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The Nation and its Ruins: Antiquity, Archaeology, and National Imagination in Greece / Yannis Hamilakis
Eu vos saúdo, ruínas solitárias, túmulos santos, muros silenciosos! É a vós que invoco; é a vós que dirijo minhas preces. Sim! Enquanto vossa aparência afasta com pavor secreto os olhares do vulgo, meu coração encontra, ao vos contemplar, o encanto de sentimentos profundos e altos pensamentos. Quantas úteis lições, reflexões tocantes ou fortes não ofereceis ao espírito que sabe vos interrogar! (Volney, Les ruines, ou Méditations sur les révolutions des empires, 1791)
Volney, no famoso livro Les ruines, ou Méditations sur les révolutions des empires, mostra-nos seu fascínio pela imagem das ruínas. Para este historiador e filósofo francês, as ruínas significam os escombros de um mundo que não existe mais; são testemunhas mudas de um passado, esfinges que merecem a atenção do presente e que nos lembram do caráter efêmero de nossas conquistas.
As ruínas, principalmente as gregas, serviram de diferentes formas para representações na modernidade, foram inspiração para a arquitetura no período pós Revolução Francesa e tema para poetas românticos. Consciente desse poder estético das ruínas e preocupado com a identidade nacional da Grécia moderna, o autor grego Yannis Hamilakis escreveu seu livro The Nation and its Ruins: Antiquity, Archaeology, and National Imagination in Greece, publicado em 2007 pela Oxford University Press, ganhador do Edmund Keeley Book Prize, da Modern Greek Studies Association.
O livro é dividido em oito capítulos, nos quais Hamilakis estuda as relações entre Antigüidade clássica e imaginário nacional. O autor levanta uma série de questões que se interligam para formar a problemática da pesquisa: Por que o imaginário nacional precisa de vestígios do passado? Como esses vestígios se interligam no processo de formação imaginária de uma nação? Como a antigüidade pode contribuir para a formação do topos imaginário de uma nação? Como a arqueologia, um dispositivo da modernidade ocidental, auxilia na produção da materialidade de uma nação?
As perguntas ambiciosas que formam a problemática de Hamilakis se enquadram naquilo que François Hartog e Jacques Revel chamaram de “les usages politiques du passé.” Uma das maneiras de fazer uso político da história é a deformação da mesma por motivos nacionalistas, ou seja, a necessidade de formar uma imagem da nação coesa faz com que se excluam certos fatos e acontecimentos para favorecer a idéia de nação (Hartog; Revel, 2001: 08). O uso da história é tão importante para uma nação que Hobsbawm afirma que “nações sem um passado são uma contradição nos termos. O que faz uma nação é o passado, o que justifica uma nação contra outras é o passado, e os historiadores são as pessoas que o produzem.” (Hobsbawm, 1992: 03)
De acordo com Anne-Marie Thiesse (2001/02), existem elementos que permeiam um discurso nacionalista e podem ajudar a sustentar uma pseudo-unidade nacional como a idéia de ancestrais fundadores, uma história que tenha continuidade através de vicissitudes, podendo formar a saga de um povo, uma galeria de heróis que povoam essa história, uma língua e lugares de memória. No caso do livro The Nation and its Ruins, também são elementos importantes a paisagem e os monumentos culturais. No caso da nação grega, nada mais emblemático do que as ruínas arqueológicas como as do Parthenon ou a Acrópoles de Atenas.
