Capanema: o ministro e seu ministério | Angela de Castro Gomes

Entre as personagens políticas do primeiro governo Getúlio Vargas, e mais especificamente do Estado Novo, o ministro da Educação e Saúde entre 1934 e 1945, Gustavo Capanema, é uma figura central na definição ideológica e nas políticas públicas implementadas. Seu ministério tinha, entre outras atribuições, a de formular um projeto cívico-pedagógico para engendrar um “novo homem brasileiro”. A reforma do Estado, da sociedade e do homem eram projetos que deveriam caminhar juntos. Educação, saúde e cultura eram pilares para a execução deste ideário. As interpretações mais difundidas sobre as idéias e ações de Capanema têm se apoiado em imagens cuja força, enquanto ícones de uma época, sobrepõem-se às tentativas de uma análise mais apurada. Dois podem ser os fatores determinantes destas interpretações.

Em primeiro lugar, Capanema foi político e intelectual dos mais complexos e de difícil apreensão, mesmo no contexto do ideário conservador. Ele mantinha uma teia de relações pessoais e de colaboradores, que incluía intelectuais de esquerda em pleno Estado Novo. Desta colaboração resultou a obra maior, segundo o ministro, que foi o edifício sede do Ministério da Educação no Rio de Janeiro, considerado um emblema da arquitetura modernista no país. A convivência entre a ditadura e o modernismo tem permanecido sob uma áurea quase enigmática. Leia Mais

Integralismo e política regional: a ação integralista no Maranhão (1933-1937) – CALDEIRA (RBH)

CALDEIRA, João Ricardo de Castro. Integralismo e política regional: a ação integralista no Maranhão (1933-1937). São Paulo, Annablume, 1999, 135p. Resenha de: CYTRYNOWICZ, Roney. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.21, n.40, 2001.

A publicação do livro Integralismo e política regional: a ação integralista no Maranhão (1933-1937), do historiador João Ricardo de Castro Caldeira (São Paulo, Annablume, 1999), suscita a reabertura do debate referente às leituras e interpretações sobre o Integralismo no Brasil. Os estudos já dedicados ao movimento/partido Ação Integralista Brasileira (AIB), que existiu legalmente no Brasil entre 1933 e 1937, concentraram-se principalmente na análise de sua ideologia. Tendo como marco inicial o livro de Hélgio Trindade em 19741, cerca de dez livros e artigos foram escritos desde então sobre o tema, cujo campo é ainda uma grande frente de pesquisa em aberto. Esta produção historiográfica e de ciências sociais é reduzida se comparada, por exemplo, à vasta bibliografia sobre movimentos e partidos de esquerda, e mais ainda se analisada no contexto da produção sobre o primeiro período Vargas e o Estado Novo.

A importância de se estudar o Integralismo decorre, entre outras razões, de sua expressiva atuação política entre 1933 e 1937, do interesse de comparar o Integralismo com outros movimentos fascistas (aceitando-se ou não sua caracterização como fascista2), da necessidade de se pesquisar a história dos movimentos e do pensamento de direita e de extrema-direita no País (que não são apenas miméticos em relação à Europa) e, por fim, do interesse que personagens e obras como as de Plínio Salgado, Gustavo Barroso, Miguel Reale e outros tiveram e têm como matrizes de movimentos e pensamentos no País, muito além do próprio Integralismo. As ressonâncias do Integralismo têm forte presença na atualidade, seja pela ação de pequenos grupos de extrema-direita que se dizem seguidores do Integralismo, seja pela difusão de livros e sites na Internet3, especialmente anti-semitas, que também retomam a ideologia integralista4.

