatro musical brasileiro da década de 1970, André Luis Bertelli Duarte promove importantes discussões sobre o teatro brasileiro nos duros anos da repressão política brasileira, com destaque para as possibilidades do debate democrático promovido pela encenação musical de O homem de la mancha (Dale Wasserman, 1965), produzido por Paulo Pontes, sob a direção de Flávio Rangel, em 1972-1973. No ambiente de autoritarismos diversos e em especial contra a figura de artistas e intelectuais, a releitura de Quixote se apresentava como ideal de justiça e liberdade.
Ainda dialogando com o campo teatral, Rodrigo de Freitas Costa promove no artigo O teatro de rua e sua expressão política: os primeiros anos do Grupo Galpão de Belo Horizonte (1982-1990) reflexões sobre o teatro de rua no período logo após o processo de abertura política, tendo por referência o trabalho desenvolvido pelo conhecido grupo teatral da capital mineira. O texto contribui para a discussão sobre democracia e cultura no Brasil especialmente por problematizar e questionar a ideia de “vazio cultural” desenvolvida por inúmeros críticos teatrais que tratam da produção nacional pós Estado Autoritário. Nesse sentido, as primeiras peças escritas e encenadas pelo Galpão são o mote para compreender parte da complexidade do processo cultural brasileiro e a amplitude do teatro político nos anos 1980.
Já sobre a relação entre Cinema, Democracia e História, o artigo de Rodrigo Francisco Dias, Autoritarismo e democracia nos filmes “Jânio a 24 Quadros” (1981, de Luís Alberto Pereira) e “Jango” (1984, de Silvio Tendler), permite ao leitor compreender como os temas do autoritarismo e da democracia são reelaborados nos documentários de Luís Alberto Pereira e Silvio Tendler no início da década de 1980. Abordando aspectos formais, o autor mostra como as configurações estéticas carregam posicionamentos históricos e políticos. Com isso, une forma e conteúdo por meio da historicidade e promove considerações importantes capazes de elucidar as dinâmicas do debate democrático dos anos finais da Ditadura Militar.
Por fim, o dossiê se encerra com uma discussão sobre financiamento cultural nos dias atuais. Essa discussão é fundamental para o Brasil de hoje, onde a arte é menosprezada e diversos artistas e intelectuais são hostilizados publicamente. Em um país que investe pouco em educação e cultura, sabemos que as discussões democráticas são frágeis e que os espaços públicos são minados por discursos surdos e preconceituosos. O artigo Democracia e Arte: as percepções da Lei Rouanet e o financiamento da cultura de Jacqueline Siqueira Vigário e Anna Paula Teixeira Daher promove reflexões importantes recolocando essa discussão em bases acadêmicas inicialmente analisando a lei de incentivo à cultura e, por fim, utilizando como exemplo o caso da exposição “Queermuseu: Cartografia da diferença na arte brasileira” (2017).
Como parte do dossiê para este este número de albuquerque: revista de história, há uma entrevista da Professora Doutora Maria Helena Rolim Capelato. Historiadora atuante na esfera pública, árdua defensora do conhecimento histórico cientificamente elaborado e produtora de reflexões importantes sobre História e Imprensa no Brasil do século XX. Na entrevista, a professora fala de sua formação ainda na Ditadura Militar, destaca os principais debates que dizem respeito à sua pesquisa sobre imprensa no Brasil e na América Latina e, por fim, reflete sobre temas políticos brasileiros contemporâneos.
Esperamos que os leitores aproveitem as reflexões que o dossiê traz e que possam cada vez mais entender e divulgar que a democracia não é um bem em si, mas um processo que precisa constantemente ser reelaborado, inclusive quando o objetivo é favorecer o humanismo em tempos sombrios.
Referências
ARENDT, Hannah. Crises na República. Tradução de José Volkmann. 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 2010.
AVRITZER, Leonardo. O pêndulo da democracia. São Paulo: Todavia, 2019.
LEVITSKY, Steven; ZIBLATT, Daniel. Como as democracias morrem. Tradução de Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Zahar, 2018.
MARX, Karl. O 18 de Brumário de Luís Bonaparte. Tradução de Nélio Schneider. São Paulo: Boitempo, 2011.
MOUNK, Yascha. O povo contra a democracia. Tradução de Cássio de Arantes Leite e Débora Landsberg. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.
RUNCIMAN, David. Como a democracia chega ao fim. Tradução de Sérgio Flaksman. São Paulo: Todavia, 2018.
SNYDER, Timothy. Na contramão da liberdade: a guinada autoritária nas democracias contemporâneas. Tradução de Berilo Vargas. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.
Rosangela Patriota (Universidade Presbiteriana Mackenzie / CNPq)
Rodrigo de Freitas Costa (Universidade Federal do Triângulo Mineiro)
Thaís Leão Vieira (Universidade Federal de Mato Grosso)
Organizadores
PATRIOTA, Rosangela; COSTA, Rodrigo de Freitas; VIEIRA, Thaís Leão. Apresentação. Albuquerque: revista de história, Mato Grosso do Sul, v.12, n.24, 2020. Acessar publicação original [DR]
Democracia, Patrimônio e Direitos: a década de 1980 em perspectiva / Anais do Museu Paulista / 2020
Os artigos reunidos nesse dossiê têm como foco as experiências e reflexões do campo do patrimônio cultural brasileiro na década de 1980. A motivação primeira que nos uniu para pensar os anos 1980 foi a percepção de um desafio historiográfico de superação dos sensos comuns da década tida como perdida, entendendo que nas práticas e políticas de preservação de patrimônio houve uma expansão sem precedentes dos espaços, temáticas e agentes possíveis. Na luta pela democracia, o patrimônio constituiu-se como lugar de tensões, debates e ações, nem sempre lineares ou bem-sucedidos, sobre as identidades, os direitos culturais e urbanos, as práticas e os conceitos estabelecidos.
A necessidade de debater a década foi impulsionada também pelos duros ataques e desmontes das instituições de cultura e de patrimônio que têm ocorrido desde 2017 e estão sendo aprofundados em 2019. A partir de uma perspectiva multidisciplinar e ampla em termos de território nacional, organizamos um encontro com pesquisadores tendo em vista o desafio de problematizar a década e os mais variados questionamentos.
Buscamos atentar para situações concretas daquele contexto e também projetar um olhar prospectivo. Nesse sentido, fontes muito variadas foram consideradas nas análises, evidenciando sua riqueza e densidade. Destaque para a Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, que marcou presença na maioria dos artigos. A releitura dos números lançados nos anos 1980 surpreende o leitor, pelos temas variados, pela salutar presença do debate e do contraditório, de certa forma espelhando um sentimento de esperança, que tem nos feito muita falta nos dias atuais, em que só vemos a destruição de toda ordem.
Em junho de 2019, no auditório da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da Universidade de São Paulo (USP), realizou-se o seminário “Democracia, patrimônio e direitos: a década de 1980 em perspectiva”, uma parceria da FAUUSP com a Escola de História da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UFRJ). Os textos aqui reunidos decorrem diretamente do seminário e têm por objetivo mais geral ampliar a compreensão das práticas patrimoniais e de sua história no Brasil, concentrando-se na década da redemocratização.
Acreditando na multidisciplinaridade do patrimônio também no que se refere aos diálogos acadêmicos, foram reunidos autores com vinculações institucionais diversas, oriundas da história, geografia, sociologia, museologia e arquitetura, que se dispuseram a discutir o período lançando olhares a agentes e lugares variados, bem como produzindo narrativas a partir de suas próprias centralidades: do Ceará a Santa Catarina, passando por Minas Gerais, Bahia, São Paulo, Rio de Janeiro, pelas práticas de estados e municípios, pelo patrimônio natural, bens móveis, bens edificados, pelos agentes e sujeitos sociais, sem deixar de lado o chamado “patrimônio nacional”. Os textos mostram a variedade e complexidade das ações, sem a pretensão de ver nelas caráter exemplar, mas de apontar as inúmeras possibilidades de investigação. Um campo de desafios que não se encerra aqui, mas que, assim se espera, abra novos caminhos de pesquisa, reflexão e, quem sabe, ação.
A década de 1980 no Brasil foi marcada pelas disputas políticas no processo de redemocratização. As articulações para a saída do regime militar e os caminhos para a democracia levaram quase uma década de consolidação. Da Lei da Anistia, em 1979, até a Constituição Cidadã em 1988 e as eleições diretas em 1989 – de acordo com a periodização proposta para a redemocratização –, dez anos de pressões e lutas democráticas tiveram lugar. A luta por direitos urbanos e a ação dos grupos sociais nas demandas pelo direito à moradia e, sobretudo, à cidade já estavam presentes desde o final dos anos 1970 e ganharam protagonismo na década de 1980. Neste processo, assiste-se a muitas reações às sucessivas transformações do período de ditadura militar, no qual a modernização conservadora autoritária modificou, entre outras coisas, o padrão de urbanização do país.
O patrimônio cultural passou a se situar no vértice das ações e debates sobre o urbano, mas não somente nesse ponto. As disputas por memórias e narrativas acerca da identidade nacional colocaram o passado e a preexistência física das cidades no campo de disputas que pressionaram por ações para além daquelas impostas pela chamada “ortodoxia do patrimônio”. Dentro do órgão federal, à época denominado Subsecretaria ou Secretaria do Patrimônio do Histórico e Artístico Nacional / Fundação Nacional Pró-Memória (Sphan / PróMemória), e, para muito além dele em órgãos estaduais e municipais não somente do campo específico do patrimônio cultural, chegando às políticas que são formuladas a partir da Constituição, assiste-se a uma ampliação sem precedentes.
A década foi um momento de muitas transformações no pensamento sobre a preservação em âmbito nacional, redundando em ações, debates e políticas inovadoras no contexto da história do patrimônio brasileiro, que não necessariamente tiveram continuidade, como analisado neste dossiê.
O período culminou na promulgação da Constituição Federal de 1988, em que os preceitos de patrimônio cultural brasileiro foram legalmente transformados, incluindo toda sorte de temas da cultura e expressões que extrapolaram o excepcional. Em 2020, completam-se 32 anos desde a promulgação da nova Constituição Brasileira, e podemos afirmar que o campo do patrimônio transformou-se profundamente. Essas mudanças, largamente incrementadas pelas políticas culturais dos anos 2000, referem-se à amplitude e diversificação das políticas públicas, em conexão intersetorial, com base nos novos conceitos de patrimônio, que aproximaram a temática do universo dos direitos – urbanos, por exemplo, como o direito à moradia, e o direito à cultura. Referem-se também à inclusão de novos sujeitos no amplo debate sobre diversidade cultural brasileira, associada ao direito à memória, bem como ao reconhecimento de grupos tradicionalmente pouco assistidos pelas políticas patrimoniais, especialmente após a implantação de uma política em 2001 para a salvaguarda do patrimônio imaterial.