O título do primeiro capitulo, “Memories cast in marble: introduction” (pp. 1-33), é uma referência ao clássico de David Sutton, Memories Cast in Stone: The Relevance of the Past in Everyday Life. Hamilakis começa a sua análise refletindo sobre os ícones referentes à Antigüidade presentes na abertura dos Jogos Olímpicos de Atenas no ano de 2004. Para o autor a abertura dos Jogos Olímpicos colocou em evidência para toda a comunidade internacional os símbolos do imaginário da nação grega, especialmente as ruínas arqueológicas da Antigüidade. Utilizando fotografias do evento, o autor nos mostra que reproduções vivas das ruínas, animadas por atores, desfilaram como emblemas nacionais gregos. O uso das ruínas também é comum como recurso da publicidade de empresas tanto nacionais como multinacionais. O autor discute também os avanços da relação entre a questão do nacional e a arqueologia, colocando as bases teóricas para seu livro na leitura das idéias de Eric Hobsbawm, Benedict Anderson, Ernest Gellner e arqueólogos como Nadia Abu El-Haj:
Neste estudo, valho-me de escritos que vêem o nacionalismo como um sistema cultural, uma ideologia e uma ontologia, como um conjunto de idéias que define o ser-no-mundo das pessoas, organiza a sua existência social corporal, a sua imaginação e mesmo os seus sonhos sociais (cf. Kapferer 1988, 1989; Anderson 1991[1983]; Herzfeld 1992; Gourgouris 1996). Eu vejo o nacionalismo como um quadro de referência organizatório, sempre em processo de construção de si mesmo, do seu objeto (a nação) e dos seus agentes sociais. As suas raízes históricas estão bem documentadas (cf. Gellner 1983; Hobsbawm 1992) e as suas ligações com as tecnologias da modernidade como a tipografia, o mapa, o censo e o museu, bem expostas (cf. Anderson 1991[1983]). A conhecida frase de Anderson sobre a nação como uma comunidade imaginada está agora nos lábios de todos, embora raramente haja qualquer reflexão sobre o que esta afirmação acarreta. (Pg. 15)
Depois de assim estabelecer as suas bases conceituais, no segundo capitulo, “The ‘Soldiers’, the ‘Priests’, and the ‘Hospitals for Contagious Diseases’: the Producers of Archaeological Matter-realities” (pg. 35-56), Hamilakis dedica-se a uma discussão crítica sobre as estruturas e as políticas das produções arqueológicas na Grécia, enfocando os órgãos oficiais que desenvolvem as principais escavações, sendo os principais o State Archaeological Service e o Athens Archaeological Society. Hamilakis defende a idéia de que a arqueologia em solo grego está ligada a uma idéia de “missão nacional”, colocando os museus dedicados à Antigüidade como templos nacionais de uma cultura que às vezes se associa à confusa idéia de uma idade de ouro.
Assim o autor desenvolve uma teoria da arqueologia grega, colocando-a em um cenário religioso, realizada dentro da religião secular da nação, ou seja, a Antigüidade. Os arqueólogos, na interpretação de Hamilakis, atuam como sacerdotes dessa religião, sendo mediadores entre o passado e o presente, enquanto as ruínas ou os monumentos são os seus ícones. A importância da arqueologia como religião secular da nação é atribuída ao seu papel como um provedor de argumentos para a defesa do que é considerado nacional.
No terceiro capítulo, “From Western to Indigenous Hellenism: Antiquity, Archaeology, and the Invention of Modern Greece” (pg. 57-123), há um exame genealógico de como surgiram as estreitas relações entre as antigüidades e a imaginação nacional helênica no século XIX. Hamilakis sustenta que antes da consolidação da idéia de nação, as antigüidades eram vistas pela maioria dos gregos como feitos admiráveis do passado, porém alheios a eles. Ao final do período, contudo, elas haviam tornado-se um recurso simbólico chave da imaginação nacional, essencial à construção do novo Estado-nação grego após a guerra da Ásia Menor. O autor também defende que a Antigüidade, apesar de ter seu uso e significado fomentados pela concepção ocidental do helenismo, foi reformulada por intelectuais gregos em uma nova síntese local, chamada por ele de “helenismo nativo” (Indigenous Hellenism), que envolvia a reabilitação de Bizâncio e o estabelecimento de uma continuidade histórica nacional, além da fusão do nacionalismo com a Ortodoxia Grega.
