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Enciclopédia da Floresta – O Alto Juruá: práticas e conhecimentos das populações | Manuela Carneiro da Cunha e Mauro Barbosa de Almeida
“a perda da diversidade genética e específica pela destruição dos ambientes naturais é a estupidez pela qual os nossos descendentes estarão menos dispostos a nos perdoar”
Edward O. Wilson
“Suba!”, lhe diz o seringueiro. A casa é firme graças à maçaranduba, acariquara, murmuru, tarumâ e paracuba, madeiras boas para o barrote, espécie de pilotis sobre o qual se ergue o assoalho de paxiubão. Mas antes de ir entrando, tire os sapatos e lave os pés. Para a parede, paxiubinha, gitó, cumaru e cedro têm preferência. O teto sobre a sua cabeça talvez seja feito de palha de aricuri, que dura até 12 anos se for cortada “no escuro da lua” (lua nova). Admire o asseio e perceba o brilho das panelas areadas pela dona da casa no igarapé mais próximo. Mas só as mulheres serão convidadas a entrar na cozinha antes da hora da refeição. Esta hipotética visita e muito mais é o que nos permite um livro admirável sobre um cantinho de Brasil tão desconhecido quanto fantástico chamado Alto Juruá.
Fica no sudoeste do Acre, em uma região tão isolada que a cidade mais próxima, Marechal Thaumaturgo, até o ano de 2000 não tinha nem correio nem banco, tampouco juiz ou padre e apenas um telefone público. Por outro lado, neste vasto território de 10 mil km2 e apenas 8 mil habitantes, já foram registradas 1620 espécies de borboletas (estima-se que sejam 2000), 616 espécies de pássaros, 113 espécies de anfíbios e 16 espécies de primatas, sem falar em mais de 100 mil espécies de insetos. Estudos realizados por geólogos, ecólogos e botânicos chegaram à conclusão de que a bacia do Alto Juruá “possui uma notável diversidade de sistemas naturais”. Trata-se daquilo que os especialistas chamam de fronteira biológica. Aqui a floresta ainda predomina, embora sejam encontrados mais de dez tipos diferentes de formações florestais, onde se vêem samambaias de até 5 metros de altura. Estes recursos têm sido utilizados – até agora – sem causar impacto destrutivo, de tal modo que os sistemas naturais se encontram em uma situação de “equilíbrio dinâmico”. A baixa densidade demográfica e o estilo de vida extrativista causam alterações de uma ordem que ainda permite à natureza recuperar-se. Um roçado abandonado, volta a ser floresta em 60 anos.
A esta riquíssima biodiversidade, corresponde uma história igualmente complexa e rica, que nos últimos 130 tem tido o seu ritmo ditado pela borracha. Até 1912, a época “de ouro”, marcada pela vinda maciça de nordestinos, logo enredados pelos patrões em dívidas contraídas no nefando sistema do barracão. Tempo das “correrias”, matança organizada e sistemática de índios, assim descrita por um padre francês ainda em 1925:
“Reúnem-se trinta a cinqüenta homens, armados de carabinas de repetição e munidos cada um de uma centena de balas; e, à noite, cerca-se a única cabana, forma de colméia de abelhas, onde todo o clã dorme em paz. À aurora, à hora em que os índios se levantam para fazer sua primeira refeição e seus preparativos de caça, um grito combinado dá o sinal, e os assaltantes fazem fogo todos juntos e à vontade”
O governo brasileiro ainda tentou reviver o auge da borracha durante a 2ª Guerra Mundial, pois o Japão havia cortado aos aliados o suprimento de borracha vindo da Malásia (cujo sistema de produção havia derrubado os preços e causado a falência da região da borracha por décadas). Criou-se a “Batalha da Borracha” e milhares de nordestinos foram atraídos por uma mentirosa campanha de propaganda que lhes prometia prosperidade. Após a 2ª Guerra Mundial a região foi novamente abandonada. Com isto, os seringueiros e os três povos indígenas que habitam estas terras (kaxinawás, ashaninka e katunika), embora tenham mantido costumes e identidades culturais próprias, acabaram por forjar um conjunto de conhecimentos e práticas relativos à floresta que desaguou na “Aliança dos Povos da Floresta”. Acabava-se o “tempo do cativeiro dos patrões” e chegava finalmente o “tempo dos direitos” (kaxinawá) ou “das cooperativas” (seringueiros). O processo culminou com o reconhecimento dos direitos dos indígenas às suas terras na década de 80 e com a criação da Reserva Extrativista do Alto Juruá em janeiro de 1990, depois de inúmeros conflitos com os patrões para por fim ao monopólio comercial e à cobrança de uma renda anual de 33 kg de borracha por ano, referente ao uso de uma terra que jamais havia sido legalmente deles e de fato sempre havia sido trabalhada pelos seringueiros.
É até difícil explicar em poucas palavras a relevância da Enciclopédia da Floresta. Seu grau de detalhamento é impressionante e nada lhe escapa: os solos, a vegetação, a fauna, os costumes de cada um dos povos, o calendário agrícola, uma descrição passo a passo das atividades (construção de casas, estradas de seringa, alimentação, caça), as formas de classificação do mundo pelos seringueiros, pelos Kaxinawá, pelos Katukina e pelos Ashaninka. Há centenas de fotos e ilustrações, diagramas, mapas, desenhos e dicionários de bichos e plantas. Nem mesmo a mitologia ficou de lado, para o prazer do leitor. Fruto de um trabalho de pesquisa que vem se realizando há mais de uma década, contando com dezenas de especialistas de universidades públicas brasileiras e com uma equipe de pesquisadores “nativos” igualmente importante (todos são devidamente biografados ao final), é uma obra de valor inestimável.
Um dos pontos mais importantes a destacar é a parceria entre o saber científico e aquele proveniente da prática cotidiana, fazendo cair por terra uma perniciosa dicotomia já atacada por Lévi-Strauss em O Pensamento Selvagem. Por último, é preciso lembrar que todo o sistema de entrelaçamento entre os homens e a natureza descrito pela obra repousa sobre um equilíbrio tão frágil quanto ameaçado:
“Não há bolsa de futuros para essa biodiversidade; não há títulos para florestas de máxima diversidade a serem entregues daqui a cem anos. Todas essas árvores e borboletas parecem supérfluas do ponto de vista do mercado.”
Marcos Alvito – Professor do Departamento de História da Universidade Federal Fluminense. Autor de As cores de Acari.
CUNHA, Manuela Carneiro da; ALMEIDA, Mauro Barbosa de (Orgs.). Enciclopédia da Floresta – O Alto Juruá: práticas e conhecimentos das populações. São Paulo: Companhia das Letras,2002. Resenha de: ALVITO, Marcos. Cantareira. Niterói, n.2, 2002. Acessar publicação original [DR]