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Sentidos da Folia de Reis: um estudo da memória e da identidade da celebração popular em Florínea/SP – GOULART (FH)
GOULART, Rafaela Sales. Sentidos da Folia de Reis: um estudo da memória e da identidade da celebração popular em Florínea/SP. São Paulo: Editora Alameda, 2018. 268p. Resenha de: FABRI, Aline. Folia de Reis em Florínea: manifestação popular, memória e patrimônio. Faces da História, Assis, v.6, n.1, p.483-489, jan./jun., 2019.
A partir da década de 1970, devido à efervescência da Nova História Cultural e da Micro-História, surgiram críticas à história das grandes narrações e do tratamento global à cultura. Os sujeitos presentes em todos os espaços, inclusive os marginalizados, passam a ser investigados e vistos por estas vertentes de pesquisa como contribuintes importantes à compreensão acerca da cultura e de diversos aspectos que estão envoltos a ela.
Dentro deste novo modo operante de se investigar a cultura e a história vem o livro Sentidos da Folia de Reis: um estudo da memória e da identidade da celebração popular em Florínea/SP, de autoria de Rafaela Sales Goulart, historiadora formada pela UENP (Universidade do Norte do Paraná), com especialização em História e Humanidades pela UEM (Universidade Estadual de Maringá), e mestrado em História pela UNESP (Universidade Estadual Paulista) câmpus de Assis.
O livro em questão é resultado da dissertação de mestrado da autora e foi publicado em 2018 pela editora Alameda/São Paulo. Possui 268 páginas, contendo introdução, três capítulos e conclusão. O prefácio foi feito pela orientadora de Goulart, a historiadora Fabiana Lopes da Cunha, que sucintamente escreve sobre o tema.
Sua estrutura está pautada em referencial teórico e historiográfico, com citações de pensadores relacionados ao assunto investigado. Alguns deles serão expostos mais adiante. Também usa fontes orais, colhidas de forma técnica, fotografias, além de trechos de músicas e declamações religiosas. Foram obtidos 21 relatos orais do grupo de foliões e 4 entrevistas com demais membros da cidade, como o pároco, por exemplo. Portanto, os documentos foram diversos: envolveram registros produzidos a partir dos foliões, documentos públicos da prefeitura e outros. Goulart fez uso de ideias de alguns autores que tratam de métodos de pesquisa em relação à história oral e à memória, como, por exemplo: Michael Pollak, Jacques Le Goff, Eduardo Romeiro de Oliveira e Verena Alberti.
No que diz respeito às narrativas orais e sua relação com a memória, Goulart apoiou-se em importantes autores. No entanto, ela poderia ter recorrido às indicações de Portelli (1996) quanto a esses métodos no trato e no cuidado para com os documentos. Isso teria reforçado ainda mais sua desenvoltura frente às fontes analisadas no presente trabalho. O autor nos ajuda a pensar que, ao fazer uso da história oral e das memórias, é preciso saber que elas “não nos oferecem um esquema de experiências comuns, mas sim um campo de possibilidades compartilhadas, reais ou imaginárias” (PORTELLI, 1996, p. 71). O cuidado para com as fontes orais e com as memórias é sempre imprescindível, e o aporte em Portelli (1996) seria uma sugestão para o incremento na construção de pesquisas nesse campo de estudos.
O assunto central da obra gira em torno da Festa de Reis, na cidade de Florínea/SP, que acontece há sessenta anos, e que teve reconfigurações de destaque, em 1993, e nos vinte anos seguintes, até 2013. O recorte temporal citado se destaca pela transferência da festa da zona rural para a área urbana. E, também, pela aquisição, com apoio da prefeitura, de um local fixo para a realização da festa bem como da criação da Associação Folclórica de Reis Flor do Vale de Florínea. Nos capítulos iniciais, a autora deixou o leitor a par, de forma descritiva e por meio de memórias, das principais características que constituem a Folia de Reis na cidade de Florínea. Em seguida, nos capítulos finais, ela trouxe à tona reflexões gerais acerca da consciência social construída sobre a Folia de Reis, da identidade formada pelos membros desse ritual e da Folia de Reis de Florínea vista como patrimônio imaterial.
No Capítulo 1, “A cidade da Folia de Reis: um giro pelas memórias e histórias de Florínea (SP)”, o foco é a história da cidade de Florínea construída por meio de relatos orais de moradores foliões da Companhia de Reis e por documentos da Prefeitura. Nesse processo, tem-se a identificação de proximidade da história de fundação da cidade com a história da constituição das duas Companhias de Reis ali formadas ao longo do tempo. Enquanto no Capítulo 2, A Folia de Reis de Florínea (SP) ritual, símbolos e significados, a autora retrata as a organização e as características específicas do festejo, trazendo detalhes sobre as diferentes funções dos membros das Companhias, explicações sobre os símbolos do festejo, da movimentação das Bandeiras e conteúdo das canções e versos entoados.
Valendo-se dos estudos de Jacques Le Goff e de Verena Alberti no que diz respeito a questões metodológicas, Goulart traz para a análise o papel do historiador frente aos documentos encontrados. Ela expõe, pautada nesses autores, que diante de documentos escritos, fotografias ou relatos orais, é preciso uma conduta de desmonte do que se tem em mãos para se conseguir analisar as suas condições de produção. Com essa postura, Goulart analisou as fontes ao longo de sua pesquisa de forma consciente e crítica, demonstrando sempre a preocupação com o explícito, mas além disso, com o implícito, no que tange à imagem que a comunidade de Florínea e os foliões têm de si mesmos ao longo da trajetória histórica das Companhias de Reis, suas vivências e realizações.
As reflexões sobre o assunto prosseguiram no Capítulo 3, Sentidos da Folia de Reis de Florínea (SP): memória, identidade e patrimônio (1993-2013). Neste capítulo, há uma análise sobre a possível formação de uma consciência social acerca da ideia de patrimônio em torno das mudanças ocorridas na festa. E, ainda, os sentidos dos rituais, aprendizagens sociais e estratégias de sustentação da memória coletiva tomadas pelos sujeitos envolvidos na condução do festejo.
A autora apoia-se nas ideias de Paulo Freire para discorrer uma análise sobre consciência social, crítica e histórica no tocante ao festejo estudado.
Goulart, dando continuidade às suas reflexões, analisa a transferência da festa para o Parque de Tradições, na cidade. Também discute os sentidos da criação da Associação Folclórica de Reis Flor do Vale de Florínea por foliões, em 2013, indicando que se trata de ações da comunidade florinense para com a continuidade da Folia de Reis. A partir destes dois atos, Goulart constrói sua análise acerca da possibilidade de existência de uma consciência coletiva dentre esses sujeitos, pois essas mudanças representam ações que aparentemente parecem ir nessa direção. A autora traz dados acerca dessa possível construção de consciência sobre o papel da Folia dentre os participantes do festejo. Verificamos isso em sua fala, por exemplo, sobre a Associação Folclórica de Reis Flor do Vale de Florínea quando ela afirma que tal entidade “[…] é recente e ainda depende de avanços no processo de consciência social dentro e fora do grupo, o que incide nas limitações das políticas culturais da cidade de Florínea.” (GOULART, 2018, p. 241).
Ao trabalhar com a questão da identidade do grupo pesquisado, Goulart se apoia nos estudos de Eric Hobsbawn e de Joseane P. M. Brandão. Ela discorre sobre a construção da identidade do grupo e usa de ideias desse primeiro autor para se referir à ideia de coesão social. Para isso reflete sobre o exemplo de figuras como o festeiro e o mestre que representam peso histórico de tradição forte: as bandeiras chegam a ser reconhecidas pelo nome de seus festeiros ou de seus mestres, e não pelo nome do fundador. No entanto ainda há uma reafirmação do nome daquele que seria o primeiro festeiro e fundador da festa (Sebastião Alves de Oliveira), o que reforça o peso de tradição da festa. Tais pontos de tradição, segunda ela, podem contribuir para a coesão social do grupo e de sua identidade.
Fazendo uso da citação de Joseane P. M. Brandão Goulart faz mais apontamentos sobre a formação da identidade do grupo: “[…] as identidades são sociais e os indivíduos se projetam nelas, ao mesmo tempo em que internalizam seus significados e valores, contribuindo assim para alinhar sentimentos subjetivos com as posições dos indivíduos na estrutura social” (BRANDÃO apud GOULART, 2018, p. 221). A Folia de Reis seria parte da identidade social de Florínea, tendo em vista que exerce representatividade dos sujeitos da cidade, que se veem como parte constituinte do festejo. Para o grupo, os rituais dessa festa popular possuem símbolos que lhes são significativos e dotados de valor e sentidos.
Quanto à ideia de patrimônio, Goulart a desenvolve tendo em vista sua imbricação com a formação da consciência e da identidade do grupo. Ela afirma que a Folia de Reis de Florínea é entendida como um patrimônio da cidade, porque representa uma identidade coletiva e suscita tentativas de conscientização do grupo sobre a […] a conscientização é um compromisso histórico. É também consciência histórica: é inserção crítica na história, implica que os homens assumam o papel de sujeitos que fazem e refazem o mundo. Exige que os homens criem sua existência com um material que a vida lhe oferece. (FREIRE apud GOULART, 2018, p. 237).
continuidade do festejo. Cita, inclusive, a decretação da lei municipal de 2010 que coloca o dia 6 de janeiro (Dia de Santos Reis) como feriado municipal. O que seria mais uma tentativa de conscientização sobre o caráter de patrimônio da Folia de Reis de Florínea.
A autora discorre também sobre educação patrimonial e aprendizagens sociais. Para isso, recorre as ideias de Carlos R. Brandão e Sônia R. Florêncio. Ela cita a formulação da Coordenação de Educação Patrimonial (CEDUC) sobre o termo “Educação Patrimonial”, fazendo uso das palavras de Sônia R. Florêncio: […] todos os processos educativos formais e não formais que tem como foco o Patrimônio Cultural, apropriado socialmente como recurso para a compreensão sócio-histórica das referências culturais em todas as suas manifestações, a fim de colaborar para seu reconhecimento, sua valorização e preservação. Considera, ainda, que os processos educativos devem primar pela construção coletiva e democrática do conhecimento, por meio do diálogo permanente entre os agentes culturais e sociais e pela participação efetiva das comunidades detentoras e produtoras das referências culturais, onde convivem diversas noções de Patrimônio Cultural. (FLORÊNCIO; et al, 2014, p. 19 apud GOULART, 2018, p. 237-238).
O ato de ensinar o outro sujeito a fazer declamações, danças ou demais aspectos da Folia de Reis faz parte de um processo de aprendizagem em Florínea, demonstra Goulart. A rigor, ela discorre sobre o assunto pautada em Carlos R. Brandão relatando que as comunidades detentoras dos patrimônios fazem fluir o saber, o ensinar e o aprender. E com o tempo transformam-se em representações sociais.
Conhecer o trabalho de Goulart com as fontes orais nos remete à categoria de “memória coletiva” desenvolvida por Halbwachs (1990). Embora ela não o tenha usado em sua pesquisa, esse sociólogo, que tem raízes no pensamento de Durkheim, nos traz conceitos, procedimentos e entendimento quanto ao trabalho com memórias. Ele nos alerta que o convívio social é determinante sobre a formação da memória. A lembrança de um indivíduo tem relação com lembranças coletivas dos grupos em que ele esteve ou está inserido. As memórias dos sujeitos da Folia de Reis de Florínea, transcritas por Goulart no livro, podem assim ser classificadas como coletivas. Elas têm pontos em comum, se entrecruzam, pertencem a grupos sociais presentes num mesmo espaço, que no caso é a cidade de Florínea e a área rural da região. Entretanto, a memória individual não pode ser ignorada. Ela é uma das lembranças que compõem a memória coletiva. O indivíduo exerce papéis tanto na memória individual, como na memória coletiva.
[…] a memória coletiva tira sua força e sua duração do fato de ter por suporte um conjunto de homens, não obstante eles são indivíduos que se lembram, enquanto membros do grupo. Dessa massa de lembranças comuns, e que se apoiam uma sobre a outra, não são as mesmas que aparecerão com mais intensidade para cada um deles. Diríamos voluntariamente que cada memória individual é um ponto de vista sobre a memória coletiva, que este ponto de vista muda conforme o lugar que ali eu ocupo, e que este lugar mesmo muda segundo as relações que mantenho com outros meios. (HALBWACHS, 1990, p. 51).Ainda nessa perspectiva de análise sobre o caráter da memória, sua validade e uso, Goulart se baseia nas ideias de Bosi (1994) e afirma que “[…] memória é trabalho (BOSI, 1994) e de que lembranças são constructos sociais” (GOULART, 2018, p. 181). Ela nos leva a perceber que o mundo do trabalho está envolto à memória dos indivíduos e faz parte da construção de lembranças a serem contadas. Podemos recorrer à obra de Bosi (1994) para trazer mais alguns pontos sobre essa reflexão realizada por Goulart.