O capítulo seguinte (“The Archaeologist as Shaman: the Sensory National Archaeology of Manolis Andronikos” pp. 126-167) trata de Manolis Andronikos (1919-1992), considerado o arqueólogo nacional por excelência na Grécia, elevado ao status de grande “xamã” da nação. Andronikos defendia uma praxis arqueológica que enfatizava a ligação emocional com o passado e as propriedades sensoriais e mnemônicas dos artefatos e sítios arqueológicos. A sua filosofia combinava a modernidade da narrativa arqueológica nacional com as visões “pré-modernas” de encontros corpóreos com os ancestrais mortos, os quais eram vistos como tendo uma ligação genealógica direta com as pessoas de hoje. Para o autor, Andronikos é a expressão arqueológica do Helenismo nativo que constrói uma modernidade seletiva, muito diferente de algumas formas da modernidade ocidental.
Em “Spartan Visions: Antiquity and the Metaxas Dictatorship” (pp. 169-204), o autor examina os papéis e significados da Antigüidade durante a ditadura de Metaxas (1936-1941). Nela, buscou-se estabelecer uma nova narrativa nacional, aspirando a uma sociedade utópica chamada “A Terceira Civilização Helênica”, sendo a primeira a Antigüidade clássica e Bizâncio a segunda. Esta narrativa idealizava a Esparta clássica devido aos seus supostos militarismo e austeridade social. Algumas novidades introduzidas no período persistem até a atualidade, como o uso ideológico da antigüidade como ferramenta educacional e as evocações cerimoniais e performáticas do passado e da sua materialidade.
O sexto capítulo, “The Other Parthenon: Antiquity and National Memory at the Concentration Camp” (pp. 205-241), trata dos campos de concentração estabelecidos pelo governo na ilha de Makronisos, conhecida como o “Novo Parthenon”, para onde foram enviados os soldados e cidadãos de esquerda durante a Guerra Civil Grega, com o propósito de reabilitá-los pela doutrinação ideológica. A Antigüidade clássica era usada nessa doutrinação, havendo tentativas de convencer os presos de que o seu destino como descendentes dos gregos antigos era incompatível com ideologias “estrangeiras” como o comunismo. Os presos “redimidos” eram encorajados a construir réplicas de monumentos clássicos como o Parthenon, encenar peças e compor poesia evocando a Antigüidade clássica. O autor contrapõe esta tentativa com as memórias dos presos, que expõem a brutalidade do “experimento”, mas também invocam a Antigüidade clássica – ambos os lados retiram das ruínas o que lhes convêm ideologicamente. Hamilakis sustenta que uma vez estabelecido o mapa mítico nacional, ele se torna o quadro aceito, dotado de suprema autoridade moral, dentro do qual todos os nacionais operam, apesar das suas divergências.
No sétimo capítulo, “Nostalgia for the Whole: the Parthenon (or Elgin) Marbles” (pp. 243-286), a questão dos mármores do Parthenon, atualmente no Museu Britânico de Londres, é analisada tendo em vista superar algumas idéias sobre a restituição cultural e discutir a produção e reprodução da imaginação nacional, as ligações entre os nacionalismos e o colonialismo e as noções de alienabilidade e inalienabilidade.1 O autor sustenta que atualmente os mármores são como os membros exilados e aprisionados do corpo nacional e personificam um elemento chave para a imaginação nacional: a nostalgia pela totalidade. Os mármores são como uma manifestação material do desmembramento e da fragmentação, processos que ameaçam a completude do nacional, cujo discurso baseia-se na unidade e na coesão.
Por fim, no oitavo e último capítulo, “The Nation in Ruins? Conclusions” (pp. 287-301), o autor resume e reitera as questões discutidas previamente sobre as relações entre as antigüidades e a imaginação nacional. Então, Hamilakis parte para uma análise sobre as perspectivas futuras da nação, debate em que freqüentemente se prevê um enfraquecimento ou mesmo fim da nação em conseqüência do fenômeno da globalização. O autor, ao contrário, acredita que esta possa levar ao fortalecimento da nação, pois a incerteza gerada requer a ilusão de permanência e o sentimento de enraizamento proporcionados pela idéia de nação e singularmente presentes na materialidade das ruínas incorporadas à imaginação nacional.
