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Povos originários: histórias, culturas e resistências/Faces de Clio/2022
Ao olhar para a realidade latino-americana do tempo presente, pode-se perceber algumas urgências que emanam de processos de violência que se edificaram através da relação entre poder e colonialidade, que ecoaram durante as últimas décadas e se intensificaram na atualidade. Analisar questões que tocam diretamente ou indiretamente em assuntos relacionados aos povos originários nos espaços da academia requer uma série de considerações, principalmente porque a escrita como conhecemos através da cultura ocidental foi utilizada para construção de um imaginário que contribuiu significativamente para a desumanização, marginalização e violência contra esses povos durante a construção do Estado nação no Brasil. A historiografia a partir da década de 1970, especificamente através da Nova História Indígena, contribui significativamente para que outro olhar na produção da história em relação aos povos originários fosse possível. Leia Mais
Fronteiras, Culturas e Deslocamentos Populacionais / Aedos / 2018
“O objeto da história é, por natureza, o homem.
Digamos melhor: os homens. Mais que o singular,
favorável à abstração, o plural, que é o modo
gramatical da relatividade”.
Marc Bloch (2001, p. 54)
Marc Bloch, na epigrafe acima, discorre sobre o objeto da história pautado a partir da presença dos homens no tempo, ou seja, a pesquisa histórica eles são próprios sujeitos sociais. Decerto, “o tempo da história, ao contrário, é o próprio plasma em que se engastam os fenômenos e como lugar de sua inteligibilidade” (BLOCH, 2001, p. 55). Nesse sentido, os fenômenos são acionados através da própria realidade concreta.
No livro Apologia a História, Bloch enfatiza que “a história não é uma relojoaria ou uma marcenaria. É um esforço para conhecer melhor: por conseguinte, uma coisa em movimento” (BLOCH, 2001, p. 46). Nesse esforço de compreensão, hodiernamente, faz-se necessário estabelecer novos diálogos e / ou conexões a fim de ter em mãos novos modelos explicativos.
Seguindo essa linha de pensamento, Certeau (2011, p. 47) frisou que “toda pesquisa historiográfica se articula com um lugar de produção socioeconômico, político e cultural”. O lugar social, portanto, é para o pesquisador campo fértil e é ao mesmo tempo espaço de luta em torno do que será pesquisado. O autor advoga que para isso, “tudo começa com o gesto de separar, de reunir, de transformar em ‘documentos’ certos objetos distribuídos de outra maneira […] na realidade, ela consiste em produzir tais documentos”.
Nesse caso, os estudos sobre os deslocamentos populacionais, na contemporaneidade, têm se mostrado um campo profícuo nas Ciências Humanas e Sociais. Estudos que trazem a tona novas abordagens e novas perspectivas teórico-metodológicas, tais como: fronteiras, migração (internacional e nacional), refugiados, inserção sociocultural dos migrantes no lugar de destino, relações e tensões societárias (familiares, gênero, xenofobia, empregabilidade, educação, saúde), bem como a atuação do Estado e entidades não governamentais frente a este complexo e multifacetado fenômeno presente no contexto das migrações.
Vale destacar que, os Estados-nações são criações globais, relativamente recentes (HOBSBAWN, 1990), os quais há discrepâncias entre os “nacionais” e os “estrangeiros”. Discrepâncias que são criadas culturalmente e sedimentadas nas leis, com seleção da entrada destes nas fronteiras. A migração de pessoas ultrapassando fronteiras nacionais desses Estados é fenômeno global e multifacetado. Por conseguinte, pensam-se as migrações internacionais, por exemplo, a partir do fluxo de pessoas no globo já que essa condição é regida e limitada por legislações locais dos países soberanos.
No século XVIII o filósofo iluminista Kant propôs, na obra “A Paz Perpétua” uma sociedade universal de paz, com respeito unívoco pelos direitos humanos em um mundo com hospitalidade universal e sem exércitos, pois estes fazem “implicar um uso dos homens como simples máquinas e instrumentos na mão de outrem (do Estado)” (2008, p. 6). Entretanto, não há um direito global de migrar. Entretanto, o artigo 13 da Declaração Universal dos Direitos Humanos prevê que “todo ser humano tem o direito de deixar qualquer país, inclusive o próprio, e a este regressar” (ONU, 2009), mas não há força vinculante dessa norma internacional nos países, sendo norma meramente programática (ACCIOLY, SILVA, CASELLA, 2012, p. 497; PORTELA, 2010, p. 647).