Na maior parte das vezes, lembrar não é reviver, mas refazer, reconstruir, repensar, com imagens e idéias de hoje, as experiências do passado. A memória não é sonho, é trabalho. Se assim é, deve-se duvidar da sobrevivência do passado, ‘tal como foi’, e que se daria no inconsciente de cada sujeito. A lembrança é uma imagem construída pelos materiais que estão, agora à nossa disposição, no conjunto de representações que povoam nossa consciência atual. (BOSI, 1994, p. 55).
Dessa forma, o historiador, ao trabalhar com fontes orais e memórias, precisa investigar as condições contextuais do grupo social onde os sujeitos depoentes estão inseridos e conjecturas atuais de interesse sobre o passado. Em Florínea, a maior parte dos depoimentos orais colhidos por Goulart são de indivíduos que hoje vivem no meio urbano. Ao se direcionarem as memórias sobre o passado, as atividades da Bandeira de Reis exercem um certo saudosismo por outra época: a vida no campo. Esse ponto merece ser tratado com cuidado, à luz de reflexões de estudiosos sobre os métodos de estudos sobre a memória.
Em relação aos sentidos da Folia para os envolvidos, Goulart criou reflexões que alcançam a ideia de identidade, consciência social e patrimônio. O grupo se vê nas práticas e símbolos do ritual e sente necessidade de dar continuidade ao festejo, o que contribui para lhe qualificar como patrimônio cultural imaterial.
Na conclusão do livro, a autora delineia um balanço final da pesquisa, com apontamentos voltados para a importância das construções sociais e da formação de consciência sobre um patrimônio cultural que, no caso das Companhias de Reis da cidade de Florínea, estão em formação.
Portanto, nesse estudo sobre a Folia de Reis em Florínea-SP emergem reflexões sobre identidade e memória, além de ser um trabalho que nos aproxima das análises referentes a fontes orais. O livro pode ser recomendado para estudantes que se interessem por assuntos envolvendo a problemática da memória e das identidades, que se inscrevem no campo da cultura popular e que se expressam nos festejos que envolvem religiosidade e fé que podem ser recuperados nos discursos memorialistas e fontes correlatas.
Referências
BOSI, Ecléa. Memória e sociedade: lembranças de velhos. 3. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.
GOULART, Rafaela Sales. Sentidos da Folia de Reis: um estudo da memória e da identidade da celebração popular em Florínea/SP. São Paulo: Alameda, 2018.
HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. Tradução de Laurent Léon Schaffter. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1990.
PORTELLI, Alessandro. A Filosofia e os fatos. Tempo, Rio de Janeiro: Relume-Dumará, vol. l, n. 2, p. 59-72, 1996.
Aline Fabri – Licenciada em História, Unesp – Assis, São Paulo (SP). Mestranda do Programa de Pós-Graduação em História da UNESP, Assis, SP. Professora do Ensino Médio – Etec – Centro Paula Souza. E-mail: alinefabri1@yahoo.com.br.
[IF]The Country of Football: Politics, Popular Culture, and the Beautiful Game in Brazil – FONTES; HOLLANDA (RBH)
FONTES, Paulo; HOLLANDA, Bernardo Buarque de. The Country of Football: Politics, Popular Culture, and the Beautiful Game in Brazil. London: Hurst & Company, 2014. 274p. Resenha de: CORNELSEN, Elcio Loureiro. Revista Brasileira de História. São Paulo, v.35, n.70 jul./dez. 2015.
O “país do futebol” – muito se escreveu e se alimentou esse mito nas últimas quatro décadas, dentro e fora do Brasil. Nesse sentido, The Country of Football oferece ao leitor um percurso pela história do futebol brasileiro, de seus primórdios aos dias atuais, percurso esse pavimentado por contribuições de vários pesquisadores brasileiros e estrangeiros.
Na introdução intitulada “The Beautiful Game in the ‘Country of Football'” (p.1-16), os historiadores Paulo Fontes e Bernardo Buarque de Hollanda, organizadores da obra, ressaltam que o Brasil continua a ocupar uma posição de destaque no cenário internacional, quando o assunto é futebol. Pela trajetória vitoriosa, coroada pela conquista de cinco títulos mundiais, a expressão “Country of Football” teria se tornado “nossa própria metáfora de Brasil” (p.2).1
O primeiro capítulo do livro, intitulado “The Early Days of Football in Brazil: British Influence and Factory Clubs in São Paulo” (p.17-40), da socióloga Fátima Martin Rodrigues Ferreira Antunes, versa sobre os primórdios do futebol brasileiro. De início, a autora chama a atenção para o fato de que o football já era praticado como atividade física na década de 1880 em escolas religiosas do Rio Grande do Sul, do Rio de Janeiro e de São Paulo. Essa nova modalidade adotada pela elite logo despertaria o interesse também de membros das classes operárias, o que culminaria com a formação dos chamados “clubes de várzea” e, sobretudo, de clubes de fábricas, num primeiro passo rumo à popularização.
No capítulo seguinte, intitulado “‘Malandros’, ‘Honourable Workers’ and the Professionalisation of Brazilian Football, 1930-1950” (p.41-66), o historiador norte-americano Gregory E. Jackson enfoca o período de profissionalização do futebol brasileiro a partir de 1933. De acordo com esse autor, sob o jugo autoritário, o futebol representou “uma ferramenta pedagógica para construir cidadãos eugenicamente aptos e culturalmente ortodoxos” (p.43). No contexto da Era Vargas, “o jogo e a cultura do futebol apresentaram um tropo para as críticas da suposta democracia racial do Brasil” (p.61), e encontraram no sociólogo Gilberto Freyre e no jornalista Mário Filho dois pensadores fundamentais na construção do discurso em torno do “mulatismo” como traço de um suposto estilo brasileiro de jogar.
O terceiro capítulo, “Football in the Rio Grande Do Sul Coal Mines” (p.67-85), da antropóloga Marta Cioccari, dedica-se ao estudo de um caso específico: investigar “a importância social e o simbolismo da classe trabalhadora como expressos na vida de mineiros e ex-mineiros de carvão no município de Minas do Leão, no Rio Grande do Sul” (p.67). Trata-se de uma pesquisa etnográfica realizada pela autora, que residiu no período de setembro de 2006 a fevereiro de 2007 em Minas do Leão, uma pequena localidade com cerca de 8 mil habitantes, cuja fonte de renda principal é a mineração. Segundo a autora, o futebol desempenha papel importante no cotidiano do município, onde os primeiros clubes criados por trabalhadores das minas foram fundados nas décadas de 1940 e 1950 (p.69).
No quarto capítulo, “‘Futebol De Várzea’ and the Working Class: Amateur Football Clubs in São Paulo, 1940s-1960s” (p.87-101), o historiador Paulo Fontes destaca a relevância do futebol de várzea como forma de lazer, especialmente em bairros operários das grandes cidades brasileiras. Segundo o autor, “para muitos, o fervor dos torcedores e o sentimento de apego entre os clubes locais e suas comunidades fazem do futebol amador, do futebol ‘real’, herdeiro do que há de melhor nas tradições do futebol brasileiro” (p.88). Tais clubes eram autênticos centros de lazer que integravam diversas atividades para além do futebol, atraindo, assim, amplos segmentos da comunidade em que se localizavam.
O quinto capítulo, “The ‘People’s Joy’ Vanishes: Meditations on the Death of Garrincha” (p.103-127), do antropólogo José Sergio Leite Lopes, apresenta uma “etnografia do funeral” (p.103) de Manuel Francisco dos Santos, mundialmente conhecido como Garrincha. “Uma canção de gesta medieval” (p.108): assim define o antropólogo a intenção de cronistas esportivos, em jornais publicados logo após a morte do ex-jogador, em atribuir sentido épico à carreira de Garrincha, marcada por triunfo e fama no esporte, graças à extrema habilidade em driblar os adversários que o tornou uma figura legendária, não obstante a fase de decadência e a morte trágica, praticamente esquecido, vítima do alcoolismo, em Bangu, no subúrbio do Rio.
No sexto capítulo, “Football as a Profession: Origins, Social Mobility and the World of Work of Brazilian Footballers, 1950s-1980s” (p.129-146), o historiador francês Clément Astruc investiga o testemunho de 43 ex-jogadores que atuaram na seleção brasileira entre 1954 e 1978, no intuito de refletir sobre a real capacidade do futebol como meio de ascensão social da classe trabalhadora. Vários entrevistados foram taxativos ao afirmar que a sociedade, em geral, não via com bons olhos o jogador de futebol, por não considerar sua prática uma profissão. Ao invés disso, termos depreciativos lhes eram atribuídos, como, por exemplo, “vagabundo”, “malandro” ou “safado” (p.133).
No sétimo capítulo, “Dictatorship, Re-Democratisation and Brazilian Football in the 1970s and 1980s” (p.147-166), o antropólogo José Paulo Florenzano enfoca o impacto da ditadura civil-militar (1964-1985) sobre o âmbito do futebol brasileiro e estabelece “um contraponto entre a ‘utopia autoritária’, forjada no contexto de militarização, e a República de Futebol, fundada no contexto da redemocratização” (p.148). A militarização do esporte com fins de propaganda teve várias facetas. Mas, como bem aponta o antropólogo, não faltaram vozes no âmbito do futebol para se rebelar contra esse status quo, em busca de uma democratização de seu meio profissional e, igualmente, da sociedade como um todo.
O oitavo capítulo, “Public Power, the Nation and Stadium Policy in Brazil: The Construction and Reconstruction of the Maracanã Stadium for the World Cups of 1950 and 2014” (p.167-185), do historiador Bernardo Buarque de Hollanda, versa sobre a construção do Estádio do Maracanã para a Copa de 1950 e estabelece uma comparação com a sua reconstrução no contexto da organização da Copa de 2014. Nesses dois momentos, houve uma mudança sensível em relação ao público torcedor: enquanto em 1950 havia uma política inclusiva, até mesmo por se tratar de uma época em que a televisão ainda estava ausente das transmissões, nos anos 2000, com as diretrizes da FIFA e uma maior midiatização, passa a vigorar uma política de exclusão, no espaço dos estádios, de segmentos populares da sociedade, impossibilitados de arcar com os altos preços dos ingressos.
Por fim, o nono capítulo, “A World Cup for Whom? The Impact of the 2014 World Cup on Brazilian Football Stadiums and Cultures” (p.187-206), do geógrafo norte-americano Christopher Gaffney, propõe uma reflexão sobre o impacto da Copa de 2014 para os estádios e para a cultura no Brasil, examinando o desenvolvimento de projetos de construção de estádios e demais infraestruturas relacionadas ao esporte. Com extrema lucidez, o geógrafo conclui suas reflexões com um quadro nada otimista: “Esses processos têm o potencial de alterar, permanentemente, um elemento essencial da identidade cultural brasileira. Ironicamente, é o peso cultural do futebol como criado e sustentado pelo ‘povo’ que tornou possível sua potencialidade de venda no mercado global” (p.206). Afinal, não devemos nos esquecer de que, feito uma Medusa, o capital petrifica tudo aquilo que toca.
Nota
1 As traduções de trechos citados são de nossa autoria.
Elcio Loureiro Cornelsen – Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Faculdade de Letras, Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários. Belo Horizonte, MG, Brasil. E-mail: cornelsen@letras.ufmg.br
[IF]
A feira dos mitos: a fabricação do folclore e da cultura popular (nordeste 1920 – 1950) / Durval M. Albuquerque Jr.
Podemos considerar Luiz Gonzaga como um dos muitos inventores do Nordeste, demonstrado em suas canções como lugar de tradições, do homem sertanejo sofredor em sua peleja cotidiana, enfrentando a seca, labutando na roça, lutando contra as agouras da vida. Esse mesmo sertanejo que se diverte e se encontra nos espaços das feiras nordestinas, um dos principais lugares de sociabilidade do homem nordestino, do comércio, da compra e venda “de tudo que há no mundo” e que “nela tem pra vender”.
Essa imagem caricata do Nordeste e do homem nordestino é refletida no último livro do historiador Durval Muniz de Albuquerque Júnior, A feira dos mitos: a fabricação do folclore e da cultura popular (Nordeste 1920 – 1930)3, vencedor do concurso Silvio Romero 2012 IPHAN/Conselho Nacional do Folclore e Cultura Popular.4 Atualmente, o autor é colaborador da Universidade Federal de Pernambuco e professor titular da Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
Ao contrário do que se vê, se diz e se mostra, o autor propõe novas chaves de leituras e pesquisa sobre o Nordeste, espaço construído e delimitado já discutidos em outras obras.5 Como um lugar inventado a partir de um discurso que se repete hoje nos diversos meios de comunicação ao retratar, por exemplo, o Festival de Quadrilhas Juninas do Nordeste, ou Festival de Quadrilhas Juninas da Rede Globo Nordeste, ou ainda o Nordestão de Quadrilha, só para citar alguns casos, em que se representa a cultura legitimada por um discurso fabricador da imagem nordestina.
