Iconografia e cultura material da morte no Mundo Antigo | Revista M. | 2022

Morte apos a morte na mitologia grega Imagem Super Interessante
Morte após a morte na mitologia grega | Imagem: Super Interessante

O DOSSIÊ Iconografia e cultura material da morte no Mundo Antigo é composto por doze artigos que versam sobre diferentes abordagens teóricometodológicas das culturas visual e material da morte nos mundos egípcio, persa, grego, romano, céltico e viking. Trata-se de um dossiê multilíngue, com contribuições em inglês e francês, além do idioma nacional, para o qual contribuem quatorze autores, entre os quais, somando-se aos pesquisadores brasileiros, aqueles ligados nomeadamente a instituições britânicas, gregas e francesas.

Os três primeiros textos abordam o Oriente Antigo. Dois artigos sobre o mundo egípcio trazem contribuições significativas sobre a iconografia funerária, refletindo sobre as interações das imagens com o mundo dos vivos e suas funções em relação ao mundo dos mortos. No artigo Caminhando com Amenemhet em seu funeral: afetando e sendo afetado na Tumba Tebana 123, José Roberto Pellini interpreta as cenas nas paredes das tumbas faraônicas enquanto elementos discursivos com funções que se completam por meio das interações com os vivos. Dessa forma, as imagens criam e afetam o público que frequenta o ambiente funerário, provocando ações e ativando seus significados para os mortos. A interação entre o mundo dos vivos e o dos mortos se dá por meio do mundo visual. Leia Mais

Cem anos de Paulo Freire: cultura material, educação e liberdade | Revista Arqueologia Pública | 2021

No ano do centenário do educador Paulo Freire convidamos a todos arqueólogos e especialistas nas temáticas do patrimônio, memória e educação a colaborar com a construção de reflexões sobre as relações entre a Educação e Cultura Material, promovidas em ambientes escolares ou não, como práticas de liberdade. Paulo Freire foi recebido como subversivo por alguns setores da sociedade ao longo de toda sua vida como educador e, ainda nos dias de hoje, é rejeitado por determinados campos de poder. O que em sua obra e em nossas práticas pode tornar a educação tão perigosa? Qual o potencial de uma educação partilhada atrelada à cultura material? A educação como prática da liberdade seria capaz de romper a existência do “homem simples esmagado, diminuído e acomodado (…) tragicamente assustado, temendo a convivência autêntica e até duvidando de sua possibilidade” (Freire, 1967: 44)? Seria capaz de desnudar a sociedade como meio para desvendá-la e permitir uma compreensão ativa e atuante sobre os contextos políticos e históricos no qual nos inserimos (Freire, 1986: 15/17)? A educação como prática da liberdade mantém-se como um tema atual e urgente.

Finalizando o dossiê, podemos abertamente afirmar que a proposta temática foi bem recebida pelos arqueólogos, educadores, historiadores, gestores públicos, entre outros especialistas no campo da memória, patrimônio e cultura material. No total, foram aprovados doze textos, entre artigos, entrevista e uma tradução inédita de uma entrevista dada por Paulo Freire, em Geneva, no ano de 1970. Em comum, os textos trazem como eixo central a reflexão ativa sobre cultura material, educação e liberdade. A temática é provocadora, e, claro, serve como uma plataforma para a construção de novos diálogos e práticas de ação. Nessa edição, portanto, você encontrará a seguinte estrutura: Leia Mais

Cultura Material, Arqueologia e Patrimônio | Memória em Rede | 2020

Memória apresenta duas facetas, a individual e a social, interlaçadas, mas diferentes. Em termos individuais (ἴδιος = dele), ou próprios (αὐτός = auto, próprio) a cada um, a lembrança é algo efêmero, seletivo, sujeito a contingências biológicas, além das psicológicas. As enfermidades podem alterar ou mesmo impedir as lembranças, a mostrar a sua base na fisiologia cerebral. Além disso, as recordações estão sujeitas à seletividade psicológica, a impulsos ou afetos, no sentido proposto pelo filósofo Bento de Espinosa (1632-1677) (Ética, 3,3,3,), de modo que qualquer impressão do passado é sempre uma invenção no presente, em constante mutação. Invenção vem de “eu encontro” (inuenio), sempre experiência objetiva e subjetiva, daí descoberta/invenção, a cada momento. A cerimônia de casamento, a primeira experiência no mundo do trabalho ou na escola, são reinventadas, a depender da época e das circunstâncias.

A utilização do mesmo termo, memória, para referir-se à lembrança social parte de uma transposição metafórica do indivíduo para o coletivo (Halbwachs 1950). Convém refletir um pouco sobre o sentido mesmo da palavra: a raiz -men, mente, pensamento, desejo, remete à vontade e, daí, à mente. Lembrança e prazer, parceiros insuspeitos. Se não há memória biológica, à diferença daquela de um indivíduo, como ela se manifesta na sociedade? Outro conceito, desta vez do hebraico, talvez possa jogar luz sobre isso: Zikaron, dispositivo de memória (da mesma raiz de “zakhor” = lembrar), de , zécher = resto. Leia Mais

Historia de la cultura material. Objetos, agencias, procesos/Anuario de la Escuela de Historia Virtual/2020

El vínculo entre cosas y personas viene cobrando, desde hace algunas décadas, notoria relevancia en el campo de la investigación social, en general, e histórica, en particular. En este acontecer, el término cultura material devino paraguas teórico debajo del cual se ampararon diversidad de investigaciones que buscaron, con mayor o menor profundidad analítica, otorgarle un lugar de relevancia a los objetos dentro de los procesos históricos. La deuda conceptual, no siempre reconocida, es con la arqueología y la antropología social. En estos campos disciplinares es donde se acuña y cristaliza la noción de cultura material para, desde allí, extenderse a, y ser cooptada por, plurales áreas de la investigación social. Ese tráfico de ideas resultó en un fértil campo para el trabajo interdisciplinario. En este trayecto multidireccional el concepto experimentó objeciones, revisiones, reformulaciones y reintepretaciones que nutrieron prolíficas discusiones entre arqueólogos y antropólogos de tradición anglosajona, pero que no siempre se hicieron eco en la investigación histórica donde, cabe señalar, la noción de cultura material se redujo, en varias ocasiones, a mero sinónimo de “objeto”, “artefacto” o “cosa”. Pero ¿qué historiografía que abraza conceptos de otras disciplinas está exenta de escollos como los referidos? Bien vale, entonces, no solo retomar aquellos aportes de las investigaciones más significativas en el campo de la historia de la cultura material, sino exponer, en primer lugar, las tradiciones arqueológicas y antropológicas a las cuales debemos el concepto que nos convoca y su campo de estudios. Leia Mais

Cultura Material em História(s): Artefatos Escolares e Saberes | Educar em Revista | 2019

“… o passado não é um lugar estável, e sim precário, permanentemente alterado pelo futuro, e… portanto nada do que já ocorreu é irreversível”.

Javier Cercas1

Através das palavras extraídas da refinada literatura de Javier Cercas, expressamos a inquietação que nos move no sentido de buscar e fortalecer formas de ler e compreender a oficialização2 da escola e do aluno e sua difusão. Num leque de possibilidades elegemos algumas formas, como diz Heloisa Rocha (2019)3, de “interrogar o passado educacional por meio do exame dos artefatos e dos modos de fabricação inventados por diferentes sujeitos e grupos, para responder às demandas da escolarização”, evidenciando também “dimensões envolvidas na cadeia de produção e circulação dos artefatos escolares”. Isto significa dizer que nos ocupamos particularmente da dimensão material da escolarização da infância em diferentes lugares, de formas de organização e provimento material da escola primária e de modos de circulação das ideias que conformam (no sentido mesmo de dar forma) esta materialidade. Nesta esteira, identificar discursos que advogam um desenho material para a escola, formas de operacionalização e modos de uso ajudam a compor um cenário que explicita sentidos que esta materialidade porta. Leia Mais

Materializando a História: o Passado Humano através da Cultura Material / Revista Mosaico / 2019

PARTE I – A HISTÓRIA DO PASSADO HUMANO ATRAVÉS DA MATERIALIDADE CULTURAL

A História se manifesta nas sociedades humanas, principalmente, na forma de documentos escritos, de representações imagéticas e como oralidades interpessoais ou coletivas. Como um produto da ação humana seus fatos marcam gerações posteriores, desde tempos imemoriais até o nosso contemporâneo. Nesta longa trajetória, nem sempre os suportes físicos de determinados eventos perduram, e a história se limita a traços do que foi, ou do que aconteceu. Portanto, nesse dossiê focamos no aspecto mais duradouro destes registros temporais e humanos: o material.

Para a história a materialidade é um testemunho que concretiza um fato, ou seja, a parte documental de um evento do passado que pode ficar guardado em um arquivo até ser recuperado no presente. Muitas vezes separada da história, a arqueologia por muito tempo foi vista como uma forma ilustrativa de investigação do ocorrido e que contribui à medida que propicia “novas” leituras sobre o que já se sabe, seja de uma forma confirmatória, complementar ou contraditória. Na visão tecnicista, a arqueologia também foi considerada ora como ciência auxiliar ora como provedora de um saber independente, mas que se apropria dos aspectos individuais, ou dos coletivos sociais na sua forma materializada de cultura. A arqueologia por sua vez, representa o acesso a um tempo remoto ou despercebido que não é possível por outro tipo de “documento”, tem acesso às materialidades totalmente desvinculadas das memórias vivas.

A arqueologia, possibilita, igualmente, o alcance a particularidades da alteridade humana independente do contexto temporal em que seu objeto de estudo está vinculado.

Concebemos a materialidade enquanto elemento de subjetividade humana que não se manifesta somente nas categorias resultantes das intervenções humanas, expressa por exemplo, naqueles objetos que estão inseridos em cadeias de gestos, compartilhando comportamentos técnicos advindos de tradições culturais (GENESTE, 1991; LEROI-GOURHAN, 1964). Numa perspectiva mais ampla, a materialidade também se constitui por componentes físicos não necessariamente modificados por comportamentos antrópicos, mas que estão ou estiveram em interação com os grupos sociais.

Se buscarmos uma correlação entre materialidade e cultura material, vemos que a primeira é mais ampla, compreendendo também o sentido dos elementos que não foram, pelo menos num primeiro momento, culturalmente determinados. A segunda é constituída por símbolos com potencial para agenciar o modo pelo qual grupos humanos, ao longo dos tempos organizam e avocam a própria vida social.

Os estudos de culturas materiais na arqueologia e história têm se modificado ao longo do tempo, acompanhando as mudanças de paradigmas de suas áreas. No Brasil, na década de 1980, Meneses (1983) em sua obra clássica “A cultura material no estudo das sociedades antigas” alertava sobre a importância da cultura material como fonte para a historiografia brasileira. Trazendo como exemplo os estudos clássicos de Grécia e Roma, onde demonstra primeiro a primazia da mentalidade sobre a materialidade e depois o uso meramente ilustrativo ou didático da segunda. O argumento principal da tomada de posição dos historiadores para com a cultura material era de que estas constituíam apenas uma parcela aleatória e redundante do fenômeno histórico. Porém, como destaca o autor, estes mesmos argumentos não são também suscetíveis aos documentos escritos, a principal fonte de informação dos historiadores?

Por outro lado, a cultura material era considerada mais um valor real do que representativo, e que ao contrário do texto foca-se no cotidiano social mundano, e não na excepcionalidade do seu registro.

Por cultura material poderíamos entender aquele segmento do meio físico que é socialmente apropriado pelo homem. Por apropriação social convém pressupor que o homem intervém, modela, dá forma a elementos do meio físico, segundo propósitos e normas culturais. Essa ação, portanto, não é aleatória, casual, individual, mas se alinha conforme padrões, entre os quais se incluem os objetivos e projetos. Assim, o conceito pode tanto abranger artefatos, estruturas, modificações da paisagem, como coisas animadas (uma sebe, um animal doméstico), e, também, o próprio corpo, na medida em que ele é passível desse tipo de manipulação (deformações, mutilações, sinalizações) ou, ainda, os seus arranjos espaciais (um desfile militar, uma cerimônia litúrgica) (MENESES, 1983, p. 112).

Sobre essa questão, trazemos também as considerações de Rede (2012) que pondera adequadamente que a suposta superioridade da cultura material e a sua não intermediação ideológica deve ser considerada à luz dos contextos em que os objetos se encontram; ressaltando os seus limites, presentes igualmente em qualquer fonte histórica.

Outro autor que também discute o distanciamento entre o estudo da cultura material e a sociedade brasileira é Funari (1992 / 1993) que ao tratar o tema da educação apresenta a materialidade como fonte de aprendizado crítico sobre as realidades sociais. Entretanto, conforme destaque do autor, o “fazer” arqueológico também sempre esteve sujeito ao seu tempo e, no Brasil às suas políticas. Como legado a arqueologia brasileira de certos períodos favoreceu muito mais o status quo dominante, do que a consciência e autorreflexão, seja dentro ou fora das instituições oficiais.