No caso dos afrodescendentes brasileiros, o debate remonta aos anos 1970, período em que os movimentos negros foram fortalecidos, em parte na esteira dos amplos debates que se davam nos EUA. No contexto da redemocratização, a luta antirracista e por direitos iguais tornou-se bandeira partilhada por setores progressistas da intelectualidade, que se juntaram a representantes dos movimentos negros, mediando várias de suas reivindicações no campo do patrimônio. Ao mesmo tempo, como sujeitos desse processo, integrantes do movimento passaram a lutar por espaços políticos e institucionais, para conduzir uma política de afirmação da cultura negra. No artigo de Márcia Chuva, essa discussão se coloca no âmbito das políticas de memória e patrimônio no Rio de Janeiro, a partir da análise das medidas adotadas pelo órgão estadual de patrimônio, o Instituto Estadual do Patrimônio Cultural (Inepac) e pela Sphan / Pró-Memória, nos anos 1980, e, numa leitura também prospectiva, do Rio de Janeiro tornado Patrimônio Mundial nos anos 2010.
O contexto também demandava o conhecimento das práticas distintivas desse grupo formador da sociedade brasileira, e em seu artigo Márcia Sant’Anna analisa um projeto muito bem-sucedido realizado em Salvador, que foi o Mapeamento de Sítios e Monumentos Religiosos Negros da Bahia. Mapeamentos e inventários são metodologias tradicionais no campo do patrimônio e sua utilização, nesse caso, produziu material inédito. Sua importância extrapola o evento em si, tendo contribuído para formular o conceito de patrimônio cultural, que hoje substituiu amplamente o tradicional patrimônio histórico e artístico, como também para incluir bens relacionados à cultura afro-brasileira no seletivo rol do patrimônio, tendo em vista os vários terreiros de candomblé tombados a partir do ato inaugural do Terreiro da Casa Branca em Salvador, em 1984.
Contudo, esse universo de bens ainda permanece sub-representado na lista geral de bens protegidos. Outro problema que merece ser apontado, e que se repete em outras situações, é a insistência em adotar rigores estilísticos inadequados ao tipo de bem. Vimos, portanto, mudanças importantes no sentido de novos sujeitos de atribuição de valor intervindo nas políticas de seleção, mas a gestão desses bens tombados ainda requer mudanças substanciais na cultura patrimonial. Problema similar se deu com o tombamento da Serra da Barriga, local do Quilombo dos Palmares, em Alagoas, em 1985. Fruto da pressão do movimento negro, sua gestão colocava questões que se misturavam a desafios urbanos e habitacionais, para os quais a instituição federal não tinha respostas. O artigo de Joseane Brandão contém uma riqueza de informações sobre a trajetória de reconhecimento dos quilombos como patrimônio brasileiro, no qual a pesquisadora analisa o processo histórico e jurídico de construção social da categoria de comunidades remanescentes de quilombos. Esse processo teve início na Constituição Federal Brasileira de 1988, que determinou o tombamento de quilombos, enfatizando assim o caráter de reparação desse gesto. Isso ocorreu graças à pressão dos movimentos negros na Constituinte.
Num olhar prospectivo, consolida-se a ideia de pedidos de reparação como solicitações de reconhecimento. Todo esse processo tem contribuído para a reflexão sobre a escravidão no Brasil, o pós-abolição e o racismo como problemas estruturais de nossa sociedade e como oportunidade para o campo do patrimônio intervir social e culturalmente, ao associar processos de reparação ao reconhecimento do patrimônio afro-brasileiro.
Portanto, no universo dos direitos, o patrimônio aproximou-se de políticas afirmativas, de reparação e de inclusão, com experiências inúmeras e bastante diversificadas que resultaram em novas estratégias políticas. Esse crescimento do campo também resultou na e da ampliação de investigações acadêmicas e da formação profissional, com a criação de cursos de pós-graduação ou a inserção do tema em áreas de formação tradicionais, voltando-se para a reflexão sobre o patrimônio e as políticas públicas no setor, bem como sua inclusão nas graduações por meio de diversas disciplinas. Dessa forma, os trabalhos aqui reunidos são fruto do campo acadêmico do patrimônio cultural e mostram a importância da reflexão histórica sobre o assunto. Os autores se debruçam sobre aspectos diversos e complementares do período, e os artigos contribuem para a compreensão da história e da historiografia do patrimônio cultural brasileiro, uma vez que apresentam e problematizam o período de modo inédito.
Entre narrativas e práticas, o campo do patrimônio se redimensiona nos anos 1980. A historiografia é ponto-chave e talvez inicial para lançar luz sobre a década. Por isso, optamos por abrir o dossiê com o artigo de Luciano Teixeira, que aborda os primeiros passos da construção de uma historiografia do patrimônio, a partir de duas publicações seminais desse contexto, que demarcaram a possibilidade de uma escrita da história do patrimônio no Brasil. Acompanhada da efervescência dos debates que transcorriam em São Paulo, nos anos 1980, numa rede distinta de agentes e instituições, acirravam-se os debates e as disputas sobre o controle do discurso patrimonial no processo de redemocratização, especialmente no caso do Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico do Estado de São Paulo (Condephaat) e pela Sphan / Pró-Memória, órgão de grande importância para o período, presente em todos os artigos deste dossiê. Sua história é, sem dúvida, mais uma frente de pesquisa a ser abordada, como aponta este dossiê.
Como o campo do patrimônio se distingue historicamente pelas práticas que se rotinizam na agência federal, optamos pelo contraponto entre narrativas e práticas, colocando em sequência o artigo de Beatriz Kühl sobre as restaurações realizadas pela Sphan / Pró-Memória. Justamente pela ausência de documentos reflexivos, normativos ou teóricos sobre essas restaurações desde os anos 1930, as fontes privilegiadas neste artigo foram os quatro números da Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional dos anos 1980, já mencionados, nos quais há densos artigos sobre restaurações emblemáticas realizadas na época. Esse material é analisado com olhar crítico, e reflete sobre a forma de circunscrição do tema e de sua abordagem, trazendo outros artigos desses números para matizar os debates sobre a restauração de então.
É consenso entre estudiosos que uma das grandes mudanças perpetradas pela modernização conservadora autoritária do regime militar foi a do perfil urbano do Brasil, dada por diversos processos, dentre os quais a urbanização e a metropolização somadas às novas conexões territoriais pela onda rodoviarista. A emergência de um debate urbano do patrimônio no Brasil surge pari passu às transformações nas cidades e às ações de planejamento urbano e territorial organizadas pelo governo militar. A pressão urbana nas cidades consideradas “históricas” e as perdas substanciais em outras tantas estão claras desde a década de 1970, mesma época em que o “patrimônio urbano” como campo conceitual se consolida no cenário internacional, com a promulgação de cartas patrimoniais e políticas urbanas específicas para áreas patrimonializadas, como aconteceu na França, Itália e Reino Unido.
No Brasil, as ações são assumidas ainda nos anos 1970 – o que tensiona, como já visto, as temporalidades da década de 1980 – pelo campo do planejamento urbano de municípios que organizaram inventários, conceitos e novas formas de acautelamento a partir de leis urbanas e planos diretores. Os conceitos de ambiente urbano e de patrimônio ambiental urbano foram mobilizados no contexto de áreas urbanas no Rio de Janeiro e em São Paulo – aqui discutidas pelos textos de Marly Rodrigues e Andréa Tourinho, Mariana Tonasso e Flávia Brito do Nascimento –, ao mesmo tempo que buscaram incluir a cidade nas práticas patrimoniais. No entanto, e apesar das importantes mudanças que foram capazes de implantar na área – com a inclusão de novos agentes e novas áreas urbanas até então não consideradas como patrimônio –, muitas vezes recaíram nos cânones arquitetônicos, protegendo bens isolados e afastando-se das demandas por consideração das relações entre habitantes e bens culturais.
Nos anos 1980, o debate sobre a cidade e o patrimônio cultural assume-se democrático em níveis municipal, estadual e federal, quando a Sphan / Pró-Memória passa a proteger muitas áreas urbanas a partir dos argumentos da história, entendendo a própria cidade como um documento. A cidade-documento, discutida no texto de Lia Motta, viabiliza a permanência do Iphan no debate urbano que passou a proteger novos núcleos urbanos e utilizar critérios inéditos, como são exemplares os casos de Laguna, Natividade e Petrópolis.
O ambiente como argumento de preservação urbana era parte de um quadro ainda mais amplo da discussão ambiental, um dos temas latentes do período. Da mesma forma, nas cidades, a pressão da urbanização desde os anos 1960 e seus impactos nefastos nas áreas ditas naturais ou nas comunidades tradicionais levou à mobilização da comunidade internacional, com o papel decisivo da Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (Unesco). No Brasil, o protagonismo do debate sobre as áreas naturais veio de dois agentes novos no campo, ainda na década 1970: a geografia e o Estado de São Paulo. O papel decisivo de Aziz Ab’Saber, geógrafo e professor da Universidade de São Paulo, no Condephaat, estabelecendo parâmetros conceituais para a consideração da natureza como patrimônio nos seus aspectos memoriais, foi analisado por Simone Scifoni.
A atuação do Condephaat nas áreas naturais é característica do envolvimento de novos agentes na busca pela preservação de novos objetos, espaços e práticas. A abertura do conselho às universidades públicas paulistas permitiu práticas para além das ortodoxias, emblemáticas do acolhimento de novos temas e possibilidades de expansão das práticas patrimoniais a partir da legislação de tombamento. Abertura essa hoje ameaçada, com a redução da presença das universidades no conselho. A natureza tombada era salvaguardada naquilo que tinha de valores memoriais, históricos e culturais. A criação de novos instrumentos de proteção, segundo o interesse do planejamento pela preservação urbana, aparece também nos debates sobre o licenciamento ambiental, tratado por Claudia Leal. Trata-se de uma temática urgente, em razão da recente política ambiental perversa e destruidora da vida, que vem sendo implantada no Brasil, com imensas interseções com o campo do patrimônio.
Outra vertente de atuação no campo é sua relação com a museologia, aqui também apresentada a partir do Condephaat. Inês Gouveia analisa o assunto a partir da trajetória de Waldisa Rússio, voltando-se para a contribuição teórica e política da museóloga, que incorpora na ideia de museu a noção de direito e acesso aos patrimônios e às memórias. Daí também a ampliação do debate da museologia enquanto área de conhecimento específica que ocorre nos anos 1980. A interlocução da museologia com o patrimônio fica marcada por sua atuação no grupo executivo que propõe a criação do Condephaat. Contudo, o campo museológico pouco aderiu, naquele momento, às transformações que o diálogo com o patrimônio trouxeram. Ainda assim é surpreendente o protagonismo dessa mulher, aqui tangenciado pela perspectiva dos estudos de gênero, cujas relações com o patrimônio merecem ser aprofundadas.
A cultura que adjetiva o patrimônio mudou, desde os anos 1970, as perspectivas de atuação dos novos agentes nos níveis municipal e estadual, não somente em instituições de patrimônio, mas também em associações da sociedade civil. A dimensão política da preservação tornou-se evidente nos anos 1980, como novo instrumento da luta política por direitos, aspecto que é ressaltado em vários artigos deste dossiê. O texto de Lucina Matos mostra a presença da sociedade civil organizada na valorização do patrimônio ferroviário, colocada em marcha pelos movimentos sociais e associações de defesa deste patrimônio, que lutaram pelo direito à memória e ao passado ferroviário, abrindo diálogos e embates pela sua preservação. Trata-se de um processo longo e disputado, cujos desdobramentos serão vistos quase três décadas depois com a Lei 11.483 de 2007, que atribuiu ao Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) a responsabilidade de administrar os bens móveis e imóveis nesse âmbito da extinta Rede Ferroviária Federal Sociedade Anônima (RFFSA).