Posto isso, o dossiê Fronteiras, Culturas e Deslocamentos Populacionais, trazido nesse número, conta com seis artigos, os quais trazem como panorama a questão do deslocamento populacional como fio conduto sobre o fenômeno migratório (inter)nacional.
O primeiro artigo é “Identidades, transnacionalidade e violência: o caso dos brasileiros no Japão”. Nele o fenômeno da imigração brasileira para o Japão é apresentado como um tipo de expulsão que é característica do capitalismo neoliberal. Destaca-se que o ponto de partida do artigo é discussão de dois acontecimentos – o discurso do deputado federal Jair Bolsonaro proferido em abril de 2017, onde o político ataca minorias étnicas e apresenta brasileiros de origem japonesa como “uma minoria exemplar”; e o assassinato da enfermeira japonesa Rika Okada, ocorrido no Japão, março de 2014, no qual a nipo-brasileira Kate Yuri Oishi foi apontada como culpada após entregar-se para as autoridades. Nesse caso, o segundo acontecimento, apesar de extremo, não representa uma exceção no sentido de que os brasileiros de origem japonesa, por vezes vistos como “exemplares” no Brasil, encontram-se em geral bastante marginalizados no contexto social japonês.
Já o segundo, “A História em espiral: compreendendo a receptividade brasileira à imigração haitiana a partir de suas determinações”, discute o mito que descreve o Brasil como um país acolhedor e receptivo à imigração, para tal, toma-se como campo analítico a imigração haitiana, no qual a autora busca demonstrar que essa ideia de pais acolhedor omite questões como os preconceitos e a xenofobia que dificultam a inserção do migrante no lugar de destino.
O terceiro texto, “Migração Venezuelana ao Brasil: discurso político e xenofobia no contexto atual” apresenta o estado de Roraima como principal rota para de entrada dos migrantes venezuelanos. A partir dessa realidade as autoras analisam as narrativas que permeia a Ação Civil Originária 3121, na qual o governo de Roraima solicita que o Supremo Tribunal Federal (STF) determine que a União assuma efetivamente o controle policial e sanitário na entrada do Brasil, inclusive com o fechamento temporário da fronteira. Além disso, procuram demonstrar como o recurso a essa retórica discriminatória atende a interesses políticos e de grupos específicos, agravando ainda mais a vulnerabilidade dos migrantes e dificultando sobremaneira sua integração.
O texto “Do imigrante ao nacional regenerado: a busca pelo trabalhador perfeito” traz o contexto imigratório para a cidade de São Paulo, no último quartel do século XIX, sendo que a maior parte desses migrantes vieram da Europa. Essa realidade, na concepção do autor, alimentou a mentalidade da elite brasileira em relação ao um novo regime de trabalho já que os imigrantes iriam contribuir com a economia paulista. Consequentemente, os imigrantes carregavam consigo a tarefa de “regenerar” a população brasileira, sobretudo a de ascendência africana, vista como uma população degenerada e inferior. Desta feita, o autor problematiza a importância da ação da escola no início do século XX a fim de regenerar o indivíduo.
Em “Da partida à saudade: as representações de migrantes do Nordeste na obra de Luiz Gonzaga”, é discutido o fenômeno da migração de trabalhadores nordestinos, entre as décadas de 1950 a 1970, para as cidades de São Paulo e do Rio de Janeiro através da obra musical do compositor e intérprete Luiz Gonzaga. Nesse caso a música é utilizada pelo autor para discutir a diversidade dos tipos de migrantes representados na obra do “Rei do Baião”.
Já o último artigo a compor o dossiê “Arranchar-se do outro lado do Atlântico: açorianos na freguesia de Taquari (sul da América portuguesa, 1750-1800)” demonstra os aspectos da migração de casais açorianos para o que hoje definido como Rio Grande do Sul a partir da freguesia de Taquari. Para isso, a autora investiga as condições de acesso à terra, bem como sua ocupação deste a chegada até as últimas décadas do século XVIII.
Francisco Marcos Mendes Nogueira – Doutorando em História pela UFRGS. Mestre em Sociedade e Fronteiras pela UFRR. Historiador (B / L) pela UFRR.