O quadro de Pedro Américo representando D. Pedro e seu séquito no momento da chamada “Proclamação da Independência”, montados em cavalos e não em mulas, como era o caso (Zanettini 1991:5), consiste num falseamento que não deveria ser escondido do grande público, mas, ao contrário, explicitado com a comparação com evidências arqueológicas relacionadas tanto ao séquito imperial como à vida do povo comum à época. Pobres, nativos e escravos, a grande maioria excluída desse passado oficial, não deveriam ser deixados de lado… (FUNARI, 1992 / 1993, p. 23).

Azevedo Neto e Souza (2010) reforçam as particularidades da cultura material, destacando sua idoneidade e pluralidade, no sentido de tratar sobre diferentes contextos sociais, alcançando não somente práticas e comportamentos de grupos dominantes, como também possibilitando dar “vozes” às minorias étnicas e demais grupos subalternos, também protagonistas da história do Brasil. Como um dos primeiros estudos situacionais, nesta perspectiva, destacam-se as pesquisas sobre os Quilombos no Brasil, iniciados na década de 1980 com Magalhães e Funari (COSTA, 2010).

Portanto, ao ocupar-se do estudo das práticas cotidianas, a arqueologia, por meio das evidências materiais, desafia os artifícios utilizados pela classe dominante para mascarar as relações de poder, na medida em que oferece aos grupos subalternos e explorados o resgate de seu passado arqueológico para estabelecer uma história da resistência em oposição a uma história da dominação (AZEVEDO NETTO; SOUZA, 2010, p. 70).

Entretanto, Lefebvre (1991) percebe a diferença tênue entre o físico e o mental, seja na forma de uma impressão mental da realidade ou na sua apreensão pela experiencia sensorial. Considera a falsa dicotomia entre o material e o seu aspecto imaterial, construída a partir da lógica ocidental, para enaltecer a superação humana da natureza. Estamos de acordo com o referido autor e ampliamos essa questão, baseando-nos em Tilley (2008) que entende que as expressões tangíveis e intangíveis embora sejam diferentes, não são antagônicas e que, numa relação dialética, se fundem numa expressão cultural mais ampla.

Sem a pretensão de apresentar um contexto temporal denso sobre os caminhos percorridos pelos estudos de cultura material em arqueologia e história ao longo do tempo, selecionamos algumas abordagens consideradas pertinentes, buscando um diálogo entre elas.

A MATERIALIDADE NA HISTÓRIA

Como uma das primeiras experiências do protagonismo material na história, temos o Materialismo Histórico elaborado por Marx e Engels já no final do século XIX. Como metodologia de análise historiográfica que vê na trajetória humana uma relação de expropriação e apropriação da materialidade por diversos segmentos sociais. Nessa perspectiva, a cultura material também se apresenta como uma consequência do fazer humano inconsciente, e que segundo Marx e Engels “Não é a consciência que determina a vida, mas sim a vida que determina a consciência” (MARX; ENGELS, 2001, p. 20).

Esta abordagem economicista com orientação materialista na história ficou adormecida até o advento da Escola de Annales na década de 1920. No entanto, nuances desse movimento extrapolam a França, onde na Alemanha, por exemplo, os estudos de cultura material, de alguma forma, se mantinham “vivos”:

Em 1919, em plena guerra civil, portanto, Lênin assina o decreto que institui a Academia de História da Cultura Material da URSS. Nesse acontecimento está inscrito o essencial dos fatos e das conotações que concernem à noção de cultura material: sua emergência tardia, sua evidente colusão com o materialismo histórico e a importância que lhe atribuem os marxistas, seu aparecimento num país socialista, suas relações privilegiadas com a história (PESEZ, 1990, p. 177).

Os Annales surgem como uma ruptura crítica e de renovação do fazer historiográfico positivista ou tradicional, que entre outras coisas, adiciona novas fontes ao fazer historiográfico, como a cultura material. Com uma abordagem interdisciplinar também busca em outras ciências, como a arqueologia, um fundamento de discussão, que mais tarde, nas últimas décadas do século XX, vai ser ampliada pela própria Nova História e Nova História Cultural ao criticar a oficialidade dos documentos e na importância dada à história “total”. No entanto, essa proposição à materialização tardou a ser efetivamente concretizada na história, resultante do forte enraizamento do pensamento ocidental, marcado pelo dualismo, material (técnica) e imaterial (ideias) (CRESWELL, 1989).

Para Bloch (2002), outro importante expoente dos Annales, a cultura material se explica por si, não precisa ser interpretada, é o fato histórico de forma nua e crua. A expressiva massa de informação não-escrita se coloca diante da observação histórica, como parte de um dado que não mais se repetirá. Porém, não totalmente inacessível, pois a pesquisa pode revelar formas de compreensão até então não conhecidas. E portanto, a cultura material como dado histórico é considerada sempre atual.

Como um elemento estrutural da história, a cultura material, se encaixa também no que Braudel (1965) chama de história das “longas durações” que junto com outros elementos “imóveis” como a própria natureza, acabam por formar verdadeiros modelos atemporais do comportamento humano. Quase em um apelo matemático, Braudel relaciona o imutável como a fisicalidade ou a estruturação da própria história, que transfere o social para o científico. Da mesma forma, a cultura material é tida como o “andar de baixo da casa”, onde no nível acima é construído o econômico.

Arqueologia e história ao trabalharem, ainda que não exclusivamente, com a história de “longa duração”, tem dentre seus objetivos, a busca da materialidade para medir o tempo não como um fim, mas como meio. Assim, a partir do pensamento ocidental, tradicional, tal medição significa o controle dos indivíduos sobre a natureza, que se concretiza na geração dos calendários que, a exemplo de regras e leis, acumulam e transferem poder; de outro, pode-se considerá-la a partir da perspectiva de agência material, considerando que as coisas, incluindo o tempo, também exercem agência sobre a natureza, assim como sobre o comportamento humano.

Esse interesse pela medição do tempo perpassa por diversos momentos da história humana, começando em tempos pretéritos com manifestações rupestres (CAMPOS, 2009) e, de forma mais detalhada Le Goff (1990) relaciona as clepsidras, ampulhetas, relógios de sol, e depois, sendo aperfeiçoados com relógios de torre, pêndulos, relógios de pulso, e cronômetros.

Outro protagonismo que a cultura material adquire para a historiografia foi com a Micro História, proposta na década de 1980. Objetivando o particular, este olhar vai utilizar diversas fontes, entre elas a cultura material, como acesso ao privado e cotidiano de segmentos não presentes na historiografia oficial. Como exemplo em sua obra Montaillou, Emmanuel Le Roy Lauderie faz o que chama “arqueologia” de uma pequena aldeia dos Pirineus, no começo do século XIV. Trabalhando questões como o corpo, infância, casamento, morte, trocas culturais, relações sociais, religião e magia através dos relatos materializados na forma de documentos da inquisição.

A Nova História Cultural, por sua vez, também vai fazer uso das fontes materiais, mas sem se prender a uma cronologia específica. Monumentos vão ser, num primeiro momento, os principais pilares desta materialidade que exerce uma grande influência sobre as memórias coletivas. Realizada desde o século XIX, a História Cultural passou por diversas fases, mas sua principal articulação foi com a antropologia. Não sendo, portanto, essencialmente um campo de prática exclusivo dos historiadores, a História Cultural, assim como a Arqueologia, atua num espaço multi e interdisciplinar.

Para Burke (2005), a cultura material sempre esteve presente na pesquisa historiográfica, entretanto sem um devido protagonismo. Trabalhos referenciais como o de Norbert Elias sobre a história do garfo (ELIAS, 1994) ou mesmo de Braudel sobre o movimento dos objetos (BRAUDEL, 1995), também possuem suas críticas. Evidentemente é, porém, após a década de 1990 que a História Cultural vai efetivamente se interessar com a materialidade enquanto fonte fidedigna da historiografia, incluindo, por exemplo, a história do próprio livro como objeto (CHARTIER, 1988). Entretanto a maioria destes estudos focalizou no uso da trilogia – alimentação, vestuário e habitação – tendo a materialidade como receptáculo desta informação.

A MATERIALIDADE NA ARQUEOLOGIA

Ao contrário da história, a cultura material para a arqueologia sempre foi a sua principal fonte de estudo, desde a sua formalização no final do século XIX. Porém, seus estudos nem sempre foram conduzidos da mesma forma, ou com os mesmos objetivos. Novamente sem o intuito de exaurir essa trajetória ou de compartimentar as abordagens, discutindo-as de forma estanque, focaremos no presente texto, em aspectos específicos no que tange a materialidade da arqueologia e os estudos em cultura material.

Gonçalves (2007) ao analisar a proximidade da antropologia e arqueologia no início do século 20, avalia o papel dos objetos etnográficos enquanto categorias etnocêntricas que também fundamentaram os paradigmas evolucionistas e difusionistas do século XIX, baseados nos grandes esquemas universais de evolução social. Os estudos de cultura material advindos desse contexto concebiam os objetos enquanto categorias passivas e indicadoras dos estágios de evolução do grupo a que pertenciam. Tais estudos, desenvolvidos no âmbito da consagrada escola “Histórico Culturalista”, possuía um caráter estritamente indutivo e ambiental determinista que reforçava a dualidade ocidental, calcada na divisão entre o cultural e o natural.

O contexto pós II Guerra Mundial contribuiu para a entrada em cena de um novo olhar arqueológico sobre a cultura material, contemporâneo aos estudos voltados ao sentido simbólico do consumismo (MILLER, 1987). Neste contexto os estudos de cultura material em arqueologia agora com um viés neo-evolucionista, procuravam na normatividade dos vestígios, não mais somente a sua ordenação, mas sua explicação. Nesta perspectiva, a cultura material era o registro estático representante de um sistema cultural dinâmico em processo de adaptação ao seu meio circundante. Com um fazer positivista, hipotético-dedutivo e nomotético, a escola “Processualista” também via a cultura material e a natureza em lados distintos, conectadas pelos diferentes subsistemas, onde o meio tinha uma influência decisiva sobre a cultura,

Uma reação a esta perspectiva se concretiza com a abordagem “Pós-Processualista” estimulada pelo movimento linguistic turn, que impactou diversas áreas do conhecimento. Os objetos, de uma condição estática, passaram a ser entendidos como categorias dinâmicas, que estão entrelaçadas (entanglement) a outros elementos inclusive não humanos; eles são resultantes de ações humanas individuais, conscientes e reflexivas. Trata-se de uma postura pós-modernista que atribuía uma teia de significados à cultura material, que deveria ser lida particularmente como um “texto”. Nessa perspectiva, a cultura material torna-se um elemento agenciado pelas subjetivações das relações sociais do passado e, também, no presente (HODDER, 2012).

Esse posicionamento frente à materialidade humana propiciou, segundo Rede (2012) um fecundo diálogo com outros autores, como Bordieu e Gidden, com a ‘Teoria da Prática’; também se aproximou da Nova História Cultural, propiciada, principalmente, pela perspectiva enfática nos discursos e nos fenômenos representacionais; importante ainda destacar a relação de proximidade da arqueologia com a história a partir dos estudos de patrimônio cultural (MENESES, 1984).

DISCUSSÕES ATUAIS SOBRE A MATERIALIDADE

Nos estudos de arqueologia na contemporaneidade o debate não se encerra no caráter intangível da cultura material, que fundamentou as densas discussões entre “cultura material” e “cultura imaterial”, todavia, têm se voltado a partir de novas ideias sobre as relações entre natureza e cultura.

Neste panorama há uma busca pela superação da influência resistente dos dualismos cartesianos, ampliada a outros tipos de oposições binárias para além do material / imaterial, como: natureza / cultura, sujeito / objeto, presente no modelo hilemórfico da lógica ocidental (GONZÁLES-RUIBAL, 2007). Segundo Andrade (2016, p. 25), tais oposições além de consequências reducionistas trazem também uma intenção ideológica. Nesse sentido, as abordagens têm-se deslocado, gradativamente, dos conceitos de cultura material para o de materialidade (INGOLD, 2007).

Nesta perspectiva, entende-se que os objetos culturais e as ações humanas em sentido amplo, assim como os elementos do mundo natural, embora considerados de naturezas distintas, estão imbricados. Os estudos nesta linha, baseados em Latour (2012) buscam “trata de recuperar lo natural em lo humano” (GONZÁLES-RUIBAL, 2007, p. 285). Nessa conexão, ainda que se considere a cultura e a natureza como campos distintos, são entendidos como equivalentes e, por isso, exigiriam dos / as especialistas atitudes simétricas. Nesse percurso, não somente as pessoas agem sobre os objetos, mas esses também atuam sobre os comportamentos dos indivíduos e da sociedade (TILLEY, 2004), numa relação denominada de “agência material”.