Um aspecto fundamental do olhar voltado para a década de 1980 neste dossiê foi a possibilidade de compreender as temporalidades da patrimonialização no Brasil, constituídas ao longo das últimas quatro décadas. Se muitas das práticas foram estabelecidas nos anos de redemocratização e puderam ser, de certa forma, atendidas naqueles anos, outras tantas tiveram na Constituição de 1988 um ponto de chegada e de partida. O patrimônio ferroviário é exemplo claro: os sucessivos desmontes dos anos 1990 ampliaram as demandas do direito à memória ferroviária e se tornaram tema de atenção institucional nos anos 2000.
Este dossiê também põe em pauta aspectos regionais das políticas de patrimônio, que surgem antes mesmo dos anos 1970 em diversos locais, incentivados especialmente pelas possíveis associações entre patrimônio, turismo e desenvolvimento. A progressiva organização de movimentos e associações locais em favor do patrimônio é indício de novas narrativas patrimoniais, articuladas por argumentos de pertencimentos e identidades urbanas. Várias iniciativas dessa época trouxeram novos agentes para o campo, bem como temas ainda ausentes dos processos de patrimonialização. Um deles é a imigração e modos de vida dos colonos imigrantes no Brasil. Esse tema é trabalhado por Daniela Pistorello, que problematiza a imaginação do imigrante alemão em Santa Catarina a partir da dissecação do projeto “Roteiro Nacional da Imigração”, que gerou não apenas um enquadramento do imigrante alemão, como o apagamento de outras etnias ali presentes.
A entrada ou não de novos agentes e outros sujeitos sociais tem desdobramento nas novas visualidades no final da década de 1970 e nos anos 1980, quando a diversidade cultural se anunciava como tema. A fotografia, tal como tratada por Eduardo Costa, embora presente desde o início da atuação do Iphan, vai dialogar com distintas formas de compreensão do patrimônio, seja por meio da inclusão dos habitantes nas representações ou pelas novas profissões que se ocupam do patrimônio, como a do designer Aloísio Magalhães.
Outras formas de construção patrimonial aparecem na regionalização do patrimônio ou nas ações regionais interessadas nas tradições locais como temáticas de grande significado para o campo da cultura no Brasil, explícitas em manifestações diversas desde os anos 1960. No patrimônio, novamente, a temporalidade dessas explorações conceituais finca raízes nos anos 1970: por exemplo, nas tão propaladas ações do Centro Nacional de Referência Cultural de Aloísio Magalhães (CNRC). A experiência do Centro de Referência Cultural do Estado (Ceres), entre 1975 e 1990, tratada por Antonio Gilberto Nogueira, de mapeamento e registro audiovisual da memória da cultura tradicional popular no Ceará é também emblemática do alcance das ações locais e de seus efeitos na relação entre cultura e turismo.
O debate sobre o local ou, mais especificamente, dos estados e municípios na valoração e gestão do patrimônio tem se intensificado desde a década de 1970. A questão regional e a ação dos estados e municípios – em caráter colaborativo e não concorrente, tal como posto no Artigo 216 da Constituição – são um dos temas ainda importantes e irresolutos para o patrimônio no Brasil. A tentativa de estabelecer um sistema nacional de patrimônio nos anos 2000 e os ensaios de gestão compartilhada que começaram nos anos 1980 têm sido interrompidos ou são pontuais. Na época, as experiências se basearam no planejamento urbano ou na criação de instituições municipais e estaduais de preservação, sendo o caso de Belo Horizonte, tratado por Flávio Carsalade, significativo para pensar a questão, principalmente quando Minas Gerais assumiu o protagonismo ao incluir municípios na valorização e salvaguarda do patrimônio a partir da “Lei Robin Hood” de 1995. Como essas experiências mimetizaram a legislação federal de preservação e seguiram a ortodoxia do patrimônio nacional ou abriram novos caminhos de valoração é ainda campo de investigações futuras. As questões aqui tratadas apontam para a reiteração de lógicas fincadas no patrimônio arquitetônico e monumental, ao mesmo tempo que buscam novas formas de acautelamento e proteção.
Como se pode confirmar com a leitura deste dossiê, as mudanças no campo do patrimônio condensadas nos anos 1980, e sintetizadas no marco legal da nova Constituição, são evidentes e passaram, acima de tudo, por uma análise diacrônica. Desse modo, a reflexão se deu em conjunto, por vezes indiretamente, sobre a hegemonia da chamada ortodoxia do patrimônio, com seu império estético e formal, e trouxe à luz inúmeras situações que dela divergem ou com ela se confrontam. Apontou também aqui a inércia dessa ortodoxia, que ainda perdura nos dias atuais. Talvez em posição menos evidente, mas ainda em combate.
É na dimensão política da preservação evidenciada nos anos 1980 que nota-se uma mudança estrutural, capaz de suscitar novos paradigmas, colocados em disputa no campo. Isso diz respeito à ideia de que o patrimônio não existe em si e, portanto, não pode mais ser (des)vendado ou (des)coberto. Tudo o que alcançou o status de patrimônio cultural – categoria também forjada naquele contexto – tornou-se patrimônio pela vontade dos homens.
Evidentemente, não tivemos a intenção de esgotar todas as frentes que a política patrimonial abrange, tampouco trazer casos exemplares para o dossiê. Buscamos, sim, enfatizar a complexidade do campo e, sobretudo, apontar o modo como integra a história política e social brasileira, recusando a abordagem empobrecedora que coloca o tema à parte, como assunto apenas técnico, para digestão por especialistas.
Desejamos uma boa e instigante leitura!
Referências
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Flávia Brito do Nascimento – Professora na graduação e pós-graduação da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP). Bacharel e licenciada em História pela Universidade Federal Fluminense, graduada em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, obteve o título de mestre e de doutora em Arquitetura e Urbanismo pela USP. Realizou pós-doutorado na Université Paris 1 Panthéon-Sorbonne. https: / / orcid.org / 0000-0002-6889-7614
Márcia Regina Romeiro Chuva – Doutora em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF), com pós- -doutorado na Universidade de Coimbra. Pesquisadora do CNPq. É professora associada do Departamento de História e do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio) e do Mestrado Profissional em Patrimônio Cultural do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan).
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Estado, democracia e movimentos sociais na América Latina contemporânea | Revista Eletrônica da ANPHLAC | 2020
Desde princípios do século XX, os países da América Latina se veem diante do desafio de construir alternativas para a modernização do Estado e o desenvolvimento nacional, frente à crise e ao colapso dos regimes de dominação oligárquica, fundamentados no modelo primário-exportador. Liberais em aspectos econômicos, na política, o Estado oligárquico era bastante interventor, especialmente na garantia da exclusividade do poder para os grupos primário-exportadores por meio de intensa repressão contra os demais setores da sociedade. Nas primeiras décadas do século, alguns países vivenciaram rupturas com o modelo oligárquico, como a Revolução Mexicana, iniciada em 1910, e a eleição de Hipólito Yrigoyen para presidente da Argentina, em 1916. Porém, é somente a partir dos anos de 1930, que a maioria dos países da América Latina se depara com o desafio de superação da dominação oligárquica, frente ao colapso do modelo primário-exportador no contexto da depressão mundial. Intensificam-se as mobilizações em prol da democratização da sociedade e de novos modelos de desenvolvimento econômico. Esse cenário foi marcado pela exacerbação do nacionalismo, do autoritarismo, dos movimentos sociais e das polarizações ideológicas. As propostas para superação do modelo oligárquico das sociedades latino-americanas não foram adotadas sem conflitos e convulsões. Leia Mais
Justiça de Transição, experiências autoritárias e democracia / Estudos Ibero-Americanos / 2019
Ao longo das últimas décadas, o debate sobre Justiça de Transição ganhou novos contornos e direcionamentos. Por se tratar de um campo reflexivo intrinsecamente interdisciplinar, envolvendo, entre outros, pesquisadores vinculados à História, às Ciências Sociais e ao Direito, a justiça de transição tem sido abordada a partir de perspectivas diversas, possibilitando uma compreensão multifacetada sobre a busca de verdade e de justiça em contextos democráticos de países que passaram por experiências de autoritarismo ou guerra.
No Brasil, em particular, a produção bibliográfica orientada pela busca de justiça em relação aos crimes da ditadura militar, ainda que relevante, é reduzida frente à importância do tema. Sob a sombra da Lei de Anistia de 1979, muitos anos transcorreram antes que a agenda da justiça de transição fosse nomeada e ganhasse fôlego no País. O olhar investigativo para o passado padecia – e ainda padece – do estigma do revanchismo. A partir de 2007, com a inflexão que Paulo Abrão imprimiu na Comissão de Anistia, o vocabulário e os enquadramentos da justiça de transição aportaram no Brasil. Temos ali uma primeira leva de estudos dedicados a compreender – em perspectiva comparada ou não – a trajetória transicional brasileira, fortemente ancorada no princípio de reparação. Mais recentemente, em 2012, com a Comissão Nacional da Verdade e a onda de outras comissões da verdade que a sucederam – municipais, estaduais, universitárias, sindicais, entre outras –, novo impulso foi dado às pesquisas sobre justiça de transição. Contudo, há ainda vasto território a ser explorado sobre o assunto.
Este dossiê se insere precisamente nessa agenda de reflexões, buscando preservar a sua vocação plural e interdisciplinar. Ele é composto por uma entrevista e cinco artigos. Na entrevista com Paulo Abrão, o leitor tem um precioso relato sobre a trajetória brasileira de institucionalização das políticas de memória e verdade. Nosso entrevistado foi presidente da Comissão de Anistia (2007-2016) do Ministério da Justiça, Secretário Nacional de Justiça (2011-2016), diretor do Instituto em Políticas Públicas dos Direitos Humanos do Mercosul (2015-2017) e, atualmente, exerce o cargo de Secretário Executivo da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (2016-2020). Em um impressionante exercício de articulação e síntese, ele percorre um grande arco temporal, partindo da primeira geração de ativistas, que enfrentaram as portas fechadas do Estado, até o evento mais recente das comissões da verdade, quando setores do Estado e da sociedade atuaram em redes de cooperação e conflito. Trata-se de um importante panorama da justiça de transição no País, de interesse para iniciantes e iniciados no assunto.
Quanto à seção de artigos, ela se inicia com texto de Pedro Rolo Benetti, intitulado “Excessos, exceção e ordem: entraves para a construção democrática póstransições”. Nele, o autor aborda de que maneira setores das Forças Armadas no Brasil buscaram construir uma retórica orientada para a legitimação da violência sistemática do Estado durante o período da ditadura militar no País, com ênfase nas noções de excessos, exceção e ordem. Para tanto, o autor se vale de duas fontes principais produzidas em contextos distintos: os debates em torno das Forças Armadas do Estado durante o processo da Constituinte de 1987-1988 e os depoimentos prestados por militares à Comissão Nacional da Verdade.