Em imagens, signos, são mitos de um lugar fabricado a partir do discurso de agentes que assumiram um posicionamento referente ao seu espaço regional. Conforme o estudo de Durval Muniz, que também teve motivos iniciais a partir de sua própria trajetória biográfica, ao trabalhar durante a adolescência em uma feira na cidade de Campina Grande no estado da Paraíba, e como homenagem a sua terra natal, por intermédio das reminiscências do espaço da feira como lócus privilegiado das muitas formas e significados elaborados sobre a cultura nordestina. A feira “da balburdia, do falario […] do aglomerado de pessoas, pela multiplicidade de vozes […] do mercado dos mais disparatados artefatos para serem consumidos” (p. 24) como cantado pelo rei do baião, Luiz Gonzaga.
Munido de um vasto referencial teórico,6 as questões sobre a fabricação do folclore e da cultura no nordeste, em um recorte temporal que não se restringe apenas as décadas de 1920 a 1950, mas que margeiam por temporalidades anteriores, num processo que se construiu desde o final do século XIX, época da crise dos setores agrários e a quebra do sistema escravista para o regime de trabalho livre no Brasil. Essa será umas das teses propostas por Albuquerque que pensa as manifestações folclóricas, os conceitos de cultura não como algo dado, mas como algo construído, desta forma, critica amplamente a historiografia que aborda o folclore e a cultura popular que “tende-se a confundir o conceito e a coisa, o conceito e a materialidade, o conceito e a empiricidade, o conceito e a forma” (p. 27).
Para Durval é necessário perceber a diferença entre conceitos e formas para se proceder a análise da operação discursiva que articula um e outro. Deste modo recorre aos estudos de Derrida (Pensar a desconstrução) e Foucault (Arqueologia do saber) para questionar a ingenuidade dos historiadores que faz com que normalmente confundam as empiricidades com os conceitos que as significam.
O livro é dividido em seis capítulos. No primeiro, “condições históricas de emergência”, o autor faz um inventário do processo de constituição cultural nordestina, como um novo objeto que será construído a partir de práticas e discursos, sejam eles da elite ou dos segmentos das camadas tidas como populares.
Ao delimitar o final do século XIX e início do XX como marco de profundas mudanças sociais no Brasil, surge nesse momento os primeiros usos da noção de cultura nordestina. Com o surgimento da sociedade burguesa e todas as distinções dos modos de vida que esta proporcionou, apresentando novos padrões de comportamento, nasce então uma “nostalgia pelo retorno a essa ordem social, vista como menos violenta, como mais harmônica e mais justa, e será partilhada por setores das camadas populares e das elites letradas, o que contribui para o encontro entre eles e com esse encontro a emergência da ideia de folclore ou de cultura popular” (p. 44).
As relações entre o regional e o nacional a partir da cultura legitimam-se quando o Estado Nacional assume com políticas econômicas as manifestações identitárias de cada região, sobretudo, se tomarmos como exemplo a partir do Estado Novo na década de 1930 e a criação de órgãos de proteção do patrimônio nacional.
No segundo capítulo aborda os mitos de origem da cultura nordestina interligada à construção da ideia de cultura brasileira quando se pensou um projeto de constituição da nação. Para o mito de origem do folclore ou da cultura nordestinos, e ao que parece o autor não faz distinção dos conceitos, toma como base a produção de folcloristas regionais. Uma bibliografia que aponta as primeiras obras que trataram da cultura nordestina ainda no século XIX, como as de Juvenal Galeno, Couto de Magalhães e Celso de Magalhães.
Os mitos de origem para os estudos de folclore e cultura popular estiveram atrelados a duas tradições influenciadoras nos estudos de folclore nordestino. Uma de inspiração romântica que, segundo o autor, estabeleceu a relação entre a cultura nacional e cultura popular, dando origem ao conceito de povo. No Brasil, Durval Muniz aponta o folclorista Juvenal Galeno como um dos precursores ao fazer uma genealogia dos estudos em torno da cultura nordestina. A segunda tem como representante Silvio Romero, de características positivista e evolucionista. Tais paradigmas tiveram grande recepção ao longo da produção folclórica no Brasil, tendo sido esses intelectuais os primeiros a fazerem uma releitura da bibliografia internacional, adaptando-as às pesquisas locais sobre a cultura do povo.
Tais tradições foram marcantes ao produzirem constante material para a elaboração da noção de cultura nordestina. A temática será retomada e explorada nos capítulos 04 e 05 quando o autor faz um levantamento dos dados biográficos dos produtores dessas obras e as fontes utilizadas como legítimas para a fabricação do folclore.
Os Acontecimentos no capítulo três referem-se aos casos e acasos dos primeiros autores que empregaram a denominação “Nordeste”, “Nordestino”. É importante destacar que o livro de Durval Muniz insere-se no contexto de análise da cultura escrita, por isso, não foge de suas interpretações do processo de fabricação da cultura nordestina, os procedimentos que, através da literatura regional, definiriam temáticas desta cultura.
É no processo de construção das obras e seus usos que o autor se debruça ao analisar os contextos de produção do livro do folclorista Leonardo Mota, publicado em 1921, com o subtítulo “poesia e linguagem do sertão cearense” e que em edição posterior a obra é apresentada como “poesia e linguagem do sertão nordestino”. Enquanto análise histórica, é preciso reconstruir as variações que diferenciam os espaços legíveis, ou seja, as formas discursivas e materiais, as leituras compreendidas como práticas concretas e como procedimento de interpretação7.
Ao tomar como análise a produção da obra de Leonardo Mota, Durval demonstra as variações que implicaram na ideia de nordeste incorporada nas obras dos folcloristas. A mudança do subtítulo deu-se, segundo Albuquerque, após encontros e debates que se firmaram em torno do Centro Regionalista do Nordeste criado no Recife durante a década de 1920 e que passou a disseminar essas questões. Outro autor é Gustavo Barroso e também o sergipano João Ribeiro que adota em livro publicado a denominação “Norte” para se referir ao que seria o espaço da região como um todo e, explicitamente, refira-se a “Nordeste” para designar a área de ocorrência das secas (p. 106).
Deste modo, percebemos o folclore em seu momento de fabricação, como algo inventado pelo próprio folclorista, num processo de (re) invenção, de criação (p.115). Ao citar diversos acontecimentos que dão conta da fabricação do folclore enquanto elemento constituinte de uma cultura nordestina, demonstrada a partir de autores regionalistas, onde definem seu lócus de atuação no espaço nordestino, para Durval Muniz, é “entre os anos 20 e 30 do século passado, que a emergência da ideia da existência de um folclore nordestino, de uma cultura nordestina, se afirma paulatinamente, até se tornar uma verdade inquestionável, um fato do qual ninguém mais escapa” (p. 117). O autor, assim, demonstra “genealogias de atitudes, práticas, ditos e escritos que vão paulatinamente dando forma a este novo objeto para o saber que é: o folclore nordestino, a cultura do Nordeste, mais tarde nomeados de cultura popular nordestina” (p. 117).
No capítulo 4, Os inventores, é lançado um ensaio de prosopografia dos letrados que adotaram os conceitos de folclore e de Nordeste. A prosopografia, segundo Giovanni Levi, ocorre nos casos em que as biografias individuais “ilustram os comportamentos ou as aparências ligadas às condições sociais estatisticamente mais frequentes”.8 Nesse capítulo, podemos perceber os laços de cooperação entre os folcloristas que adotaram a noção de folclore nordestino, ao passo em que fora analisado de modo geral “as atitudes e trajetórias individuais que terminam por configurar uma ação coletiva” (p.120).
O autor contextualiza com base nos estudos foucaultianos dos “pontos de cruzamento […] das redes de relações pessoais, sociais, culturais, políticas e intelectuais” (p. 121), ao buscar nos traços ou dados biográficos uma imagem de conjunto dos folcloristas responsáveis pela fabricação do folclore e cultura nordestinos.
A discussão inicialmente toma como base os quatro autores considerados pioneiros quanto ao tema do folclore do Nordeste: Gustavo Barroso, Leonardo Mota, José Rodrigues de Carvalho e Luís da Câmara Cascudo, buscando traçar um “perfil de conjunto”. Em seguida, confronta com os traços biográficos dos intelectuais que viveram anteriormente a estes citados, interessados pelo popular, que foram posteriormente por eles utilizados e citados como os precursores dos estudos do folclore nordestino, sendo eles Juvenal Galeno, Celso de Magalhães, Silvio Romero e Pereira da Costa. Por último, traça os dados daqueles que deram continuidade ao trabalho, reafirmando e reatualizando o conceito de cultura nordestina, como Ademar Vidal, Théo Brandão, Veríssimo de Melo e Mário Souto Maio, contemporâneos no século XX.
Os inventores da cultura nordestina, os chamados pioneiros têm em comum suas trajetórias o pertencimento às elites sociais e políticas de seus Estados, articulados por vínculos de parentesco e/ou compadrio com as oligarquias dominantes nestes espaços, demonstrando logo em seguida o perfil dos intelectuais inspiradores desse grupo, elementos de contato e de continuidade, seja pela formação seja pelo pertencimento do mesmo grupo social, político e cultural.
Já aqueles que se interessaram pelas formas e matérias de expressão das camadas populares e serviram de inspiração para os pioneiros, Juvenal Galeno, Celso de Magalhães, Silvio Romero e Pereira da Costa, têm como ponto comum o pertencimento à elite agrária decadente, onde em seus perfis elitistas demonstram um interesse inicialmente pelo estudo do popular. O autor coloca que os discípulos ou seguidores dos pioneiros foram os responsáveis por ampliarem, reafirmarem e darem legitimidade ao folclore nordestino, são eles: Ademar Vidal, Théo Brandão, Veríssimo de Melo e Mário Souto Maior. Estes acabaram por assumir a tarefa de elaborar o que seria o folclore e a cultura popular de seus Estados, “ao mesmo tempo em que vão inseri-los no interior da identidade regional nordestina […] estes folcloristas assumirão a tarefa de incorporar o folclore de sua terra natal no interior do que seria a cultura regional ou nacional”. Esse era o contexto de produção do folclore, ao passo que instituições foram criadas com parâmetros de nacionalização de uma cultura integradora9.
Durval Muniz a partir dessa prosopografia busca visualizar o lugar social de produção do discurso acerca da cultura nordestina. O autor ao selecionar os folcloristas limita a fabricação do folclore e da cultura popular nordestina aos espaços de sociabilidades desses intelectuais, particularizando em seus estados, como Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte, Ceará e Alagoas. Talvez isso se justifique pelo acesso às fontes produzidas por eles, em grande parte produtores de uma vasta obra sobre a cultura popular. Apesar disso, o estudo abre possibilidades de se ampliar as discussões com base em novas pesquisas sobre os estados não contemplados ao longo do livro.
No sexto e último capítulo, o autor discorre sobre as trajetórias de alguns agentes populares que contribuíram também para a emergência do que seria a cultura nordestina. Ao visitar essas trajetórias, como a de Leandro Gomes de Barros, considerado o primeiro cordelista nordestino e o primeiro produtor de folhetos a viver do seu ofício, e a de João Martins de Athayde, outro ícone da poesia popular, ao montar uma tipografia e imprimir seus próprios versos, o autor considera-os parte de uma importante “indústria de folhetos”, resultante do processo de mudança capitalista emergente na sociedade do final do século XIX e início do XX, onde aproveitaram as oportunidades mercantis da cultura, para sua subsistência. A prática desses homens, que não faziam parte da elite decadente, demonstra, segundo o autor, como sendo “atividades que criam o novo, utilizando-se de e remanejando um arquivo de matérias e formas de expressão que conhecem e que está à disposição desses agentes culturais, a partir do aproveitamento das condições novas oferecidas pela sociedade urbana de mercado” (p. 201).
Deste modo, são ressignificados a própria noção de “popular” e “povo” que, para Albuquerque, acaba se tornando complexa quando se leva em conta somente o público para o qual eram dirigidos os folhetos ou cordéis, seus preços, temas, mas ao adotar, por exemplo, a condição ou origem social de seus produtores e/ou editores, “a noção de popular já não será tão adequado” (p. 217). Para o autor, isso é um reflexo da emergência de uma classe média baixa “fruto do declínio de setores das antigas elites rurais ou da ascensão de dados indivíduos das camadas populares […] nomeadas de tradicionais, folclóricas […] que gozarão de maior espaço de ação […] onde suas habilidades estarão voltadas para o sustento (p. 218), como é o caso de Leandro Gomes de Barros, João Martins de Athayde e tantos outros de que não se tem um estudo específico.
Por fim, ao concluir um trabalho que deixa em aberto várias chaves de leitura e pesquisa, o autor lança uma crítica ferrenha aos estudiosos da cultura popular, sejam eles acadêmicos ou os próprios folcloristas. Durval Muniz critica o que ele chama de “síndrome de resgate” existente nos estudos de cultura popular ou organizações de grupos e manifestações classificadas como folclóricas, onde imperam a noção de resgatar das tradições, sem ao menos se fazer a crítica à volta ao passado através de manifestações populares no presente, tidas e entendidas por aquele como seriam praticadas anteriormente. A prática dessas manifestações no presente, tomada como a possibilidade de retorno do tempo, para Durval Muniz, é o principal mito com que opera essa síndrome.