A pesquisa de João Ricardo de Castro Caldeira, realizada como dissertação de mestrado em História na USP, está focalizada na atuação política da AIB no Maranhão e preenche uma lacuna importante na historiografia. Primeiro, por pesquisar o apelo do ideário intregralista em um Estado do Nordeste, tanto no interior como na capital, tendo como eixo central as questões regionais. Segundo, por centrar sua pesquisa na atuação política do partido: suas alianças e oponentes, sua prática política, seus aliados e adversários e seu comportamento eleitoral. O estudo de Caldeira mostra que uma pesquisa local ou regional sobre Integralismo não é apenas a repetição das questões nacionais, mas um alargamento da própria compreensão da atuação do Integralismo no País, e também da compreensão do jogo político entre as forças políticas locais e o regime de Getúlio Vargas. Além disso, as características do Estado, com baixa urbanização e industrialização, colocam um desafio suplementar para se entender a emergência desta ideologia naquele Estado.

O Integralismo foi provavelmente o primeiro partido de massa do País, mantido com a contribuição de seus próprios membros, o que o distinguia dos partidos tradicionais baseados em um modelo oligárquico. Há várias estimativas relativas aos militantes, com números difíceis de confirmar que variam de 100 mil a 1 milhão, discrepância e cifras que sugerem uma percepção de massa que ficou registrada na memória social e na própria historiografia.

Os principais fatores que catalisaram o apoio ao Integralismo no Maranhão, segundo Caldeira, foram o anticomunismo, o nacionalismo, valores próximos ao cristianismo e o importante apoio de setores da Igreja. O anticomunismo deve ser entendido e matizado diante de dados como o número de apenas 3.105 operários nos anos 20 (para uma população, em São Luis, de 70 mil), número que deve ter aumentado pouco na década seguinte. Os integralistas também direcionavam sua propaganda para operários, mulheres e jovens, setores quase não representados pelos partidos existentes. Em 1934, no Maranhão, mulheres fundaram a Ação Feminina Integralista e chegaram a representar 18% dos membros do partido.

O discurso antioligárquico era um dos motes principais do partido no Maranhão. Em uma campanha para a prefeitura de Pedreiras, uma propaganda integralista bradava que o Integralismo pretendia a “liberação de Pedreiras das garras de um feudalismo entorpecente e retrógrado”. Várias caravanas integralistas, originárias de São Paulo e Rio de Janeiro, visitaram o Maranhão. As caravanas eram também chamadas de “bandeiras integralistas” e pretendiam difundir a imagem de um novo desbravamento mítico do País. Delas participava Gustavo Barroso, membro da Academia Brasileira de Letras, que fazia pregações anti-semitas em discursos sobre a “escravização do Brasil aos banqueiros judeus”5.

O Integralismo atraía, assim, especialmente setores das classes médias urbanas, e camadas não representadas na política tradicional, que respondiam ao discurso de um movimento que prometia que as “libertaria” do poder das oligarquias regionais. Aderiam jornalistas, advogados, professores, estudantes, empregados domésticos, médicos, funcionários públicos, padres, funcionários de comércio e operários, entre outros. Esta mistura social já é um dado significativo de uma representação política distinta. A presença de profissionais liberais e de intelectuais explica-se em parte pelo apelo cultural nacionalista. Em suas memórias, Miguel Reale destaca a militância no Integralismo como um espaço importante de discussão da “realidade nacional”6.

É bastante indicativo também que a primeira referência pública na imprensa do Maranhão em relação ao Integralismo fizesse a seguinte descrição: “A ‘camisa verde’ que ele criou para distintivo material de sua idéia está aparecendo, cativante, alegre, persuasiva, em vários pontos do território nacional.” Para entender o Integralismo, certamente tão importante quanto o “conteúdo” do discurso, era o apelo definido por meio de desfiles minuciosamente coreografados, as “Bandeiras” (caravanas), os símbolos, palavras de ordem, canções, discursos dramatizados, estandartes, uniformes, insígnias, rituais, a movimentação da massa, uma mitologia de imagens que Walter Benjamin – referindo-se ao Nazismo – definiu como “estetização da política”. Estes elementos eram um poderoso atrativo e diferenciador perante as práticas dos partidos e criavam toda uma mística ritualizada (rituais que regulavam do nascimento à morte) da adesão que deveria ser considerada não a um partido, mas a um movimento que se apresentava como renovador das forças espirituais da nação7.