Alan Robson Alexandrino Ramos – Doutorando em Ciências Ambientais pela UFRR. Mestre em Sociedade e Fronteiras pela UFRR. Especialista em Segurança Pública e Cidadania pela UFRR. Bacharel em Direito pela UFC e em Filosofia pela Universidade Sul de Santa Catarina. Delegado de Polícia Federal lotado em Roraima.
NOGUEIRA, Francisco Marcos Mendes; RAMOS, Alan Robson Alexandrino. Apresentação. Aedos, Porto Alegre, v. 10, n. 22, Ago, 2018. Acessar publicação original [DR]
Drogas na Américas: culturas, fiscalizações, repressões e ilegalismos / Outros Tempos / 2017
O continente americano é um verdadeiro laboratório de politização das drogas. Se é dele que emergem, historicamente, as primeiras experimentações de uma política proibicionista direcionada a certas substâncias, como o álcool nos Estados-Unidos (1919- 1933), é dele também que emergem hoje as primeiras experimentações de regulação do uso recreativo (Colorado e Nevada, nos EUA) e medicinal da maconha (em alguns países como a Colômbia, os EUA, o México e o Uruguai). Nesse mesmo continente foi declarada, em 1970, a “guerra às drogas” pelo presidente dos Estados-Unidos, Richard Nixon, mas é ainda desse continente que derivam hoje as críticas mais fervorosas em relação a essa guerra [1] . De fato, os efeitos nefastos dessa política bélica se fizeram sentir especialmente em diversos países do continente, levando a, entre outros, um enfraquecimento de alguns Estados, o fortalecimento das multinacionais do crime organizado, o aumento de mortes e contaminações ligadas à precariedade do uso de drogas advindos de sua ilegalidade, ou o aumento de discriminações e da população carcerária. A tal ponto que hoje assistimos a uma denúncia internacional desses efeitos, inclusive por ex-presidentes, como o brasileiro Fernando Henrique Cardoso, ou o colombiano C. Gaviria, os mesmos que, na época, implantaram essa política. E, ironia suprema da Historia, sendo os Estados-Unidos os que mais defenderam, nos anos 1910-20, um sistema internacional de drogas fundado na distinção entre fins legítimos (médico-científicos e farmacêuticos) e ilegítimos, permitindo a constituição de grandes monopólios farmacêuticos em matéria de drogas, é do mesmo país que emerge atualmente os maiores escândalos farmacêuticos ligados ao consumo abusivo e letal decorrentes de drogas prescritas e acessadas de forma legítima: milhões de dependentes de opioides, e milhares de overdoses por ano provenientes de abusos de drogas legalmente prescritas [2] . Eis aqui então uma ambivalência constitutiva do problema das drogas desde o início do século XX: quando destinadas a fins legítimos (médico-científicos) são um mal necessário, quando dirigidas a fins ilegítimos (recreativos), são um flagelo social.
A contemporaneidade e a ambiguidade da problemática das drogas em todo o continente americano justifica a necessidade da publicação, em uma revista de História, de um volume especialmente consagrado a essa questão. Pois as transformações políticas e sociais contemporâneas em matéria de drogas, os seus paradoxos e contradições aparentes, participam de processos de grande fôlego que devem ser analisados em sua complexidade histórica e também em sua variedade geográfica. A originalidade dessa publicação consiste, precisamente, em oferecer uma abordagem histórica que articula, ao mesmo tempo, uma perspectiva global das políticas internacionais sobre drogas e estudos micro-históricos que tratam de contextos geográficos e sociais específicos. Este volume concilia metodologias distintas e confronta assim reflexões mais abrangentes e teóricas sobre conceitos operantes do chamado “sistema proibicionista” com pesquisas etnográficas, realizadas nas realidades do cotidiano da Argentina, do Brasil, da Colômbia e do México. Nos cruzamentos entre macro-história e micro-história, ciências políticas, sociologia e antropologia se encontram pesquisadores, doutorandos e professores vindos de horizontes geográficos e metodológicos diferentes. E, como em uma polifônia, dialogam historiadores brasileiros e franceses; antropólogos da América do Sul e da Europa; assim como sociólogos e psicólogos argentinos, que trazem consigo bagagens repletas de experiências que proporcionam novas reflexões ao universo complexo das drogas. Dessa forma, a pluralidade de perspectivas que figuram nesse volume pode ser encarada como uma sala de espelhos na qual estariam situados, no centro, alguns referentes do campo, como “drogas” ou “proibicionismo”, de onde refletiriam e emanariam os diferentes sentidos que eles adquirem quando confrontados a uma série de realidades históricas e sociais distintas.