Embora a crítica deste estudo esteja voltada às interpretações que se fazem do folclore e da cultura popular nordestina, o autor as reconhece como importante, pois permite a reflexão de todo o processo de fabricação da cultura, das práticas e operações as quais dão origem e significados e, consequentemente, implicam diversas formas de seu uso. Como último exemplo, podemos retornar ao rei do baião, como um de muitos que ao longo do século XX tornou-se um propagandeador da cultura nordestina fabricada pelos pioneiros e seguidores apontados ao longo da Feira dos mitos. Um livro indicado para os estudos sobre cultura escrita, sobretudo, do ponto de vista teórico-metodológica, onde o autor refaz os caminhos da pesquisa e seus métodos de análise, é fundamental para repensarmos os conceitos em torno do Nordeste. De maneira impactante, põem em questão estereótipos, “verdades” construídas.
Notas
- ALMEIDA, Onildo. A Feira de Caruaru In: Luiz Gonzaga. LP, 1957.
- ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. A feira dos mitos: a fabricação do folclore e da cultura popular (nordeste 1920 – 1950). São Paulo: Intermeios, 2013, 246 p.
- O Concurso instituído no ano de 1959 foi idealizado com o propósito de estimular a produção de conhecimento científico sobre os diversos temas do folclore e da cultura popular. Lançado anualmente por edital confere ao primeiro e segundo colocados prêmios pagos em dinheiro, prevendo-se, ainda, até três menções honrosas, selecionadas por comissão de especialistas indicados pelo Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular. Disponível em: < http://www.cnfcp.gov.br/interna.php?ID_Secao=52> Acesso em: 29 junh. 2014.
- ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. Falas de astúcia e de angústia: a seca no imaginário nordestino – de problema à solução (1877 – 1920). Campinas: Unicamp, 1988 (Dissertação de Mestrado em História); A invenção do Nordeste e outras artes. 5 ed. São Paulo: Cortez; Recife: Massangana, 2011.
- Jaques Derrida, Gilles Deleuze, Michel Foucault, Michel de Certeau, Reinhart Koselleck e outros.
- CHARTIER, Roger. A ordem dos livros: leitores, autores e bibliotecas na Europa entre os séculos XIV e XVIII. Brasília: Editora UNB, 1994.
- LEVI, Giovanni. Usos da Biografia. In: FERREIRA, Marieta de Morais; AMADO, Janaína (Orgs.). Usos e abusos da História oral. 8 ed. Rio de Janeiro, Editora FGV, 2006, p. 168-169.
- Para mais detalhes sobre o processo de institucionalização dos folcloristas, cf. ORTIZ, Renato. Cultura Popular: Românticos e Folcloristas. Editora Olho d’água, S.D; VILHENA, Luís Rodolfo. Projeto e Missão: o movimento folclórico brasileiro (1947–1964). Rio de Janeiro: FUNARTE: Fundação Getúlio Vargas, 1997.
Valério Rosa de Negreiros – Mestrando em História Social. Universidade Federal Fluminense (UFF). Niterói. Rio de Janeiro. Brasil. valerionegreiros@yahoo.com.br.
ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. A feira dos mitos: a fabricação do folclore e da cultura popular (nordeste 1920 – 1950). São Paulo: Intermeios, 2013, 246 p. Resenha de: NEGREIROS, Valério Rosa de. Outros Tempos, São Luís, v.11, n.18, p.318-324, 2014. Acessar publicação original. [IF].
Culturas e Linguagens em folhetos religiosos do Nordeste: inter-relações escritura, oralidade, gestualidade, visualidade – BRITO (PL)
O livro Culturas e linguagens em folhetos religiosos do Nordeste, do professor baiano Gilmário Moreira Brito, publicado em 2009, mas apresentado primeiramente em 2001 como tese de Doutorado na PUC de São Paulo, é uma valiosa contribuição ao estudo da cultura popular do Nordeste. O autor, em sua longa e acurada pesquisa, rastreia a construção da religiosidade do povo nordestino como construção histórica, procurando identificar as tensões nas relações de encontro/confronto entre poder e cultura, que envolvem os diversos grupos sociais em disputas por princípios e valores religiosos que ganham significados sociopolíticos e culturais. Leia Mais
Futebol e colonialismo: corpo e cultura popular em Moçambique | Nuno Domingos
Começo pelo autor, pouco conhecido no meio acadêmico brasileiro. Nuno Domingos possui uma trajetória que demonstra uma curiosidade intelectual diversificada. Licenciado e mestre em sociologia pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, desenvolveu importantes pesquisas a respeito das políticas sociais do Estado Novo Português. Sua dissertação de mestrado sobre a Companhia Portuguesa de Ópera do Trindade foi um marco nas pesquisas a respeito da relação entre Estado e sociedade nos estudos do período salazarista. Atualmente, no pós-doutorado do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, desenvolve pesquisa na área da antropologia da alimentação sobre a produção e os usos sociais do vinho português.
Apesar da pluralidade temática, é possível traçar uma linha teórico/ metodológica que perpassa suas investigações. A sociologia e a antropologia histórica são referências assíduas nos textos de Nuno Domingos, assim como o estudo de práticas culturais com o desenvolvimento de investigações que abarquem temáticas sobre as práticas corporais e as culturas populares. São exatamente dentro desse escopo que suas pesquisas a respeito das práticas desportivas, em Portugal e em Moçambique, podem ser inseridas, assim como o livro Futebol e colonialismo: corpo e cultura popular em Moçambique.
Publicado em abril de 2012, Futebol e colonialismo é o resultado do doutorado defendido pelo autor em antropologia social na School of Oriental and African Studies da Universidade de Londres, com a tese Football in Colonial Lourenço Marques, Bodily Practices and Social Rituals. A mudança do título da tese em relação ao do livro provavelmente estão relacionadas à dificuldade em localizar espacialmente Lourenço Marques – atual Maputo, capital de Moçambique – e o diminuto número de pesquisas sobre cultura popular numa perspectiva histórica, especialmente para espaços urbanos em África. No entanto, essa transformação produziu um descompasso entre nome e conteúdo. Efetivamente, o recorte espacial da pesquisa centra-se na cidade de Lourenço Marques e apenas nela. Ou seja, um leitor desprevenido que resolva ler o livro com o intuito de compreender numa perspectiva nacional acerca do futebol em Moçambique, certamente não será contemplado.
Algo semelhante se encontra na mudança do subtítulo de “social rituals” para “cultura popular”. Mais uma vez a transformação do enunciado faz com que ocorra um descompasso em relação ao seu conteúdo. Efetivamente, Nuno Domingos não aborda o futebol através de um olhar baseado num arcabouço teórico da “cultura popular”. Em determinados momentos suas preocupações estão diretamente relacionadas com a prática do esporte pelos habitantes do subúrbio de Lourenço Marques, local conhecido como a “cidade de caniço”,[1] o processo de circulação das práticas desportivas entre o caniço e o cimento, as transformações dessas práticas provocadas por esse processo ou os mecanismos de poder elaborados para controlar o futebol desenvolvido nas áreas negras da cidade. Porém, não acredito que estes tópicos, tão importantes para as pesquisas que trabalham com o conceito de cultura popular, sejam a preocupação central do livro. Portanto, o título do livro não condiz completamente com o seu teor.
Passo, então, para o interior de Futebol e Colonialismo. Primeiramente uma análise da própria estrutura do livro. A partir dela será possível perceber algumas das escolhas do autor e como, apesar dos problemas listados anteriormente, a obra é um exemplo de pesquisa que mescla com maestria um rico arcabouço teórico com uma minuciosa pesquisa empírica.
Dividido em doze capítulos, cada um deles com diversos subtítulos (excetuando-se o décimo segundo que é uma conclusão da obra), acrescido de um prefácio do antropólogo Harry G. West, a leitura de Futebol e Colonialismo vai se tornando mais e mais prazerosa com o avançar dos capítulos. Esta sensação pode ser explicada pela escolha de manter uma estrutura típica de teses de doutorado para a publicação. Apesar de não ficar explicito, os três primeiros capítulos são puramente teóricos. Sua função aqui é evidente: é uma apresentação das bases acadêmicos de onde parte Nuno Domingos. Para ser mais exato, no primeiro capítulo (“Da etnografia do futebol suburbano em Lourenço Marques, por José Craveirinha, a uma ciência das obras”) o autor nos oferece as diferentes dimensões do problema que pretende explorar. Para dar o pontapé inicial na investigação, Nuno Domingos utiliza-se do que chamou de uma “etnografia dos subúrbios laurentino” produzida pelo poeta e jornalista moçambicano José Craveirinha, em dois textos publicados em 1955 no jornal O Brado Africano. Neles o futebol aparecia como tema central. A intenção de Craveirinha era a de descrever o choque cultural entre um esporte inventado por europeus e a reapropriação dos jogadores suburbanos africanos. O humor e o improviso, segundo o poeta, seriam características intrínsecas desse jogo futebolístico da periferia, e a valorização desses aspectos estava relacionada à contra argumentação combativa das “imagens do africano enquanto ser incivilizado, grosseiro e instintivo, forte, mas pouco inteligente” (p.22).
Desse encontro nem um pouco sereno e harmonioso, outras questões fundamentais para a investigação são colocadas, como o de pensar a multiplicidade das relações entre o colonizador e o colonizado, os espaços segregados e as trocas desiguais existentes nas cidades coloniais e as práticas culturais, assim como os gestos e movimentos dos jogadores, nesses espaços como locais de reivindicação, cooperação, conflitos e formas de ver o mundo. O ineditismo de se investigar o esporte em contextos coloniais africanos é justificado por Nuno Domingos exatamente como um esforço para se entender esses processos como algo que vai além da dominação hegemônicam sobre os colonizados, sendo possível evidenciar os subordinados como agentes históricos do processo de urbanização na África oriental portuguesa.
O que designei como sendo a primeira parte do livro se encerra com o segundo e terceiro capítulos, onde é apresentado o cardápio do arcabouço teórico usado por Nuno Domingos em sua pesquisa. A seleção feita pelo autor vai de encontro a sua formação nas ciências sociais. Sinceramente, não possuo condições para uma análise da maneira como Nuno Domingos utiliza a vasta bibliografia de cunho teórico. Posso apenas salientar que consiste fundamentalmente da obra de três autores: Erving Goffman, Norbert Elias e Pierre Bourdieu. Novamente, me sinto pouco a vontade para explorar os conceitos desses autores e sua utilização na obra de Nuno Domingos, porém cabe aqui listar alguns, como o de “ordem da interação” (Goffman), de “processo de desportivização” e de “padrão de jogo” (Elias) e de “habitus” (Bourdieu). Este último conceito está diretamente relacionado a uma preocupação do autor em pensar o drible (ou o improviso, para José Craveirinha) como um repertório motor que é produzido pela interação dos corpos no jogo e que se constitui como um reservatório de conhecimento. Nesse sentido, o futebol aparece como algo para além dos jogadores, ao mesmo tempo em que é “Produto de uma condição urbana, a malícia era a história feita corpo.” (p. 296). Com estes quatro grandes conceitos, temas como os da interação entre o futebol e o restante da sociedade, entre os jogadores e o público, das performances dos jogadores e dos espectadores, a construção de laços sociais, de identidades e de pertencimento, tornam-se problemas para serem explorados pelas ciências sociais.
Na segunda parte do livro, não pretendo abordar separadamente cada capítulo. Isso seria dispendioso e, a meu ver, improdutivo. Para explorar este seguimento tentarei fazer uma junção de características gerais que podem ser encontradas ao longo da obra. É exatamente dos capítulos quatro ao décimo primeiro que Nuno Domingos inicia sua análise propriamente dita do futebol e do colonialismo em Lourenço Marques. Se, na primeira parte temos um bombardeio de teoria, nesta segunda parte esta teoria ganha forma – e crítica – com a análise de um amplo corpo documental. Essa vastidão de fontes – proveniente de diferentes locais e de variada natureza, como a documentação administrativa existente Arquivo Histórico de Moçambique, no Arquivo do Conselho Provincial de Educação Física de Moçambique ou no Arquivo Histórico Ultramarino, a imprensa periódica, quase toda localizada na Biblioteca Nacional de Portugal, e um bom uso de entrevistas que realizou com personalidades do futebol moçambicano – dão a nota principal neste momento.
A soma do arcabouço teórico com a documentação produziu uma segunda parte que pode ser dividida em três tópicos: um primeiro tópico, representado pelos capítulos quatro e cinco, onde Nuno Domingos basicamente apresenta Lourenço Marques e a relação entre o Estado Novo português, a construção da cidade no espaço colonial e o racismo imbuído nos projetos de cidadania para a população africana subordinada ao poderio português e a influência dessas questões sobre o corpo no jogo de futebol. O segundo tópico, que corresponde ao momento auge da obra, vai do capítulo seis até o dez, onde o autor produz uma análise do futebol nos subúrbios de Lourenço Marques. Por último, no capítulo onze se encontra uma interpretação bastante frutífera sobre as narrativas a respeito do futebol e como esse falar sobre o esporte – e, principalmente, sobre os clubes e os jogadores – está conectado a produção de representações e noções de pertencimento.
