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Os gregos e nós: uma antropologia comparada da Grécia Antiga – DETIENNE (HH)
DETIENNE, Marcel. Os gregos e nós: uma antropologia comparada da Grécia Antiga. Tradução de Mariana Paolozzi Sérvulo da Cunha. São Paulo: Loyola, 162pp. Resenha de: BENHIEN, Rafael Faraco. Em defesa de uma antropologia histórica: com os gregos e para além deles. História da Historiografia. Ouro Preto, n. 04, p.352-357 março 2010.
Como seu nome indica, este livro de Marcel Detienne explora certas relações entre os antigos gregos e nós. Ainda assim, em contraposição ao que geralmente se projeta em tais relações, o autor se recusa a reificar por meio delas quaisquer mitos de origem do Ocidente. Da mesma forma, enfrenta com ousadia o discurso corporativista, mais ou menos sofisticado conforme o caso, daqueles que sustentam uma epistemologia própria aos estudos históricos, sejam eles “antigos” ou “modernos”, “nacionais” ou “estrangeiros”. Os Gregos e Nós trata, antes de tudo, da defesa e dos resultados de uma metodologia experimental, o comparatismo.
É bem verdade que tal método nada tem de novo, como sugere o próprio autor ao recuperar alguns dos fundadores da sociologia, da antropologia e da linguística modernas. Com efeito, para Émile Durkheim, Marcel Mauss e Antoine Meillet, aos quais se somaram mais tarde Marcel Granet e Émile Benveniste, a comparação deveria estar no cerne de toda a reflexão sobre essa dimensão específica da Natureza que é o Social. Não por acaso, no prefácio do primeiro volume do Année Sociologique, publicado em 1898, o próprio Durkheim afirmou: “a história só pode ser uma ciência na medida em que explica, e não pode explicar senão comparando. Mesmo a simples descrição é impraticável de outra maneira: não se descreve bem um fato único, ou do qual se possuem raros exemplos, porque ele não é bem observado”. Ora, tanto para Detienne, como para os cientistas sociais por ele citados, não se trata de reafirmar a essência de um objeto dado a priori, mas sim de colocar em cheque o próprio arranjo de questões a partir do qual o pesquisador concebe a série documental a ser estudada. Em outras palavras, o autor se quer herdeiro da tradição que toma o comparatismo como um instrumento privilegiado para dissolver especulações ontológicas.
Mas se o comparatismo já possui uma história considerável, não deixa de ser interessante ver o quanto sua presença é relativamente recente na obra de Detienne. Explico-me. Entre as décadas de 1960 e 1980, intervalo no qual o autor iniciou carreira e conquistou renome internacional, sua adesão ao grupo que tinha por patrono Louis Gernet e por patrão Jean-Pierre Vernant deu-se em sintonia com os estudos helênicos. Detienne notabilizou-se então por estudar exclusivamente as sociedades gregas, em especial seus mitos e sua religião.
Neste período, o comparatismo, embora evocado de tempos em tempos, não produziu muito mais do que as tímidas páginas que servem de anexo a Problèmes de la Guèrre en Grèce Ancienne (1985), cuja organização ele dividiu com Vernant.
A partir de meados dos anos 1970, contudo, em paralelo aos trabalhos do “helenista puro”, Detienne passou a se interessar cada vez mais pela história crítica de certos conceitos-chave em seu próprio métier. Em L’Invention de La Mythologie (1981), por exemplo, sem se ater a recortes temporais institucionalmente estabelecidos, ele procurou analisar a constituição do campo epistemológico que marcou o sentido moderno de categorias como mito e mitologia. Acompanhando seus empregos ao longo dos séculos, ele mostrou como tais termos foram utilizados por especialistas para reafirmar subrepticiamente toda uma série de pré-conceitos, em particular aqueles que servem para opor civilização e barbárie, razão e imaginação.