O segundo artigo do dossiê, de autoria de Maria Inácia Rezola, direciona o olhar para a justiça de transição no contexto português. Em seu texto “Punir ou perdoar? A difícil gestão do passado ditatorial no Portugal democrático – o caso dos seneamentos”, a autora chama a atenção para o fato de que, em Portugal, a conjuntura de transição da ditadura para a democracia abriu uma “janela de oportunidade” para a investigação de crimes cometidos durante o período autoritário. Para discutir esse cenário, Rezola analisa a legislação e a prática dos chamados “saneamentos”, que foram processos de exclusão do serviço público de funcionários considerados como autoritários ou corruptos.
San Romanelli Assumpção é autora do terceiro artigo do dossiê, com o título “Comissões da verdade e justiça de transição: problemas de fundações morais deliberativas para se pensar graves violações de direitos humanos massivamente praticadas”. Em diálogo com as obras de Amy Gutmann e Dennis Thompson, a autora busca refletir sobre as “fundações morais” das comissões da verdade, com o intuito de analisá-las tendo-se em vista a relação entre a normatividade da justiça de transição e as teorias deliberativas da democracia. Ainda que sustente as virtudes e os aspectos positivos dos requisitos e dos processos democráticos deliberativos, para a autora, eles não devem ser priorizados para se pensar normativamente acerca dos períodos de transição de regimes autoritários para democracias.
O quarto artigo do dossiê se intitula “Patrimônio, mudanças e memórias traumáticas: a Arqueologia da Repressão e da Resistência”, de autoria de Pedro Paulo Abreu Funari, Rita Juliana Soares Poloni e Darlan de Mamann Marchi. Ancorados na discussão teórica sobre os Estudos Patrimoniais e a Arqueologia da Repressão e da Resistência, os autores desse texto abordam novas interpretações da questão patrimonial e a sua relação com as memórias traumáticas no Brasil e na América Latina no contexto democrático. Ao colocar em diálogo diferentes campos do conhecimento, como a História, os Estudos Patrimoniais e a Arqueologia, o artigo contribui para uma reflexão ampla sobre as políticas patrimoniais e a justiça de transição em diferentes contextos.
O último artigo do dossiê, de autoria de Wallace Andrioli Guedes, intitulado “A freira, a tortura e a censura: um filme de Ozualdo R. Candeias entre a crítica política e a ofensa moral”, se dedica a analisar o filme A freira e a tortura, do diretor Ozualdo R. Candeias, lançado em 1983, que aborda a repressão sofrida por uma religiosa durante a ditadura militar brasileira. O autor busca refletir sobre a obra, censurada pela Divisão de Censura de Diversões Públicas (DCDP) no período final do regime ditatorial, com o objetivo de refletir sobre os processos de censuras moral e política em um contexto de transição do período autoritário para a democracia.
A publicação de um dossiê sobre justiça de transição já se justificaria pela grande relevância do campo, sempre ocupado em depurar os lastros do passado autoritário no presente democrático. Em uma conjuntura marcada pela disseminação de discursos que buscam negar a ditadura ou relativizar os processos de repressão no País, esse dossiê também se propõe como um gesto político e uma afirmação da democracia qualificada pela devida compreensão e enfrentamento do passado autoritário e pela defesa dos direitos humanos.
Cristina Buarque de Hollanda – Doutora em Ciência Política pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (IUPERJ); Professora do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IESP / UERJ), Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil. Também é Secretária Executiva da Associação Brasileira de Ciência Política. E-mail: cristinabuarque@iesp.uerj.br https: / / orcid.org / 0000-0002-1600-4044
Fernando Perlatto – Doutorado em Sociologia pelo Instituto de Estudos Sociais e Políticos (IESP-UERJ); Professor da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), Juiz de Fora, Minas Gerais, Brasil. E-mail: fperlatto@yahoo.com.br https: / / orcid.org / 0000-0003-4301-0826
HOLLANDA, Cristina Buarque de; PERLATTO, Fernando. Apresentação. Estudos Ibero-Americanos. Porto Alegre, v. 45, n. 3, set. / dez., 2019. Acessar publicação original [DR]
Gênero, Democracia e Direitos Humanos / Fronteiras – Revista Catarinense de História / 2019
O presente dossiê Gênero, Democracia e Direitos Humanos, edição Número 33 da Fronteiras: Revista Catarinense de História, foi construído a partir dos debates realizados no XVII Encontro Estadual de História, realizado entre os dias 21 e 24 de agosto de 2018, na Universidade da Região de Joinville (UNIVILLE), em Joinville, Santa Catarina. As problemáticas colocadas nesse encontro nortearam a reflexão acerca dos desafios e possibilidade envolvendo as pesquisas e práticas relacionadas as questões de gênero articuladas à democracia e aos direitos humanos.
Estamos vivenciando, no Brasil, movimentos ultraconservadores que desqualificam e demonizam o feminismo e o gênero, palavras tidas como proibidas, e que tem brutalizado corações e mentes. Ambas, se tem gerado discussões acaloradas, é porque estão no âmbito do político. Projetos inconstitucionais, que aviltam a democracia e os direitos humanos, são apresentados com intuito de eliminar o gênero como categoria de análise nas relações sociais e culturais, bem com destruir políticas públicas arduamente conquistadas e caras a emancipação dos sujeitos históricos. Neste sentido, este dossiê visa refletir e aprofundar pesquisas e debates que abordem o gênero, com enfoque nos direitos humanos, cidadania, emancipação, liberdade, educação, feminismos, preconceitos e violências, promovendo o conhecimento para mudanças de práticas discriminatórias, reconhecendo as mulheres de diferentes gerações, raça, etnia, gênero, orientação sexual como sujeitos de direitos.
O Dossiê é formado sete artigos e duas resenhas. O primeiro artigo, intitulado A televisão como campo de memória e representação social: Documento Especial: Televisão Verdade (1989 – 1995) de Lucas Braga Rangel Villela, procura problematizar as disputas pela memória e de representação a respeito da realidade brasileira após Ditadura Civil-militar. O autor discute, através programa telejornalístico “Documento Especial: Televisão Verdade” da emissora de televisão Rede Manchete, o papel da televisão como instrumento de representação social e de construção de memória coletiva no Brasil no período da redemocratização.
No artigo Mulherio na Constituinte (1985-1987), Cintia Lima Crescêncio e Renata Cavazzana da Silva analisam como o jornal Mulherio (1981-1988) pautou em suas páginas a campanha do Conselho Nacional dos Direitos das Mulheres no período de debates sobre a Constituinte, especificamente nos anos entre 1985-1987. O jornal procurou atuar na tentativa de garantir os direitos e a cidadania das mulheres em meio as disputas políticas e das limitações dos movimentos sociais com o Estado.
O artigo intitulado A luta pela expansão da democracia em Pernambuco nos anos de 1930: o movimento feminista como protagonista, escrito por Emelly Sueny Fekete Facundes e Alcileide Cabral do Nascimento, analisa a atuação da Federação Pernambucana pelo Progresso Feminino (FPPF) na luta pela expansão dos ideais democráticos de igualdade civil, direito ao trabalho e a educação para mulheres na década de 1930. Através de periódicos recifenses que circulavam na época e de relatórios de atividades da FPPF enviado à sua matriz, no Rio de Janeiro, as autoras procuram compreender a importância do movimento feminista na conquista de direitos sociais e na luta pela consolidação da democracia no Brasil.
Em Saúde sexual e saúde reprodutiva no cárcere: uma discussão necessária para garantia de direitos das mulheres privadas de liberdade, Camila Azevedo dos Reis e Luciana Patrícia Zucco, a partir de uma perspectiva interseccional, abordam o acesso à saúde sexual e reprodutiva das mulheres em privação de liberdade no Presídio Feminino de Florianópolis, a partir dos direitos sexuais e direitos reprodutivos. Procurando dar destaque às narrativas das mulheres e profissionais da Instituição o trabalho evidencia como as mulheres presas são tratadas, as violações aos seus direitos e as lutas por condições dignas que atendam as especificidades destas sujeitas.
Já Neide Cardoso de Moura, no artigo intitulado Da educação do campo ao PNLD / campo: do anúncio educacional a denúncia social, apresenta os resultados relativos à pesquisa realizada no ano de 2016, intitulada “Análise das imagens de livros didáticos do Programa Nacional do Livro Didático para a educação do campo, na perspectiva de gênero”. O artigo procura reconhecer os avanços relativos à educação no campo sem deixar de ressaltar os desafios que ainda se colocam para as políticas e os programas educacionais que orientam os rumos da educação brasileira.
No artigo Debates e disputas sobre a legalização do aborto no Brasil: a laicidade na corda bamba, Emilly Joyce Oliveira Lopes Silva e Luciana Patrícia Zucco analisam o processo de legalização do aborto no Brasil a partir da categoria laicidade, com dados coletados na audiência pública do Supremo Tribunal Federal acerca da ADPF442. As autoras partem da discussão sobre aborto e laicidade, analisam os argumentos da audiência pública já citada e discutem as possibilidades da categoria de laicidade para o avanço dos debates sobre a descriminalização do aborto no Brasil.
Por fim, tratando de memórias sobre a primeira fase de escolarização, o artigo Ensino Primário e infância, de Elaine Prochnow Pires, versa sobre memórias de ginasianas do Alto Vale do Itajaí – Santa Catarina, acerca de seu percurso escolar no ensino primário nos tempos dos exames de admissão ao ginásio. Através de entrevistas, a autora evidencia práticas da vida escolar num tempo em que aos alunos e as alunas era aplicada uma prova para prosseguirem seus estudos ginasiais, seleção obrigatória entre os anos de 1931 a 1971. São narrativas que trazem elementos para análise, destacando-se a frequência dos elementos de sentido e a forma como isso reverberou nas narrativas orais e escrita dos sujeitos da pesquisa.
Na Seção Resenha dois trabalhos compõem esta edição. O primeiro é de Isadora Muniz Vieira apresentando o livro do historiador François Hartog, Crer em História, lançado em 2017 no Brasil pela Editora Autêntica. E o segundo trabalho é de Diego José Baccin, tratando do livro Tierras, leyes, história: estudios sobre “La gran obra de la propiedad”, da pesquisadora Rosa Congost. Este livro foi publicado em 2007, pela editora Crítica, em Barcelona, e se encontra em língua espanhola, ainda sem tradução para o português.
No momento em que se fecha este Dossiê, é orquestrado por parte de quem governa o Brasil um acintoso movimento de destruição das conquistas que levaram décadas para se concretizarem, como vários direitos das mulheres, das populações indígenas, quilombolas, populações LGBTI+; bem como a retiradas de direitos trabalhistas e previdenciários. Além desses infortúnios, que recaem sobre as populações mais pobres, violentando-as e negando sua cidadania, os ataques ao ensino público com o contingenciamento de verbas para seu funcionamento são crimes contra o direito dos jovens de terem um futuro menos árduo. A educação pública é direito constitucional garantida na Constituição Cidadã, como o é o direito das crianças e jovens de aprender a refletir e a posicionar-se como sujeito neste mundo e suas relações, reflexões que advém das disciplinas das Ciências Humanas, tão vilipendiadas atualmente. A destruição da pesquisa evidencia retrocessos nunca vistos; a destruição do ambiente é criminosa, dentre outros ataques à democracia, são fatores que contribuem para eliminar o Brasil dentre os países confiáveis para investimentos. Lastimável. As violências contra as mulheres, especialmente as negras, indígenas e pobres, tem-se se exacerbado como práticas de abusos e feminicídios – a liberação do porte de armas trará mais tragédias, e as mulheres são, e serão, as principais vítimas. Não desistiremos das lutas de salvar vidas que importam.