A escolha pela elaboração de dois capítulos, no início dessa segunda parte, que possuem o claro objetivo de produzir uma apresentação da paisagem social do colonialismo português na África, as características da cidade de Lourenço Marques e as noções do Estado Novo português com relação ao esporte, possuem alguns problemas. Num nível mais abrangente, relacionado a própria elaboração da pesquisa, essa contextualização a priori corre o risco de entender o contexto como algo pré-determinado e modulante – em alguns extremos determinante – dos processos e das ações dos grupos e indivíduos que Nuno Domingo pretende estudar. No entanto, pelo menos no capítulo quatro (“Uma desportivização colonial”) o autor consegue escapar desse problema. Longe de produzir um contexto amplo sobre o colonialismo português em Moçambique com caixinhas explicativas onde as problematizações dos demais capítulos deveriam ser cuidadosamente guardadas, a explanação detalhada das características de Lourenço Marques e do sistema colonial português funcionam como ferramentas para aqueles leitores que desconhecem o tema e o espaço geográfico da pesquisa.
Infelizmente não podemos falar a mesma coisa para o capítulo seguinte (“O corpo e a cidade do Estado Novo”). Ao produzir uma análise do projeto educativo do Estado Novo para controlar e adestrar o “corpo” dos atletas que se encontravam sob escopo desse poder, Nuno Domingos deixa de se perguntar em que medida – como, de que maneira e com que intensidade – os projetos e as políticas elaboradas na metrópole foram implementadas em Moçambique. É interessante constatar que sua problematização a respeito dos múltiplos caminhos que a relação metrópole e colônia esta longe de ser simplista. Isso é evidente quando afirma que o futebol acabou por ser um interiorizador de habitus vistos como nocivos a lógica de ordenamento do corpo dos atletas defendida pelo Estado e jogadores dos subúrbios de Lourenço Marques, com seus dribles e sua malícia, incapazes de produzirem manifestações políticas abertas tiveram em seus gestos corpóreos no futebol a possibilidade de questionamento das lógicas totalizantes do Estado.
No segundo tópico dessa parte, Nuno Domingos aprofunda grandes questões em lugares pequenos. Assim, o futebol praticado nos subúrbios, as associações desportivas criadas pela população africana e as relações dessa população e das formas organizativas criadas por ela com a cidade e o Estado colonial, são destrinchados de maneira detalhada ao longo dos capítulos seis até o dez.
Devido a variedade e a riqueza de temas que vão sendo colocados e concluídos, é muito difícil selecionar o que enfocar nestes capítulos. Porém, alguns pontos chamaram minha atenção. No capítulo seis (“O futebol no subúrbio de Lourenço Marques”), por exemplo, ao estudar o processo de disseminação das práticas desportivas em Lourenço Marques, Nuno Domingos constata que, apesar da presença colonial portuguesa, a esfera de influência nos subúrbios ocorreu principalmente entre Lourenço Marques e a África do Sul, especialmente por conta da circulação de trabalhadores moçambicanos nas minas sul-africanas. Ou seja, existia uma espécie de autonomia da influência do colonialismo português, pelo menos até a década de 1930, sobre as práticas desportivas e a construção do associativismo desportivo entre os africanos viventes em Lourenço Marques (“A consolidação de redes de relações associativas locais ligadas às principais cidades sul-africanas tornar-se-ia a causa maior da institucionalização da sua prática.”, p. 121).
No capítulo sete (“Uma ordem da interação suburbana”) as trocas simbólicas que se materializavam em performances, mais especificamente a questão da malícia na prática do futebol, é o problema a ser enfrentado. Nuno Domingos esforça-se com sucesso para fugir de análises essencialistas e coloca as dinâmicas do futebol que não seguia as regras e que era realizado nos terrenos baldios do subúrbio numa perspectiva dinâmica que respondia “a convenções interaccionais e a uma economia de troca simbólica, cuja interpretação possibilitava a leitura de um processo social em curso, nomeadamente as condições de formação de uma experiência urbana sob o domínio colonial português” (p. 145). Nessa perspectiva, a malícia deixa de ser algo naturalizado como intrinsicamente popular e/ou africano para ser entendida como um capital performativo e simbólico “produto das condições de produção de uma prática desportiva socialmente situada, que estabelecia uma relação entre os jogadores e o público. Os gestos e movimentos mais valorizados no repertório motor dos atletas representavam as células básicas de uma economia da troca simbólica que consagrava formas de agir e de ver o mundo” (p.167).
Exatamente para conseguir pensar a malícia enquanto capital simbólico e produto de trocas simbólicas baseadas em diferentes estratégias que incluíam jogadores e público, que Nuno Domingos regressa ao processo de construção do subúrbio de Lourenço Marques no capítulo oito (“A construção social da malícia e o subúrbio de Lourenço Marques”). Ou seja, seu objetivo é o de tentar dar o salto de uma análise da malícia presente nos jogos do subúrbio para a construção de uma comunidade na periferia de Lourenço Marques. Para isso, Nuno Domingos elabora o que chamou de “genealogia da experiência urbana no subúrbio de Lourenço Marques” (p.174), evidenciando como a construção dessa periferia – fisicamente e identitariamente – esteve inseparável da necessidade colonial em explorar a mão-de-obra africana e das restrições a mobilidade dos africanos com a construção, melhor dizendo, com o desejo da construção de bairros segregados para negros e brancos. Ainda que produza uma bela reflexão a respeito da precarização da existência numa situação urbana colonial para a população africana, determinadas afirmações e/ou conclusões carecem de confirmação mais detalhada, especialmente porque suas principais fontes neste capítulo são as portarias administrativas de regulamentação do espaço urbano e o livro do antropólogo colonial Antônio Rita-Ferreira, Os Africanos de Lourenço Marques, da década de 1960, não sendo capaz de refletir a respeito dos anseios, desejos e projetos desses trabalhadores urbanos africanos. Nesse sentido, ao evidenciar a construção de uma “cidade africana” dentro de Lourenço Marques, erguida pela iniciativa local e relativamente independente para edificar espaços próprios, assim como uma singular organização sociocultural, Nuno Domingos dá preferencia em iluminar os interesses coloniais que se “beneficiaram desta auto-organização” produzida por um aglomerado de mão-de-obra que diminuía os custos de sua reprodução e “adequava-se às próprias carências do modelo de exploração colonial português” (p.188).
Essas características não perduraram todo o período em que Lourenço Marques esteve sob regime colonial, e Nuno Domingos percebe uma transformação significativa no trato do Estado a respeito da “cidade africana” a partir da década de 1950. Contudo, nesta análise sobre o subúrbio laurentino falta um ponto importante: o dos próprios africanos suburbanos. Afinal, a abordagem de Nuno Domingos nas relações hierárquicas sócio- raciais de dominação estipuladas pelo colonialismo, evidentemente fundamentais para se entender esse processo, fazem com que o mesmo não explore até que ponto, mesmo com o governo colonial português se beneficiando dessa auto-organização, a população africana dos subúrbios não tenha agido tão pacificamente nesse processo e, inclusive, tenha defendido esse aspecto de desregulamentação do espaço como um mecanismo de liberdade capaz de subverter as exigências feitas a essa população quando se deslocava para a cidade de cimento. Como o próprio Nuno Domingos salienta: a “permanência de práticas coercivas na captação da força de trabalho […] gerou uma enorme desconfiança nos trabalhadores sobre o vínculo laboral” (p.189). Com isso valeria mais apena para o trabalhador africano no espaço urbano realizar biscates sem a existência de laços legais de trabalho e, assim, correr o risco de ser penalizado. Ou seja, há uma possibilidade aqui para se pensar o comportamento desses indivíduos como estratégias para minorar a desequilibrada relação de poder e a ilegalidade de suas ações – tanto no mercado de trabalho como na própria construção de um espaço criador de um habitus – seria uma forma de responder a uma legalidade em que não se sentiam representados.
O capítulo seguinte (“As práticas feiticistas como elemento de uma economia simbólica”) é um dos mais interessantes. A ideia de Nuno Domingos é de demonstrar como dentro da economia simbólica do futebol suburbano, a feitiçaria possui um papel importante na capacidade de “enriquecimento”. Chamado de “cuchecuche”, “cuxo-cuxo” ou simplesmente de “vovô”, as práticas funcionava como um capital simbólico fundamental para se pensar a capacidade de sucesso ou não de uma equipe e de um jogador específico durante uma parte. A referência ao vovô, que poderia ser o indivíduo responsável por fazer a “preparação” do feitiço ou a prática em si, só foi possível de ser analisada pelo autor graças às inúmeras entrevistas que o mesmo realizou durante seu trabalho de campo em Lourenço Marques. Vinculando a “tradições da África ocidental” dos “espíritos dos mortos” (p.206), o vovô é analisado como mais um demonstrativo de desafio aos intuitos da administração colonial com seu trabalho missionário de destruição dos costumes locais. Sendo as cidades pensadas como principais propagadoras de um modus de vida europeu civilizado, a proximidade dessas práticas a estes centros produziu embaraços, ao mesmo tempo em que corrobora a ideia de Nuno Domingos de pensar o movimento do corpo do jogador suburbano não como uma resposta a ideologias da ginástica moderna, da igreja católica ou do fair-play, mas a “uma espécie de libido mágica, assente em tradições partilhadas e transformadas” (p.226).
No último capítulo da segunda parte (“Doçura e velocidade: a tática como desencantamento do mundo”), Nuno Domingo produz uma reflexão de como o capital simbólico expresso pelo corpo dos jogadores e produzido por eles no subúrbio de Lourenço Marques entrou em conflito com um processo, que já vinha ocorrendo com a institucionalização dos clubes suburbanos, mas que pode ser sentido nos movimentos específicos daquele habitus motor com a implementação de uma “mentalidade tática”. Como o autor explica:
Este condicionamento do corpo sugeria […] a aplicação ao jogo de um conjunto de princípios de ação modernos e de valores sociais impostos em Lourenço Marques pelo colonialismo: sujeitava o jogador a uma cuidada divisão social do trabalho dentro do campo, a uma especialização de funções limitadora da realização dos seus gestos e movimentos, proporcionando uma experiência distinta de deslocação no espaço e uma relação singular com o tempo. (p.232)
A intenção não era de prolongar-me tanto nos capítulos especificamente. Conforme a escrita fluiu, foi se tornando impossível não aprofundar de maneira pormenorizada os diversos problemas que a cada momento Nuno Domingos levanta. Essa minha impossibilidade esta longe de ser algo apenas pessoal. Ela revela como tenho em mãos uma obra vasta, com uma temática muito bem trabalhada e uma ferramenta fundamental para qualquer trabalho futuro a respeito da história do futebol, da relação entre Estado e sociedade numa realidade colonial, da experiência cotidiana vivida no colonialismo português em Moçambique, da interação dinâmica entre tradição e modernidade e da potencialidade do desporto para moldar as subjetividades humanas.
Um detalhe final: tive a oportunidade de jogar futebol com Nuno Domingos no ano passado. Bastante habilidoso, depois de ler seu livro começo a imaginar que o autor soube – ou já sabia? – incorporar um pouco da sabedoria maliciosa do subúrbio de Lourenço Marques.
Nota
1. Com o crescimento da cidade de Lourenço Marques a partir de meados do início do século XX, se construiu uma divisão espacial sócio- racial entre a chamada “cidade de cimento”, ocupada majoritariamente pelos brancos, mas também por chineses e indianos, e a “cidade de caniço”, ocupada pela população negra.
Matheus Serva Pereira.
DOMINGOS, Nuno. Futebol e colonialismo: corpo e cultura popular em Moçambique. Lisboa: ICS; Imprensa de Ciências Sociais, 2012. Resenha de: PEREIRA, Matheus Serva. Cantareira. Niterói, n.18, p. 119- 125, jan./jun., 2013. Acessar publicação original [DR]
Caipira sim, trouxa não. Representações da cultura popular no cinema de Mazzaropi | Soleni B. Fressato
O típico caipira brasileiro foi imortalizado nas telas do cinema pelo Jeca Tatu de Amácio Mazzaropi. Sucesso nas bilheterias dos cinemas brasileiros, as aventuras e desventuras de um caipira ingênuo e ao mesmo tempo malicioso e debochado divertiram numerosas platéias por quase três décadas. Mazzaropi produziu 32 películas entre os anos de 1952 e 1980, atuando como ator, roteirista e produtor. Seus primeiros filmes foram lançados pela Vera Cruz e posteriormente, em 1958, Mazzaropi fundou sua própria produtora – a PAM Filmes, tendo como carro chefe das suas produções o personagem do caipira Jeca, representado seja no contexto urbano ou rural. Não era a primeira vez que a figura do caipira era apropriada e recriada pelas artes; já fazia parte do imaginário brasileiro, por exemplo, o Jeca Tatu criado por Monteiro Lobato – que apesar de ser homônimo ao caipira de Mazzaropi, possuía características distintivas – e tantos outros “caipiras” que fizeram sucesso nos programas humorísticos radiofônicos.