Sentir a pedra é sentir o seu toque nas minhas mãos. Existe uma relação reflexiva entre os dois. Eu e a pedra estamos em contato um com o outro através do meu corpo, mas esse processo não é exatamente o mesmo que tocar meu próprio corpo porque a pedra é externa ao meu corpo e não faz parte dele. Tocar na pedra é possível porque tanto o meu corpo como a pedra fazem parte do mesmo mundo. Existe nesse sentido uma relação de identidade e continuidade entre os dois. No entanto, há também assimetria e diferença a pedra não é senciente e, embora eu seja tocado pela pedra, ao tocá-la, não há a mesma relação de reversibilidade que no caso de minha mão esquerda tocar minha mão direita, uma ação que poderia ser revertido com a mão direita tocando minha mão esquerda. No entanto, podemos afirmar, como Gell (1998), que coisas, como pessoas, possuem agência porque nos afetam fisicamente, ajudam a estruturar nossa consciência (TILLEY, 2004, p. 17).

Trazemos ainda a abordagem desenvolvida a partir da década de 1980 que, dentre outras características representou um “retorno” à materialidade (virada material). Ela teve importante repercussão, principalmente na antropologia, arqueologia e história. Seguindo as perspectivas de Gell (1998), Tilley (2008), buscava-se retirar dos objetos seus valores sociais, para isso foram priorizadas as relações entre indivíduos / sociedades e objetos, assim como as trajetórias (contextos) pelo qual os objetos passaram ao longo de suas vidas. Esse campo referenciado como “biografia das coisas” tem como obra de referência “A vida social das coisas”, organizado por Arjun Appadurai (2008).

Neste panorama de busca das trajetórias dos objetos, mas seguindo outra perspectiva epistemológica, trazemos os estudos em arqueologia acerca das materialidades advindas de longa antiguidade, onde além de não contarmos com as memórias vivas, também não há possibilidade de correlação entre os objetos desses períodos e os atuais. Segundo Ramos (2016, p. 57) trata-se de materialidades cujos produtores “só nos legaram uma parte de sua humanidade: aquela que é produtora de subjetividade não necessariamente verbal, a saber, a materialidade plasmada no registro arqueológico”. Considerando os estágios diferenciados de preservação da materialidade humana ao longo do tempo, consideram-se aqui os artefatos de natureza mineral (os objetos líticos).

Segue em perspectiva os estudos em “antropologia das técnicas” que desvia do estudo dos objetos enquanto substâncias inertes no tempo e no espaço, mas considerando-os como campos epistêmicos de poder heurístico capaz de apreender sutilezas da alteridade humana em tempos pretéritos. Assim como pressupõe o caráter ativo da cultura material, considerando que os fenômenos técnicos não são considerados como reflexo da cultura, mas como elementos participantes dela (FOGAÇA; BOËDA, 2006). Nessa abordagem, ancorada nos estudos de memórias (BERGSON, 2008) e de evolução tecnológica (SIMONDON, 1989; STIEGLER, 1998; BOËDA, 2013) o passado e seus objetos são considerados a partir de três níveis de memórias: viva, parcelar e esquecida. Nos dois primeiros há uma co-relação tecnológica e funcional plausível entre os objetos do passado (por exemplo, as pontas de projétil obtidas de contexto arqueológico) e aqueles advindos de grupos tradicionais dos quais dispomos de informações históricas ou antropológicas e mesmo de objetos modernos, como flechas produzidas a partir de pontas metálicas.

Todavia, há objetos onde esta conexão não é possível, neles as informações técnicas, de função e de funcionamento estão alojadas no nível da memória esquecida.

O fato de decretar o objeto morto faz com que não nos interroguemos de nenhuma forma sobre o modo de analisá-lo. Apenas alguns objetos que se dão a « ver » como as pontas de flecha ou os bifaces vão receber uma atenção particular, diferentemente da análise tipológica que leva em consideração o conjunto dos objetos. Essa situação de exclusão às expensas de uma única categoria de peças características e conhecidas em nosso mundo mostra que a análise técnica exaustiva de todo objeto não existe. Isso conduz, evidentemente, a situações paradoxais nas quais aquilo que não é reconhecido não é considerado. A exclusão pode, ainda, ir mais longe chegando à negação do caráter antrópico. […] Nosso trabalho consiste em compreender os mecanismos intrínsecos a essas mudanças os quais nos permitem entender os objetos tal como eles nos aparecem e, além disso, entender de onde eles são provenientes e qual é seu potencial de evolução. Trata-se de uma percepção do objeto através de seu potencial evolutivo (BOËDA, 2013, p. 233, 234).

Ascender às parcelas dessa memória esquecida implica num posicionamento epistemológico distinto do modelo hilemorfico e da concepção instrumental dos objetos e segue para além da perspectiva producional (tecnologia cultural, cadeia operatória LEROI-GOURHAN, 1964, TIXIER et al., 1980). Nessa perspectiva consideram-se que as tecnicidades estão constituídas no comportamento humano e, por isso, possuem uma história de movimento que acompanha a trajetória da humanidade, numa perspectiva de co-evolução (STIEGLER, 1998; BOËDA 2013), acessíveis a partir das intenções funcionais próprias de cada sistema tecnológico de produção e de funcionamento dos objetos técnicos (instrumentação e instrumentalização, RABARDEL, 1995; BOËDA, 2013).

Para finalizar, sem esgotar a questão, outra perspectiva instaurada na contemporaneidade investiga as relações da cultura (material) e da natureza baseada no conceito de “coisa” (INGOLD, 2012, p. 27); considerada não exatamente como uma fusão de elementos, mas resultado de “combinações variadas”, as quais são consideradas ativas e criativas na medida em que geram novos materiais (organismos) que serão misturados à outros, “num processo infinito de transformações”. Assim, de acordo com o referido autor, há uma preocupação em entender os elementos sem separá-los de seus ambientes, nesse sentido, organismos da natureza e da cultura estão fluídos, entrelaçados entre si e considerados partes do meio, se movimentam como entidades abertas e impulsionados pelos “fluxos de substâncias que lhe dão vida”.

[…] eu mostrarei que os caminhos ou trajetórias através dos quais a prática improvisativa se desenrola não são conexões, nem descrevem relações entre uma coisa e outra. Eles são linhas ao longo das quais as coisas são continuamente formadas. Portanto, quando eu falo de um emaranhado de coisas, é num sentido preciso e literal: não uma rede de conexões, mas uma malha de linhas entrelaçadas de crescimento e movimento (INGOLD, 2012, p. 27).

PARTE II – CULTURA E HISTÓRIA: O PASSADO HUMANO ATRAVÉS DA SUA MATERIALIDADE

O dossiê Materializando a História: o passado humano através da cultura material aborda diversos estudos arqueológicos como artefatos do tempo. Nesta perspectiva, o presente dossiê visa fomentar discussões acerca da materialidade presente em diferentes sociedades e períodos temporais. O dossiê está dividido em três principais temáticas, a primeira trata da representação imagética da cultura material, versando sobre a relação entre a materialidade e colonialidade; a segunda versa sobre a cultura material histórica de natureza edificada enquanto lugares de memória e como paisagem, assim como bem patrimonial que requer ações preservacionistas; por fim, a terceira temática está relacionada as materialidades presentes em tempos pretéritos, onde não há registro de memória viva ou de qualquer fonte documental de período histórico, cujos sentidos são acessíveis pelas tecnicidades presentes nas intenções humanas.

Os artigos da primeira temática tratam da representação imagética da cultura material, versando sobre a relação entre a materialidade e colonialidade. Assim, o artigo Recipientes atribuídos aos africanos e a seus descendentes nas obras de Debret como reveladores de colonialidades e agenciamentos de autoria de Clarissa Ulhoa, analisa os recipientes retratados em 50 obras do pintor francês, Jean Baptiste Debret, realizadas nos anos oitocentistas. Os objetos da análise foram discutidos no texto por meio do conceito de colonialidade, definido por Aníbal Quijano (2010) e de agência, por Lorand Matory (1999). A autora, ciente da influência dos discursos eurocêntricos na obra do artista, fundamentados nas lógicas ocidentais expressadas pela perspectiva cartesiana, “branca e cristã”, e ao mesmo, conhecedora do potencial da cultura material africana, Ulhoa utiliza-se dos aportes teóricos de agência para tratar da resistência dos africanos e seus descendentes manifestada nas materialidades retratadas nas telas de Debret. A materialidade analisada pela autora vem das representações dos recipientes, das vestimentas e dos próprios corpos dos negros escravizados. A autora percebe uma dicotomia na representação dos objetos, de um lado os retrata como demarcadores das colonialidades “do poder” e “do saber”, exibindo o aspecto deplorável do sistema escravista colonial e, de outro, evidencia os recipientes como materialidades ativas, marcadoras de identidade cultural, de oposição ao pensamento colonial em expansão. O artigo, por fim, tem a originalidade de se utilizar de representações oitocentistas para (re) ativar no leitor o pensamento crítico sobre a “faceta colonial da expansão capitalista e de seu projeto cultura” que se mantem ao longos dos anos (ASSIS, 2014, p. 613) e, dentre outros aspectos, atua na exclusão das heranças históricas e culturais dos povos africanos e supressão do projeto de humanidades dessas etnias. O artigo também expõe, a partir das representações, as estratégias e negociações cotidianas que permitiram a “existência física e simbólica” dos africanos e seus descendentes até os dias atuais.

O gênero como categoria de análise para pensar a continuidade das relações coloniais de poder foi o tema do artigo A garota carioca: colonialidade de gênero em imagens, redigido por Isabela Marques Fuchs. A autora baseia-se no conceito de colonialidade de gênero, proposto por Maria Lugones (2014) para refletir sobre o feminismo decolonial. Tem como objeto de estudo a representação imagética da garota carioca em um cartão-postal, considerado como materialidade histórica e cultural onde circula “um sistema de ideias e imagens de representação coletiva”. Os estudos decoloniais de gênero rechaçam a imposição binária da colonialidade (humanos / não-humanos ou mulher / homem) imposta ao longo dos anos e criada para treinar e domesticar o(a) colonizado(a), se fundamentando na premissa de dominação onde, segundo a autora, “o homem domina o corpo da mulher, colocando-a em eterno estado de sujeição e obediência”. Tais estudos também se fundamentam nas articulações das categorias corpo, sexo, gênero e raça que, para além da evidência biológica, propõem a ampliação e fluidez das posições de gênero onde as “concepções múltiplas ou duais, são reconhecidas e funcionam de modo assimétrico, mas não são hierárquicas e “nem sempre se reduzem a dois pares” (GOMES, 2018). Para firmar a continuidade das relações coloniais na contemporaneidade, a autora transita entre representações imagéticas do presente (cartão postal) e do passado (obra do século XVI, de Jan van der Straet, sobre o encontro de Vespúcio com uma indígena sem roupa). O texto discute sobre a representação do corpo da indígena como de outros corpos femininos presentes em diferentes suportes físicos e disponíveis em tecnológicas diversas, como uma manifestação do poder masculino. A autora, baseando-se em Mignollo (2017, p. 4) entende que o estereótipo da garota carioca, assim como das mulheres latino americanas, está relacionado com a própria América Latina que de forma perniciosa foi “inventada, mapeada, apropriada e explorada”.

A segunda temática versa sobre a cultura material histórica de natureza edificada enquanto lugares de memória e como paisagem, assim como bem patrimonial que requer ações preservacionistas. Entendendo a cultura material na sua ampla diversidade de suporte e, considerando igualmente o seu intrínseco aspecto intangível, apresentamos o artigo de Glenda C. Bittencourt Fernandes, denominado Cultura material e arqueologia no contemporâneo: o caso da Capela Pombo em Belém / Pará / Amazônia. O texto apresenta as histórias e materialidades da Capela Pombo, datada do século XVIII e considerada como o primeiro espaço religioso de caráter privado da cidade de Belém. A Capela de propriedade da família Pombo e, atualmente da Universidade Federal do Pará, representa um “lugar de memória” (NORA, 1993) da cidade de Belém, acionada constantemente por memórias individuais e coletivas que de forma ativa e dinâmica se interconectam. E, como tal, a Capela pode ser considerada como um fenômeno que envolve tanto a ordenação de vestígios materiais, como possibilita (re)leituras, a partir da socialização dos envolvidos. A autora (participante indireta da história da Capela) ao confidenciar sua relação pessoal e familiar com o objeto, aciona sua memória (individual) para transitar entre o passado, presente e o futuro da Capela Pombo. Ao mesmo tempo, num processo dialético, o texto busca a memória coletiva, plural para ressignificar sua percepção contemporânea sobre a edificação. Assim, Capela Pombo tem sua história redigida em documentos, mas a partir da sua materialidade outras histórias têm sido construídas ao longo de sua existência, assim como a própria materialidade tem sido transformada. Baseando-se em Costa (2010, p. 12) a autora percebe que “[…] mesmo estando com suas portas fechadas e parecendo invisibilizada ela tem o poder de “suporte de Informação” que estabelece com o sujeito uma “relação sensorial”.