No entanto, apesar do discurso violento contra as oligarquias, ao passar do plano do ideário político para o da negociação para chegar ao poder, o Integralismo acabou tendo uma conduta política semelhante à das oligarquias que ele combatia, assumindo políticas clientelísticas e assistencialistas. O partido apoiou, por exemplo, uma negociação em 1936 para eleger um governador ligado a Getúlio Vargas, e participou de uma ampla composição de forças tradicionais da política local, passando a integrar a administração pública. Em 1936 e 37, o Integralismo cresceu no Estado, chegou a deter uma emissora de rádio, a Rádio Sigma, e um jornal comparável aos maiores do Maranhão, que recebia até anúncios da Goodyear. Em 1937, no Maranhão, os integralistas participavam da administração pública, do parlamento estadual, e tinham o apoio de padres e de chefes políticos locais, sem sofrer qualquer repressão. Apesar disso, nas eleições de 1937, embora com núcleos organizados em 17 municípios do Maranhão, apenas seis lançaram candidatos a prefeito ou vereador, e apenas um vereador foi eleito. Nas eleições para prefeito de São Luís, em que se inscreveu sob a legenda “Deus, Pátria e Família”, o partido teve cerca de 5% dos votos e era identificado com as forças da situação.

Esta dualidade entre movimento e partido, entre um combate retórico violento contra o sistema democrático, partidário e parlamentarista (no plano nacional) e antioligárquico (no plano regional, o que lhe dava uma aparência modernizadora) e, de outra parte, aceitação do jogo da política oligárquica e clientelística, quando se trata de negociar alianças e cargos mostra, talvez mais do que qualquer outro dado, os limites objetivos (felizmente) à emergência do Fascismo no Brasil. E também talvez forneça pistas para entender por que o movimento teve pouco apoio eleitoral se comparado à sua repercussão, à época, como marco (ultra) nacionalista de debates dos grandes temas do País, como a organização de um Estado centralizado, além de sua atração como um partido identificado como nacional e antioligárquico. Também se pode sugerir que algumas das bandeiras do Integralismo estavam presentes no próprio ideário do Estado-Novo que se implantaria em 1937, o que pode ter contribuído para difundir seu ideário, apesar de oficialmente banido.

A descrição do processo político e da prática política dos integralistas no Maranhão é realizada por Caldeira com precisão e acuidade, constituindo o eixo central do seu livro. O autor optou por uma pesquisa que privilegiou a prática política e não a análise ideológica, que nem sequer ganha um resumo introdutório, que poderia contribuir para a pesquisa e para uma leitura mais compreensiva para um tema tão (academicamente) pouco conhecido. A pesquisa é coerente com a proposta. Mas não terá essa opção do autor esvaziado em parte o caráter fascista da ideologia integralista, ou simplesmente esvaziado ideologicamente o Integralismo?

A pesquisa sobre a “prática” das alianças eleitorais do partido, o jogo político que em nada difere do jogo político mais arcaico, apesar de uma retórica antioligárquica inflamada, tudo isso acaba mostrando um partido que, no calor da disputa eleitoral, não se diferencia das oligarquias locais. É evidente que este é um dado da pesquisa relevante e consistente, mas não deveria esta ênfase sobre a prática ser colocada para análise juntamente com a análise ideológica do movimento, sob o risco de perder de vista a especificidade e a violência ideológica particular do Fascismo, que é o que caracteriza o Fascismo e o torna específico, com suas variações locais e nacionais?

Caldeira poderia recusar este comentário não apenas reafirmando uma opção historiográfica, diante de uma bibliografia inteiramente dedicada ao estudo da ideologia (em sua maior parte produzida pelas ciências sociais), mas também como uma conclusão da própria pesquisa, no sentido de que esta mostra, no Maranhão, um partido esvaziado de sua violência ideológica e de conteúdos que existiam apenas no discurso nacional, mas não no regional.