A popularidade do Jeca nas telonas não significou um reconhecimento da crítica cinematográfica. Os filmes de Mazzaropi eram taxados como superficiais, com pouco valor estético e repleto de fórmulas repetitivas e piegas. Além disso, a representação de valores rurais em um contexto histórico de valorização da urbanização e da modernização brasileira colidiu com as percepções e interesses desenvolvimentistas de alguns setores da sociedade que tinham o anseio de extirpar a “cultura atrasada” dos caipiras. A falta de prestígio também é perceptível nas reflexões acadêmicas que ora resumiram-se ao ataque ao conservadorismo das produções de Mazzaropi, ora optaram pelo simples desprezo e ignorância.
Buscando romper com os silêncios e ponderações reducionistas em torno das películas de Mazzaropi, foi lançado recentemente o livro Caipira sim, trouxa não. Representações da cultura popular no cinema de Mazzaropi, fruto da tese de doutorado da historiadora e socióloga Soleni Biscouto Fressato. A autora, que é editora da revista eletrônica O Olho da História, desenvolve suas pesquisas em torno da temática cinema-história, abordando as obras cinematográficas como uma forma de representação do real e instrumento de análise sócio- históricas. O seu objetivo é entender como está representada a cultura popular rural no cinema de Mazzaropi e as relações que são estabelecidas com outras esferas socioculturais.
Soleni não recusa ou foge do conceito de cultura popular: ela o historiciza e o problematiza. Sua abordagem teórica, sustentada pelas reflexões introduzidas por Bakhtin em Cultura Popular na Idade Média, identifica a cultura de maneira plural e heterogênea. No processo de circularidade cultural – conceito chave para a interpretação da autora – as práticas culturais populares e hegemônicas se relacionam, se influenciam e ao mesmo tempo se contradizem. Há um fluxo de permeabilidade entre as culturas, o que impede a definição de cultura popular de maneira simplista, orientada pelo signo da pureza cultural. A cultura popular pode ser compreendida como espaço de contestação e resistência, ao mesmo tempo em que há concordância e subordinação.
Um dos meios de questionar e reagir às normas dominantes é a utilização do cômico e da paródia. Tais expressões foram exploradas por Mazzaropi ao representar as dimensões da cultura popular caipira como espaços de sátira e crítica às estruturas socioculturais dominantes. A comicidade não é apresentada apenas como uma ingênua válvula de escape das vicissitudes cotidianas. Torna-se, no cinema de Mazzaropi, uma forma sútil de crítica social.
É importante pontuar que em nenhum momento Soleni defende um suposto caráter revolucionário de Mazzaropi, apenas identifica que, por trás de posturas conservadoras, a filmografia pode apontar inúmeras contradições sociais nas quais estavam (e estão ainda) inseridos os homens do campo. Um pesquisador que tem a proposta de utilizar o cinema como forma de compreender as representações e discursos sobre a realidade deve analisar as imagens para além da intencionalidade do diretor e da produção técnica, apreendendo o dizível e o não dizível. O cinema, ao fazer uma contra- análise da sociedade, revela muito além do que inicialmente era a proposta da película, pois a arte nunca perde o vínculo com o real. Além de observar e descrever os aspectos do cotidiano caipira e os elementos centrais explorados por Mazzaropi na construção dos enredos e personagens, a autora averiguou, por exemplo, os silêncios, ausências e deturpações presentes nas obras.
Soleni analisa especialmente quatro películas: Chico Fumaça (1958), Chofer de praça (1958), Jeca Tatu (1959) e Tristeza do Jeca (1961). Sua abordagem, entretanto, não se deteve apenas a estas, uma vez que a autora trabalha com o conjunto das produções de Mazzaropi, buscando contextualizá-las historicamente. A análise do contexto social do país permite ao leitor perceber como o discurso das décadas de 50 e 60 do desenvolvimentismo nacionalista, que pregava a valorização da industrialização, do trabalho, da cidade e do progresso, se contrapunha totalmente ao caipira preguiçoso de Mazzaropi, considerado pela intelectualidade da época um símbolo do atraso e da ignorância.
A problemática da tradição versus modernidade – ainda tão atual! – foi abordada expressivamente nos filmes de Mazzaropi. A modernidade, que proporcionou a transformação do modo de vida caipira a partir do avanço das práticas e organizações capitalistas, não encantou o caipira. A autora aponta que, na cinematografia de Mazzaropi, quanto mais o país tornava-se urbano e desenvolvido, mais caipira ficava o personagem Jeca Tatu. A oposição cidade versus campo também foi bastante recorrente. Mesmo nos espaço das grandes cidades, o Jeca não se adaptava e os seus gestos, trejeitos e formas de se comportar destoavam dessa nova maneira de viver. A sua inaptidão aos novos códigos suscitava nos espectadores muitos risos e gargalhadas.
Mazzaropi tinha o compromisso de divertir e entreter o seu público. Queria fazer um cinema de fácil compreensão para os brasileiros. Contava histórias nas quais muitos espectadores poderiam se identificar, já que os problemas da modernidade estavam chegando para muitos migrantes que tiveram que abandonar o campo e ir para as cidades.
Caipira sim, trouxa não apresenta ainda o contexto da produção cinematográfica da época, destacando o surgimento e o declínio da Vera Cruz, a fundação da Atlântida e a história da chanchada no Brasil. Por fim, a autora traça comparações entre o Cinema Novo e as produções de Mazzaropi. A proposta do Cinema Novo era promover a reflexão crítica com seriedade a partir de películas ricas em simbologias e elementos de contestação. Tal concepção acreditava que outras formas de fazer cinema, como o cinema de Mazzaropi, eram apenas formas de alienação. Soleni ainda discorre sobre as diferentes visões sobre o campesinato expressas nos filmes de Glauber Rocha e de Mazzaropi, comentando as diferentes maneiras de tecer críticas sociais a partir do uso do cinema.
A pesquisa de Soleni Biscouto Fressato pode abrir caminhos para outros estudos e reflexões sobre as obras de Mazzaropi, principalmente aquelas que se proponham a realizar uma análise sobre a recepção dos seus filmes – aspecto não aprofundado no livro. Acredito, contudo, que a maior contribuição da obra – além de resgatar o cinema de Mazzaropi para as novas gerações que o desconhecem – se insere na utilização do cinema como uma ferramenta de compreensão das contradições da realidade social. Soleni defende que o cinema age como um pesquisador inconsciente das diversas dimensões sociais, construindo até mesmo hipóteses sobre determinados aspectos do real. Deste modo, os estudiosos que ignoram ou desprezam as interpretações cinematográficas desconhecem o grande potencial analítico do cinema.
Ao terminar a leitura do livro percebo que o Brasil do Jeca Tatu de Mazzaropi não está tão distante do Brasil contemporâneo. Um Brasil no qual o discurso do progresso e da modernização ainda impera. Um Brasil repleto de Jecas expropriados que sobrevivem precariamente em um espaço rural cada vez mais mecanizado, ou que têm de ir para as cidades nas quais não existem nem ao menos os empregos de Chofer de praça. Jecas que agora precisam de Bolsa Família para viver – e que milagrosamente sobrevivem. Jecas que criam (e recriarão) suas formas de resistir, se adaptar e reagir sem abdicar totalmente de suas manifestações culturais. Cientistas sociais: aprendei com os nossos Jecas, que apesar de tudo, não abandonaram o riso, o deboche e a crítica.
Catarina Cerqueira de Freitas Santos – Mestranda em Ciências Sociais pela Universidade Federal da Bahia. E-mail: catarinacerqueira@yahoo.com.br
FRESSATO, Soleni Biscouto. Caipira sim, trouxa não. Representações da cultura popular no cinema de Mazzaropi. Resenha de: SANTOS, Catarina Cerqueira de Freitas. O deboche caipira nas telas do cinema em “Caipira sim, trouxa não”. Aedos. Porto Alegre, v.4, n.10, p.169-172, jan. / jul., 2012. Acessar publicação original [DR]
From Stonehenge to las Vegas; Archaeolog y as Popular Culture – HOLTORF (RHAA)
HOLTORF, Cornelius. From Stonehenge to las Vegas; Archaeolog y as Popular Culture. Oxford: Altamira Press, 2005. 185p. Resenha de: ZARANKIN, Andrés. Revista de História da Arte e Arqueologia, Campinas, n.6, p.176-177, dez., 2006.
Por que la popularidad y la atracción que la arqueología ejerce en nuestra sociedad? Esa es una de las preguntas de partida del libro compuesto por un Prologo y 9 capítulos, que le permiten a Holtorf un recorrido por algunas cuestiones centrales de la practica arqueológica, y los estudios que tienen eje en el pasado y sus vestigios. Sus propuestas resultan polémicas, pero al mismo tiempo permiten al lector reflexionar de una manera diferente sobre el tema. Por este motivo este trabajo resulta de interés especial para estudiantes y profesores en arqueología o antropología así como a profesionales que trabajan con patrimonio.
Holtorf, ya en el prologo nos muestra que estamos ante un libro diferente, que se opone a los convencionalismos a los que estamos acostumbrados en cualquier trabajo académico. En la misma el autor efectúa una auto-presentación que permitirá, según él, entender quién es, y por lo tanto la naturaleza de su trabajo.
Dónde nació, sus estudios, sus profesores, así como algunos aspectos de su vida sentimental, dan a la obra un toque informal y diferente. Al mismo tiempo Holtorf elige escribir su trabajo en primera persona del singular.
De esta manera queda claro que no intenta ofrecer una visión escencialista y verdadera del problema tratado, sino por el contrario, su enfoque particular.
Precisamente la estética y la organización del libro también son novedosas. Además de fotos de obras de arte, de sus vacaciones, de casinos en las vegas o dibujos hechos por él, utiliza continuamente para reforzar sus argumentos comparaciones y ejemplos que a simple vista poco tienen que ver con la arqueología (Zoológicos, parques de diversiones, casinos, biología, cine, TV entre otros). También cada capitulo posee una o más ideas centrales (o tesis) que Holtorf destaca, incluso colocándolas en apartados.
A lo largo de los primeros 7 capítulos – (1) Archaeology as popular culture, (2) Below the surface, (3) The archaeologist in the field, (4) Interpreting traces, (5) Past meanings, (6) Contemporaneous Meanings, (7) Authenticy –, Holtorf desarrolla una discusión general sobre algunos conceptos centrales de la arqueología y su practica. A través de la misma cuestiona algunos de los principios sagrados de la disciplina, tales como que es le pasado, como es construido y por tanto como estudiarlo, cuales son sus significados, a que llamamos autentico, el rol del arqueólogo entre otros puntos.
En estos capítulos Holtorf’s, siguiendo algunos de los planteos de su maestro Michael Shanks y de la arqueología radical, asume y explicita cuestiones como por ejemplo, que el pasado es construido en cada presente y por lo tanto es relativo. También que las personas participan activamente en la construcción de sentidos y significados asociados a la cultura material – y por lo tanto estos significados también son relativos.
Para justificar estas ideas utiliza casos de todo el mundo, aunque especialmente de la prehistoria europea y de sus própios trabajos de campo en Alemania.
Dentro de estas discusiones destaco 3 cuestiones:
A) Su análisis sobre la “biografía de los objetos y los sitios arqueológicos” y como su sentido y significado se transforma a través del tiempo (utiliza como ejemplos el caso de las hachas de piedra, y los monumentos megalíticos – capítulo 5).
B) Su propuesta sobre los significados actuales que los sitios arqueológicos tienen para el publico (diferencia 14, entre ellos recuerdos (rembrance), identidad (identity), reflexiones (reflections), aventuras (adventures), lugares mágicos (magical Places), entre otros – Capítulo 6.
C) La discusión del concepto de “autenticidad” (Aura de W. Bejamin) y como en realidad tiene una base subjetiva que lo transforma en algo dinámico y cambiante a través del tiempo – Capítulo 7.
Los últimos 2 capítulos resultan los más provocativos y originales. Sus propuestas permiten una reflexión profunda sobre las propias bases de la arqueología y la naturaleza del pasado en nuestra sociedad.
Básicamente para Holtorf la popularidad de la arqueología tiene que ver con que posee todos los elementos tradicionales, para despertar el interés de las personas comunes (misterio, exotismo, tesoros, peligro, entre otros). Esto le otorga a la disciplina una “Archeoappeal” y la transforma en “cultura popular”. Lo que importa es el significado del pasado en el presente y la manera en que la gente le da un sentido particular, no necesariamente coincidente con el de los arqueólogos.
De esta manera si el pasado, y sus vestigios “auténticos”, son construidos por las personas en cada presente, entonces éste se transforma en un “recurso renovable”, lo que le permite a Holtorf afirmar: “A certain amount of destruction of archaeological resources is not only unavoidable but can indeed be desirable in order to accommodate fairly as many genuine claims to ancient sites and objects as possible” (p. 148)… “If archaeology is popular culture, then we are all archaeologists” (p. 160).
Salvando las diferencias, este libro tiene mucho en común con “Reconstructing Archaeology” de Shanks y Tilley (1987), sus propuestas radicales invitan a la reflexión. Al cuestionar muchos de los supuestos de la practica arqueológica la primera reacción del lector es sentirse incomodo. Pero es precisamente esta insatisfacción con lo evidente que permite a la arqueología seguir avanzando en un camino sin final.