Tal esforço reflexivo, associado ao rompimento com Vernant, acabou levando Detienne a, na sequência, reavaliar o papel do comparatismo em sua produção. Em trabalhos como Transcrire les Mythologies (1994), Comparer L’Incomparable (2000) e Comment Être Autochtone (2003), o “helenista” foi aos poucos se confundindo com o “antropólogo”. Vale dizer: cada vez mais distante do discurso que localiza nos antigos gregos uma especificidade ontológica em geral dotada de inestimável valor (os inventores da razão, da estética e da política), Detienne se propôs a observá-los a partir do confronto, ancorado em determinadas variáveis, com as mais distintas experiências societárias. Surgem assim outras razões, outras estéticas e outras políticas, todas aptas a iluminarem-se reciprocamente. Poder-se-ia dizer, e isto estaria correto, que tal transformação só foi possível em função das questões e dos conhecimentos acumulados por Detienne enquanto helenista. Não obstante, na medida em que a perspectiva defendida em seus derradeiros trabalhos engendra um desencantamento dos nossos gregos, tornados um entre tantos povos igualmente interessantes, é preciso reconhecer que há também aí um ataque aos valores celebrados nos mesmos espaços em que ele se formou.
Os Gregos e Nós, publicado originalmente na França em 2005, aprofunda ainda mais esta guinada na trajetória de Detienne. Ao longo de seus seis capítulos, o autor ora procura fundamentar intelectualmente sua proposta comparatista, ora apresenta de forma sucinta os trabalhos coletivos que ele coordenou em torno de temas tratados por tal viés. O capítulo que abre o livro, Fazer antropologia com os gregos, por exemplo, apresenta o projeto de uma antropologia histórica da Grécia Antiga. Tal texto opõe, a partir de um balanço da história das ciências sociais, historiadores e antropólogos. Em linhas gerais, para Detienne, enquanto estes se propuseram desde cedo a comparar “incomparáveis”, colocando frente a frente sociedades que lhes pareciam dotadas de dignidades distintas, aqueles estabeleceram genealogias e oposições destinadas a instaurar ou a reforçar o caráter singular de cada experiência societária. É contra esta história do particular, organizada desde o século XIX em torno da categoria de nação, que Detienne conclama os historiadores e antropólogos atuais a se unirem.
O próximo capítulo, Do mito à mitologia, discute as diferentes embocaduras que, desde o século XVI, guiaram o estudo da mitologia. Na primeira parte do texto, o autor explora o estratégico lugar reservado aos gregos por inúmeros especialistas, qual seja, o de guardiões da fronteira que separa o mito e a razão. Para colocar em cheque tal posição, Detienne então recupera a polissemia da própria noção grega de mito e evoca, em seguida, a análise estruturalista como um caminho eficaz para dar conta desta diversidade.
Afinal, sugere ele, trata-se de um método atento à correspondência entre muitos planos semânticos no mais amplo recorte comparatista possível.
Transcrever as Mitologias, o terceiro capítulo, remete aos estudos realizados no livro homônimo que o autor organizou em meados da década de 1990. A questão que guia aqui a análise é a seguinte: como reagem diferentes sociedades ao verem suas tradições orais ganharem suporte escrito? Comparando experiências gregas, romanas, ameríndias, japoneses e judaicas, Detienne evoca os atores das transcrições, bem como a estrutura social que dá sentido a seus atos. Contrastando um e outro caso, ele procura evidenciar o quanto a cristalização da tradição jamais é ingênua, bem como seu papel na consolidação de novos regimes de historicidade, ou seja, nas formas de se reinventar os vínculos entre o passado, o presente e o futuro.
No capítulo seguinte, A Boca da Verdade, o autor faz um balanço das discussões que se seguiram à publicação de seu livro Les Maîtres de la Vérité dans La Grèce Anchaïque (1967), em particular no que diz respeito à história do vocábulo grego “verdade” (alétheia). De início, a preocupação de Detienne é desvincular este seu antigo trabalho dos defensores da Grécia como “inventora da verdade”. Afinal, mudanças nos sistemas de verdade não são um privilégio do Ocidente, tampouco implicam a substituição de um bloco monolítico por outro. Para o autor, aliás, a modalidade de “verdade” que passa a vigorar na Grécia a partir do século VIII a.C. tomou vários caminhos, muitas vezes conflitantes entre si (a vontade da assembléia de guerreiros, a dos filósofos, a dos sofistas, a dos poetas e assim por diante). A segunda parte do texto, por seu turno, defende a importância de se continuar nas trilhas de uma antropologia das figuras míticas dos mestres da verdade arcaicos. Segundo o autor, tanto os hermeneutas de Lille (p. 83-7), quanto os filósofos discípulos de Heidegger (p.
87-90), ignoraram a importância de tal ciência e, portanto, não puderam avançar muito além do que já sabiam. Aqui, porém, o mais interessante é ver quem Detienne elege como interlocutor e quais argumentos utiliza para desbancá-los.