O livro de Hamilakis é uma importante contribuição para os estudos de recepção e apropriação da Antigüidade, da arqueologia e das suas utilizações, assim como para os estudos sobre os usos políticos do passado e sobre a nação, o nacionalismo e a identidade nacional. Por lidar com o caso específico da Grécia moderna de forma tão profunda e variada, The Nation and Its Ruins é esclarecedor para a discussão sobre a construção da nação e dos seus símbolos e sobre os papéis e significados do passado no imaginário nacional. As ruínas acabaram sendo protagonistas na construção da identidade nacional grega – como Volney, permanecemos deslumbrados diante desses restos de pedra.
Referências
HARTOG, François; REVEL, Jacques (Orgs.). Les usages politiques du passé. Paris: Éditions de l’EHESS, 2001.
HOBSBAWM, Eric. Ethnicity and Nationalism in Europe Today. In: Anthropology Today, v.8, n. 1, Feb. 1992
THIESSE, Anne-Marie. Ficções criadoras: as identidades nacionais. In: Anos 90. Porto Alegre: UFRGS, n. 15, 2001/2002.
VOLNEY, Constantin-François. Les ruines, ou Méditations sur les révolutions des empires. Paris: Bossanges Frères, 1821 [1791].
Notas
1 Os conceitos de “alienabilidade” e “inalienabilidade” são construídos em torno do caso do Friso do Párthenon, atualmente pertencente ao British Museum e reivindicado pela Grécia, com constantes protestos e processos internacionais. Hamilakis discute como certos artefatos arqueológicos ganham conotação de alienabilidade, dentro da idéia de trocas simbólicas de Pierre Bourdieu, assumindo valores nacionais e econômicos (Hamilakis, p. 275). Tanto a Alienabilidade e Inalienabilidade estão em uma “symbolic arena” (p. 274), em que são disputados na construção de sentidos nacionais. Tais sentidos não são dados, mas processos de significações.
Mateus Dagios – Mestrando em História pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (PPGHIS/UFRGS).
HAMILAKIS, Yannis. The Nation and its Ruins: Antiquity, Archaeology, and National Imagination in Greece. (Classical Presences). Oxford University Press, 2007. 352p. Reeditado em 2009. Resenha de: DAGIOS, Mateus. As ruínas e a modernidade. Em Tempo de Histórias, Brasília, n.20, p.183-188, jan./jul., 2012. Acessar publicação original. [IF].
Silence in the Land of Logos | Silvia Montiglio
Os antigos gregos possuíam uma “cultura da palavra” ─ todas as esferas da vida pública, como os debates na assembléia, os rituais e o teatro, eram marcados pelo uso dos discursos. A ascensão da Polis contribuiu para desenvolver um tipo específico de “logos” que visava a persuasão por meio de argumentos. [2] Na esteira destas constatações a escritora Silvia Montiglio com seu livro “Silence in the Land of Logos” coloca-nos o seu importante tema de pesquisa: o silêncio e as diferentes práticas do silêncio como um modo discursivo no mundo grego.
O livro é a adaptação da tese de pós-doutorado da autora, defendida em 1995 na École des Hautes Études en Sciences Sociales sob a orientação de Nicole Loraux. Montiglio dialoga então com os grandes nomes do helenismo francês, como Louis Gernet, Jean-Pierre Vernant, Marcel Detienne e Pierre Vidal-Naquet. Já a importância que Montiglio dá à noção de cultura coloca o seu trabalho em uma perspectiva de antropologia histórica.
Na introdução (pp. 3-8) a autora defende o silêncio como uma prática cultural específica que pode ter diferentes significados para variados grupos e que assim pode se transformar de acordo com as mudanças sociais: “If silence is a culturally specific notion, its meanings may be expected to change not only from civilization to civilization, but also within the same civilization across the time.”[3] (p. 4) Montiglio coloca-nos o seguinte questionamento para desenvolver o texto: “Como o silêncio ressoa neste mundo marcado pela voz?” (“How does silence resonate against this vocal background?” – p. 3) É em busca dessa especifidade do silêncio e guiada por sua interrogação que Silvia Montiglio desenvolve os seus oito capítulos que tratam do mundo arcaico ao período clássico ateniense, abarcando desde Homero aos oradores e não esquecendo a leitura dos textos trágicos.