“Experiencing archaeological practice and imagining the past constitute the magic of archaeology” (p. 155).
Andrés Zarankin – Docente no Depto de Sociologia e Antropologia/ FAFICH-UFMG Doutor em História pelo IFCH-UNICAMP.
Acesso somente pelo link original
[IF]
Historia, identidades, cultura popular y música tradicional en el Caribe colombiano – MEJÍA; DURÁN (M-RDHAC)
MEJÍA, Hugues Sánchez; DURÁN, Leovedis Martinez (Compiladores). Historia, identidades, cultura popular y música tradicional en el Caribe colombiano. Valledupar: Ediciones Unicesar de la Universidad Popular del Cesar, Colombia. 2004. 226p. Resenha de: CAMARGO, Moraima. Memorias – Revista Digital de Historia y Arqueología desde el Caribe, Barranquilla, n.2, jan./jun., 2005.
Moraima Camargo – Profesora e investigadora del Departamento de Historia y Ciencias Sociales y membro del Grupo de Investigación en Historia y Arqueología del Caribe Colombiano de la Universidad del Norte.
[IF]O Mistério do Samba – VIANNA
VIANNA, Hermano. O Mistério do Samba. [Zahar, 1995. 193p.]. Resenha de: GOMES, Tiago de Melo. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.21, n.42, 2001.
À medida que a década de 1990 se encaminha para o final, torna-se evidente por si só a importância deste trabalho de Hermano Vianna a respeito das relações entre samba e identidade nacional. Possivelmente em nenhum momento estas duas temáticas tenham sido debatidas com a amplitude que vem ocorrendo ultimamente, e uma parte do crédito deve ser dado a este livro. Os motivos para o seu sucesso e influência são facilmente reconhecíveis mesmo em uma leitura menos atenta. O autor inicia o texto expressando sua estranheza em relação à narrativa mais tradicional da história do samba, que aponta dois momentos na trajetória deste que é tido como o ritmo nacional por excelência. Em um primeiro momento, o samba teria sido perseguido pelas elites como bárbaro e incivilizado, para em seguida transformar-se no símbolo nacional que conhecemos hoje. Esta narrativa, como Hermano Vianna aponta com acerto, tem sido há muito tempo partilhada por pesquisadores não acadêmicos, cientistas sociais, jornalistas e historiadores, em um arranjo multidisciplinar que tem mostrado grande vitalidade e que busca explicar a formação de símbolos nacionais a partir da resistência popular à opressão das elites, até o momento da vitória final, com a transformação de uma “cultura popular” em “cultura nacional”. A partir deste estranhamento, Hermano Vianna coloca o problema que ocupará seu livro: como se deu a passagem entre estes dois momentos na história do samba?
O autor identifica, com indiscutível acerto, esta questão como potencialmente de grande interesse para se compreender o processo de construção de uma identidade nacional, dentro da qual o samba foi um fator de grande destaque na identificação de “o que é ser brasileiro”. Para Hermano Vianna, o samba teria sido elevado ao status de símbolo nacional favorecido por um contexto cultural (não situado temporalmente de forma clara, mas aparentemente delimitado entre as décadas de 1910 e 1930) em que ganhava força o interesse por “coisas nacionais”. Beneficiando-se deste interesse, o samba teria chegado à sua condição atual, o que teria sido possibilitado na prática pela ação de “mediadores culturais”, que levariam fragmentos da “cultura popular” a uma “cultura de elite” que desconheceria em boa parte os elementos desta “cultura popular”. Neste sentido, o livro é organizado em torno de uma noitada que reuniu intelectuais interessados na construção de um projeto de identidade nacional (incluindo Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Holanda), com alguns “portadores” desta “cultura popular” prestes a ser alçada ao status de símbolo nacional (entre eles, Pixinguinha e Donga). Por suas características (intelectuais em busca de “coisas brasileiras” reunidos com sambistas, sendo esta ligação feita pelo poeta modernista europeu Blaise Céndrars), este encontro é visto pelo autor como um símbolo do processo que pretende retratar em seu livro.
A riqueza da temática proposta por Hermano Vianna garantiu, com justiça, o sucesso de seu livro. Escapando da armadilha de tratar a cultura como decorrência do contexto socioeconômico, o autor propõe uma articulação entre música popular e identidade nacional visando a compreender a permanência da utilização do samba como elemento aglutinador da nacionalidade. Neste sentido, uma breve discussão sobre os limites da abordagem deste livro revela-se de grande interesse para historiadores e cientistas sociais que se preocupam com questões por ele tratadas. A principal questão que se pode apontar como limitadora do enfoque de Hermano Vianna é a problemática das fontes utilizadas, ou, no caso deste livro, da ausência das mesmas. O autor pretende renovar o debate sobre o tema sem levar a cabo novas pesquisas, buscando meramente reinterpretar elementos levantados por outros pesquisadores dentro dos parâmetros teóricos que adota. Ou seja: o autor se apropria de dados utilizados pela bibliografia existente (que os utilizou para demonstrar a opressão sofrida pelo samba), pensando-os como demonstradores de uma permanente interação cultural entre diversos segmentos sociais, interação esta fundada na ação dos “mediadores culturais”. Isto acaba por levar O Mistério do Samba a algumas limitações. Em primeiro lugar, torna o autor um prisioneiro da mesma bibliografia que pretende criticar, posto que é exatamente esta bibliografia que vai fornecer-lhe as situações em que sua análise é baseada. Com isto, Hermano Vianna acaba sendo levado a debates antigos e pouco produtivos, como a busca por demonstrar que o violão nunca foi um instrumento totalmente desprestigiado, um debate recorrente na tradicional bibliografia sobre música popular do início do século, e que lida com os dados desta mesma bibliografia, em uma discussão de pouco relevo para a análise desenvolvida. Com este debate, o autor pretende demonstrar que o fosso entre “cultura de elite” e “cultura popular” nunca foi tão grande quanto a bibliografia aponta. Mas fazer isto sem acrescentar novos dados à discussão é irrelevante, apenas poupando o leitor de fazer por si só a reinterpretação de algo que já está disponível em uma série de outros livros.
Além disto, ao organizar o livro em torno dos elementos que julga importantes para a ascensão do samba, Hermano Vianna produz capítulos como “A Unidade da Pátria”, “O Mestiço” e “Gilberto Freyre”, compostos de breves e superficiais resumos de argumentos alheios a respeito de temas de ampla importância. No mesmo sentido, o autor acaba, na necessidade de se basear em dados levantados por outros pesquisadores, por vezes se afastando perigosamente do contexto estudado. Como a bibliografia sobre o contexto cultural carioca dos anos 20 não é das mais extensas, o autor acaba sendo obrigado a ir buscar no modernismo paulistano muitos exemplos de um “interesse por coisas nacionais” que não necessariamente seria igual nas duas cidades. Flagrante neste sentido é o caso, destacado pelo autor, da encenação em São Paulo, no ano de 1919, de uma peça de conteúdo nativista em que os membros das mais tradicionais famílias paulistanas se vestem de sertanejos. Este evento, estudado por Nicolau Sevcenko1, é bastante ilustrativo de um processo da construção de uma identidade paulista, mas pouco ou nada diz a respeito da elevação do samba ao status de símbolo nacional. Porém, na falta de exemplos do mesmo porte disponíveis na bibliografia sobre o Rio de Janeiro no mesmo período, o autor foi levado a buscar, em função de sua opção de não realizar sua própria pesquisa, exemplos que dizem respeito a um outro contexto, ainda que no mesmo período.
Sendo levado a um contexto diferente do que aquele que deveria lhe interessar, Hermano Vianna deixa de atentar para múltiplas experiências da cidade do Rio de Janeiro, que tiveram seu papel na difusão do samba e de sua concretização como elemento aglutinador da identidade nacional. Uma delas, a ligação entre modernistas cariocas e a “cultura popular”, balizada por outras questões relativas ao contexto da Capital Federal2. Outro lado desta moeda é a flagrante ausência da cultura de massas — central na veiculação dos símbolos nacionais — em O Mistério do Samba. A relativa escassez de bibliografia a respeito da massificação cultural no Rio de Janeiro na primeira metade do século impediu o autor de ver a importância deste fenômeno, expresso de modo evidente no caso do teatro de revista, que debatia diariamente a questão da identidade nacional para um público o mais amplo possível em meio à execução de música de todos os tipos, inclusive o samba Aparentemente Hermano Vianna concebe o debate sobre a identidade nacional como um privilégio de poucos intelectuais, sem atentar para o fato de que, para estar envolvido neste debate, bastava viver no Rio de Janeiro entre as décadas de 20 e 30. Este debate estava na imprensa, no teatro de revista, nos circos e em uma série de veículos que atingiam todos os segmentos da população, ao contrário do que sugere o termo “pré-cultura de massas”, com o qual o autor conceitua a difusão cultural no período (p. 22). Em resposta ao pouco papel dado pelo autor à cultura de massas, pode-se lembrar o fato de que no mesmo momento em que o samba explodia como ritmo de grande sucesso, outros ritmos sincopados, bastante apropriados para a dança, também chegavam ao sucesso pela via da cultura de massas, como é o caso flagrante do jazz e de outros ritmos americanos, que corriam o mundo, incluindo o Brasil, naquele momento. As exigências da cultura de massas por ritmos “dançáveis” é um elemento que não deve ser subestimado ao se estudar o sucesso do samba.
Talvez em função de desconhecer a profundidade da importância deste processo de massificação cultural no debate sobre os símbolos nacionais, o autor tenha atribuído um papel tão grande ao pensamento de Gilberto Freyre em um livro sobre o samba. É certo que, como Hermano Vianna observa, Gilberto Freyre teve um papel central no processo de criação de uma unidade nacional “mestiça” (p. 14). Contudo, associar tão fortemente a ascensão do samba a Freyre acaba por refletir uma idéia muito genérica de “busca por coisas nacionais”, que acaba por englobar o regionalismo de Freyre, o nativismo sertanejo que se destaca em São Paulo, e a glorificação do samba como símbolo nacional no Rio de Janeiro, três movimentos ocorridos em um mesmo período centrados na valorização do que seria “tipicamente brasileiro”, mas que não necessariamente refletem projetos que mantenham uma concordância de princípios entre si. Assim, esta genérica “busca por coisas nacionais”, com que Hermano Vianna busca explicar todo o debate sobre o “nacional” e o “popular” nas décadas de 10, 20 e 30, acaba por explicar pouco ou nada. Haja vista que se o nativismo paulista também é parte de um contexto de valorização do “nacional”, serviu também como origem de duras críticas a uma “cultura carioca”, na qual o samba estaria incluído por parte de setores do modernismo paulistano3.
Outra opção teórico-metodológica do autor, que acabou por limitar o alcance de seu livro, é a pouca atenção dedicada ao samba, que acaba funcionando como mero representante de um contexto cultural mais amplo de “busca por coisas nacionais”, contexto este que determina totalmente os sentidos do samba como símbolo nacional nos anos 20 e 30. Aqui não se nega a possibilidade de realizar um estudo que utilize o samba como “campo privilegiado onde é possível perceber determinados aspectos do debate sobre a definição da identidade brasileira” (p. 33). Contudo, é necessário sublinhar o fato de que nenhuma especificidade é conferida à música popular no amplo contexto cultural que Hermano Vianna desenha, acabando por dissolver esta importante manifestação artística em um processo mais amplo que lhe determina totalmente o sentido. Com isto, o autor acaba transformando seu objeto em um mero representante de um contexto mais amplo, transformando o tradicional determinismo socioeconômico — com que a bibliografia tende a retratar a identidade nacional e a música popular — em um determinismo sociocultural, menos distante do objeto, mas que igualmente lhe retira qualquer grau de autonomia.
A rigor, é possível mesmo notar que o autor se interessou muito pouco em conhecer a fundo os processos específicos da música popular que estuda. Talvez isto possa ser considerado secundário, mas não é difícil identificar que o autor em diversas passagens torna-se presa de seu diminuto conhecimento dos matizes do universo musical da capital federal, ao diluir toda a música feita por negros na categoria “samba”. É muito fácil notar que este termo estava longe de ter um sentido claro nos anos 20, e ainda era aplicado a ritmos rurais ou utilizado no sentido mais amplo de festa ou dança. Uma conseqüência disto é o grande destaque dado a Pixinguinha, Donga e os Oito Batutas, compositores e executores de uma infinidade de ritmos rurais, urbanos e estrangeiros, que nunca tiveram ênfase no samba em suas carreiras. Porém, sendo negros e cariocas, o autor apressadamente os enquadrou como “sambistas”, apontando Pixinguinha, Donga e Patrício Teixeira como definidores da música que seria considerada “a partir dos anos 30, como o que o Brasil tinha de mais brasileiro” (p. 20). Infelizmente o autor não poderia listar 3 ou 4 sucessos destes três músicos cariocas que pudessem ser tidos como sambas, em especial no período apontado, a década de 30. Com isto, valoriza como decisiva na consolidação do samba a atuação de compositores de choros e valsas, como Pixinguinha. Aqui tem-se a prova do risco indiscutível da ausência de reconhecimento de fatores que são específicos ao objeto estudado. Com tudo isto, é bastante possível que ao fim do livro, o leitor de O Mistério do Samba se sinta plenamente convencido de que havia, no período estudado, uma demanda por um ritmo que pudesse ser enquadrado como “tipicamente nacional”. O que fica no ar é a pergunta: E por que o samba veio ocupar este espaço, em vez de qualquer outro ritmo urbano ou rural existente na mesma época? Havia no período uma enorme diversidade de ritmos “populares”, e o fato de a primazia de “ritmo nacional por excelência” ter sido dada ao samba não é algo que se explica por si só. Aparentemente tal idéia não ocorreu ao autor, que unifica toda esta diversidade musical popular do período sob o rótulo “samba”.