Mas não será esta contradição entre a retórica violenta do movimento e sua atuação “prática” esvaziada precisamente uma contradição central do Fascismo brasileiro, expressão das camadas médias que se beneficiavam do alargamento da ação do Estado e das oportunidades de emprego e ascensão social abertas nos anos 30, com a montagem de uma vasta máquina estatal, ao mesmo tempo em que defendiam vagas reformas na estrutura do Estado e se opunham fracamente às oligarquias às quais estavam de fato subordinadas, e diante das quais eramo estruturalmente dependentes? Se é próprio das classes médias não ter um projeto político autônomo, neste caso isto foi acentuado por sua relativa ascensão nos anos 30 e pelo discurso estado-novista que parecia contemplar seus anseios.

E, em conseqüência, este limite do Integralismo no Brasil na década de 30 não seria dado pelo relativo atraso do desenvolvimento capitalista no País e pela não-difusão das relações capitalistas? Esta tese, defendida em estudos de peso, como os de José Chasin, Antonio Rago e no trabalho extremamente instigante de Gilberto Vasconcelos, deve ser colocada para discussão, e não simplesmente negligenciada8.

A dualidade entre Fascismo movimento e Fascismo partido, entre a retórica e o poder, também pode ser observada no Fascismo italiano e no Nazismo alemão, e isto em nada significa atenuar as conseqüências da guerra e do genocídio. Estudos recentes sobre o Nazismo alemão mostram uma convivência, até hoje desconhecida e negligenciada, de partidos tradicionais e de elites políticas locais com os nazistas, que não tinham quadros próprios para fazer funcionar o Estado. Esta idéia, longe de atenuar os crimes nazistas, alarga a responsabilidade por crimes como o próprio genocídio contra os judeus, que não foram “apenas” a decorrência de um discurso violento do partido nazista mas resultado de uma gigantesca e minuciosa operação de destruição que envolveu muitos setores da sociedade e do Estado alemães, havendo, claro, matizes entre responsabilidade indireta, conivência e cumplicidade direta9. Ou seja, entender a passagem da retórica para o poder é um tema central dos estudos de movimentos fascistas e a contradição é própria destes movimentos que não têm maior enraizamento social. Basta lembrar, na Alemanha, o crescimento do partido, a partir dos anos 20, diante dos partidos baseados em forças sociais historicamente estruturadas, como a social-democracia, os comunistas e os partidos centristas, conservadores e católicos. Também no Brasil, a adesão ao Integralismo não tem um enraizamento social mais consistente e prévio aos anos 30, havendo uma história irregular de pequenos movimentos e partidos de extrema-direita.

Ao privilegiar o estudo local, regional, do Integralismo, corre-se o risco de se alargar um horizonte de compreensão, mas de se fechar outro e de menosprezar o poder ideológico do Fascismo como a ideologia do ódio e da destruição. Mais do que optar por uma única interpretação e torná-la profissão de fé – o que Caldeira jamais faz, ressalte-se – é importante pensar sempre entre as diferentes interpretações, confrontando-as diante da pesquisa.

Se há algo que os historiadores têm mostrado nos últimos dez anos de um verdadeiro rush de estudos históricos sobre Nazismo e Fascismo é que, à parte o desejo de se estabelecer tipologias do Fascismo (a mais célebre talvez seja a de Renzo de Felice; a última, a de Umberto Eco10), é cada vez mais esclarecedor e produtivo combinar análises da ideologia com a pesquisa empírica, documental, que busque as especificidades locais da eclosão do Fascismo, que entenda sua prática política específica e, ao mesmo tempo, busque caracterizar uma ideologia que existiu basicamente entre a Primeira e a Segunda Guerras Mundiais e que pode ser tipificada.