Ainda nessa segunda temática, o artigo intitulado As transformações na paisagem: o mercado municipal da Cidade de Goiás, redigido por Marcelo Iury, Cristiane Loriza Dantas e Fernanda F. Cruvinel de Oliveira, apresenta a dinâmica da paisagem urbana da Cidade de Goiás, com foco no Mercado Municipal, edifício histórico, localizado às margens do Rio Vermelho e tombado em 1987. Segundo os autores, ao longo dos séculos XIX e XX o Mercado e suas adjacências sofreram várias transformações em sua estrutura física advindas de processos naturais, como enchentes do rio Vermelho, intensificadas por ações antrópicas, assim como modificações intencionais referentes à ampliação e / ou reestruturação do edifício. O artigo fundamentado no conceito de paisagem (Boado, 1991) e de lugar de memória (NORA, 1993), considera o mercado e suas adjacências como lugares de referências culturais da sociedade vilaboense do passado e da atualidade. A pesquisa embora tenha sido metodologicamente amparada por diversas fontes documentais, tem na materialidade compreendida pelo contexto do Mercado a base de identificação das transformações da paisagem daquele local.

Já os autores Mary Anne V. Silva e Ruber Paulo A. Rodrigues com o artigo Arte tumular e patrimônio: o cemitério Santana como expressão de cultura material na cidade de Goiânia, discorrem sobre a materialidade do cemitério Santana, localizado em Goiânia, Goiás, inaugurado em 1940 e patrimonializado no ano de 2000. O texto se orienta na perspectiva da cultura material e patrimônio, assim como está amparado nas discussões contemporâneas sobre espaços cemiteriais. A materialidade do cemitério Santana é considerada pelos autores como categoria de amplo potencial investigativo que atua para além da sua fisicalidade; a entende como categoria ativa e conectada a diversos segmentos, nela estão presentes momentos históricos culturais e religiosos específicos da sociedade goiana e nacional, assim como a sua materialidade em sentido amplo é também responsável por agenciar os sujeitos sociais. O texto além de expor a importância do acervo arquitetônico do cemitério, expresso principalmente pela art déco, também traz à discussão as problemáticas relacionadas às limitações das ações preservacionistas e de conservação dessa edificação histórica e cultural.

O artigo A casa do grito: o poder do museu casa e da mediação cultural no processo de elaboração da memória, de autoria de Luciano Araujo Monteiro, também trata de uma edificação histórica, patrimonializada na década de 1970 e situada no Parque da Independência, em São Paulo. A Casa do Grito foi investigada, dentre outros aportes, a partir de sua materialidade o que possibilitou tratá-la, para além de sua relevância histórica, sendo também considerada como um “lugar de memória”, de cultura, de arte e que conserva uma técnica construtiva tradicional. A Casa do Grito foi implementada como espaço museológico e, segundo o autor, os trabalhos de restaurações e escavações arqueológicas permitiram identificar o uso doméstico e, ao mesmo tempo público dessa edificação em seus tempos históricos; é considerada na atualidade como um símbolo nacional, constituído por memórias sociais de caráter coletivo, as quais têm ao longo dos tempos emitido diversas significações ao local.

Para finalizar essa temática, temos o artigo Conjunto arquitetônico do Carmo do Recife: estudo da documentação do arquivo central do IPHAN, redigido por Ricardo de Aguiar Pacheco que apresenta uma reflexão crítica sobre o papel das políticas públicas e seus atrelamentos a segmentos de outra natureza, como o valor histórico e cultural presentes nas materialidades históricas tombadas pelo IPHAN. O conjunto arquitetônico é composto pela Igreja da Ordem Terceira de Nossa Senhora do Carmo, Convento e Igreja de Nossa Senhora do Carmo do Recife, localizados no centro histórico da capital pernambucana e tombado pelo IPHAN como bem cultural em 1938. O autor ao investigar a documentação arquivada sobre tais edificações constatou que o reconhecimento patrimonial daqueles bens foi justificado a partir dos significados culturais atribuídos a essas edificações. O artigo está embasado em reflexões atualizadas sobre as políticas públicas, assim como, na relevância das memórias sociais (coletivas), construídas ao longo do tempo para legitimar o processo de reconhecimento ou tombamento dos objetos culturais como bens patrimoniais.

Por fim, fechamos o dossiê com artigo referente à terceira temática, intitulado Diagnose tecno-funcional de amostragem lítica datada do início do Holoceno médio no Sítio arqueológico GO-JA-01: características da estrutura de lascamento em presença, redigido por Marcos Paulo M. Ramos e Sibeli A. Viana. O artigo trata de um tema emblemático para a ocupação humana sulamericana em tempos pretéritos, a saber, os registros arqueológicos de período referente ao Holoceno médio (entre cerca de 8.000 anos a 4.000 anos antes do presente). Este horizonte ocupacional está encapsulado entre ocupações mais remotas (Holoceno antigo), detentoras de esquemas producionais de ferramentas líticas bem conhecidos na literatura e ocupação mais recente (Holoceno recente) de grupos ceramistas, igualmente bem investigados pela literatura. A materialidade dos objetos do período intermediário (Holoceno médio) foi tomada pelas pesquisas anteriores à década de 2000 como “simplista”, segundo os autores do artigo isso foi decorrente principalmente da ‘ausência’ de instrumentos morfologicamente bem definidos. A partir da materialidade lítica do sítio arqueológico GO-JA-01, localizado da região sudoeste do Brasil, os autores com base em estudos em ‘antropologia das técnicas’ (BOËDA, 2013), buscaram apreender sutilezas da alteridade humana em tempos pretéritos presentes nos esquemas técnicos de produção de ferramentas daquele sítio. O artigo também apresenta com acuidade as bases teóricas e metodológicas utilizadas, o que colabora com o fortalecimento das pesquisas, tendo em vista serem reduzidas as publicações em língua portuguesa sobre a abordagem empregada.

Referências

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Sibeli A. Viana – Professora efetiva do Programa de Pós-Graduação em História e de Graduação em Arqueologia da Pontifícia Universidade Católica de Goiás. Líder do Grupo de Pesquisa em Patrimônio Cultural. Coord. do Núcleo de Arqueologia da PUC Goiás / IGPA. Vice-presidente da Comissão Povoamento Americano / UISPP E-mail: sibeli@pucgoias.edu.br


VIANA, Sibeli A.; COSTA, Diogo Menezes. Apresentação. Revista Mosaico. Goiânia, v.12, n.1, jan. / jun., 2019. Acessar publicação original [DR]

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Cultura Material e Impressa na construção da História | Temporalidades | 2018

O que se imprime e o que se lê?

Oportuna é a proposta deste dossiê da Temporalidades de evidenciar reflexões que privilegiem o diálogo temático da cultura impressa com a perspectiva de análise historiográfica que busca na leitura dos objetos o caminho instrumental da compreensão histórica. Os elementos materiais da cultura – como prefiro nominar o que normalmente se chama de “cultura material” – apresentam-se ao historiador como documentos de realidades sociais. Não são apenas simples reflexos da construção social, mas, repertórios de objetos criados e feitos pelo homem e integrados em sua constituição histórica. Os artefatos não são, ainda, simples detentores de sentidos sociais deslocados de seus usos: são enunciados que dão sentido às realidades, atribuem valor às coisas dos homens, induzem e instrumentalizam as práticas sociais. Leia Mais

Arqueologia e cultura material / História – Debates e Tendências / 2017

Este dossiê se circunscreve na importância que a arqueologia e a cultura material adquiriram na última década, potencializadas pela complexa legislação de defesa do patrimônio, criadas e em vigência nos países da América do Sul. Em consequência, multiplicaram-se as demandas de profissionais para as diversas áreas de estudo e preservação dos patrimônios materiais e imateriais. Como resultado dessa nova realidade, a Universidade de Passo Fundo passou a ofertar um curso de Especialização em Cultura Material e Arqueologia, abriu vagas para pós-graduandos para mestrado e doutorado nesses temas, constituiu o seu Laboratório de Cultura Material e Arqueologia (Lacuma), vinculado ao Núcleo de Pré-História e Arqueologia (NuPHA), do Programa de Pós-Graduação em História (PPGH), além de desenvolver diversos programas educativos e de formação.

Esta publicação refere as legislações específicas, analisa as mudanças na definição da Unesco em termos de contextos temporais, sociopolíticos, filosóficos e culturais. No geral, quando se trata de políticas públicas, os profissionais estão sempre diante do dilema de que, socialmente, a construção e a geração de necessidades para criação de patrimônios culturais vêm de grupos hegemônicos, portanto, seu uso é imposto para a sociedade, quase sempre com a intenção de afirmar uma memória confortável. Leia Mais

Cultura material e cultura intelectual (séculos XVI-XIX) / Antíteses / 2017

Este dossiê temático que intitulámos “Cultura material e cultura intelectual (séculos XVI-XIX)” constitui mais um resultado palpável da parceria iniciada há alguns anos entre as duas signatárias, as docentes, Maria Renata da Cruz Duran, da Universidade Estadual de Londrina, e Isabel Drumond Braga, da Universidade de Lisboa. No decurso do pósdoutoramento da primeira, pensou-se na preparação de um número temático de uma revista brasileira que acolhesse trabalhos de investigadores dedicados ao estudo da história da cultura com os quais as coordenadoras tivessem, de algum modo, trabalhado. O resultado que agora vem a público é apenas uma parte desse projeto que tem continuidade em outras vertentes e suportes.

Objeto de estudo da História enquanto matéria autónoma, desde o século XIX, com os textos fundacionais de Jacob Burckhardt e Johan Huizinga, e com percursos e autores muito diferenciados ao longo dos tempos, a cultura é o foco do presente dossiê, tendo em conta as suas facetas material e intelectual, naturalmente enlaçadas. Os séculos XVI e XIX servem como fronteiras de um panorama que tem início na Península Ibérica, com o texto “As Leguminosas no Portugal Moderno: uma presença constante e discreta”, de uma das organizadoras, e também autora convidada, Isabel Drumond Braga, da Universidade de Lisboa. Elaborado no rescaldo do Ano Internacional das Leguminosas (2016) o texto apresenta fontes como livros de culinária, informações sobre dietas de estudantes, de religiosos e de presos, provérbios, relatos de viajantes estrangeiros e outras, a fim de explorar as potencialidades da História da Cultura.

“Cultura material en la clausura de la realeza: “Las reliquias (tipos, simbología y cuidado) en el Monasterio de Las Descalzas Reales en Edad Moderna” é o texto subsequente, onde Esther Jimenez, da Universidade de Granada, explora as esferas de poder no universo feminino quinhentista a partir de seus vestígios materiais.

O doutor Carlo Pellicia, investigador do CLEPUL (Centro de Literaturas e Culturas Lusófonas e Europeias), da Universidade de Lisboa, apresenta em suas “Notas sobre influência da cultura portuguesa no Japão (séculos XVII e XVIII): o legado dos missionários europeus”, uma sondagem acerca do nanbangaku ou nanban bunka, ou seja, o conjunto das doutrinas dos “bárbaros do sul”, que não conheceu o seu epílogo com a proscrição do cristianismo, nem com o afastamento do mercantilismo ibérico. Situado entre 1641 e 1715, o artigo nos transporta para uma Ásia portuguesa.

Através de um profícuo diálogo entre Literatura e História, Markus Ebenhoch, da Universidade de Salzburgo, produziu o texto “O discurso religioso nas Obras do diabinho da mão furada”. Dedicado ao estudo de António José da Silva (1705-1739), chamado “o Judeu”, Ebenhoch apresenta uma análise dos processos inquisitoriais levantados contra António José da Silva, detendo-se no que classificou como “uma crítica satírica ao catolicismo e ao Santo Ofício, escrita por um antigo preso desta instituição”.

Maria Marta Lobo de Araújo, da Universidade do Minho, parte da análise intrínseca de um recolhimento do norte de Portugal, durante o século XVIII em “Aprender na clausura: a aula publica do recolhimento da Caridade de Braga, no século XVIII”. Local de preservação e definição da honra feminina, o espaço é sondado a partir de um cruzamento de fontes relativas às questões materiais e intelectuais.

Da mistura desses aspectos também se vale Francisco de Almeida Dias, Università degli Studi della Tuscia (Viterbo), com o seu texto sobre “D. Alexandre de Sousa e Holstein e a cultura lusitana numa Roma em ebulição (1790-1803)”. No artigo, o autor aborda a formação artística dos jovens portugueses enviados pela Casa Pia de Lisboa, bem como a fundação de uma efémera Academia de Belas-Artes, que teve D. Alexandre de Sousa e Holstein como protagonista.

Com “Assistência e cultura material: o património móvel do hospital da Santa Casa da Misericórdia de Pombal na segunda metade do século XIX”, Ricardo Pessa de Oliveira destaca o âmbito patrimonial em que a cultura artística, assim como a material, costumam operar. Claudia Marques Martinez, da Universidade Estadual de Londrina, atua no mesmo sentido, situando, todavia, uma abordagem da cultura intelectual no Brasil em que emerge o termo “cultura imaterial”, no texto “Manoel Bernardes da Cunha Cação, o inventário de um abolicionista: da cultura material à cultura imaterial”.

Carollina de Lima, da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afrobrasileira, nos situa no campo do papel social da literatura na sondagem da cultura imaterial e / ou intelectual em ”A conciliação nos folhetins: Joaquim Manuel de Macedo e a carteira do meu tio (1855)”. Aldrin Figueiredo, da Universidade Federal do Pará, distende a história social ao analisar o papel da arte sacra e religiosa na Amazônia no contexto do movimento de renovação do catolicismo brasileiro no século XIX, mediante fontes em prosa, verso, pintura e escultura.