Marlene de Fáveri
Fernanda Arno
Organizadoras do Dossiê Gênero, Democracia e Direitos Humanos
FÁVERI, Marlene de; ARNO, Fernanda. Apresentação. Fronteiras: Revista catarinense de História. Florianópolis, n.33, 2019. Acessar publicação original [DR]
Expressões artísticas e a democracia nas Américas | Revista Hydra | 2019
Reafirmando o seu comprometimento com o trabalho de divulgação de pesquisas acadêmicas, a Revista Hydra vem a público com mais uma edição. O presente dossiê, que tem como título “Expressões artísticas e a democracia nas Américas”, apresenta textos que discutem como a arte, em suas variadas formas de expressão, pode dialogar com um determinado contexto sociocultural e demonstrar a sua contrariedade em frente a atitudes autoritárias, fascistas e racistas.
O texto de Luis Fellipe Fernandes, que é intitulado “”Pro Brasil nascer feliz: Rock in Rio, juventude e redemocratização no Brasil”, compõe o dossiê temático abordando o rock enquanto forma de expressão para a juventude brasileira da década de 1980 através do Rock in Rio, considerando as disputas políticas que envolveram a realização do evento junto as eleições indiretas. Carlos Moura Veloso Junior, por outro lado, em “A dança contemporânea do Ballet Stagium: a composição coreográfica “dança das cabeças” como forma de manifestação social (1978)”, discute, por meio da história de criação da Ballet Stagium e suas coreografias, compreender manifestações políticas da companhia. Leia Mais
Lutas feministas e LGBTQ+ pela democracia no Brasil / Anos 90 / 2019
Em junho de 2010, Judith Butler proferiu uma conferência em Berlim por ocasião do Christoph Street Day, sendo condecorada com o prêmio Courage, o qual recusaria. Queere Bündnisse und Antikriegspolitik, título em alemão dado à fala de Butler, traduzida e publicada em português como Alianças queer e política anti-guerra1, expressa os motivos da filósofa para tal recusa. O texto também ilumina os objetivos que orientaram a proposta do presente dossiê.
Na conferência de Berlim, Butler destacou o quão surpreendente eram as alianças na Turquia (aparentemente “atrasada”), onde feministas trabalhavam com pessoas gays, lésbicas, trans e queer contra a violência policial, “unidas na sua oposição ao militarismo, ao nacionalismo e àquelas formas de machismo que os sustentam”2. Em contraponto, lembrou seu encontro, durante uma conferência sobre gênero e educação em Lyon, na França (aparentemente “avançada”), com uma feminista que havia escrito um livro sobre a “ilusão” da transexualidade e que tinha suas palestras públicas “atacadas” por várias ativistas trans e seus / suas aliados(as) dissidentes queer.
As especificidades da homofobia, da transfobia e da misoginia precisam ser entendidas, reconhece Butler. Contudo, nenhuma delas pode ser bem compreendida sem referência uma à outra. Elas estão profundamente ligadas em um mundo no qual certas normas governam como os corpos podem e não podem se mover no mundo, como corpos devem surgir ou fracassar em surgir, como a discriminação e a violência ocorrem com base no modo como corpos e desejos são percebidos3 . A luta de uma minoria desprivilegiada está invariavelmente ligada à luta de todas as minorias desprivilegiadas.
Nesse sentido, Lutas feministas e LGBTQ+ pela democracia no Brasil também poderia ter como título “Alianças queer e política anti-guerra”. Os artigos reunidos aqui pretendem historicizar e problematizar as lutas feministas e LGBTQ+ (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais, Queer e +) no Brasil. Privilegia como marco temporal a segunda metade do século XX, momento em que emergem, internacionalmente e no Brasil, os feminismos de “segunda onda” e os movimentos homossexuais; e as primeiras décadas do século XXI, quando esses movimentos multiplicam e diversificam sujeitos, reivindicações e estratégias de mobilização. Desse modo, os textos reunidos analisam as estratégias de resistências empreendidas por mulheres e LGBTQ+ a partir do final da ditadura civil-militar, no período da redemocratização, nos últimos governos democráticos.
No artigo que abre o dossiê, Não é mole não, ser feminista, professora e sapatão: apontamentos de uma história a partir do espaço das lésbicas e da lesbianidade na produção de conhecimento sobre mídia, Cláudia Regina Lahni e Daniela Auad analisam as pesquisas apresentadas em 2015, ano em que a Suprema Corte dos Estados Unidos aprovou o casamento entre pessoas do mesmo sexo, em eventos de Comunicação, como o Grupo de Pesquisa Comunicação para a Cidadania da Intercom, o Grupo de Trabalho Comunicação e Cidadania do Encontro Nacional da Compós e o GT de História da Mídia Alternativa, a fim de questionar se os textos selecionados tematizavam a comunicação de lésbicas — organizadas em grupos ou presentes de forma individual em mídias diversas. Conforme as autoras, nos eventos científicos mencionados, pouco ou nada se discutiu sobre a temática das lésbicas.
Jamil Cabral Sierra, em Identidade e diversidade no contexto brasileiro: uma análise da parceria entre Estado e movimentos sociais LGBT de 2002 a 2015, estuda os processos de constituição, no cenário brasileiro, da noção de diversidade sexual e de gênero, bem como de que maneira tal noção se associou às políticas identitárias das últimas décadas no Brasil. O autor problematiza a parceria entre Estado e movimentos sociais, especialmente LGBT, de modo a caracterizar como essa relação tem produzido as formas de governamento dos sujeitos LGBT nos últimos 13 anos (até o impeachment da Presidenta Dilma Rousseff).
No texto “Que Possamos Ser o que Somos”: memórias sobre o Movimento Gay de Alfenas no processo de luta pelos direitos de cidadania LGBT (2000-2018), Marta Gouveia de Oliveira Rovai analisa parte da memória coletiva expressa por meio da história oral de vida de quatro membros mais antigos do Movimento Gay de Alfenas (MGA), fundado no ano de 2000 no sul de Minas Gerais. Com isso, a autora lança luz sobre a atuação da organização na defesa dos direitos humanos, em questões jurídicas e em manifestações culturais e políticas.
O que nos faz humanos? Maria Lídia Magliani e a solidão do corpo em tempos fascistas, de Gregory da Silva Balthazar, se apropria do conceito de rosto conforme discutido por Judith Butler como um operador decisivo de uma ética intersubjetiva em tempos de fascismos individualizantes. Para tanto, o autor traz a debate as pinturas de Maria Lídia Magliani, problematizando “sua potência em nos sugerir possibilidades de repensarmos, conjuntamente, o próprio sentido do que nos faz humanos.
Inaugurando as discussões no dossiê sobre o período da ditadura civil-militar no Brasil, Antonio Mauricio Freitas Brito analisa, em “Um verdadeiro bacanal, uma coisa estúpida”: anticomunismo, sexualidade e juventude no tempo da ditadura, algumas representações anticomunistas heteronormativas elaboradas por militares sobre sexualidade, moralidade e juventude durante a ditadura no Brasil. A partir da preocupação de membros da caserna com a ação comunista junto aos jovens, o autor revela a concepção de mundo que estigmatizava e temia comportamentos desviantes de gênero.
Em seguida, no artigo Sob vigilância: os movimentos feministas brasileiros na visão dos órgãos de informação durante a ditadura (1970-1980), Ana Rita Fonteles Duarte analisa as informações produzidas por diferentes órgãos de vigilância ligados ao aparato repressor durante a ditadura civil militar brasileira sobre os movimentos feministas nas cidades de Rio de Janeiro, São Paulo e Fortaleza, a partir de documentos encontrados nos Arquivos do Estado do Rio de Janeiro, no Arquivo do Estado de São Paulo e no Arquivo Nacional.
Por sua vez, em Feminismo vende? Apropriações de discursos democráticos pela publicidade em Claudia (1970-1989), Soraia Carolina de Mello propõe estabelecer relações entre publicidade, feminismos e democracia nas décadas de 1970 e 1980 no Brasil a partir da Revista Claudia. A ideia da publicidade como espaço de informação e educação e seu potencial como divulgadora de ideias feministas ou propagadora de estereótipos de gênero também são abordados no artigo, a partir de teorias feministas, estudos culturais e as noções de subjetivação / singularização.
Por fim, no artigo “Constituinte pra valer tem que ter palavra de mulher”: Movimento de Mulheres do IAJES, Movimento Regional de Mulheres e a luta por democracia no Brasil, Cíntia Lima Crescêncio e Mariana Esteves de Oliveira apresentam a mobilização do Movimento de Mulheres do Instituto Administrativo Jesus Bom Pastor (IAJES) e do Movimento Regional de Mulheres (MRM), rede formada no interior de São Paulo e Mato Grosso do Sul, na construção da Carta das Mulheres aos Constituintes de 1987. A Carta foi resultado de ampla discussão a nível nacional de inúmeros movimentos de mulheres e feministas que, entre 1985 e 1987, fizeram debates e coletaram assinaturas para garantir “demandas das mulheres” na nova Constituição (1988). Como lembram as autoras, “a documentação selecionada permite uma reflexão fundamental sobre os movimentos de mulheres e feministas de ontem e de hoje, bem como as sensíveis aproximações e afastamentos desses grupos”.
Lutas feministas e LGBTQ+ pela democracia no Brasil também está assinalado, em sua gênese, pela vulnerabilidade e pela precariedade que marcam as vidas das mulheres e de LGBTQ+s no Brasil contemporâneo. Segundo os dados do Ministério da Saúde, compilados pelo Atlas da Violência, lançado em 2019, foram registrados 4.936 assassinatos de mulheres em 20174 . A maior parte das vítimas (66%) é negra! Por outro lado, o Anuário Brasileiro da Segurança Pública, que pela primeira vez trouxe um recorte específico de casos relacionados à violência contra o público LGBTQ+, informou que 99 gays, lésbicas, bissexuais, travestis ou transexuais foram assassinados(as) em 20175 . Segundo o Anuário, divulgado este ano durante o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, o número de LGBTQ+s agredidos fisicamente teve alta de 1,3% entre 2017 e 2018.
Parafraseando Butler, este dossiê é sobre essa vulnerabilidade e essa precariedade que marcam as sexualidades e os gêneros dissidentes, mas é também sobre os desejos, as ocupações dos espaços públicos, as reivindicações por visibilidade e escuta ontem e hoje, sendo tudo isso absolutamente essencial para qualquer movimento político / sexual / de gênero. É absolutamente essencial para a vida em democracia com justiça de gênero, sexualidade, raça e classe.