É exatamente o referente “drogas” que é situado no centro do artigo de FrançoisXavier Dudouet. Nele, o autor propõe uma investigação quase policial, que percorre as diferentes operações subjacentes de uma organização social global que distinguiria, no mundo inteiro, os usos sagrados dos usos profanos. A problemática das drogas não pode ser apreendida nem a partir de uma perspectiva substancialista, que pensaria as drogas como substâncias tendo propriedades específicas, nem a partir de uma perspectiva moral, que se focalizaria unicamente sobre os mecanismos sociais e morais que conduzem a sua proibição e repressão. Esta perspectiva moral, tende a ocultar o fato de que, na realidade, nenhuma droga é em si proibida e acaba por mascarar as distinções entre usos lícitos e ilícitos, realizadas pelo sistema de regulação das drogas tanto em uma escala nacional quanto internacional. São os processos históricos que conduziram à implantação dessa organização social global das drogas que são centrais em sua análise. Para isso, o autor começa a descrever as operações pelas quais os usos lícitos das drogas foram distinguidos dos ilícitos em nível dos diversos estados europeus no século XIX para, em seguida, mostrar como essas operações contribuíram para a construção, internacional, de uma economia lícita das drogas separada de sua economia ilícita, durante o século XX. Essa dimensão econômica é, posteriormente, aprofundada no artigo a fim de revelar a lógica monopolista que organiza os usos sagrados das drogas. Nessa trama, trata-se de revelar que por trás da crença na proibição das drogas se dissimula uma realidade mais difícil ainda de ser capturada: a monopolização dos usos lícitos.
Deslocando o foco para as Américas, o artigo de Thiago Rodrigues e Beatriz Caiuby Labate analisa os processos histórico-políticos do proibicionismo, a partir de uma perspectiva comparada entre os Estados-Unidos, México e Brasil. No artigo, trata-se de reinserir as bases repressivas e militares do proibicionismo dentro de um conjunto complexo de racionalidades biopolíticas, composto por cinco níveis de segurança: moral, sanitária, pública, nacional e internacional. Esses níveis são confrontados tanto com as particularidades das zonas geográficas em questão, quanto com os períodos históricos que percorrem o final do século XIX, até o século XX. Contrapondo-se a uma visão simplista do sistema proibicionista, o artigo demonstra as dinâmicas e as mutações dos pilares enraizados do sistema, situando e problematizando paralelamente os questionamentos atuais sobre o tema.
Dando continuidade ao tipo de reflexão que procura abranger as especificidades do sistema proibicionista, situando-a no contexto brasileiro dos anos 1930 a 1970, o artigo de Mariana Broglia de Moura busca complexificar uma visão que reduz o proibicionismo a uma política repressiva e que visa a interdição absoluta das drogas. Por meio de uma abordagem “positiva” são restituídas as diversas funções de controle, regulação e repressão que constituem o sistema proibicionista de drogas. É salientada, particularmente, a atividade de fiscalização de entorpecentes, analisada especialmente a partir das seguintes dimensões: controle estatístico, tributação e regulamentação profissional e regulação dos costumes. Por fim, é examinada a maneira como a formalização de um mercado legítimo de drogas vem acompanhado do desenvolvimento de um conjunto de ilegalismos, às margens do lícito e do ilícito.
A abordagem histórica, no que tange a dimensão ilícita do circuito de comercialização das drogas é feita no artigo de Alexandre Marchant. Nesse texto, o autor mostra que a continentalização e a mundialização do tráfico de drogas nas Américas, sistematicamente atribuídas aos cartéis colombianos e mexicanos dos anos 1980, têm origens mais remotas. De fato, elas têm suas raízes ancoradas no sistema implantado nos anos 1950 pelas máfias marselhesas exportadoras de heroína no continente, nos tempos da French Connection. Do sul ao norte do continente, criminosos franceses expatriados instituíram redes, itinerários e práticas que não desapareceram repentinamente com a queda da filial francesa, no começo dos anos 1970. Ao contrário, os cartéis recém-nascidos da cocaína buscaram integrar os antigos traficantes da French Connection, valorizando suas experiências, antes de aperfeiçoar seus métodos para conseguir novos equilíbrios entre o continente americano e europeu no tráfico internacional de entorpecentes, na virada dos anos 1980-1990.