Na intersecção do design, “Joalheria de Crioulas: Subversão e Poder no Brasil Colonial”, de Amanda Gatinho Teixeira, mestre em Antropologia pela Universidade Federal do Pará, integra a seção dedicada a estudantes de pós-graduação, reaberta nesse número, apresentando uma visão histórico-antropológica acerca da joalheria Oitocentista no Brasil.

O dossiê fecha com o texto da organizadora Maria Renata da Cruz Duran, professora de História Moderna e Contemporânea da Universidade Estadual de Londrina, pós-doutoranda pela Universidade de Lisboa e bolsista PDE / CNPq, com o artigo “A ´augusta mãe por cima das ondas do oceano´: a corte portuguesa no púlpito brasileiro”, no qual revisa um sermão de frei Francisco de São Carlos, pregador real no Rio de Janeiro em 1809, com a finalidade de averiguar, na sermonística, um modelo de narrativa histórica que procura estabelecer uma interligação entre Portugal e Brasil, no solo sagrado das Capelas Reais.

Como se pode notar, o presente dossiê explora diferentes fontes, métodos e objetos, destacando na História da Cultura um manancial de compreensão da sociedade moderna e contemporânea que, tal como os autores aqui reunidos, ultrapassa e entrelaça fronteiras.

Maria Renata da Cruz Duran, Universidade Estadual de Londrina – PDE / CNPq

Isabel Drumond Braga, Universidade de Lisboa, Faculdade de Letras e CIDEHUS-EU

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[DR]

 

Cultura material no universo dos Impérios europeus modernos / Anais do Museu Paulista / 2017

Render-se ao óbvio

Os eventos da história podem significar para o pesquisador um encontro com as formas materiais que deles são parte. Essas podem, para quem lhes é sensível, funcionar como um choque sensorial. [2] Nessa agressão aos sentidos do investigador pode fundamentar-se a força da leitura dos artefatos de modo a compreendê-los. Dependendo da sensibilidade do pesquisador (e de suas escolhas) a compreensão dessas estruturas materiais leva-o a vê-las como coisas do homem e, mais ainda, partes do humano. Às vezes, as percebe como componentes indistintos das opções do homem, de suas ações, de seus atos, enfim, dos fatos históricos. Os fatos do homem social incorporam indivisivelmente seus artefatos.

Pensar sobre os elementos materiais da cultura e tê-los como fonte de compreensão do mundo dos homens é o que fazem os autores que apresentam interpretações do mundo neste dossiê. Mundo de vários tempos; temporalidades que buscam uma certa unidade desigual. Embora marcadas, pelos organizadores do dossiê, como “o universo dos impérios europeus modernos”, são complexas e díspares as temporalidades próprias deste universo. Os tempos marcam os objetos tanto quanto os objetos marcam o tempo. Os elementos materiais dos “impérios europeus modernos” têm a diversidade dos mesmos impérios na modernidade. Vastos impérios! Tempos diversos! Artefatos amplos! Sacros, de consumo, simbólicos, significativos e de técnicas, não importa, são as coisas materiais dos gestos do homem.

Os objetos dão-nos a compreensão de nós e dos outros. Identificam culturas e nos evidenciam a “marcha do tempo”. Do tempo dos homens. Do homem no tempo.

Alguns diagnosticam os objetos como a parte “não humana” da vida. Ora, é preciso desumanizar a vivência humana para perceber o material como humano e ver a vida social como a indivisibilidade entre o humano e o material. Em exercício de contraponto é necessário humanizar o artefato. O conjunto de objetos de uma vivência, a chamada “cultura material”, é mais que o trabalho do homem, o seu produto, o consumo do homem, a técnica e a tecnologia que ele cria, o saber que ele inventa, o progresso da sociedade humana, a simbologia ou a filosofia do homem. O objeto é o homem; é a extensão do seu gesto. É o próprio gesto.

O gesto é artifício, é expressão, é movimento corporal que une o corpo e a materialidade própria do organismo humano. O artefato, materialidade que estende o gesto ao seu mundo, é instrumento das intenções, opções e sentimentos do homem.

Como lê o objeto o historiador, o antropólogo, o sociólogo, o filósofo? Como reflexo, representação, apropriação? Deveria lê-lo como indistinguível do humano! O artefato é legível como mercadoria, consumo, convivialidade, celebração, urbanidade, ruralidade, produto, trabalho? Os textos que se seguem respondem a esses questionamentos e levantam questões novas para se pensar o homem social e a cultura material que ele constrói.

A “cultura material” indefinida e indefinível não existe mais para o cientista social. Ela tornou-se definível com claridade ao conjugar-se com a dinâmica do homem social e com as leituras das várias disciplinas sociais.[3] Teorias e perspectivas distintas têm contribuído para enriquecer as análises da materialidade das vivências históricas, a despeito de ser comum, ainda, lermos e ouvirmos discursos que clamam por maiores definições do que seja “cultura material” e por metodologias que permitam seu uso como fonte de compreensão da história dos homens.

Há, entretanto, uma dinâmica tradição nas ciências humanas em tomar o campo da cultura material para se compreender as vivências históricas. Essa dinâmica, como é próprio às tradições, se apresenta em ritmos de manutenção de perspectivas e de questionamentos a formas de análises e de leitura dos artefatos. Uma nova antropologia do consumo, por exemplo, crítica à perspectiva semiótica – que trata a materialidade como algo inanimado ou simples instrumento da representação social – impõe ao objeto a condição de constituinte do homem.[4] Aí o artefato material é gerador de sentidos para a compreensão das sociedades, não apenas para a representação delas. O simbólico e o material são, assim, analisados como unidade.

Para Daniel Miller, os trecos materiais “têm uma capacidade notável de se desvanecer diante de nossos olhos, tornam-se naturalizados, aceitos como pontos pacíficos, cenário ou moldura de nossos comportamentos.”[5] A solução para Miller seria, então, colocar nossas abstrações teóricas “de volta na algazarra da vida cotidiana e na gloriosa confusão de contradição e ambivalência que ali se encontram”.[6]

De modo geral, a historiografia, com honrosas exceções que não enumeraremos aqui para não cometermos injustiças, costuma dar um tratamento analítico restrito à chamada “cultura material”, tratando-a como reflexo da construção social e não como um repertório de manifestações e de elementos da cultura integrados em sua constituição histórica. Assim, os artefatos, os objetos, as materialidades são vistos como produtos, como consumos, como instrumentos técnicos do homem em sociedade, quando deveriam ser analisados como documentos do viver, das experiências de vida.

Não se deve ler os objetos deslocados do seu uso, dos seus sentidos sociais. Um garfo, por exemplo, tem sentido tanto como instrumento, quanto gesto humano; tanto como artefato, quanto fato. Um garfo é detentor de sentidos sociais. O garfo é um fato sócio-histórico.

A despeito da crítica acima, é grande a contribuição dos estudos de cultura material na área de história. Como vem acontecendo em sua tradição, ela possibilita aos historiadores compreender dimensões importantes da sociedade ao aquilatar a produção de riquezas, as construções técnicas e tecnológicas, as especificidades de categorias sociais, as distinções de ritos da vida, as representações sociais e simbólicas etc. Contribuição maior esses estudos dão quando dimensionam junto com tudo isso as experiências humanas, as vivências. Os objetos, afinal, são parte do conjunto complexo e dinâmico do viver.

De tão presentes, comuns, banais [7] e importantes para a vida, tendemos a naturalizar os objetos, desumanizá-los. Esquecemos que são construções do homem; são cultura. Repetimos a forma dicotômica de tratar o humano opondo as tríades mente / pensamento / linguagem à corpo / prática / matéria. Ao naturalizar os artefatos determinamos a eles a condição de obviedade de clareza axiomática, evidência intuitiva. É preciso valorizar o que parece óbvio; pensar as obviedades com curiosidade cognitiva. Necessário, enfim, deixar de opor o material ao simbólico, como temos deixado de opor o natural ao cultural.

Os textos que aqui se apresentam rendem-se à riqueza do que é óbvio. Eles impõem aos artefatos da vida a historicidade da qual são parte.

Notas

2. Farge (2015, p. 7).

3. Rede (2012), Appadurai (1986).

4. Miller (1987, 1998, 2013).

5. Miller (2013, p. 228).

6. Miller (2013, p. 230).

7. Roche (2000), Garcia (2011).

Referências

APPADURAI, Arjun. (org.). The social life of things. Cambbridge: Cambridge University Press, 1986.

FARGE, Arlette. Le peuple et les choses. Paris au XVIIIe siècle. Montrouge: Bayard, 2015. GARCIA, Tristan. Forme et objet. Un traité des choses. Paris: PUF, 2011.

MILLER, Daniel. Material culture and mass consumption. Oxford: Blackwell, 1987.

MILLER, Daniel. (org.) Material cultures: Why some things matter. Chicago: The University of Chicago Press, 1998.

MILLER, Daniel. Trecos, Troços e Coisas. Estudos antropológicos sobre a cultura material. Rio de Janeiro: Zahar, 2013.

REDE, Marcelo. História e cultura material. In: CARDOSO, Ciro F.; VAINFAS, Ronaldo. (orgs.). Novos domínios da História. Rio de Janeiro: Campus / ELSEVIER, 2012, p. 133-150.

ROCHE, Daniel. História das coisas banais. Nascimento do consumo. Séc. XVII-XIX. Rio de Janeiro: Rocco, 2000.

José Newton Coelho Meneses – Docente do Departamento de História – FAFICH-UFMG.


MENESES, José Newton Coelho. Introdução – Cultura material no universo dos Impérios europeus modernos. Anais do Museu Paulista. São Paulo n. Sérv., v.25, n.1, p.9-12, jan./abr., 2017. Acessar publicação original [DR].

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Patrimônio e Cultura Material / Projeto História / 2010

A coletânea de textos aqui apresentada tem como meta primordial problematizar as noções de História, Memória, Patrimônio e Cultura Material. Considera-se Patrimônio e Memória, assim como cultura material concebida, segundo Michel de Certeau, artes de fazer, modos de apropriação e utilização de objetos que inventam e reinventam o cotidiano, fazem parte de relações de poder, expressam disputas, conflitos, colaborações e alianças entre os agentes sociais envolvidos com estas questões.

Este campo da historiografia integra as reflexões do Departamento de História da PUC / SP já há algum tempo, consubstanciada, primeiramente, na criação do Centro de Documentação e Informação Científica “Prof. Casemiro dos Reis filho” (CEDIC) em 1980, ao qual foi conferida uma vocação interdisciplinar desde seu nascimento. O acúmulo resultante destas reflexões teve um impacto social maior quando passou a participar dos debates sobre a atuação de órgãos públicos como o Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Artístico, Arquitetônico e Turístico do Estado de São Paulo (CONDEPHAAT) e do Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico, Cultural e Ambiental da cidade de São Paulo (CONPRESP). Conforme situa um dos artigos deste dossiê, citando a museóloga e historiadora da arte Lygia Martins Costa, em texto de 1992, dividiam-se os bens que compunham o patrimônio cultural brasileiro tradicionalmente em duas categorias: os bens imóveis e os bens móveis. Os bens imóveis compreendiam o acervo arquitetônico, urbanístico e natural protegido, que, por sua natureza irremovível, se prendiam ao contexto em que se inseriam. Os bens móveis formavam-lhe o contraponto.

As discussões sobre as novas dimensões reconhecidas como patrimoniais, ensejaram a revisão de posturas que expressavam uma concepção de História que privilegiava as classes dominantes. Desde a criação do SPHAN, em 1937, os órgãos públicos envolvidos com o patrimônio urbano haviam adotado uma política cultural que enfatizava como digna de preservação da memória social apenas as ações dos que considerava como os grandes homens da História do país. Contrário a tal postura, Nestor Garcia Canclini afirma, no interior deste debate:

O Patrimônio cultural serve, assim, como recurso para produzir as diferenças entre os grupos sociais e a hegemonia dos que gozam de um acesso preferencial à produção e distribuição dos bens. Os setores dominantes não só definem quais bens são superiores e merecem ser conservados, mas também dispõem dos meios econômicos e intelectuais, tempo de trabalho e de ócio, para imprimir a estes bens maior qualidade e refinamento.[1]

Ou seja, questiona-se a ideia de uma nação única e hegemônica, contrapondo-se à compreensão de patrimônio cultural como a “expressão do que um conjunto social considera como cultura própria”,

que sustenta sua identidade e o diferencia de outros grupos – não abarca apenas os monumentos históricos, o desenho urbanístico e outros bens físicos; a experiência vivida também se condensa em linguagens, conhecimentos, tradições imateriais, modos de usar os bens e os espaços físicos. Contudo, a quase totalidade dos estudos e das ações destinados a conhecer, preservar e difundir o patrimônio cultural continuam se ocupando apenas dos monumentos (pirâmides, locais históricos, museus).[2]

Privilegiar o conceito de patrimônio atribuído por especialistas, algumas vezes, é afastar a possibilidade das camadas populares acumularem saberes que podem intervir naquilo que parece já estar dado. Quando se pensa em tradições populares, elas aparecem para o poder público como práticas que devem ser destituídas de seus sentidos originais, “folclorizando” experiências que figuram congeladas no tempo e no espaço, não se pensa nas tradições como espaço em movimento, tornando a admiração acrítica, destituída de uma força que potencialmente transforma, “trata-se de se reconhecer que, neste saber fazer, preservar, difundir, aprender e refazer práticas são elementos indissociáveis”.[3]

Sendo assim, é importante que os historiadores que atuam como profissionais em órgãos públicos responsáveis pela preservação do patrimônio histórico e cultural ou nas escolas e universidades reflitam sobre as diferentes práticas que embasam políticas públicas, concepções de ensino, memória e patrimônio, das quais resultam projetos diversos de sociedade. Projetos estes que implicam na reprodução de interesses dominantes ou que, de outro modo, delineiam perspectivas de uma sociedade transformada incluindo experiências de outros sujeitos e suas histórias, respeitando multiplicidades e diferenças, estas também com direito à Memória e à História.