Agradecemos aos / às autores(as) por terem enviado suas propostas. Somos gratos também ao Alessander Mario Kerber e à equipe da revista Anos 90 pelo espaço e pelo diálogo. Finalmente, agradecemos a cada leitor, leitora, leitxr, por fazer da leitura deste dossiê uma possibilidade política de lutas feministas e LGBTQ+ pela democracia, de alianças queer e política anti-guerra. Boa leitura!!
Notas
1. BUTLER, J. Alianças queer e política anti-guerra. Bagoas: Estudos Gays: Gêneros e Sexualidades, v. 11, n. 16, p. 29-49, 2017. Disponível em: https: / / periodicos.ufrn.br / bagoas / article / view / 12530. Acesso em: 22 dez. 2019.
2. Ibidem, p. 31-32.
3. Ibidem, p. 37.
4. CERQUEIRA et al. Atlas da Violência 2019. Brasília, DF: Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada; Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 2019.
5. FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA. Anuário Brasileiro de Segurança Pública. Brasília, DF: Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 2019
Joana Maria Pedro – Professora titular da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Doutora em História Social pela Universidade de São Paulo (USP) com pós-doutorados na França, na Université d’Avignon, e nos Estados Unidos, na Brown University. E-mail: joanamaria.pedro@gmail.com http: / / orcid.org / 0000-0001-5690-4859
Elias Ferreira Veras – Professor da Universidade Federal de Alagoas (UFAL). Doutor em História Cultural pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). E-mail: eliashistoria@yahoo.com.br http: / / orcid.org / 0000-0001-7726-4475
PEDRO, Joana Maria; VERAS, Elias Ferreira. Apresentação. Anos 90, Porto Alegre, v. 26, 2019. Acessar publicação original [DR]
Memória, patrimônio e democracia / Fronteiras – Revista Catarinense de História / 2018
O Número 32 da Fronteiras: Revista Catarinense de História apresenta o Dossiê Memória, Patrimônio e Democracia, traz textos que se articulam ao conjunto de debates promovidos durante o XVII Encontro Estadual de História, realizado entre os dias 21 e 24 de agosto de 2018, na Universidade da Região de Joinville (UNIVILLE), em Joinville, Santa Catarina.
Ao propor a combinação dos termos memória, patrimônio e democracia, o Dossiê visa oportunizar o compartilhamento de resultados de pesquisas interessadas em compreender as maneiras pelas quais bens culturais são (re)convertidos em patrimônios por meio do trabalho de agentes sociais de natureza diversa (individuais, coletivos, públicos, privados, entre outros).
À sua maneira, os textos que integram este Número evidenciam que os entrecruzamentos entre patrimônio, memória e democracia precisam ser pensados para além da mera contemplação de ícones considerados valiosos e relevantes para um determinado grupo ou para uma sociedade como um todo. Antes disso, é preciso ter em mente que o patrimônio se inscreve em um campo de lutas e reivindicações sociais mais ou menos democráticas, muitas das quais se utilizam do patrimônio para reforçar ou contestar significados atribuídos a bens que, presumidamente, constituem-se enquanto referências na complexa trama de políticas de memória na contemporaneidade. Em outras palavras, os autores desta edição, a partir de diferentes enfoques e abordagens teórico-metodológicas, problematizam complexidades políticas e culturais que atravessam processos contemporâneos de fabricação, ativação, uso e difusão de patrimônios culturais.
O Dossiê constitui-se de oito artigos, uma tradução e uma resenha. O artigo intitulado A memória fardada: a criação do Museu Histórico Nacional e as relíquias do Contestado, de autoria de Rogério Rosa Rodrigues, investiga o processo de coleta de vestígios materiais por parte de oficiais militares que atuaram na repressão ao movimento do Contestado, vestígios que foram incorporados ao acervo da reserva técnica do Museu Histórico Nacional, no Rio de Janeiro. No desenvolvimento de suas análises, o autor procura debater a valorização da história militar do Brasil em um período em que tensas disputas foram travadas em torno da reconstrução de uma suposta memória nacional (primeiras décadas do século XX).
No escrito Fortalezas abandonadas, saqueadas, redescobertas, restauradas, patrimonializadas: da democratização à pluralização do patrimônio, Pedro Mülbersted Pereira e Elison Antonio Paim analisam como agentes envolvidos com a gestão das Fortalezas de Anhatomirim, Ratones e Ponta Grossa, situadas em Florianópolis / SC, historicamente envidaram esforços no sentido de elaborar e disseminar uma narrativa palatável acerca do passado dessas edificações. Apoiados em um conjunto diversificado de fontes (bibliografias, entrevistas, reportagens digitais e documentos oficiais), os autores problematizam retóricas patrimoniais que seguem dando força para um “discurso sobre a ruína”, negligenciando, em suas formas de expressão, narrativas de memória que não se afinam à versão glamourizada que certos órgãos encarregados da gestão das Fortalezas procuram manter e propalar.
No escrito Patrimônios difíceis, demanda social e reparação nos Asilos Colônias em São Paulo, Gabriela Lopes Batista aciona a noção de “patrimônios difíceis” para refletir sobre as representações relacionadas ao tombamento de espaços que, no transcurso do século XX, funcionaram como instâncias de isolamento compulsório de pessoas acometidas pela hanseníase.
O artigo Tombamentos, processos, disputas e tensões nas histórias do patrimônio cultural de Joinville – outras questões para o debate público, de Cristiano Viana Abrantes, Dietlinde Clara Rothert e Giane Maria de Souza, constitui-se como um estudo sobre estratégias político-institucionais ligadas à gestão do patrimônio cultural em uma cidade de médio porte (Joinville). No desenvolvimento do texto, os autores procuram refletir sobre tensões que se fazem presente no campo patrimonial do município de Joinville, atentando para o papel exercido por agentes e agências da administração pública encarregados de assessorar, monitorar e acompanhar o cumprimento de requisitos legais que são diretamente relacionados com a patrimonialização ou não de determinado bem cultural.
No artigo intitulado Diálogos arriscados: do direito de participação cidadã na patrimonialização ao direito cidadão de aparecer no patrimônio cultural, o historiador Diego Finder Machado reflete sobre relações tensas e conflituosas que se desdobram de perspectivas divergentes acerca do lugar, da função e dos modos de interação com o patrimônio nas sociedades do presente. A partir da análise de processos de patrimonialização que perpassaram a história de Joinville, o autor discute como cidadãos comuns, de maneira mais ou menos declarada, apropriaram-se do patrimônio cultural para reivindicar espaços de aparecimento na vida pública das cidades contemporâneas.
Em A UNESCO, o patrimônio e o turismo cultural: uma abordagem inicial (1960- 1980), Valéria Fernanda Serpa Steinke, Fernando Cesar Sossai e Ilanil Coelho apresentam um histórico da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), bem como examinam algumas das discussões sobre patrimônio que atravessaram o processo de elaboração da Convenção para a Proteção do Patrimônio Mundial, Cultural e Natural (UNESCO, 1972). Em seguida, os autores refletem a respeito de como essa Organização, durante a década de 1970, atuou de maneira a aproximar entre si os termos patrimônio e turismo cultural.
No artigo Desenvolvimentismo, industrialização e ensino superior em Chapecó: bases para a criação de um movimento estudantil, Vinicius de Almeida Peres e Monica Hass problematizam os interesses envolvidos com a oferta do Ensino Superior em Chapecó, bem como discutem como se deu a constituição de um movimento estudantil junto ao Centro de Ensino Superior da Fundação Universitária do Desenvolvimento do Oeste de Santa Catarina. Vale a pena destacar que os autores fazem uso de fontes que integram o acervo do Fundo Documental do Diretório Central dos Estudantes, um acervo custodiado pela equipe técnica do Centro de Memória do Oeste de Santa Catarina (CEOM / UnoChapecó).
Em Campos entre taipas e aramados: novos olhares sobre a paisagem serrana catarinense, a autora, Cristiane Fortkamp Schuch, busca elaborar uma escrita histórica a respeito de experiências culturais e modos de vida que impactaram a paisagem dos campos de altitude do planalto catarinense. Em seu texto, a autora dispensa atenção à análise da paisagem histórica da região, procurando diferenciar e ampliar o conceito de paisagem para além de sua vertente imagética.
Na seção Resenha, Adriano Denovac explicita algumas das discussões presentes no livro O que pode a biografia, obra organizada pelos historiadores Alexandre de Sá Avelar e Benito Bisso Schimidt. Trata-se de uma obra interessante para o campo da História, uma vez que aprofunda o debate sobre os possíveis lugares da biografia no campo da História, em especial nos domínios da História Pública.
Esta edição da Fronteiras conta ainda com a tradução do texto intitulado A fabricação do patrimônio, de autoria de Nathalie Heinich, socióloga e diretora de pesquisa do Centro Nacional de Pesquisa Científica (CNRS, Paris). Elaborada pelos historiadores Diego Finder Machado e Fernando Cesar Sossai, a tradução é uma contribuição importante para os estudiosos que atuam no campo do patrimônio cultural no Brasil, uma vez que Heinich desenvolve em seu escrito questões bastante espinhosas: como um determinado objeto adentra o conjunto do patrimônio cultural nacional? Sob quais critérios? Sob quais dinâmicas de atribuição de valores? A tradução também é uma oportunidade de conhecer as proposições de Nathalie Heinich para o desenvolvimento de pesquisas mais pragmáticas a respeito do patrimônio cultural.
Esperamos que este Número da Revista Fronteiras seja uma contribuição relevante para os que, assim como nós, procuram investigar as complexidades contemporâneas que emergem dos entrecruzamentos entre Memória, Patrimônio e Democracia.
Boa leitura a todas e a todos!
Fernando Cesar Sossai
Ilanil Coelho
Samira Peruchi Moretto
Organizadores do Dossiê Memória, Patrimônio e Democracia
SOSSAI, Fernando Cesar; COELHO, Ilanil; MORETTO, Samira Peruchi. Apresentação. Fronteiras: Revista catarinense de História. Florianópolis, n.32, 2018. Acessar publicação original [DR]
História, democracia e instituições / Estudos Históricos / 2018
As atuais discussões a respeito do funcionamento das instituições nacionais e da qualidade da democracia brasileira motivaram a definição do presente tema da Revista Estudos Históricos, que se dedica a reflexões sobre História, democracia e instituições. A abrangência e importância do tema fez com que recebêssemos artigos refletindo sobre os mais variados temas, a partir de perspectivas bem distintas. Assim, neste número, contamos com textos sobre feminismo e participação das mulheres nas instituições, sobre distintas concepções de democracia na primeira metade do século XX, a partir do ponto de vista de juristas, sobre o processo de redemocratização brasileira na década de 1980 e as disputas em torno da noção de democracia, além de texto sobre o funcionamento do sistema de Justiça criminal brasileiro. Dessa forma, publicamos artigos que cobrem diferentes épocas da histórica republicana brasileira.