A virada social dos anos 1980, na história política e social do tráfico de drogas no México, é analisada por Sabine Guez através de sua busca pelo “tempo da inocência”, momento de entusiasmo e de fascinação, assumidos e desenfreados pelos traficantes de drogas em toda sociedade, dentro de classes privilegiadas ou populares. É nesse período complexo que o negócio das drogas atinge seu apogeu, por meio da corrupção, constituindo um tipo de poder que articula altos e baixos escalões do México setentrional. Esse poder adquire uma força considerável, sobretudo, com o desenvolvimento prodigioso do tráfico de cocaína sulamericano e seu trânsito, via México, em direção aos Estados-Unidos. A autora percorre então esses rostos e vozes do presente que remetem ao passado dos anos 1980, articulando, para isso, um trabalho etnográfico e histórico-biográfico. É por meio dessa metodologia que ela interroga a autonomização dos traficantes em relação ao Estado, o mesmo que exercera um controle estrito e forte sobre eles. E defende a ideia de que esse movimento de autonomização dos traficantes é correlato às transformações sociais induzidas, na época, pela multiplicação das participações no tráfico.
A articulação entre história e etnografia também está presente no artigo de Beatriz Brandão e Jonatas Carvalho, que busca problematizar dois conceitos recorrentes – o de “política de drogas” e de “sociedade de controle” – enraizando suas análises tanto no concreto etnográfico do programa De Braços Abertos (Cracolânida-SP; 2014-2016), quanto na história política e social da implementação dos dispositivos de controle e repressão de drogas no Brasil. Nesse artigo, os autores trazem à história os processos e efeitos que são constantemente apagados e, por conseguinte, repetidos pelas políticas públicas em matéria de crack, sobretudo nessa região. Eles salientam a novidade do programa implementado pelo então prefeito da cidade de São Paulo, Fernando Haddad, e situam essas novas ordenações dos modelos de tratamento – como a Redução de Danos e as Comunidades Terapêuticas – dentro de uma história mais complexa de intervenções políticas, feitas na matéria a partir de práticas higienistas e compulsórias. A nova visão do crack trazida pelo programa é confrontada com quadros analíticos e conceituais, como os de “biopolítica” e “programas- pastores”, inserindo-o em uma nova tecnologia liberal da sociedade de controle, a qual está voltada, entre outros, ao controle dos fluxos e ao governo de si.
A atualidade dos dispositivos de acompanhamento de dependentes de drogas e das políticas de redução de danos é articulada, no artigo de Silvia Inchaurraga e Edgardo Manero, a uma reflexão mais abrangente sobre os mecanismos de poder e de controle subjacentes a esses programas. Consagrado à Argentina, esse artigo estuda os efeitos de uma política oficial em matéria de drogas nas últimas décadas, centrada na erradicação do consumo de drogas pela abstinência, no campo sanitário, e pela penalização, no campo legislativo. Tanto as políticas públicas como as principais instituições vinculadas à temática das drogas se sustentam a partir de uma lógica bélica, que instaura a discriminação dos usuários e a construção de uma alteridade social ameaçadora. Esse artigo, escrito por uma psicóloga, diretora do Centro de Estudos Avançados sobre Drogas da Universidade de Rosário, e por um sociólogo, nos dá acesso às principais questões colocadas atualmente no campo da Redução de Danos, na Argentina.
A história das lutas do movimento antiproibicionista colombiano e combinada com uma reflexão semântica e conceitual sobre o termo “pharmakon” nos é proporcionada pelo artigo de Andrés Gongorra, que realiza uma etnografia de grande fôlego (2013-2017), consagrada ao movimento canábico colombiano. O autor mostra como a proibição das drogas no país surgiu com um arranjo sanitário, moral e econômico para monopolizar a produção de remédios e venenos. O conhecimento assim produzido em torno da relação entre as pessoas e o pharmakon – desenvolvido principalmente por especialistas de segurança pública, economia política e saberes psi – desconheceu sistematicamente a agência política dos consumidores e pequenos produtores de drogas. Percorrendo a história da cannabis e de seus defensores, o autor descreve a luta para liberar a planta e permitir a sua reintegração nos espaços da embriaguez tolerada, dos remédios e da indústria.