No Departamento de História da FCS / PUC-SP esta disciplina faz parte de nossa reforma curricular desde 2007, enfatizando a importância do tema para os profissionais da História, que permaneceram durante muito tempo com escassa participação na tomada de decisões nesta área.

Muitos acervos documentais que nos ajudam a refletir sobre experiências diversas e evocar a História a contrapelo necessitam de incentivos para sobreviver. Lembramos de alguns que procuram preservar experiências que se ligam aos movimentos sociais como o CEDIC da PUC / SP, o Centro de Documentação e Memória (CEDEM) da UNESP, o Centro de Documentação e Pesquisa Vergueiro (CPV), o Arquivo Edgar Leuenroth, da UNICAMP, apenas para citar alguns em São Paulo. É preciso reconhecer e garantir a existência e autonomia destas instituições, para que elas cumpram sua missão intelectual e política, tornando pública a possibilidade de muitas experiências.

A perspectiva assumida no Brasil sobre o patrimônio como o conjunto de “bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade”, conforme artigo 16 da Constituição Federal, expressa a abrangência inicialmente colocada. Tal perspectiva afirma-se nos liames dos artigos componentes deste número, cujas reflexões permitem, não apenas recuperar a cultura material das mais diversas concretudes sociais, mas também o patrimônio que revelam.

Um dos principais temas do debate contemporâneo sobre a preservação e o restauro dos bens culturais abarca, a “dimensão urbana da tutela”, sobretudo, conforme atesta um dos autores, a partir da década de 1960. “Como toda ação modificadora em um artefato de interesse cultural pressupõe o reconhecimento e entendimento prévio de suas especificidades como premissa para fundamentar qualquer proposta, o reconhecimento de bens cada vez mais complexos tem nos colocado diante de grandes desafios interpretativos e operacionais”.

Também incorpora um novo olhar aos museus, nos quais é possível recuperar como estes “operaram as narrativas de memórias expressas em suas coleções permanentes, e dá pistas sobre a complexidade gerencial que afeta os museus de arte contemporânea na atualidade”. Ou o reconhecimento de que são “lugares de memória” os arquivos audiovisuais. Conforme os autores aqui presentes, “muitas vezes preservadas em cinematecas, outras vezes em arquivos pessoais, essa documentação variada foi geralmente acumulada, ao longo de anos, por personalidades ligadas à cultura de um país”, o que se estende também às instalações industriais, máquinas, ofícios, sítios. Enfim, nos alertam eles, no caso do Brasil, “estes parecem ser os vieses temáticos que se cruzam na questão patrimonial, e predominam atualmente em trabalhos e tese acadêmicas: a história da técnica, a perspectiva socioeconômica e análise arquitetônica”.

Revela-se assim uma tessitura, conforme indica outro autor, citando Françoise Choay, de “expansão ecumênica das práticas patrimoniais” 4 que gera uma “crescente especialização dos conhecimentos e das práticas relativas ao patrimônio cultural, expressos em documentos, cartas e recomendações internacionais, em normativas jurídicas nacionais e em métodos e técnicas de preservação – inventários, planos de gestão e salvaguarda, restaurações, ações de conservação preventiva, acondicionamentos, etc.” Uma preservação que passou a considerar também a relação da atividade humana com o meio ambiente. Adentramos assim à difícil relação entre patrimônio cultural e natural “não por sua realidade e importância intrínseca, mas por seus valores estéticos, na mesma direção que o patrimônio cultural” é enfrentada neste número por mais de um autor, trazendo assim uma grande contribuição aos novos pesquisadores, voltados para o tema. Neste sentido, por exemplo, situa um deles, como a apropriação da água como bem privado desde o período colonial, contribuiu para o “assoreamento de rios, para o processo de extinção de algumas espécies e para o desvio, e até mesmo a completa destruição, de alguns corpos de água”.

A identidade patrimonial inerente à constelação latino-americana se revela nas reflexões da especialista da Colômbia, que demonstra como louças, selos, moedas e objetos de uso cotidiano, nos quais foram cunhadas figuras representativas dos ideais de liberdade, igualdade e fraternidade tornam-se “objetos patrióticos” porque “servirão para educar e incentivar os sentimentos republicanos ou imperiais em todos os níveis sociais”.

Também perpassa o conjunto dos textos, como que em uma transversalidade, a relação entre patrimônio e cultura material, para cuja elucidação se arroga os “herdeiros dos Annales: Daniel Roche e Jean-Marie Pesez. Roche assinala que a cultura material viabiliza-se pela produção e pelo consumo. Para Pesez, é no acontecimento sócio-econômico que podemos encontrar as linhas centrais da cultura material”.5 Desde o reconhecimento da leitura “como um instrumento de decodificação do patrimônio cultural de um grupo, de suas relações de pertencimento, dos seus legados intergeracionais” até “fotografias de automóveis e caminhões pelas ruas de uma cidade, por exemplo; ilustrações valorizando chamadas publicitárias através dos jornais escritos, reproduzindo imagens que se constituíram em objetos do desejo de parcelas da população; matérias veiculadas nesses mesmos jornais dando conta de condutas desviantes de populares em contato com estes objetos; os trabalhos de memorialistas que nos conduzem por espaços da cidade sobre os quais, muitas vezes, não temos outras informações”, revelam a cultura material espectral dos que os produziram. Assim como a revelam registros parlamentares da virada do século XIX para o XX que contribuem para a compreensão da especificidade dos processos de autonomização da esfera jurídica em relação à religião no Brasil, ou em outra perspectiva, “anúncios frequentes e pulverizados nos jornais, testemunhando, na dimensão cotidiana, uma faceta da dinâmica ampla de generalização e diferenciação do consumo no contexto das grandes cidades brasileiras ao longo da segunda metade do século XX”. A perspectiva da cultura material, tomada pelo autor neste último exemplo traz para os leitores o clássico conceito de “infra-economia” de Fernand Braudel.6 A filmografia científica “dedicada principalmente à medicina e dentro desta à cirurgia cardíaca” permite ao autor “pensar a temática da ciência e da tecnologia e sua inserção em nossa sociedade”. A mesma base documental revela, para outro autor o quanto, na America Latina, a “história e a prática da fotografia têm evidenciado questões vitais a respeito das relações entre o poder e as culturas, da representação da cultura e seus significados, e as conexões entre intenção, expectativa e conteúdo”,7 assim como permitem reflexões sobre a categoria sertão, para o que outro historiador insere ainda literatura, música, e fotografia. Referimo-nos particularmente à cultura material recuperada dentre as mais de 60.000 fotografias que Pierre Verger capturou com sua Rolleiflex.

É nesse universo que se insere a presente edição de Projeto História sobre patrimônio e cultura material, que assume um caráter urgente ao contribuir para uma reflexão conceitual e política transformadora, reflexão tão importante para os profissionais de história e para o exercício da cidadania por todos.

Notas

1. Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, nº 23, Rio de Janeiro, DPH / SMC, 1994, pg. 95.

2. Idem, p. 114.

3. BRITES, Olga. Memória, Preservação e Tradições populares, in O Direito à memória – Patrimônio Histórico e cidadania, São Paulo, DPH, Secretaria Municipal de Cultura, 1992, pp.17-20.

4. CHOAY, F. A alegoria do patrimônio, São Paulo, Estação Liberdade, UNESP, 2001, p. 207.

5. Conferir ROCHE, Daniel. História das Coisas Banais – Nascimento do Consumo nas sociedades do século XVII ao XIX. Rio de Janeiro, Rocco, 2000, p. 11; PESEZ, Jean-Marie. A história da Cultura Material. In LE GOFF, Jacques. CHARTIER, Roger. REVEL, Jacques. A Nova História. Tradução Maria Helena Arinto e Rosa Esteves. Coimbra, Portugal, Almedina, s / d., p. 110-143, p. 113.

6. BRAUDEL, Fernand. Civilização material, economia e capitalismo, séculos XV-XVIII, vol. 1, As estruturas do cotidiano: o possível e o impossível. São Paulo, Martins Fontes, 1995.

7. LEVINE, Robert. Image and Memory: Photography from Latin America, 1866-1994, in Hispanic American Historical Review, 79.3, 1999, p. 536-538.

Olga Brites

Mariza Romero


BRITES, Olga; ROMERO, Mariza. Apresentação. Projeto História, São Paulo, v. 40, 2010. Acessar publicação original [DR]

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História, Produção Intelectual e Cultura Material / Revista Eletrônica História em Reflexão / 2008

A IV Edição da Revista Eletrônica História em Reflexão apresenta o Dossiê História, Produção Intelectual e Cultura Material. Trata-se de uma homenagem a VI Semana de História “História, Memória e Produção Intelectual”, realizada entre os dias 27 a 30 de novembro de 2007, na Universidade Federal da Grande Dourados, sob a coordenação de discentes do Programa de Mestrado em História.

O Evento contou com a participação de pesquisadores de várias instituições de MS e Estados vizinhos, além dos professores ligados ao Ensino Básico. A VI Semana de História teve, entre outros objetivos, o debate das dificuldades encontradas na divulgação das pesquisas e estudos realizados no âmbito das Ciências Humanas e as relações entre os órgãos de fomento e as instituições de pesquisa.

Além disso, o Evento visou proporcionar espaço aos graduandos, pós-graduandos e docentes da UFGD para a apresentação / divulgação de pesquisas e estudos em andamento e concluídas, tendo em vista debater as dificuldades encontradas na realização e / ou divulgação dos conhecimentos. Quando se fala em produção de conhecimento, quase sempre se refere à construção de saberes registrada sob a forma escrita. Nos meios acadêmicos essa é, ao mesmo tempo, uma exigência das agências de fomento e uma forma de controle institucional de produção. Se isto só não bastasse, por sermos avaliados pelo que produzimos, nos tornamos “pessoas-produtos”. O próprio jogo institucional nos ordena em pesquisadores melhores e piores, medíocres e brilhantes, nos distribui em níveis hierárquicos sob siglas bem definidas pelas agências de fomento. Passamos a nos olhar com a discriminação que tais classificações acabam por engendrar. Separamo-nos assim, arrogantemente, uns dos outros, dentro do castelo que habitamos (Regina Maria de Souza, 2008, anped.org.br).

Diante dos dilemas e angústias que perpassam o cotidiano dos “produtores de conhecimento”, da difícil tarefa de encontrar palavras adequadas para dar forma aos conhecimentos, a IV Edição da Revista Eletrônica História em Reflexão, mais do que oportunizar o espaço para a divulgação dos trabalhos, ora apresentados, objetiva contribuir para tornar menos frio e solitário a construção e divulgação dos saberes e, a partir de uma perspectiva de “cumplicidade científica” diminuir o “sinônimo” de pessoas produtos que de forma silenciosa e quase imperceptível espreita o dia-a-dia dos construtores de conhecimento.

O primeiro artigo, intitulado “Pintando o Brasil: artes plásticas e construção da identidade nacional (1816-1922)”, de autoria da professora Drª Giselle Martins Venâncio salienta que hoje é praticamente consensual a idéia de que é a prática de tombamento e preservação de bens culturais o que permite a construção da identidade nacional. Assim sendo, o presente texto busca investigar formas plásticas – particularmente a chamada arte do barroco mineiro, as pinturas históricas do século XIX e o modernismo – que, preservados em museus, tombados em seus locais de origem ou reproduzidos em livros e / ou obras didáticas, contribuíram para plasmar imagens de uma memória nacional e para a consolidação da idéia de nação no Brasil.

O autor Pablo Barbosa, em seu texto “Saberes antropológicos e práticas coloniais em Portugal entre 1933 e 1974”, relata que a institucionalização do Estado Novo Português, em 1933, possibilitou, por um lado, que as técnicas etnográficas fossem reapropriadas pelos funcionários coloniais e, por outro, que o saber etnológico, como instrumento político, colaborasse na gestão das populações indígenas. Partindo de uma reflexão sobre a obra antropológica de Jorge Dias, procura analisar, em primeiro lugar, as convergências entre racionalidade científica e racionalidade administrativa dentro de um contexto colonial e em segundo lugar, estudar de que forma o saber antropológico conhece um duplo movimento de instrumentação e de legitimação dentro do universo político português entre 1933 e 1974.