As particularidades do Integralismo devem ser entendidas em toda a sua complexidade para que seja possível compreender, por exemplo, por que um intelectual como Luís da Câmara Cascudo tornou-se seu asdepto no Rio Grande do Norte11. É preciso efetuar esta discussão sem maniqueísmo prévio, em um arco que comporte personagens tão díspares entre si como Plínio Salgado, Gustavo Barroso e Miguel Reale, os três mais importantes dirigentes nacionais que, com conflitos, conviveram nos anos 1930. Se pensarmos na importância política e intelectual que Reale teria durante décadas, como paradigma de um certo liberalismo, longe de aceitar que sua militância integralista foi apenas um breve parêntese juvenil, ganharíamos na compreensão de como a ideologia fascista é capaz de exercer atração sobre intelectuais que não são “tipos ideais” do Fascismo e de como o Fascismo pode ter pontos de contato com outras ideologias e movimentos. É esta maleabilidade e caráter intrinsecamente contraditório, próprio das condições históricas do entre-guerras, que permite entender estas adesões. No caso de Cascudo, certamente há toda uma gama de questões de política e cultura locais12.

É próprio da ideologia fascista ser um aglomerado de idéias contraditórias entre si, porque o Fascismo e o Nazismo devem ser entendidos, historicamente, muito mais como respostas, como reação, como ideologia do anti (principalmente anticomunismo e, no caso alemão, anti-semitismo) e da destruição, do que como a formulação efetivamente coerente de constituição de um projeto nacional. O partido nazista derivava sua força muito mais da violenta reação contra a democracia, o parlamento, os judeus e o Comunismo, e da violenta pregação que prometia uma inclusão aos setores marginalizados e ameaçados pela crise. Por isso, a guerra e o genocídio, da mesma forma que o racismo e a eugenia, estiveram no centro da ideologia e da ação nazistas. ‘Eu não sou ninguém, mas ao menos não sou judeu’, escreveu Thomas Mann, sintetizando uma pregação chave do Nazismo, que foi o anti-semitismo associado ao anticomunismo. Por justapor idéias contraditórias, como ser simultaneamente anti-capitalista e anti-comunista, o Fascismo atrai diferentes setores sociais e seu discurso repercute em diferentes demandas, falando para várias camadas sociais e dirigindo apelos específicos e contraditórios a cada uma. Assim, não faz sentido procurar em cada militante ou eleitor do Fascismo um representante “ideal” desta ideologia. Igualmente não faz sentido transferir a ideologia mecanicamente para cada situação histórica como se a ideologia se manifestasse apenas como reprodução de si mesma. Mas é fundamental não apenas estabelecer as identidades ideológicas, bem como suas diferenças, e entendê-las como manifestações dos anos 20 e 30, seja no Brasil, Portugal, Romênia, Hungria, Itália ou Alemanha.

A recente eleição de um governo, na Áustria, em aliança com a extrema-direita em um País que é um dos mais prósperos da Europa, com menor índice de desemprego, mostra que o apelo fascista atinge setores nem sempre objetivamente ameaçados por uma crise econômica e social, uma das interpretações clássicas da emergência do Nazismo na Alemanha. Ao contrário, como mostrou Marilena Chauí em seu ensaio sobre o Integralismo13, a crise é uma poderosa imagem engendrada pelo próprio discurso fascista, que investe em um discurso emocional e irracional, repleto de imagens aterrorizantes, brandindo a ameaça de que a sociedade e seus valores estão em desagregação, à beira do caos, e que seria preciso um movimento restaurador de valores, regenerador do homem e uma nova ordem.

Mas é preciso jamais perder de vista que se chame Fascismo, Nazismo ou Integralismo, e em que pesem suas diferenças, o Fascismo é uma ideologia da destruição, da negação e do horror ao conflito, da recusa ao diferente e ao outro, do ódio às divisões sociais, à democracia e ao sistema de representação, do nacionalismo xenófobo, da liderança ditatorial, da guerra, da destruição das organizações da sociedade civil, do terror, da intimidação e do racismo. O fim da história no “Estado Integral” ou no “Reich de Mil Anos” pressupunha um estado permanente de harmonia social, exterminados previamente na “solução final” todos os que fugiam à norma ideal racista. Para o Nazismo, o extermínio dos povos considerados inferiores era considerado “biologia aplicada” que abreviaria um processo que a própria natureza se encarregaria de realizar. Neste ponto, o Integralismo não era monolítico, havendo diferenças sérias entre, por exemplo, Gustavo Barroso e Plínio Salgado, sendo que o anti-semitismo ficou mais marcado na pregação de Barroso.