A história reflexiva sobre as operações de distinção entre substâncias e usuários também encontra um espaço no artigo de Lucas Endrigo Brunozi Avelar, que examina – através de relatos do jesuíta português João Daniel, contidos na obra Tesouro Descoberto no Máximo do Rio Amazonas– como os portadores de uma ideologia religiosa de origem medieval descreveram a embriaguez dos povos indígenas na Amazônia do século XVIII. Nesse artigo, o autor revela as contradições e aproximações entre, de um lado, uma empresa de colonização fundada na produção e comércio de drogas e na tradição alimentar católica assentada no vinho e no pão; e, de outro, uma ideologia do abuso elaborada para dar conta da tradição indígena de ingestão de bebidas e substâncias extraídas da floresta.
As definições e redefinições das drogas na história e as correlações entre drogas e alimentos são tratadas a partir de uma entrevista conclusiva, realizada com o grande historiador do campo no Brasil, Henrique Carneiro, na qual são retomados, desde a antiguidade até hoje, os diversos saberes que se ampararam e contribuíram a forjar os diferentes sentidos atribuídos às drogas. Atributos de divindades, objetos de nomenclatura botânica, produtos secos do comércio do além-mar, fármacos, substâncias ilícitas são os diferentes sentidos aos quais são remetidos esse referente complexo que simplificamos por meio do termo “drogas”. Mas, mais do que um simples referente, as drogas são o objeto de diversas estratégias internacionais, como as comerciais e geopolíticas, tornando-se, na época moderna, os “principais vetores na expansão da navegação, do colonialismo, do escravismo, do consumo de massas e da revolução comercial e industrial”. Sobre a atualidade, o historiador faz um diagnóstico preciso e crítico, no qual localiza os pontos de fraqueza e de força do sistema, e aponta para as forças imanentes que atualmente representam um movimento capaz de desestabilizar alguns pilares do sistema até então enraizados. Por fim, com este conjunto de pesquisas queremos convidar os leitores a uma reflexão crítica e profunda sobre a temática das drogas nas Américas.
Desejamos a todos ótima leitura!
Notas
1. Ver por exemplo o relatório “Guerra às drogas” da Comissão global de políticas sobre drogasde junho de 2011, disponível no site: https: / / www.globalcommissionondrugs.org / reports / the-war-on-drugs /
2. Ver por exemplo : BBC Brasil, “Opioides causam um ‘11 de Setembro’ em mortes a cada três semanas nos EUA” 2 de Agosto de 2017.
Mariana Broglia de Moura
Helidacy Maria Muniz Corrêa
MOURA, Mariana Broglia de; CORRÊA, Helidacy Maria Muniz. Apresentação. Outros Tempos, Maranhão, v. 14, n. 24, 2017. Acessar publicação original [DR]
Trabalhadores, Culturas e Movimentos Sociais / História & Perspectivas / 2014
A Revista História & Perspectivas apresenta neste número o Dossiê: Trabalhadores, Culturas e Movimentos Sociais, composto por artigos que trazem reflexões em torno da presença dos trabalhadores, da visibilidade de suas práticas socioculturais na arena pública e as diferentes configurações políticas que essas práticas assumem enquanto movimentos sociais contemporâneos. O nosso objetivo é o de contribuir com o debate, apresentando propostas investigativas com focos diferenciados de análises acerca desse eixo temático. Artigos cuja contribuição está, sobretudo, no apontamento das diferentes problemáticas vinculadas às culturas e experiências do fazer-se dos trabalhadores enquanto protagonistas da História.
O artigo de Mariana Mastrángelo tem como objetivo refletir sobre a existência de uma cultura operária esquerdista no interior da Argentina, a partir dos testemunhos de operários, intelectuais e militantes de esquerda que viveram em duas cidades da província de Córdoba, nas décadas de 1930-1940. Seu enfoque tem como suposto as reflexões de Raymond Willians, no que diz respeito a investigar a cultura em seus processos variáveis, em suas definições sociais e, também, em suas inter-relações dinâmicas, apontando que cada cultura contém elementos explorados de seu passado, mas o seu lugar no processo cultural contemporâneo é variável. Desse modo, através dos testemunhos recolhidos, a proposta é de analisar os problemas da memória elucidando na cultura dos seus protagonistas o modo como convivem os elementos “residuais”, “emergentes” e “dominantes” nos processos de narrar / significar / resignificar o presente-passado.