No texto “As relações diplomáticas entre o Barão de Caxias, os Farroupilhas e os Governos Platinos e provincianos durante a Revolução Farroupilha” Jéferson Mendes destaca que durante a guerra contra os farroupilhas, o general e presidente da província do Rio Grande do Sul, Luiz Alves de Lima e Silva, o barão de Caixas, manteve intensa atividade diplomática, militar e administrativa. Assim, discute a correspondência e atividades diplomáticas de Caxias com lideranças do Prata, dos rebeldes e do governo imperial. As fontes que trabalha, se encontram no acervo do Núcleo de Documentação Histórica (NDH), do PPGH-UPF. Nelas ficam demonstradas as estratégias e táticas do barão para vencer os farroupilhas, os procedimentos para neutralizar o apoio externo aos rebeldes e as alianças com líderes platinos.

Amanda Pinheiro Mancuso, em “A História Militar: notas sobre o desenvolvimento do campo e a contribuição da História Cultural” propõe um exercício de reflexão teórica sobre o papel da história militar e as críticas que lhe são freqüentemente dirigidas, articulando essas questões com as reflexões sobre a construção histórica empreendida pela História Cultural, de forma a mostrar que as fraquezas e vulnerabilidades que atingem a produção histórica militar são as mesmas a que está sujeita de maneira geral toda produção historiográfica. O objetivo da autora, não é redimir a história militar e sua produção oficial pelo caráter ideológico comumente incutido nessas produções, mas sim, tornar o leitor atento a essas características que são marcantes nas construções históricas oficiais em função do papel institucional que exercem, de forma a ultrapassar barreiras culturais que se colocam diante dos historiadores e que acabam reproduzindo visões essencializadas sobre “os militares” como categoria de análise.

Em “A religiosidade na dança: entre o sagrado e o profano”, Solange Pimentel Caldeira apresenta um breve histórico da presença da Dança no contexto do sagrado nas antigas civilizações até seu banimento da liturgia oficial da Igreja Católica. Enfoca a tradição dançante mantida nos guetos e a preservação, pela cultura popular, de algumas festas para Santos da Igreja Católica, que chegam ao Brasil vinculadas à questão da tradição herdada do processo de formação da sociedade brasileira, com suas variadas influências e contribuições, como as Festas Juninas, para São Pedro, Santo Antônio e São João, sempre com música e dança e a Festa-Dança de São Gonçalo, que acontece e se perpetua no espaço social e geográfico mineiro, como vivência religiosa-profana.

A professora Fabiane Tamara Rossi, no seu artigo intitulado “Aula de História com Zeca Baleiro: uso da música-canção como recurso didático no Ensino Médio” problematiza a música-canção como elemento utilitário ao Ensino e, mais especificamente, a obra musical de Zeca Baleiro enquanto provedora de temáticas para o ofício do professor de História do Ensino Médio. Para isso faz uso da obra do cantor (de 1997 a 2004), além de reportagens veiculadas na imprensa. Para correlacionar a música e o ensino embasou a pesquisa nos PCNs e Currículo Básico do Distrito Federal. Inicialmente discute a utilização da música enquanto recurso didático em sala de aula. Em seguida, problematiza o universo de referências de Zeca Baleiro, trazendo sugestões para a utilização de suas canções no ensino de História do Ensino Médio.

No texto “Dos Excessos Tropicais à Moderação dos Costumes: um debate sobre a idéia de processo civilizador na obra de Gilberto Freire”, Vanderlei Sebastião de Souza a partir da leitura das obras Casa-grande & Senzala e Sobrados e Mucambos, ambas publicadas por Gilberto Freyre na década de 1930, o objetiva discutir o modo como a idéia de processo civilizador, conforme o sentido desenvolvido por Norbert Elias, pode ser apreendida na interpretação que Gilberto Freyre lança em relação à sociedade e à cultura brasileira.

O artigo “Historiografia e História Cultural: representações de Capistrano de Abreu na historiografia brasileira”, da autora Ítala Byanca Morais da Silva, atenta para o fato de que Capistrano de Abreu, como muitos dos intelectuais que lhe foram contemporâneos, foi objeto de práticas deliberadas de construção da memória, sendo a criação da Sociedade Capistrano de Abreu (1927-1969) a materialização das aspirações dos “discípulos”, amigos e pares de Capistrano de Abreu em torná-lo um personagem memorável para a história da inteligência brasileira. Esta instituição passou por vários momentos representativos da produção historiográfica nacional, e em seus últimos anos de atividade foi dirigida pelo historiador José Honório Rodrigues. Dessa forma, objetiva discutir as representações construídas sobre Capistrano de Abreu por esta sociedade.

Em “Sebastianópolis, ou o Rio de Janeiro em vários tons” Stela de Castro Bichuette terá como foco de estudo a cidade do Rio de Janeiro, muitas vezes chamada de Sebastianópolis por Adelino Magalhães, o qual se desenvolverá tomando como ponto de partida a visão caleidoscópica que o autor tinha da então capital federal. Os contos de Adelino Magalhães trazem para o período do começo do século XX uma literatura de cunho mais social, buscando revelar uma cidade diferente da dos ideais republicanos de higienização, de ordem e de progresso, ou seja, de um modelo de Brasil moderno que a elite política pretendia naquele início de século.

O artigo “O Ciclo Produtivo de Hortelã no Oeste do Paraná: outras memórias”, do autor Gilson Backes, apresenta uma investigação em curso sobre experiências vividas por trabalhadores do ciclo produtivo de hortelã, migrados para o Oeste do Paraná durante as décadas de 1960 e 1970. Tal caminho demarca novos olhares sobre este espaço, valorizando as dinâmicas sócio-culturais processualizadas durante o período, a exemplo do aumento de alunos nas escolas. Este ponto de vista contribui no sentido de pensar e interagir com outras memórias produzidas e / ou que permanecem reelaboradas neste cotidiano, não obstante a insistência de silêncios. As narrativas orais são problematizadas na perspectiva de diálogo, aponta outras interpretações para uma compreensão mais ampliada deste espaço, por sua vez constituído por múltiplas relações, conflitos e temporalidades.

Lúcio De Franciscis dos Reis Piedade Filho, em seu texto “O imperialismo e a representação do Congo em Tintim na África”, discorre acerca do imperialismo em seus contextos histórico, econômico e social, e o impacto dessa política nos países do continente africano. O estudo recai sobre o Congo Belga, e a partir daí será abordada a representação do país em questão na história em quadrinhos Tintim na África. É apresentado, antes e sumariamente, a biografia do autor da obra, o belga Hergé, e o contexto histórico no qual ele se inseria. Na perspectiva do período tratado pela obra, a década de 30 do século XX, levou em consideração os seguintes aspectos: a supremacia do homem branco, os embates entre o colonizador e os colonizados, as missões cristãs “civilizadoras” e a exploração no Congo Belga.

No texto “Representações Femininas na Aristocracia da Florença do Quattrocento”, a autoraMaría Verónica Pérez Fallabrino, tem como objetivo analisar as representações femininas segundo como eram concebidas nos ambientes da alta aristocracia da Florença do século XV. A partir da estreita relação entre História e Literatura, o estudo apoiou-se em obras literárias produzidas por teóricos da época, resgatando através delas o ideal feminino exaltado e reproduzido entre os membros da elite florentina.

O professor Dr. José Adilçon Campigoto em seu artigo “O Código da Vinci e a produção da história na perspectiva hermenêutica”, discute sobre os métodos da hermenêutica e a proposta da interpretação filosófica de Hans-Georg Gadamer para historiadores a partir dos personagens da trama O Código da Vinci, de Dan Brown. Tenta-se descrever e classificar os modos de interpretação utilizados pelas figuras dramáticas diante da resolução de um acontecimento enigmático: o assassinato do curador do museu do Louvre, Jacques Saunière. A metodologia interpretativa utilizada pelo policial Bezu Fache é comparada aos procedimentos dos personagens historiadores, Langdon e Sir Leigh. A atitude interpretativa adotada pela protagonista Sophie compara-se à proposta da hermenêutica filosófica. Um contraponto aos métodos: contextual, psicológico e filológico.

Em “Plutarco e a tradição cultural grega no império”, a autora Maria Aparecida de Oliveira Silva ressalta que a permanência das práticas culturais gregas em plena época romana desperta o interesse dos estudiosos da Antigüidade, em especial daqueles que procuram compreender a natureza da Segunda Sofística. A despeito das dominações militar e econômica impostas aos gregos pelos romanos, esse movimento literário espelha o vigor e a excelência da tradição cultural grega, manifestada em sua literatura, capaz de superar tais barreiras. Por esse motivo, vários estudiosos atribuem à Segunda Sofística um caráter ideológico, no qual os autores gregos desse período escreveriam somente para a divulgação e a manutenção da política imperial. Assim, o artigo discorre sobre o quanto essa análise torna-se insuficiente no caso de Plutarco, uma vez que o intuito desse autor é demonstrar a contribuição grega na formação do Império.

No artigo intitulado “Cenas do Recôncavo: a decadência senhorial na literatura de Anna Ribeiro (1843-1930)”, Marcelo Souza Oliveira objetiva analisar a obra de Anna Ribeiro de Araújo Góes Bittencourt (1843-1930), em especial as produções da década de 1910. Um cruzamento entre os três contos e os romances produzidos nesse período, sobretudo Letícia (1908a), leva o autor a conclusão de que havia uma obsessão da escritora em contar a história da decadência da elite açucareira e escravocrata do Recôncavo baiano, numa perspectiva paternalista. As histórias, as personagens e até mesmo o ambiente que contextualiza as tramas são permeadas por estratégias simbólicas com as quais a autora buscava demonstrar a visão senhorial desse momento histórico.

Astor Weber em seu texto “Os Eyiguayegui-Mbayá-Guaicuru: o tratado de paz de 1791”, pretende mostrar as principais intenções do Governo Colonial português de tornar os indígenas Eyiguayegui-Mbayá-Guaicuru – que se localizavam na Capitania de Mato Grosso – em uma barreira fronteiriça física, objetivando evitar uma possível invasão espanhola àquela região. O Tratado de Paz elaborado em 1791 entre o Governo Colonial português e os indígenas é a fonte histórica analisada no sentido de tecer as reflexões nessa direção. O conteúdo do Tratado mostra que seu teor interessava aos dois lados, tanto aos índios quanto aos portugueses, pois havia a perda da hegemonia local e a aliança vinha no sentido de restabelecer algumas posições. No entanto, uma questão interessante desse episódio é que os indígenas não tinham como saber realmente o teor dessa aliança que ao passar do tempo se mostrou maléfica ao grupo, ocasionando seu declínio demográfico no século XIX.

O artigo “Um acervo de Arte Moderna e Contemporânea e a Identidade Institucional”, do autor Emerson Dionisio G. de Oliveira, procura compreender as narrativas produzidas pelo Museu de Arte de Santa Catarina sobre sua coleção dentro de um quadro mais amplo de difusão da Arte Moderna. Para tanto, constrói uma análise crítica do acervo na relação entre os sujeitos e as instituições, definidos, respectivamente, como doadores e obras doadas ou adquiridas. O museu em questão tornou-se ímpar para essa questão, na medida em que se transformou no mais bem-sucedido empreendimento de ampliação da arte moderna fora dos centros culturais hegemônicos nos anos 40.

No texto “D. João VI no Rio de Janeiro: preparando o novo cenário”, a autora Anelise Martinelli Borges Oliveira ressalta que a transmigração de d. João VI e sua corte para o território brasileiro, em 1808, acarretou várias transformações para a sociedade fluminense e para a corte lusitana. A imagem real foi aclamada e adorada por toda a cidade, conseqüência da representação legitimada na figura do príncipe regente. Assim, entende que tendo em vista remodelar o cenário fluminense, o monarca realiza mudanças nos espaços público e privado numa tentativa de enquadrar a cidade aos moldes europeus da época.

Andrey Minin Martin, no artigo “Terra, Trabalho e Família: considerações sobre a (re) criação do campesinato brasileiro nos movimentos sociais rurais”, apresenta algumas reflexões a respeito da construção da noção de campesinato ao longo das últimas décadas de pesquisa no campo das ciências humanas, abordando algumas de suas principais interpretações. Sem a preocupação de formular um constructo teórico-metodológico desta noção, no sentido de encerrar seu campo de possibilidades de apreensão das potencialidades existentes nas práticas dos sujeitos, buscou a partir das contribuições e da produção de alguns teóricos, apresentar questões que entende como norteadoras para o debate sobre o conceito de campesinato e de agricultura familiar.

