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Um feminismo decolonial / Françoise Vergés
Finalmente temos no Brasil o lançamento de um dos livros da cientista política e historiadora Françoise Vergès: Um feminismo decolonial, publicado pelo Ubu Editora. A tradução chega até nós um pouco mais de um ano após o seu lançamento em francês, e se mantém completamente atual – inclusive por conta do prefácio à edição brasileira, no qual a autora recoloca suas reflexões em meio à pandemia de Covid-19. Nascida em Paris, Vergès cresceu na Ilha da Reunião, um departamento francês localizado a leste de Madagascar, no Oceano Índico, e traz a experiência da colonização francesa no ultramar para o cerne de seu pensamento crítico.
Olhando a França a partir da África, a autora questiona o feminismo civilizatório que, em sua matriz burguesa e eurocêntrica, tem disseminado discursos sobre os direitos das mulheres e a igualdade entre os sexos, sem que as verdadeiras raízes das desigualdades sejam enunciadas e enfrentadas. Esse feminismo, que reivindica melhores postos de trabalho e direitos universais, tem se mostrado interessado no sucesso profissional e libertação das mulheres brancas, de classes médias e altas, e não tem encontrado maiores obstáculos em sua inserção na lógica neoliberal – sistema econômico e de valores que transforma o feminismo em mercadoria, a diversidade em retórica empresarial e se utiliza do trabalho das mulheres e dos homens racializados no exercício das tarefas que homens e mulheres brancas, que tiveram acesso à educação formal, se negam a fazer.
O feminismo proposto pela autora se opõe drasticamente ao cenário descrito acima. Vergès defende um feminismo capaz de enxergar as trabalhadoras e os trabalhadores que o capitalismo deseja que sejam invisíveis, mas que realizam o trabalho do qual depende toda a engrenagem do sistema. A autora nos fala das mulheres que exercem as tarefas de cuidado e reprodução: a limpeza, a alimentação e o cuidado com as crianças, os enfermos e os idosos. Mulheres em sua maioria racializadas, vivendo às margens da sociedade de consumo e sendo exploradas até a exaustão de seus corpos. Como as mulheres brasileiras que trabalham como empregadas domésticas, entre elas, mais de 70% ainda não têm os seus direitos assegurados. São principalmente mulheres negras, que não recebem hora extra, que ainda dormem em “quartinhos de empregadas”, que cuidam das crianças, cozinham e limpam a sujeira para que seus empregadores se dediquem a carreiras muitas vezes mais rentáveis do que o ofício ao qual elas dedicam a vida.
O feminismo decolonial proposto por Françoise Vergès nos possibilita compreender as bases dessa hierarquia social e os mecanismos para sua contestação. Um feminismo insurgente, que denuncia as mazelas da colonização europeia, seja nas Américas, na África ou na Ásia. Que reconhece o racismo como uma invenção destes processos históricos, uma peça fundamental para a consolidação do capitalismo como um sistema internacional de divisão do trabalho a partir da noção de que os povos do Sul global e seus saberes poderiam ser usados e descartados ao gosto dos povos do Norte. Um feminismo decolonial que reivindica o reconhecimento da racialização dos corpos como uma ferramenta de dominação e o epistemicídio, ou seja, a o extermínio de saberes, crenças e culturas como uma política deliberada de apagamento de povos e suas existências.
Para um feminismo que ainda seja potência de transformação da nossa realidade, Vergès nos fala de um movimento que não apenas reivindique a igualdade entre homens e mulheres – afinal, quem são os homens e quem são as mulheres que podem ser iguais? – mas, sobretudo que possa estar engajado na luta anti-imperialista, antirracista e anti-capitalista. E as armadilhas serão muitas em nosso caminho. Como nas décadas de 1980 e 1990, quando organismos internacionais como a Organização das Nações Unidas realizaram várias conferências para discutir os direitos das mulheres e das populações e entre as propostas de empoderamento das mulheres constava a difusão do microcrédito. O empreendedorismo era o código para a expansão neoliberal sobre as mulheres dos países do Sul, empobrecidas pelo colonialismo e pelo imperialismo. Expansão e lucro para os bancos, endividamento para as mulheres.
Qual o lugar dos feminismos na sociedade brasileira atual? Como as mulheres são muitas e vivem em condições muito diferentes, também os feminismos precisam ser plurais. Contudo, se torna cada vez mais necessário um feminismo que reconheça o protagonismo das mulheres que sofrem com o cruzamento do machismo, do racismo, da misoginia, da transfobia, da homofobia e da exploração de classe. Um feminismo que saiba que “(…) a democracia ocidental não nos protegerá mais quando os interesses do capitalismo forem de fato ameaçados”. (VERGÈS, 2020: 37).
Géssica Guimarães – Professora Adjunta de Teoria da História e História da Historiografia da UERJ.
VERGÉS, Françoise. Um feminismo decolonial. São Paulo: UBU Editora, 2020. Resenha de: GUIMARÃES, Géssica. Humanas – Pesquisadoras em Rede. 20 jul. 2020. Acessar publicação original [IF].
Decolonialidade e pensamento afrodiaspórico | Joaze Bernardino Costa, Nelson Maldonado-Torres e Ramón Grosfoguel
[…] Emancipe-se da escravidão mental
Ninguém além de nós mesmo pode
Libertar nossas mentes.
Canção da Liberdade – Bob Marley
Para problematizar decolonialidade, fazem-se necessárias reflexões sobre o conhecimento. Assim como, interrogar as resistências impostas pelas lógicas econômicas, políticas, culturais, estéticas e da natureza produzidas em um longo processo colonial. Na obra em pauta, os autores compreendem decolonialidade e pensamento afrodiaspórico como um sentido mais amplo que se interroga e se dispõe apresentar debates que podem ser inspiradores de estratégias para se transformar as realidades em que a colonialidade do ser, do saber, do poder e da natureza se perpetuam.
A obra Decolonialidade e pensamento afrodiaspórico, organizada pelos professores Bernardino-Costa, Nelson Maldonado-Torres e Ramón Grosfoguel em um esforço horizontal de dialogo junto a outros 13 autores/as que são igualmente professores/pesquisadores, feministas negras, intelectuais/ativistas antirracistas e negros(as); os quais partem da premissa que o conhecimento está ligado ao poder, além de asseverar que a raça é um principio estruturante para se problematizar o sistema-mundo moderno/colonial. Leia Mais