No primeiro capítulo (pp. 9-45), “Religious Silence without an Ineffable God,” Montiglio tenta demostrar o erro em universalizar o significado do silêncio em diferentes práticas religiosas. A análise da autora parte do significado da noção de “inefável” para mostrar que no panteão grego existem graus de silêncio (degrees of silence) exigidos pelas divindades. Assim, são mostrados os silêncios ligados à “iniciação religiosa”, mistérios órficos e a relação entre silêncio, pureza e impureza.
O segundo capítulo (pp. 46-81), “A Silent Body in a Sonorous World: Silence and Heroic Values in the Iliad,” é centrado na Ilíada de Homero, sendo que a autora deseja reconhecer as diferentes representações do silêncio feitas pelo Aedo. O mundo da Ilíada é o lugar da nobreza guerreira, no qual o corpo desempenha um importante papel de diferenciação social. Com este indício, Montiglio procura reconhecer expressões corporais no momento de “estar em silêncio.” É assinalada pela autora a existência de um vocabulário homérico para o silêncio ─ basta citar como exemplo a palavra aneôi, que é usada diante do maravilhoso ou o ficar mudo diante do fantástico, e também o silêncio da concordância que é colocado junto com o verbo agamai.
No capítulo seguinte (pp. 82-115), “The Poet’s Voice against Silence,” é discutida a figura do Aedo e a sua relação com a voz, a verdade e o silêncio. Parte-se então de uma afirmação de Marcel Detienne que coloca o silêncio na poesia arcaica como equivalente ao esquecimento e a culpa e como oposição à memória, a qual é a glória e a verdade cristalizada pela voz. Montiglio desenvolve a sua análise na poesia de Píndaro, na qual ela descreve a oposição entre voz ─ memória e silêncio ─ esquecimento como um mediador poético.
O quarto capítulo (pp. 116-157), “’I Will Be Silent’: Figures of Silence and Representations of Speaking in Athenian Oratory,” concentra-se no silêncio como um artifício de retórica. A pergunta que pode ser feita ao texto de Montiglio é: Como o silêncio é explorado como argumento? Para responder a esta indagação, a autora explica alguns recursos retóricos muito usados na Antigüidade. Entre eles, um chamado praeteritio, que consiste em dizer que não falará de um tema em particular para chamar a atenção do auditório sobre este tema e a aposiopesis, que consiste em fazer um silêncio brusco ao fim de uma frase, de forma a eufemizar certas questões.
Na segunda metade do livro, nos quatro capítulos restantes, Montiglio passa a se dedicar exclusivamente à análise do silêncio na tragédia grega. A especificidade do texto trágico em relação às outras formas discursivas do mundo grego está no problema da ambiguidade. A tragédia grega é construída em sua estrutura por relações ambíguas entre as personagens, entre o coro, entre os atores e os espectadores, entre os homens e o mundo dos deuses. A linguagem do texto não escapa dessa relação na qual a dúvida é sempre intrínseca.
O helenista Jean-Pierre Vernant lembra-nos de uma “multiplicidade de nível” no vocabulário trágico, ou seja, a mesma palavra liga-se a diferentes campos semânticos, pertencendo ao vocabulário religioso, jurídico e político. Cabe retomar uma pequena citação de Vernant que expõe a complexidade da palavra no texto trágico: “As palavras trocadas no espaço cênico têm, portanto, menos a função de estabelecer a comunicação entre as personagens que a de marcar os bloqueios, as barreiras, a impermeabilidade dos espíritos, a de discernir os pontos de conflito”.[4]
A autora, consciente do desafio que é interpretar a linguagem do texto trágico, desenvolve o seu quinto capítulo (pp. 158-192), “Words Staging Silence,” mostrando ao leitor que não podemos esperar semelhanças entre o silêncio no teatro moderno e o silêncio no teatro grego. Montiglio defende a idéia de que a tragédia grega rejeita o vazio em cena e favorece a continuidade do som; por isso, não podemos imaginar longos silêncios em cena no teatro grego. A menção ao silêncio na tragédia pode ser compreendida naquilo que a autora considera uma tendência cultural no mundo grego de associar o não-dito com o não-visto.