O artigo que abre este número da Revista trata de uma Uma história social do feminismo: diálogos de um campo político brasileiro (1917-1937), no qual Glaucia Cristina Candian Fraccaro contribui para reflexões sobre o feminismo – campo de disputas internacionais –, a partir da ótica do mundo do trabalho. Ao longo do artigo, Fraccaro enfatiza a luta das mulheres trabalhadoras por direitos e sua pouca representatividade nas instituições governamentais. O segundo artigo, A democracia em debate: juristas baianos e a resistência ao regime varguista (1930-1945), de Diego Rafael Ambrosini, busca analisar diferentes noções em circulação a respeito da ideia de democracia nas décadas de 1930 e 1940, especialmente a partir da perspectiva da produção intelectual de juristas que atuavam no Instituto dos Advogados da Bahia.
O texto que segue, de Daniel Barbosa Andrade de Faria, analisa o incidente acontecido logo após a manifestação contra o Plano Cruzado II, conhecido como “badernaço”, refletindo sobre as disputas em torno da noção de democracia, fundamentado na documentação do acervo da Secretaria de Segurança Pública do Distrito Federal. Pesquisando sobre a mesma época, Fernando Roque Fernandes analisa o debate parlamentar em torno da Constituição de 1988, no que concerne à pauta da cidadania indígena, quando democracia, cidadania e direitos humanos estavam na agenda de discussões para pensar a “nova democracia” brasileira. Por fim, o artigo de Flávia Cristina Soares e Ludmila Ribeiro que oferece um balanço bibliográfico sobre o funcionamento do sistema criminal brasileiro, registrando o descompasso entre os ideais da democracia e o pragmatismo do funcionamento das instituições de Justiça.
Fechando o dossiê, o número apresenta a entrevista realizada com o cientista político João Roberto Martins Filho, professor da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), sobre a história e a atuação política das Forças Armadas brasileiras. Além de narrar sua trajetória acadêmica, com início na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Martins Filho registra o percurso de suas pesquisas sobre a instituição militar, tendo início na atuação política do Exército durante o período ditatorial brasileiro.
Este número é dedicado a Dulce Pandolfi, Luciana Heymann, Monica Kornis e Verena Alberti, acadêmicas fundamentais na história do CPDOC e da Revista Estudos Históricos.
Angela Moreira Domingues da Silva – Professora da Escola de Ciências Sociais da Fundação Getúlio Vargas (CPDOC / FGV). Editora da Revista Estudos Históricos.
Marco Aurélio Vannucchi Leme de Mattos – Professor da Escola de Ciências Sociais da Fundação Getúlio Vargas (CPDOC / FGV). Editor da Revista Estudos Históricos.
Paulo Fontes – Professor da Escola de Ciências Sociais da Fundação Getúlio Vargas (CPDOC / FGV). Editor da Revista Estudos Históricos.
Os editores.
SILVA, Angela Moreira Domingues da; MATTOS, Marco Aurélio Vannucchi Leme de; FONTES, Paulo. Editorial. Estudos Históricos. Rio de Janeiro, v.31, n.63, jan. / abr. 2018. Acessar publicação original [DR]
As alternativas políticas à Democracia no século XX / Intellèctus / 2017
Apresentamos neste número o dossiê As alternativas políticas à Democracia no século XX, de produção historiográfica de autores de diferentes universidades.
O objetivo deste dossiê se confunde com o objetivo da revista: ele “destina-se a publicar estudos em História Intelectual e dos Intelectuais bem como sobre a produção cultural dos países que compõem o universo cultural da Latinidade“, abordando questões pertinentes à: Política, Economia, Sociedade, Filosofia e Artes.
Além disso, a temática do dossiê é dedicada ao pensamento, às organizações e aos indivíduos que durante a época contemporânea se opuseram à Democracia no Ocidente. Este desafio nasceu a partir da leitura do livro de Jan-Werner Müller “Contesting Democracy. Political Ideas in Tewntieth-Century Europe”, editado pela Universidade de Yale em 2011. Esta obra se tornou uma referência para todos os que se dedicam ao estudo das ideias políticas e ao processo de (des)construção da Democracia no século XX, especialmente no entre guerras. Segundo este autor, a esfera política e os indivíduos nunca terão sido tão influenciados por escritores como neste período. Talvez por isso, o século XX é para muitos historiadores “a era das ideologias”, e, que pelas suas características violentas, fanáticas e irracionais, levaram Eric Hobsbawn a batizar os anos de novecentos como a “Era do Extremos”. Leia Mais
História, democracia e diferenças: os direitos humanos na contemporaneidade / Albuquerque: Revista de História / 2017
É com grande satisfação que apresentamos ao público-leitor o dossiê “História, democracia e diferenças: os direitos humanos na contemporaneidade”. A proposta desse compêndio de artigos escritos por pesquisadores de diversas partes do mundo é construir, desde o campo acadêmico, um olhar mais aberto ao inventário social que estabelece a relação entre História e contemporaneidade. A partir de abordagens teóricas plurais, as discussões sobre temas centrais como racismo, política, território, memória, gênero, e episteme, compõem um mosaico cultural definidor do maior desafio do atual cenário político internacional: a defesa de certo sentido de democracia no que se convencionou chamar de “Direitos Humanos”
O debate sobre o lugar das minorias em situações de conflito como as vivenciadas no mundo contemporâneo revela a urgência com que a produção científica atual precisa não apenas se posicionar em relação a contextos de exceção, de resistência e de luta, mas também se debruçar sobre temas espinhosos que, de forma geral, fazem com que a História e as demais ciências humanas tenham algo a dizer sobre a visibilidade social e politica que determinados grupos reivindicam. O silêncio diante da opressão é algo que precisa ser superado e debatido amplamente, e nada melhor do que a reflexão acadêmica para trazer à discussão as questões que fundamentam diversas agendas sociais. A utilização de um espaço consolidado de análise como a Revista Albuquerque mostra que o propósito desse dossiê atinge não somente a sensibilidade dos grupos envolvidos nessas demandas, mas alcança um universo alargado de preocupações teóricas que extrapola as convenções científicas e obriga a universidade pública a se aproximar das tensões que nos definem desde o passado em direção ao presente.
Os artigos que fazem parte desse dossiê foram produzidos a partir dessas inquietações, e almejam fomentar o anseio de se compreender a importância do tema dos Direitos Humanos e reconhecer a necessidade de considerá-lo como uma conquista que não pode ser monopolizada politicamente em tempos difíceis como o que vivemos. Com esse espírito, por meio de um olhar abrangente sobre o tema, Agustín Ávila Romero e José Luis Silvaran mostram como a História deve ser definida a partir de um binômio singular: a diversidade biocultural e as ontologias espaciais na América Latina. Para tanto, os autores superam a tendência geral de se olhar para a História mexicana exclusivamente por meio de fontes escritas espanholas, demonstrando certa resistência epistemológica ao se debruçar sobre formas narrativas próprias dos maias tzeltales de Chiapas para se compreender valores e saberes que se sedimentam no chamado Ejército Zapatista de Liberación Nacional (EZLN). A defesa do olhar local sobre o citado movimento é reforçada por escolhas teóricas apropriadas e inovadoras, especialmente quando se recorre aos conceitos de colonialidade do saber e colonialidade do poder para se redefinir uma espécie de memória zapatista. No pulsante coração da América Latina, o exemplo epistemológico dos autores serve de modelo para que outros movimentos sociais no mesmo continente sejam lidos por um viés mais autêntico e fiel aos grupos locais do que a velha e mofada epistemologia clássica.
Ainda sobre as questões ligadas ao exercício da dominação cultural na teoria do conhecimento que se reproduz nas universidades ocidentais, José Marín destrincha o vínculo entre eurocentrismo, racismo e interculturalidade no mundo globalizado. Os problemas contemporâneos, em suas múltiplas faces, garantem a sobrevivência de aspectos das relações humanas que já deveriam ter sido extintos no trato entre as diferentes culturas. Um desses elementos nocivos, que reforçam a necessidade de discussão sobre os Direitos Humanos é a herança colonial europeia de se desqualificar o outro para oprimi-lo. Marín nomeia essa estratégia epistemológica de “perversão ideológica” fundadora do racismo e do nacionalismo que nos dias atuais, se transformam em políticas de massas. Não reduzindo sua reflexão à denúncia dos males, e estendendo suas conclusões em direção a caminhos que permitam a solução desses problemas, o autor apresenta a educação como principal ferramenta de conciliação entre valores universais e particularidades culturais. O primeiro passo, portanto, seria a validação da ideia de que a História da humanidade é a história de nossas migrações.
Já Bruno do Prado Alexandre e Raquel Gonçalves Salgado, em artigo sobre as narrativas de travestis, transferem o olhar do leitor para outro universo silenciado: o lugar desses indivíduos e de seus corpos no ambiente escolar brasileiro. A base teórica para essa análise seria o que os autores chamam de “estudos de gênero e pós- feministas”, o que por si só já conferiria a originalidade e a importância desse trabalho. O mapeamento da questão a partir das vozes de cinco jovens travestis de Rondonópolis, Mato Grosso, escancara pela ótica acadêmica o que se tenta ocultar pela opressiva caracterização de certa “normalidade” social O tempo da infância, o espaço escolar e a sociabilidade cotidiana são marcados por categorias emblemáticas da violência sofrida pelo “diferente”, traduzida em acepções como “viadinho”, “estranho” e até mesmo “corpo abjeto”. O resultado dessa dinâmica de opressão singular é a construção de estratégias de sobrevivência e resistência dentro de um espaço que deveria originalmente ser acolhedor e integrado como a escola. A dinâmica de violência do ambiente escolar em relação aos travestis tem um palco de atuação ainda mais central: o banheiro. É aqui que o “processo de negação e privação de direitos empreendidos sobre os corpos considerados grotescos certamente, a dimensão mais cruel das memórias escolares desses sujeitos formados pelos silêncios e pelas invisibilidades.
Outro universo a ser revelado pelas questões ligadas aos Direitos Humanos nesse dossiê é a luta pela terra como agenda global. Em seu artigo, Cassio Rodrigues da Silveira estabelece os parâmetros da reforma agrária como uma reivindicação social que transcende a demanda específica dos integrantes de um movimento organizado como o MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra). Em conflito não apenas com o latifúndio, mas também com o viés globalizante do capitalismo neoliberal, o combate pelo direito à terra defendido pelo MST confere uma dimensão social à questão agrária, já que passa a ser movida pela necessidade de sobrevivência, e não pela lógica do mercado fundiário. O problema da concentração da posse da terra, portanto, ultrapassa as fronteiras nacionais, pois o sistema econômico, o Estado e os interesses de classe são distintas dimensões de um debate assumido pelo MST como altermundialista. No entrecruzamento dessa questão estão as relações com os dois mandatos do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, as expectativas construídas a partir do Fórum Social Mundial em 2001, e a luta anti-imperialista mundial, tudo expresso nas publicações do MST e na construção de um vocabulário político próprio em seus textos e redes de informação.