Em parceria, Ione Aparecida Martins Castilho Pereira e Arno Alvarez Kern, no artigo “Missões Jesuíticas Coloniais: um estudo dos planos urbanos”salientam que o objetivo do trabalho está centrado no estudo sobre os planos urbanos das reduções Guarani, Chiquitos e Mojos, apontando semelhanças e diferenças, bem como o contexto em que se configuraram. Para tal, tomam por base os resultados das pesquisas realizadas nas missões Guarani sobre urbanidade, espaço e arqueologia, justamente por serem estudos mais diversificados em relação à temática das missões. Como ponto de partida, utilizaremos as plantas dos pueblos de São João Batista (no contexto dos sete povos das missões no Rio Grande do Sul), San José de Chiquitos e Concepción de Moxos (ambas em território Boliviano). Os autores relacionam estas imagens com produções bibliográficas sobre as reduções jesuíticas bolivianas, conhecidas até o presente momento, tendo em vista que este ainda é um assunto pouco conhecido, principalmente, devido à dispersão das fontes sobre as mesmas.

Em seu artigo intitulado “Apontamentos sobre Civilização e Violência em Norbert Elias”, a autora Tânia Regina Zimmermann apresenta discussões acerca dos estudos realizados pelo sociólogo Norbert Elias, a partir de alguns conceitos desenvolvidos por este autor. Civilização e violência são temas constantes e atuais para compreensão do movimento da história. Assim sendo, diferentes acepções e usos destes conceitos foram considerados pelo autor. Relacionam-se no artigo autores como Freud, Peter Gay e Alba Zaluar com Elias. Para Elias, o poder é uma característica de todas as relações humanas e está ligado ao grau de dependência entre os indivíduos seja pela força, pela necessidade econômica, de cura, status, carreira ou por excitação. É destas relações, se apoiando em Norbert Elias, que a autora salienta que são construídos os controles civilizacionais e da violência.

Na sessão de “entrevistas”, a Revista tem a satisfação de publicar uma entrevista com o professor e pesquisador brasilianista Robert Wilton Wilcox. O professor Robert nasceu no Canadá e trabalha, desde 1993 em uma universidade dos Estados Unidos: a Northern Kentucky University, situada em Highland Heights, Kentucky. É um nome conhecido e respeitado nos meios universitários brasileiros, e especialmente sul-matogrossenses, por seus trabalhos sobre a história de Mato Grosso / Mato Grosso do Sul. Fechando a IV Edição da Revista, estão as seguintes resenhas: do livro “Michel Foucault: uma história da governamentalidade” do autor Kleber Prado Filho, resenhado por Ana Claudia Ribas; a resenha feita por Diogo da Silva Roiz e André Dioney Fonseca do livro “A Redução de nuestra Señora de la Fe no Itatim: entre a cruz e a espada”, do autor Neimar Machado de Souza; do livro organizado por Celso Castro, intitulado “Amazônia e Defesa Nacional”, resenhado por Julio César da Silva Lopes; e por fim a resenha do livro “Etnohistorias del Isoso: Chane y Chiriguanos em el Chaco Boliviano (Siglos XVI a XX)”, resenhado por Roseline Mezacasa.

Desejamos a todos ótimas leituras!

Carlos Barros Gonçalves

Fabiano Coelho

(Editores)

Dourados – Primavera de 2008.

Carlos Barros Gonçalves

Fabiano Coelho


GONÇALVES, Carlos Barros; COELHO, Fabiano. Apresentação. Revista Eletrônica História em Reflexão. Dourados, v.2, n.4, jul. / dez., 2008. Acessar publicação original [DR]

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A cultura material na história da educação: possibilidades de pesquisa / Revista Brasileira de História da Educação / 2007

Vestígios da cultura material escolar

Como afirmou de forma muito pertinente Margarida Felgueiras (2005, p. 97), “falar de cultura material da escola é mudar o foco de atenção […]”. De fato, implica desviar o olhar para dimensões do universo educacional – edifícios, mobiliário, utensílios, materiais pedagógicos, manuais didáticos etc. – quase sempre tomados como um dado natural, evidentes por si mesmos, sem maior relevância, ainda que sejam suportes de práticas, instrumentos mediadores da ação educativa e elementos estruturais para o funcionamento dos estabelecimentos de ensino. Mas o pesquisador interessado em efetuar esse deslocamento enfrentará, necessariamente, os desafios diuturnos daqueles que se aventuram a seguir caminhos pouco trilhados, tendo que se haver com as dificuldades teórico-metodológicas de tomar os artefatos como objeto e fonte de pesquisa.

Os textos reunidos neste dossiê foram apresentados no IV Congresso Brasileiro de História da Educação, realizado em Goiânia, em 2006. Eles constituem bons exemplos da fertilidade do estudo da cultura material para a ampliação do conhecimento histórico em educação. Confrontando prescrições e práticas, a partir de diferentes fontes e abordagens de pesquisa, os estudos revelam como em torno dos materiais escolares foram instituídas práticas discursivas, modos de organização pedagógica da escola, consolidação de métodos de ensino, constituição de sujeitos e práticas, aspirações de modernização educacional e significados simbólicos. Além da análise dos materiais, os trabalhos revelam os percursos traçados na constituição de acervos e a metodologia empregada para o exame dos objetos. Ressaltam-se ainda a riqueza das interpretações empreendidas pelas pesquisadoras e a diversidade dos artefatos que emergem nas análises.

Valdeniza Maria Lopes da Barra flagra um episódio ordinário das relações entre os órgãos da administração da instrução pública e professores de primeiras letras na província de São Paulo, no século XIX. Acompanhando os desdobramentos da trama que se desenrola em torno das prescrições da Inspetoria acerca dos materiais necessários às escolas públicas primárias e as solicitações de uma professora do mobiliário e utensílios requeridos para ministrar o ensino, a autora mostra como espaço, mobiliário e utensílios entram em jogo na produção da escola. Dessa maneira, a análise faz emergir as concepções dos atores educacionais e, com muita clareza, põe em destaque a ação que subjaz nos objetos quando em relação com os sujeitos e a cultura. Num tempo em que a escola funcionava freqüentemente na casa do professor e que a relação de materiais se restringia a mesas, bancos, mochos, papel almaço, penas de aves, lápis, tinta, canivetes, traslados, catecismos, entre outros poucos artefatos, ainda assim em quantidade sempre insuficiente para as necessidades dos professores e alunos, é o modo de organizar a escola pela transmissão simultânea do ensino e um modo de ser professor que a materialidade inscreve, e que a autora habilmente demonstra.

O texto de Gizele de Souza, em contrapartida, põe em questão as exigências materiais ampliadas requeridas para o funcionamento dos primeiros grupos escolares implantados no estado do Paraná, no início do século XX. O foco do texto são as representações em torno da composição material desse novo modelo de escola primária que se consagrou durante a Primeira República, como símbolo da renovação e modernização educacional no Brasil. Emerge na análise o significado simbólico dos prédios escolares, do mobiliário escolar condizente com as normas de higiene e a profusão de materiais didáticos tendo em vista a ampliação dos programas de ensino e a adoção do método intuitivo. Nesse sentido, como bem demonstra a autora, a materialidade da escola expressa suas finalidades sociais, políticas e culturais, o sentido da renovação e sua importância no projeto republicano. É tanto perceptível as representações sobre os objetos quanto o significado simbólico que eles instauram pela sua visibilidade. Outro aspecto que sobressai no texto são as contradições entre as práticas discursivas e a provisão efetiva das escolas, ou seja, as mazelas do ensino público marcado pela precariedade e insuficiência de toda sorte. Como no texto de Valdeniza Barra e nos demais textos deste dossiê, a autora, pela nomeação e descrição minuciosa dos objetos, descortina um cenário vívido da escola. Esse quadro mais preciso do que tem sido a escola em diferentes épocas é uma contribuição inegável de uma abordagem sobre a cultura material.

O exame minucioso de fontes como relatórios de professores, diretores de escolas, inspetores e delegados de ensino, legislação e instruções emanadas dos órgãos da administração educacional, ofícios e correspondências, relações de materiais e inventários tem fomentado o encontro dos historiadores da educação com a materialidade da escola. Na análise da ausência e presença dos materiais escolares, os pesquisadores têm posto em relevo os condicionantes das práticas, como a frontalização do ensino pelo uso sistemático do quadro-negro, as posturas corporais impostas pelas carteiras, os livros de leitura mais utilizados nas escolas como suportes de transmissão de saberes, os cadernos especiais para o ensino de determinadas disciplinas escolares (por exemplo, cadernos de trabalhos manuais, de caligrafia, de aritmética, entre outros), materiais que indicam a introdução de inovações pedagógicas (como os contadores mecânicos, as cartas de Parker, os modelos de Prang, entre outros, utilizados nas lições de coisas, os aparelhos para o cinema educativo ou os meios audiovisuais).

Se a escrita administrativa produzida pelos profissionais da educação no cumprimento das exigências dos órgãos da administração do ensino (relatórios, relações de materiais, inventários etc.) tem-se constituído em fonte relevante para o estudo da cultura material escolar, o que dizer sobre a imensa quantidade de artefatos que se encontram deliberadamente ou não guardados nas instituições educativas e com os quais se defronta o historiador da educação? E aqueles salvaguardados do descarte e que fazem parte dos arquivos pessoais preservados como lembranças eivadas de afetos? E as coleções armazenadas em museus, centros de referências e de memória da educação?

O texto de Regina Maria Schimmelpfeng de Souza articula as práticas discursivas sobre a materialidade da escola com a exploração de alguns objetos como fonte de pesquisa. Para a reconstituição da história da escola alemã de Curitiba, no período entre 1884 e 1917 (Deutsche Schule), a autora valeu-se de inúmeros vestígios da cultura material. De um lado, nas fontes escritas, pôde verificar o moderno aparelhamento dessa escola, especialmente, a numerosa coleção de objetos para as “lições de coisas”, estratégia utilizada pelos mantenedores para projetar a instituição na sociedade auferindo-lhe prestígio e reconhecimento social cuja identidade passou a ser associada à boa organização escolar e à qualidade do ensino. Além disso, no exame de materiais de uso escolar encontrados nos guardados de antigos alunos – cadernos, lousa, caneta e mata-borrão – a autora pode entrever a relação intrínseca existente entre os objetos e os sujeitos, isto é, o quanto os objetos estão implicados nos processos de subjetivação. Nessa direção, ela aponta os constrangimentos corporais inscritos no uso da lousa pelos alunos, as habilidades motoras requeridas para o manuseio da pena, as múltiplas destrezas físicas e cognitivas associadas ao uso cotidiano do caderno. Assim, o texto permite apreender os objetos tanto como linguagem como materialidade que produz ações.

O texto de Rosilene Batista de Oliveira Fiscarelli e Rosa Fátima de Souza põe em discussão as possibilidades e os limites do uso de uma coleção de troféus escolares como fontes para a história da educação. Baseando-se na organização de um acervo digital de artefatos encontrados numa escola pública de ensino básico do estado de São Paulo, as reflexões das autoras buscam evidenciar os diversos tipos de informação que essa coleção propicia, assim como a abrangência das investigações que suscita. Os troféus são testemunhos das participações bem-sucedidas da escola em diferentes tipos de certames e competições de natureza esportiva, sociocultural e cívico-patriótica. Eles revelam modalidades, características dos certames, a cronologia das participações, o nível de ensino dos alunos envolvidos, as entidades promotoras e os significados sociais compartilhados. Tomados como símbolos da excelência da escola pública, eles dão visibilidade a um passado recente memorável e mantêm uma íntima relação com a memória institucional. O questionamento das autoras volta-se para a validade dos artefatos como documentos e os desafios metodológicos no enfretamento da questão.

A organização deste dossiê objetiva contribuir com os pesquisadores da área da história da educação fomentando o debate e socializando uma amostra significativa das possibilidades de investigação da cultura material escolar, domínio de pesquisa relativamente novo e muito promissor, como demonstrado nos textos aqui reunidos.

Referência

FELGUEIRAS, M. L. Materialidade da cultura escolar. A importância da museologia na conservação / comunicação da herança educativa. Pro-prosições, v. 16, p. 87- 102, jan. / abr. 2005.

Rosa Fátima de Souza – Professora adjunta do Departamento de Ciências da Educação e do Programa de Pós-Graduação em Educação Escolar da Faculdade de Ciências e Letras de Araraquara / Universidade Estadual Paulista (UNESP).


SOUZA, Rosa Fátima de Souza. Apresentação. Revista Brasileira de História da Educação. Maringá, v.7, n.2, maio / ago, 2007. Acessar publicação original [DR]

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Cultura Material no Museu Histórico Nacional | Anais do Museu Histórico Nacional | 2005

Organizador

Aline Montenegro Magalhães

Referências desta apresentação

MAGALHÃES, Aline Montenegro. Apresentação. Anais do Museu Histórico Nacional. Rio de Janeiro, v.37, p.222-225, 2005. Acesso apenas no link original [DR]

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Cultura Material-MHN | Anais do Museu Histórico Nacional | 2004

Organizador

José Neves Bittencourt

Referências desta apresentação

BITTENCOURT, José Neves. Apresentação. Anais do Museu Histórico Nacional. Rio de Janeiro, v.36, p.205-208, 2004. Acesso apenas no link original [DR]

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