O livro de Caldeira certamente se insere em um novo caminho historiográfico para os estudos sobre o Fascismo no Brasil (ou movimentos como o Integralismo e outros, sendo que a discussão sobre o caráter fascista não pode ser evitada), no qual ela trabalha com consistência e coerência. Há trinta anos atrás, Gilberto Vasconcelos escreveu seu livro, o professor Florestan Fernandes escreveu no prefácio que duvidava até se o Integralismo era um tema a justificar estudos acadêmicos14. A um pensamento de esquerda racional e intelectualmente sofisticado, a violência caótica e contraditória do discurso integralista parecia apenas desprezível, fruto de um movimento político inexpressivo no Brasil. Quem lê Gustavo Barroso, por exemplo, pode se surpreender com a aparente irracionalidade e total aparente non-sense dos seus panfletos. Foi Jean Paul Faye, entre outros, quem explorou a gramática fascista, mostrando o terrível poder daquela linguagem incitadora de violência e da destruição por meio da articulação de poderosas imagens de crise, de destruição e de ódio. O discurso fascista é extremamente eficaz, atingindo pulsões, sentidos, emoções e circuitos que o discurso racional não penetra. Ler um texto fascista implica desmontar a lógica da construção do Fascismo e não apenas aceitar um debate político racional. Os livros-panfleto de Gustavo Barroso são um exemplo dessa terrível eficácia do mal.

Estas reflexões são sugeridas pelo livro de João Ricardo de Castro Caldeira e pelo seu trabalho de mestrado muito bem articulado e exemplar enquanto pesquisa de história. O campo de pesquisa e de interpretação sobre a história do Integralismo no Brasil é ainda um território em aberto, especialmente à pesquisa documental aliada à análise ideológica. E, sobretudo, politicamente urgente. Poucos dias após a posse do novo governo austríaco, em aliança com a extrema-direita, cujo líder, Haider, tem aberta simpatia pelo Nazismo, foi na Praça da República, no coração da cidade de São Paulo, em 6 de fevereiro de 2000, que um grupo que se diz publicamente integralista e seguidor de Plínio Salgado e Gustavo Barroso cometeu o assassinato de Edson Neris da Silva, de 35 anos, o qual, segundo o grupo que o matou, “parecia homossexual”. Nunca é demais lembrar que o Fascismo é essencialmente a ideologia do ódio ao diferente e que, dependendo das circunstâncias, este ódio transforma-se em destruição física.

Notas

1 TRINDADE, Hélgio. Integralismo, o Fascismo brasileiro na década de 30. São Paulo: Difel, 1974. O livro pioneiro de Trindade é ainda o mais completo e compreensivo estudo sobre o tema, com ampla pesquisa de campo. Os trabalhos que vieram depois particularizaram temas ou aprofundaram certos aspectos ideológicos específicos.

2 Hélgio Trindade considera que a AIB era um partido fascista “em função da composição social dos seus aderentes, das motivações de adesão de seus militantes, do tipo de organização do movimento, do conteúdo do discurso ideológico, das atitudes ideológicas de seus aderentes e do sentido de solidariedade do movimento em relação à corrente fascista internacional”. Mas o debate neste campo entre os poucos pesquisadores do tema é muito intenso.

3 Sobre os sites racistas, ver KAHN, Tulio. Ensaios sobre Racismo. Manifestações Modernas do Preconceito na Sociedade Brasileira. São Paulo: Conjuntura, 1999.

4 Os livros anti-semitas de Gustavo Barroso, como Brasil colônia de banqueiros, foram reeditados pela editora Revisão que edita em português livros nazi-negacionistas em relação ao genocídio dos judeus na Segunda Guerra Mundial e outros panfletos anti-semitas como “Os Protocolos dos Sábios de Sião”, cuja primeira edição em português foi apresentada pelo próprio Barroso.