O artigo de Pablo A. Pozzi também parte dos supostos de Raymond Willians sobre cultura ordinária e estruturas de sentimentos, propondo analisar a longa tradição de consignas políticas que conformam cânticos, por exemplo, no “apego” cultural dos trabalhadores pelo futebol, e que também coroaram as participações nos movimentos nacionais de disputas políticas na Argentina. Refletindo as canções e metáforas da linguagem socialmente produzida nessas práticas culturais, o autor busca as articulações e significados das mesmas nos processos de tensão, conflitos e resistências vividos pelos trabalhadores em diferentes conjunturas políticas. Sua hipótese é a de que essa linguagem evidencia propostas programáticas, uma identificação de inimigos e / ou aliados e, em particular, elementos que apontam para a definição de uma “identidade própria”. Nas palavras do autor: a proposta é traçar por meio do estudo de uma série de cânticos e consignas políticas, a permanência de uma subjetividade política de esquerda durante parte do século XX argentino (…) vinculadas a figuras específicas que aparecem em distintos testemunhos de militantes políticos; o impacto do cântico quando o testemunhante busca explicar com maior profundidade um conceito repetindo algumas consignas apreendidas durante as participações nas mobilizações políticas.
Já o artigo Los Indignados de Latino América – de Antonio J. Chica Badel, Giovani Cheuiche Godoy, José María Monzón e Mércia Pereira – busca refletir sobre o que os autores consideram a força dos movimentos sociais nas lutas por melhores condições de vida, melhores oportunidades de trabalho e igualdade. Movimentos que contribuem para o questionamento de paradigmas que sustentam a ideia de uma sujeição tradicional e ou submissa ao sistema dos mercados globalizados. Segundo os autores, tais movimentos sociais reclamam autonomia em relação ao poder das forças econômicas que interferem na organização interna dos países da América Latina.
Outro artigo que contribui para as reflexões desse Dossiê é Breve história das jornadas de junho: uma análise sobre os novos movimentos sociais e a nova classe trabalhadora no Brasil, de Josué Medeiros. É uma reflexão sobre as novas configurações dos movimentos sociais focadas nos protestos ocorridos em junho de 2013 e que foram chamados de Jornadas de Junho. O autor trata esses protestos como novos movimentos sociais, pautado na análise sobre a constituição da nova classe trabalhadora no Brasil. A indagação é sobre a natureza política dos protestos, problematizando a maneira como foram difundidos pela imprensa periódica, atentando para ações e participações dos seus integrantes nas redes sociais, questionando sobre quem eram os agentes ou jovens, protagonistas desses protestos, o que reivindicavam por meio dessas ações, suas visibilidades na arena política mediante a conjuntura e suas propostas de intervenções. Questões que se articulam na hipótese de que as jornadas de Junho de 2013 no Brasil podem ser vistas enquanto um momento de afirmação de novas formas de organização coletiva e que podem ser relacionadas com o debate acerca da nova classe social ou da nova classe trabalhadora, diante das políticas dos governos pós-neoliberais no Brasil.
O último artigo do Dossiê é de Fernando Perli sobre a temática: Impressos, leituras de passado e configurações do ensino de História no Movimento dos Sem Terra (MST), no qual apresenta uma análise relevante sobre as propostas desse movimento no que diz respeito à produção das “representações de passado”, tecidas por lideranças, intelectuais e entidades de apoio como atos que delineiam um lugar para o ensino de História na organização do movimento. O autor faz sua interpretação pautando-se nos processos de produção dos impressos difundidos pelo MST.