O sexto capítulo (pp. 193-212), “Silence and Tragic Destiny,” analisa o silêncio na trama trágica e os resultados que a escolha do falar ou não falar pode dar ao texto. O silêncio é comparado ao Kairos, ou seja, o momento oportuno ─ diferente do Kairos, o silêncio no mundo dos homens pode não refletir o destino, mas um momento confuso das personagens. Montigio ressalta então a diferença entre o silêncio do profeta, o qual mostra um conhecimento superior pois este seu silencio é uma vontade dos deuses, e o dos homens, que ficam em silêncio quando não sabem o desenrolar do próprio destino. No texto são analisadas principalmente as tragédias de Ésquilo e de Eurípides, mas não podemos deixar de lembrar que o Édipo Rei escrito por Sófocles também coloca em cena as diferenças entre a sabedoria do profeta e do herói trágico.[5]
O sétimo capítulo (pp. 213-251), “Silence, a Herald of Death,” anuncia uma complexa relação entre o silêncio e a morte. Montiglio analisa-a e compara diferentes textos gregos com a tragédia, inclusive os textos hipocráticos, nos quais a autora sinaliza diferenças entre o silêncio masculino e feminino. Já o oitavo capítulo (pp. 252-288), “Silence, Ruse, and Endurance: Odysseus and Beyond,” concentra-se na figura de Ulisses e os seus diferentes silêncios dentro do pensamento grego. Inicialmente a autora nos lembra que o silêncio de Ulisses está ligado à mètis, que é um tipo de inteligência ligado ao mundo prático. Nas épicas de Homero os silêncios de Ulisses estão ligados a um jogo de segredo, enquanto que no texto trágico Ulisses aparece com um silêncio ligado à estratégia e ao engano. Cabe lembrar o emblemático Ulisses da peça Filoctetes de Sófocles, o qual é retratado como um sofista dotado de poucos escrúpulos para alcançar o seu objetivo.
Assim, o livro “Silence in the Land of Logos” de Silvia Montiglio é de grande importância para uma historiografia que se preocupa com representações, lutas de representações e práticas discursivas. O tema do silêncio, como colocado pela autora, nos inspira a reavaliarmos a “fala” e a eloquência do “não-falar”. O projeto ambicioso de fazer uma pesquisa abrangente sobre o silêncio na Grécia Arcaica e Clássica, centrada em preocupações culturais, e o caráter antropológico que Montiglio dá ao estudo da História possibilitam uma leitura da autora a partir dos pressupostos da “Nova História Cultural”.
Para terminar esta resenha cabe lembrar de um fragmento de uma tragédia de Sófocles que diz: “My son, be silent! Silence has many beauties.” [6] O livro de Montiglio ensina-nos a compreender algumas dessas belezas.
Notas
2. Para aprofundar o problema do Logos ver o livro de Michel Fattal: FATTAL, Michel. Logos, pensée et vérité dans la philosophie grecque. Paris: L’Harmattan, 2001.
3. Tradução: “Se o silêncio é uma noção culturalmente específica, é de se esperar que os seus significados mudem não só de civilização para civilização, como também dentro da mesma civilização através do tempo.”
4. VERNANT, Jean-Pierre. Mito e tragédia na Grécia Antiga. São Paulo: Perspectiva, 1999. p. 20.
5. MARSHALL, Francisco. Édipo Tirano: a tragédia do saber. Porto Alegre: Ed UFRGS, 2000.
6. SOPHOCLES. Fragments. Edited and translated by Hugh Lloyd -Jones. London: Loeb Classical Library, 2003. P. 34, fragment 81. Tradução: “Meu filho, silencia! O silêncio tem muitas belezas.”
Mateus Dagios – Mestrando em História na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (bolsista CNPq). E-mail: mateusdagios@yahoo.com.br
MONTIGLIO, Silvia. Silence in the Land of Logos. Princeton: Princeton University Press, 2000. Resenha de: DAGIOS, Mateus. Aedos. Porto Alegre, v.3, n.8, p.260-263, jan. / jun., 2011. Acessar publicação original