5 Sobre Gustavo Barroso, ver MAIO, Marcos Chor. Nem Rotschild nem Trotsky: o pensamento anti-semita de Gustavo Barroso. Rio Janeiro: Imago, 1992; RAGO FILHO, Antonio. A crítica romântica à miséria brasileira: o Integralismo de Gustavo Barroso. Dissertação de Mestrado, PUC-SP, 1989 e CYTRYNOWICZ, Roney. Integralismo e anti-semitismo nos textos de Gustavo Barroso na década de 30. Dissertação de Mestrado, FFLCH-USP, 1992; neste último, um capítulo mostra a conexão entre o nazi-negacionismo e Gustavo Barroso. Há ainda muito material e campo de pesquisa para se estudar Gustavo Barroso, sua trajetória intelectual e política. Sobre o anti-semitismo na década de 30, ver LESSER, Jeffrey. O Brasil e a Questão Judaica. Rio Janeiro: Imago, 1995, e para uma descrição da documentação do anti-semitismo, ver CARNEIRO, Maria Luiza Tucci. O anti-semitismo na Era Vargas: fantasmas de uma geração. São Paulo: Brasiliense, 1988.

6 REALE, Miguel. Memórias. Vol. 1. Destinos Cruzados. São Paulo: Saraiva, 1986.

7 Para conhecer a importância das imagens no Integralismo, ver SOMBRA, Luiz Henrique e GUERRA, Luiz Felipe Hirtz (orgs.). Imagens do Sigma. Rio Janeiro: Arquivo do Estado do Rio de Janeiro, 1998.

8 Além da obra já citada de RAGO FILHO, Antonio, ver VASCONCELOS, Gilberto. Ideologia Curupira: análise do discurso integralista. São Paulo, Brasiliense, 1979, e CHASIN, José. O Integralismo de Plínio Salgado: forma de regressividade no capitalismo hipertardio. São Paulo: Livraria Editora Ciências Humanas, 1978.

9 Sobre isso, ver CYTRYNOWICZ, Roney. Memória da Barbárie. A história do genocídio dos judeus na Segunda Guerra Mundial. São Paulo: EDUSP/Nova Stella, 1990.

10 DE FELICE, Renzo. Explicar o Fascismo. Lisboa: Edições 70, 1976, e ECO, Umberto. Cinco escritos morais. Rio de Janeiro: Record, 1997. As tipologias sempre agregam elementos interessantes para a análise, em que pese sua generalização e pretensão de modelo que dê conta de todas as particularidades.

11 Até hoje, a chamada cultura popular é tradicionalmente muito mais apropriada por forças políticas conservadoras do que de esquerda, que a vê, muitas vezes, como arcaica, repetitiva e estruturalmente conservadora. Se de um lado a cultura popular está associada a estruturas centenárias de submissão e dominação, criando espaços narrativos míticos de redenção e utopia em uma esfera fora da situação social objetiva, por outro haverá outra saída que não equacionar repetição e criação, enraizamento e libertação, fixação e nomadismo? Esta discussão de história da cultura é sumamente importante para entender o apelo regional, local, que o Integralismo teve no país. Um dos três principais líderes, Gustavo Barroso, violento anti-semita e com posições que podem ser aproximadas ao Nazismo alemão, era um escritor regionalista de sucesso e foi membro da Academia Brasileira de Letras, tendo sido seu presidente. É preciso entender como o Integralismo operou estas justaposições e como se organizou seu apelo.

12 O estudo de GERTZ, René. O Fascismo no Sul do Brasil. Germanismo, Nazismo, Integralismo. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1987, é exemplar a respeito de como não de pode fazer generalizações que à primeira vista parecem óbvias, ao tratar das diferenças e conflitos entre germanistas, nazistas e intregralistas nas “colônias” alemãs no sul do país.

13 CHAUÍ, Marilena. “Apontamentos para uma crítica da Ação Integralista Brasileira”. In Ideologia e Mobilização Popular. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978.

14 FERNANDES, Florestan. Prefácio ao livro de VASCONCELOS, Gilberto, Op. cit., p. 11.

Roney Cytrynowicz – Doutor em História Social pela USP.

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