Quanto aos próprios argumentos, ao menos no que concerne o círculo constituído em torno de Jean Bollack, o mínimo que se pode dizer é que eles simplificam de modo grosseiro os trabalhos dos hermeneutas. Basta abrir os volumes de Bollack sobre Empédocles ou Heráclito para perceber que uma antropologia está sim ali presente e que ela permite colocar em relação diversos textos.
Achar seu Lugar é o título do quinto capítulo da obra. Retomando tópicos já trabalhados em seu livro Comment Être Autochtone (2003), Detienne se preocupa em abordar o problema da construção de identidades históricas. Por certo, o tema não poderia ser mais atual: graças aos esforços de políticos como Le Pen e Sarkozy, a especificidade da França voltou a transformar-se em terreno de acirrados debates. Buscando instrumentos de crítica contra tais novas “mitologias”, o autor volta-se para as práticas e os processos administrativos implicados na produção da crença acerca da autoctonia e da fundação em diferentes sociedades. É assim que ele contrasta, entre outras, as experiências da Atenas do século V a.C. com as da Padânia, da França e de Israel modernos.
Já o derradeiro capítulo, Comparáveis nos balcões do político, investe contra o culto da origem da política e do político na Grécia Antiga. Para tanto, o autor toma como terreno de combate diferentes modalidades de reuniões de pessoas em processos decisórios. A assembléia dos guerreiros gregos é assim comparada à dos cossacos e à dos circacianos, bem como às reuniões dos religiosos budistas no Japão, dos cônegos seculares na França Medieval e dos iniciados (senufo) da Costa do Marfim. Por meio de tais expedientes, interessa a Detienne inventariar quem, em que circunstâncias e de que modo, tem acesso à palavra pública. Assim se compreende melhor, insiste ele, tanto o fato do exercício da política não possuir uma única origem, como ajuda a problematizar as circunstâncias que destruíram estas experiências sociais particulares.
Tendo em vista a estrutura e o tema da referida obra, cumpre dizer aqui que sua tradução para o português chega em boa hora. Com efeito, nós, que vivemos uma expansão sem precedentes do sistema universitário brasileiro (talvez com os dias contados, quem sabe?), podemos pensar a partir dela mudanças interessantes a serem implementadas para as futuras gerações.
Entre os historiadores, por exemplo, qual a razão, além da corporativa, para se manter o curriculum centrado nas etapas de uma história que raramente reflete sobre o ato, em grande medida arbitrário, que a nomeia “Ocidental”? Precisamos de mais cadeiras de Grécia e de Roma Antigas, de Idade Média ou de História do Brasil? A sugestão de Detienne é clara: uma vez que “nossa história não começa com os gregos”, que ela é “infinitamente mais vasta”, é preciso estender nossos interesses para outros domínios. E há mais: é também necessário fazer com que novos e velhos domínios se cruzem, dialoguem entre si. Uma história comparada, outro nome para uma antropologia histórica, não pode se dar ao luxo de formar eruditos inteiramente dedicados ao estudo de uma só cultura.
Afinal, parodiando o Durkheim de As Formas Elementares da Vida Religiosa, o cientista social não deve se interessar apenas por este ou aquele homem em particular, mas também pelo Homem e, ainda mais urgentemente, por todos aqueles com os quais ele compartilha o privilégio e a responsabilidade de dividir um presente.
Por fim, algumas rápidas ponderações sobre a tradução e a edição. Embora tenha realizado um trabalho honesto, a tradutora demonstra não ter grande familiaridade com o vocabulário próprio das ciências sociais, algo nefasto para o leitor desavisado. Assim, contrariando os usos consagrados em português, ela traduz Année Sociologique por Ano Sociológico (p. 33); Potière Jalouse por Ceramista Ciumenta (p. 46 – é bom lembrar que o interessado nesta obra de Claude Lévi-Straus a encontrará em bibliotecas e livrarias brasileiras com outro título, Oleira Ciumenta); e os Annales por Anais (p. 188). A editora deveria ter sanado tais deslizes com uma revisão técnica adequada. Quanto à edição, é simplesmente lamentável que o desaparecimento das oito páginas repletas de fotografias do original francês não seja sequer indicado ao leitor brasileiro.
Rafael Faraco Benthien – Doutorando Universidade de São Paulo (USP) Bolsista FAPESP rfbenthien@hotmail.com Rua Dr. Nogueira Martins, 420/83 – Saúde São Paulo – SP 04143-020 Brasil.