Na seção dos artigos avulsos encontram-se textos cujas análises assentam-se em pesquisas sobre memórias, culturas e experiências de trabalhadores de diversas localidades do Brasil. A problemática da participação / organização dos trabalhadores nos movimentos sociais de bairro na década de 1980, no município de Toledo no Estado do Paraná, foi foco da pesquisa de Jiane Fernando Langaro. Em seu artigo, o autor analisa as trajetórias, os aprendizados dessas lutas, por meio das memórias dos seus protagonistas, primando por compreender os significados dessas experiências durante um processo tenso de busca por parte do poder publico municipal em institucionalizar as organizações, associações comunitárias, destacando, principalmente, o caráter de sujeitos históricos daqueles que se envolveram nessas lutas por direitos naquela cidade. Já o artigo de Rosangela M. Silva Petuba dialoga com as experiências dos trabalhadores e de suas famílias na cidade de Ponta Grossa (PR). O interesse foi demonstrar a maneira pela qual esses trabalhadores constituíramse ferroviários, por meio de um modo de vida, entendido como prática social, em que visões e projetos de viver, morar e trabalhar se articulam na vida da cidade e na ferrovia. Experiências que foram analisadas como outra possibilidade de diálogo com o tempo vivido e como alternativa para a construção de outras histórias da ferrovia e de sua relação com a cidade. Noutro enfoque, temos o artigo de Sheille Soares de Freitas e Carlos Meneses de Souza Santos cujo tema é: Laços de Violências em vínculos classistas: os trabalhadores rurais na porção Oeste do Paraná na segunda metade do século XX. A análise problematiza o modo como determinadas relações de poder, estabelecidas por trabalhadores rurais, podem extrapolar definições fragmentárias, indicadas em noções como “mundo do trabalho” e “cotidiano de trabalhadores”.
Ainda nessa seção encontram-se os artigos de Marco Antonio S. de Almeida, intitulado O que ocorreu com os trabalhadores desligados da indústria de transformação da microrregião de Juiz de Fora pós-abertura econômica?; de Antonio de Pádua Bosi – Uma História Social comparada do trabalho em frigoríficos: Estados Unidos e Brasil (1880-1970); e de Alysson Luiz Freitas, – A violência praticada por escravos e homens livres: crimes em comum? que tratam de temáticas relativas às mudanças nos processos de produção capitalista, a exploração do trabalho em situações distintas e comparadas e as transgressões e ou violências praticadas e vividas por trabalhadores em variadas relações de subordinação / dominação em diferentes temporalidades históricas.
Por último, o artigo de Alessandro de Almeida e Edwirgens A. Ribeiro Lopes de Almeida, intitulado Que Presidente sou eu? A telenovela como instrumento de propaganda eleitoral nas eleições de 1989, problematiza a produção de telenovelas pela empresa Rede Globo, no ano de 1989, como instrumento político que contribuiu para a vitória do candidato vinculado ao projeto neoliberal no Brasil.
Vale destacar a nova seção Debates criada nesse número e que aborda Sobre a Profissão do Historiador. Esta seção traz o posicionamento de duas Associações sobre este tema: a da Sociedade Brasileira de História da Ciência – SBHC e da Associação Nacional dos Professores de História – ANPUHNACIONAL. A profissionalização do historiador tem sido debatida em vários fóruns e é uma preocupação constante da ANPUH. A apresentação destes posicionamentos visa contribuir com a divulgação deste debate.
Por fim a seção Resenhas, com o texto: A atualidade do pensamento de Antonio Gramsci para a historiografia contemporânea de autoria de Heloisa Helena Pacheco Cardoso. A autora tece considerações sobre a importante presença dos referentes teóricos de Antonio Gramsci na historiografia brasileira, analisando os artigos publicados no livro intitulado Sociedade Civil. Ensaios Históricos, 2013, organizado por Dilma Andrade de Paula e Sônia Regina de Mendonça.
Celia Rocha Calvo – Conselho Editorial
CALVO, Celia Rocha. Trabalhadores, Culturas e Movimentos Sociais. História & Perspectivas, Uberlândia, v.27, n.51, 2014. Acessar publicação original [DR].
Povos e culturas: da globalização do século XVI, á a globalização do século XXI, as Américas como lugar / Revista do IHGB / 2006
Luitgarde Oliveira Cavalcante Barros
Liudmila Ókuneva
BARROS, Luitgarde Oliveira Cavalcante; ÓKUNEVA, Liudmila. Povos e Culturas: da globalidade do século XVI à globalização do século XXI, as Américas como lugar. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Rio de Janeiro, v.167, n.433, p.9-10, out./dez., 2006.