Mantendo-se no campo das lutas políticas em contextos de repressão, Aguinaldo Rodrigues Gomes apresenta o tema da resistência de intelectuais e estudantes do PCB (Partido Comunista Brasileiro) ao regime militar brasileiro. O primeiro desafio enfrentado aqui é justamente contribuir com o recente debate historiográfico acerca do tema, que tem buscado pensar como esse acontecimento político, um dos mais dramáticos de nossa história, repercutiu fora dos centros de poder do país, especificamente o eixo Rio-São Paulo. O autor enfatiza no artigo as estratégias adotadas pelo PCB para a construção de uma luta pelos diretos civis no campo educacional por parte de estudantes e professores que ousaram enfrentar o regime em defesa das liberdades de expressão. No momento em que se discute o que foi a ditatura militar no Brasil, notória por seu completo desprezo aos Direitos Humanos mais fundamentais, estender o debate para outras partes do país é democratizar a luta contra um passado recente, além de ser também uma forma de resistência epistemológica que quebra a centralidade do Rio de Janeiro e de São Paulo no discurso sobre a memória política do Brasil contemporâneo.
Ainda em relação à resistência a ditadura militar em nosso país Ary Cavalcanti Junior nos traz uma narrativa sobre a resistência das mulheres ao regime a partir da trajetória da militante Diva Soares Santana que atuou em defesa dos direitos dos mortos e desaparecidos durante a ditadura civil-militar no grupo Tortura Nunca Mais-Bahia. Utilizando a metodologia da história oral, o autor busca representar as memórias, seus confrontos e ressignificações a partir dos relatos de Diva Santana. Nas palavras de Cavalcanti Junior a inserção de Diva na militância ocorreu devido ao desaparecimento de sua irmã Dinaelza, mas uma vítima do regime ditatorial. Sua busca pelo corpo da irmã nos fornece um claro retrato da face perversa da ditadura na Bahia, a exemplo do que ocorreu em diversas regiões do país e que ainda estão por ser descortinadas pelas pesquisas acadêmicas, daí a importância do texto de Cavalcanti Junior.
Com os olhos voltados para um dos grandes ícones da cultura brasileira, Tadeu Pereira dos Santos analisa a condição de subalternidade do negro no Brasil pela biografia de Sebastião Bernardes de Souza Prata, conhecido como Grande Otelo. As representações sobre negros e atores na imprensa brasileira, fonte principal desse trabalho, coloca elementos depreciativos como definidores da carreira de Grande Otelo, como por exemplo, a estratégia constante de reforçar a presença do alcoolismo em sua biografia. Alguém realmente pode conceber que o excesso de consumo de álcool pode ser um elemento central na trajetória de uma figura marcante como Grande Otelo? Parece que para a imprensa e a sociedade civil brasileira, com seus preconceitos e estigmas, o artista negro merece destaque por aquilo que se espera de alguém como ele: instabilidade, vício e práticas religiosas abalizadas pela dubiedade. A malandragem e a astúcia, tomadas em determinados contextos como uma ação social pejorativa, passa a definir, no artigo de Tadeu Pereira dos Santos, uma estratégia de sobrevivência a ser exaltada. Não se trata apenas de discutir os Direitos Humanos como uma questão de ordem jurídica e moral, mas como mais uma expressão da necessidade de se humanizar determinados grupos marginalizados pela hierarquia social vigente.
Na esteira das reflexões sobre a marginalização dos negros a historiadora Priscila Xavier de Oliveira Scudder ancorada no mapa da violência 2016 e na obra “A democracia da Abolição” da filosofa Ângela Davis nos apresenta uma comparação entre as facetas do racismo nos Estados Unidos da América e no Brasil. Perscrutando a história brasileira e suas práticas racistas decorrentes do colonialismo que se apresenta em um viés duplo, a saber, no plano da organização social e da própria construção do saber acadêmico, denuncia assim, o apagamento / silenciamento das minorias no âmbito da esfera social e mesmo no campo das narrativas epistemológicas. Seu texto aponta para a necessidade de uma resistência intelectual e popular contra as práticas legitimadoras da subalternidade que favorecem a discriminação, as novas formas de escravização e, sobretudo o extermínio da população negra em nosso país.
Se falar em democracia e Direitos Humanos é, sobretudo, conferir humanidade aos destituídos dessa condição, o artigo de Eliete Borges Lopes e Luis Augusto Passos segue esse mesmo princípio ao dedicar-se à análise da população em situação de rua da chamada Ilha do Bananal, em Cuiabá. A noção de resistência abarca também estigmas sociais comuns no Brasil como a pobreza e a violência, alicerçados em um competente arcabouço metodológico composto por uma cartografia das ruas, uma pesquisa exploratória e uma interpretação-descrição dos fenômenos. Independente das condições de vida e marginalização desse território e de seus moradores, os autores se valem de uma sensibilidade acadêmica rara para identificar nos sujeitos de sua pesquisa aquilo que chamam de arte-fatos e afetos da vida da cidade, expressos na paisagem local negociada entre o patrimônio arquitetônico e os graffitis, além da visibilidade de certa performance da população em situação de rua. Há que se considerar, portanto o potencial de “educação popular” da Ilha do Bananal, em uma época em que a presença do poder público nesses espaços de marginalização se fortalece por meio de ações autoritárias e de políticas intervencionistas agressivas nomeadas como “higienização”
E por fim, contribuindo para o debate sobre as relações étnico-religiosas e as origens do discurso sobre os Direitos Humanos, Karina Arroyo e Murilo Sebe Bon Meihy trazem à tona a necessidade de se romper o monopólio ocidental sobre o discurso dos Direitos Humanos. O lugar do Islam, e especificamente de um de seus grupos mais perseguidos, os muçulmanos xiitas, é analisado nesse artigo por meio de uma espécie de aproximação dos valores da citada religião com a moralidade laica e universalista atribuída de forma unilateral ao Ocidente após o século XVIII. Neste artigo, da filosofia de Kant às interpretações dos textos religiosos do Islam por seus jurisprudentes, o caminho escolhido pelos autores é o de reforçar o diálogo entre culturas como precondição para o debate sobre a aplicação geral do legado dos Direitos Humanos. Os xiitas no Brasil são os atores centrais desta reflexão, o que obriga o leitor a considerar que se há um processo de identificação do Oriente Médio como o espaço de desrespeito flagrante aos pilares dos Direitos Humanos contemporâneos, não nos esqueçamos de que as principais vítimas desse tipo de violência são os próprios muçulmanos, especialmente grupos minoritários como os xiitas, tanto no Oriente Médio, como no Brasil.
Enfim, a Revista Albuquerque oferece a todos um mapa bastante detalhado do uso político e seletivo que se dá atualmente aos princípios democráticos e ao direito em geral. O contato com esse dossiê deve ser acompanhado desse espírito crítico. Em um mundo tão pouco democrático e desumanizado como o atual, ter acesso a esses textos é mais que uma atividade intelectual. Chega a ser um direito…
Boa leitura!
Murilo Sebe Bom Meihy – Professor de História Contemporânea do Instituo de História da Universidade Federal do Rio de Janeiro. E-mail: meihy1@yahoo.com.br
Aguinaldo Rodrigues Gomes – Professor do Departamento de História e do Programa de Pós-Graduação em Educação do Campus Universitário de Rondonópolis da Universidade Federal de Mato Grosso. E-mail: aguinaldorod@gmail.com
MEIHY, Murilo Sebe Bom; GOMES, Aguinaldo Rodrigues. Apresentação. Albuquerque: revista de história, Mato Grosso do Sul, v.9, n.17, 2017. Acessar publicação original [DR]
História Indígena: o campo interdisciplinar renovado / Albuquerque: Revista de História / 2017
CASTRO, Iára Quelho de; VARGAS, Vera Lúcia Ferreira; MOURA, Noêmia dos Santos Pereira. Apresentação. Albuquerque: revista de história, Mato Grosso do Sul, v.9, n.18, 2017. Acesso apenas pelo link original [DR]
Patrimônio, Cultura Material e Imaterial: diálogos e perspectivas / Albuquerque: Revista de História / 2018
GIAVARA, Eduardo; FERREIRA FILHO, Aurelino José. Apresentação. Albuquerque: revista de história, Mato Grosso do Sul, v.10, n.19, 2018. Acesso apenas pelo link original [DR]
Trabalhismo, populismo e democracia na América latina / Canoa do Tempo / 2017
Diante de um quadro político marcado pelo avanço de uma onda conservadora e por sucessivos ataques à democracia, não apenas no Brasil, mas também pelo mundo afora, propusemos um dossiê intitulado “Trabalhismo, Populismo e Democracia na América Latina”. O objetivo central foi buscar subsídios para compreender a conjuntura política atual e a crise radical das instituições democráticas brasileiras, fazendo uma reflexão sobre os fenômenos do Populismo e do Trabalhismo bem como sobre as experiências democráticas nesses países.
Para iniciar essa discussão, apresentamos o artigo A flexibilização da legislação trabalhista brasileira: a redução dos direitos garantidos pela Consolidação das Leis do Trabalho ao longo do tempo, de Alisson Droppa. Nesse trabalho, o autor busca fazer uma relação entre as modificações ocorridas na Consolidação das Leis do Trabalho a partir do golpe civil-militar de 1964, apresentadas como uma “primeira onda liberal” e a atual investida sobre a legislação trabalhista e a nova onda de ataques sobre os direitos sociais.
Em Da harmonia ao conflito: a Delegacia Regional do Trabalho em Alagoas (1956- 1959), Anderson Vieira Moura se propõe a analisar atuação de Edson Falcão na Delegacia Regional do Trabalho (DRT) em Alagoas, destacando os conflitos e disputas que acabaram acarretando um desgaste de sua figura junto com os O autor faz uso de vasta documentação, utilizando de atas sindicais, reportagens de jornais, processos trabalhistas e até uma entrevista feita com seu primogênito.
Amaury Oliveira Pio Jr busca discutir as relações políticas que se desenvolvem no estado do Amazonas a partir da implantação da Revolução de 30 e do novo modelo sindical proposto por Getúlio Vargas. Para isso, analisa o periódico Tribuna Popular, jornal inicialmente vinculado ao Partido Trabalhista Amazonense (PTA) e que representava um importante veículo de divulgação do projeto varguista no estado. No artigo Jornal Tribuna Popular e a construção de um ideário “proto-trabalhista” no Amazonas, o autor percebe o surgimento de uma proposta trabalhista em um estágio embrionário já na década de 30 no estado.
No artigo Conflitos, solidariedade e formação de classe – “nacionais” e estrangeiros nos primórdios da mineração de carvão do Brasil (1850-1950), Clarice Speranza analisa as relações entre trabalhadores brasileiros e imigrantes na construção nas minas de carvão do Sul do Brasil. Discutindo o processo de migração e sua importância para o o desenvolvimento das minas de carvão, destaca ainda a resistência desses trabalhadores, suas formas de organização e a tensão percebida entre uma identidade de ofício calcada na coesão e na solidariedade e a existência de espaços de segregação entre os trabalhadores.
Cremos que esse seja um momento extremamente apropriado para discutir temas como as investidas sobre a legislação trabalhista, os ataques sobre os direitos sociais e as estrategias de resistência e organização dos trabalhadores. Que a leitura dos artigos do dossiê possa contribuir para o debate e a reflexão sobre o tema. Agradecendo a excelente contribuição dos autores, desejamos uma boa leitura.
César Augusto Bubolz Queirós – Doutor em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Professor do Departamento de História e do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Amazonas (UFAM). E-mail: cesardequeiros@gmail.com
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