Um último elemento a ser ressaltado é a ausência de um sentido mais acurado de contexto histórico ou espacial da parte do autor. Buscando demonstrar a plausibilidade da presença de membros da elite na produção do samba como símbolo nacional, Hermano Vianna nos leva a uma descrição de uma festa em Salvador no ano de 1802 (p. 37), no intuito de mostrar uma “tradição” de contatos entre elite e música popular. Contudo, é possível notar que o autor opera com um conceito restrito de “tradição”, pois a existência de interação cultural na Bahia Colonial em nada garante a existência do mesmo fenômeno em tempos e espaços inteiramente diversos. Não é necessário aqui argumentar longamente a favor da idéia de que qualquer tradição é dinâmica e pode ser alterada por conjunturas específicas. Na verdade, um mérito do autor é demonstrar o tipo de espaço em que se deram estas interações ao longo do tempo. Mas não reconhece que isto pouco nos informa sobre o Rio de Janeiro nos anos 1920 e 1930.
Ausência de pesquisa em fontes originais, pouco interesse pelas especificidades do objeto estudado (como a massificação cultural, no caso do samba), contextualização histórica insuficiente. Estes são alguns problemas da abordagem realizada por Hermano Vianna. Porém, estes problemas, que devem estar na mente de qualquer pesquisador interessado em qualquer pesquisa na área de história ou ciências sociais, materializaram-se concretamente apenas quando este autor finalmente livrou-se da aplicação dos velhos esquemas economicistas na música popular. Por muito tempo acreditou-se que o abandono de determinismos no estudo da música popular e a adoção de novos pressupostos seria o caminho para o avanço na pesquisa sobre identidades sociais e música popular. Ao trilhar este caminho, Hermano Vianna resolveu de vez este problema. Entretanto, acabou revelando novos problemas em sua abordagem, e o desafio que se impõe é o da superação dos problemas aqui apontados na constituição futura de uma nova bibliografia a respeito deste assunto importante e intensamente discutido em tempos recentes.
Notas
1 SEVCENKO, Nicolau. Orfeu Extático na Metrópole: São Paulo, sociedade e cultura nos frementes anos 20. São Paulo: Companhia das Letras, 1992, pp. 240-244.
2 Ver o caso de Manuel Bandeira em GARDEL, André. O Encontro Entre Bandeira e Sinhô. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura, 1996.
3 Ver o exemplo de VELLOSO, Mônica. “A ‘cidade-voyeur’: o Rio de Janeiro visto pelos paulistas”. In Revista Rio de Janeiro. Niterói, 1986, nº 4, pp. 55-65.
Tiago de Melo Gomes – Doutorando Unicamp/Fapesp.
[IF]Shared Traditions: Southern History and Folk Culture – JOYNER (CSS)
JOYNER, Charles. Shared Traditions: Southern History and Folk Culture. Urbana and Chicago: University of Illinois Press, 1999. 361p. Resenha de: SEIXAS, Peter. Canadian Social Studies, v.35, n.3, 2001.
When we think about the major political fault lines in Canada, we tend to think in terms of regions. The recent election was one more example of ideologically defined parties whose strengths and weaknesses divide along stark regional lines. The greatest challenge to national unity in the twentieth century has been Quebec separatism, while resentments in both the Maritimes and the West have been endemic. When we examine the United States in the 20th century, however, racial divisions, and not regional schisms, appear to be the most significant threat to the success of the national project. Since mid-century, moreover, after years of northward migration of the descendents of enslaved African Americans, the problem of race relations is no longer plausibly conceived-if it ever was-as an exclusively Southern regional issue.
Charles Joyner’s collection of essays, most of them previously published, offers at least two challenges to this picture of the American socio-political map. First, he claims that the South continues to be a distinct region, socially and culturally. Secondly, he argues that the apparent racial divisions in the South mask shared traditions which are the product of centuries of interplay among folk traditions which originated in Celtic, west African, Native, and other cultures. Thus, Joyner speaks without hesitation or apology of the essential character of Southerners (p. 150). Region provides a central organizing framework for the otherwise widely disparate essays in the volume.
A second theme helps to unite his chapters: the interplay between folklore study and the discipline of history. Joyner himself, as both a folklorist and a historian, straddles the two fields. Folklore study had its origins in the collection of folk tales, legends, ballads, dances and crafts, and in the study of such products as dialects, vernacular architecture, folk religion, food and labour (p. 152). From these beginnings, it branched into a quest for theoretical foundations and several of Joyner’s essays help the uninitiated (like myself) understand the development of the field. It has been consistent in its concern with the lives and culture of non-elites. It has been less so in paying attention to the larger social and political contexts within which folkways were embedded or in serious study of cultures changing over time. This is where history comes in. Pursuing his study of the South over the course of a lifetime, Joyner promises that two disciplines offer more than either one alone could deliver.
Shared Traditions is organized into five sections. After an introduction that sets the theme of Southern unity in diversity, the first section examines slavery in the old South. While these chapters make an interesting read, they have long been superseded by the work of Jacqueline Jones, Leon Litwack, Eric Foner, and Herbert Gutman (among many others) who do not even get footnotes. Three review essays on David Potter, David Hackett Fischer and Henry Glassie comprise the second section. A third section is a disparate collection of essays on the New South, examining Jews, music, dulcimers, and a local civil rights campaign. The fourth section theorizes folklore study and history. The final section, a single chapter, is a plea for cultural conservation on the Sea Islands, where luxury resort development has largely displaced a vibrant and successful black folk culture.
Will Canadian social studies teachers and educators be interested in this volume? I do not think that any Canadian curriculum is geared in a way that this volume will be of import for its substantive detail on the American South. Nor is the volume an economical way to catch up on recent historiography of the region. Nor, when it comes to exploring the pedagogical possibilities of folklore research, does it offer anything close to what the Foxfire books did in the 1970s. There is, however, a contribution here, on the methodological and theoretical issues surrounding the interplay of capitalist globalization and regional folk cultures. These are key historical forces that touch the lives of our students and their families, whether Canadian-born or newly immigrated. I suspect, though, that hard-pressed teachers will be able to find more economical sources to enrich their approaches to these issues.
Peter Seixas – Canada Research Chair in Education. University of British Columbia.
[IF]Conformismo e resistência: aspectos da cultura popular no Brasil | Marilena Chauí
Marilena Chauí escreveu este livro em 1985, inicialmente para um público estrangeiro, só publicando em nosso país no ano seguinte. Focaliza a Cultura Popular no Brasil, procurando definí-la e compreender sua dinâmica.
Em um primeiro momento, Chauí aborda as dificuldades de definição da expressão Cultura Popular, discutindo o conceito de “cultura”, procurando precisar o conceito de “popular”, sobretudo em suas formas predominantes no Brasil, originadas nos pontos de vista “romântico” e “ilustrado”. Contrapondo-se à identificação entre “Cultura de Massa” e “Cultura Popular” – encontrada tanto entre os “liberais” norte-americanos das décadas de 50 e 60, quanto entre os frankfurtianos -, Marilena propõe distinguí-las, relacionando Cultura de Massa à classe dominante (que a elabora e impõe) e Cultura Popular à classe dominada. Analisa o comportamento da segunda diante da primeira, em termos de estratégias de aceitação e recusa; assim, enfatiza “a dimensão cultural popular como prática local e temporalmente determinada, como atividade dispersa no interior da cultura dominante, como mescla de conformismo e resistência”. (p.43) Leia Mais
Cultura Popular na Antiguidade Clássica-grafites, arte, erotismo, sensualidade e amor, poesia e cultura – FUNARI (VH)
FUNARI, Pedro Paulo. Cultura Popular na Antiguidade Clássica-grafites, arte, erotismo, sensualidade e amor, poesia e cultura. São Paulo: Contexto, 1989. Resenha de: DUARTE, Regina Horta. Varia História, Belo Horizonte, v.9, n.12, p. 154-155, dez., 1993.
Os estudiosos da história vêm, há muito tempo, ampliando sensibilidade em relação aos sinais do passado que chegaram até nós, trazendo seu testemunho acerca de outras organizações sociais.
O historiador francês Lucien Febvre alertou, num texto de 1949, para a 1mportancra dessa abertura da noção do documento histórico: os documentos escritos têm grande utilidade na pesquisa. Porém, sua ausência não deve impossibilitar tal trabalho. Também os signos, as palavras, as paisagens e as formas dos campos, ou seja, tudo o que traga inscrita a ação humana serve como documento ao historiador hábil e perspicaz.
É esta criatividade na busca de fontes que faz da obra de Pedro Paulo Funari um texto essencial para os leitores que s interessam pelas várias possibilidades abertas pela construção do passado histórico. No caso, a Antigüidade Clássica é analisada a partir de um aspecto inédito, o que leva o autor a falar em uma outra Antiguidade. A cultura popular, suas manifestações esquecidas e desprezadas durante tantos séculos- quando só uma parte da cultura clássica fascinou e serviu de modelo à cultura ocidental moderna – é o tema de reflexão da obra.
Na ausência de documentos escritos tradicionais, o autor recupera as pichações nos muros e paredes das cidades antigas. A maior parte da documentação foi levantada em Pompéia, cidade onde uma catástrofe vulcânica Preveniu a destruição desses sinais. A forma de lidar com os grafites mostra-se tão original quanto a sua escolha como documentação: Funari não se reduz a desvendar as palavras, frases e poesias inscritas, mas analisa a expressividade iconográfica dos sinais gráficos, mostrando a excelência artística dos autores anônimos e, talvez o mais importante para o olhar do historiador, a forma através da qual esses pichadores relacionavam-se com as palavras.
No seu intento de fugir a uma história parcial, que privilegia apenas uma versão construída pelas elites dominantes da época, o autor utiliza os grafites como monumentos: são sinais de um assado construídos dentro de situações de conflito, ambiguidades, sonhos e esperanças, protestos e indignações. Entretanto, a obra continua apoiando-se num dos pilares da historiografia tradicional: o que move a pesquisa é, segundo as palavras de Funari, reconhecer-se “nos gregos e nos romanos e perceber como eles têm a ver com a gente”. Historiadores dedicados ao período clássico – como Finley, Vidal-Naquet, Vernant, M. Dettienne e Paul Veyne – renovaram a abordagem historiográfica justamente pela vertente oposta. Destacam a diferença de valores, de mentalidade, de organização social. Ressaltam o caráter diverso dessas sociedades, renunciando-se às categorias eternas e continuidades enganadoras. Como afirma o filósofo C. Castoriadis, o que precisamente nos interessa na história é nossa “alteridade autêntica, os outros possíveis do homem em sua singularidade absoluta”.
Outro aspecto passível de discussão pode ser apontado na visão dicotômica transmitida na separação cultura popular/cultura erudita. A cultura erudita é classificada como “continuadora imóvel da tradição reprodutora de um passado clássico”; a minoria erudita é inativa; a pintura apreciada pela elite caracteriza-se, para o autor, pela ”continuidade na ausência de rupturas, na sensação de imutabilidade”. Funari apresenta o leitor uma cultura clássica erudita completamente estática e desprezível. Por outro lado, a cultura popular é dinâmica, criativa, revestida de caráter multifacetado e contestatório.
Entretanto, não é tão fácil dividir, cultura erudita e popular, já que há um movimento constante de recriações e apropriações, onde pólos aparentemente opostos se interpenetram. Além disso, é inútil negar a riqueza da cultura clássica que o autor classifica como erudita. Como desprezar (só para citar alguns exemplos) Ésquilo, Sófoles, Hesíodo, Heródoto, Virgílio e tantos outros? A nova história precisa exorcisar o perigo da adesão às novidades simplificadoras, como a de que tudo o que foi criado pelos “vencidos” seja “bom”, sob pena d cair no moralismo românico.
Paralelamente à necessidade de debater tais posições contidas no livro, afirma-se o valor de sua leitura. Dedicado a um público Jovem, estimulará, sem margem de dúvida, o fascínio pelo estudo da história. Acreditamos que seu uso, em turmas de jovens estudantes, poderá contribuir imensamente para levar, ao ensino de segundo grau, uma história renovada, simples sem ser simplista, interessante e, finalmente, instigante.
Regina Horta Duarte – Professora do Departamento de História FAFICH·UFMG.
[DR]