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Temas de História e Cultura Indígena em Sergipe – MONTEIRO; RODRIGUES (PL)
As linhas escritas aqui compõem uma breve resenha do livro Temas de História e Cultura indígena em Sergipe, organizado pelos professores Diogo Francisco Cruz Monteiro e Kléber Rodrigues e publicado em 2016, pela Infographics, Aracaju, Sergipe. A publicação está organizada em três partes, a primeira composta por dois textos, “Ser índio no Brasil contemporâneo: novos rumos para um velho dilema”, da autoria de Clarice Novaes Mota, e “História de grupos indígenas e fontes escritas: o caso de Sergipe”, da autoria de Beatriz Góis Dantas.
A segunda parte da obra também é composta por dois capítulos, “Relação nominal dos índios de Sergipe Del Rey, 1825”, escrito por Luiz Roberto Mott, e “Alienação das terras indígenas em Sergipe no século XIX”, da lavra de Pedro Abelardo de Santana. A terceira parte contém mais dois artigos, “Os desafios pós-demarcatórios da territorialidade Xokó na terra indígena Caiçara / Ilha de São Pedro”, de Avelar Santos Araújo e Guiomar Inez Germani; “As representações sobre os índios no Ensino de História contemporâneo: como a comunidade escolar sergipana observa os indígenas nos livros didáticos”, escrito pelos organizadores, Diogo Francisco Cruz Monteiro e Kléber Rodrigues. Leia Mais
Patrimônio Arqueológico e Cultura Indígena – PINHEIRO et al (RIHGB)
PINHEIRO, Áurea; GONÇALVES, Luís Jorge; CALADO, Manuel. (Org). Patrimônio Arqueológico e Cultura Indígena. Teresina: EDUFPI; Lisboa: Faculdade de Belas-Artes, Universidade de Lisboa, 2011, 260 p. Resenha de: FALCI, Miridan Britto Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 174 (458) p.321-328, jan./mar. 2013.
Este livro, organizado por Áurea Pinheiro, Luís Jorge Gonçalves e Manuel Calado, recebe a chancela da Universidade Federal do Piauí (Brasil) e da Universidade de Lisboa (Portugal); integra as atividades acadêmico-científicas-culturais do Grupo de Pesquisa/CNPq “Memória, Ensino e Patrimônio Cultural”, Programa de Pós-Graduação em História, Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas, UFPI, e CIEBA, Centro de Investigação e de Estudos em Belas-Artes, Faculdade de Belas -Artes, Universidade de Lisboa.
Os organizadores convidaram pesquisadores brasileiros, portugueses e espanhóis, reuniram contribuições que revelam o caráter multidisciplinar das investigações e das ações no campo do patrimônio e da cultura.
A proposta da obra é apresentar as correlações de estudos e ações de arqueólogos, historiadores, sociólogos e museólogos, apresentar cada estudo e intervenção em lócus especial de um contexto temporal e espacial, selecionado por cada um dos autores.
Dir-se-ia que é um trabalho de formato novo, articulado, interpenetrado, comportando estudos de um tempo longo, médio e curto, fugindo, então, das camisas de força teóricas de um método especificamente histórico. Chega-se à conclusão que, articulado como está, passa-nos as conexões do fazer, do ofício das ciências históricas, sociais, da arte e do patrimônio.
Na primeira parte do livro, “Patrimônio e Arqueologia”, Áurea Pinheiro, Cássia Moura e Fátima Alves, no texto “Museus comunitários, Museus Sans Murs”, refletem sobre um projeto em construção, qual seja: a proposição de estudos para futura criação de um Ecomuseu na Ilha das Canárias, no Delta do Parnaíba (Piauí, Brasil). Partem as autoras da concepção de museus de Hugues de Varine. A proposta explicitada no projeto será a construção de um inventário multidisciplinar de bens culturais das Ilha das Canárias. O projeto comportará uma pesquisa interdisciplinar e multidimensional no campo da antropologia, arqueologia, sociologia, história, artes, arquitetura, geografia, meio ambiente, patrimônio e museologia; conhecimentos e documentação produzidos que subsidiarão proposições de ações de conservação e salvaguarda do patrimônio e paisagem cultural do lugar. As autoras pretendem “[…] apresentar uma revisão de literatura sobre a Museologia Social, e algumas notas do trabalho de pesquisa documental e de campo, no contexto do Projeto “Patrimônio Cultural e Museus no Nordeste brasileiro”. Localizam as suas reflexões no campo de estudos interculturais, das Ciências da Informação, das Artes e do Patrimônio, notadamente da História e do Patrimônio Público e da Museologia Social.
No capítulo, “Patrimonio y Nuevas Tecnologías: El Observatorio del Patrimonio Histórico Español [OPHE]”, Juan Manuel Martín García e José Castillo Ruiz nos apresentam o Observatorio del Patrimonio Histórico Español, que surge como uma iniciativa no contexto do projeto de investigação de excelência, “Estudio comparado de las políticas de protección del Patrimonio Histórico en España. Creación del Observatorio sobre el Patrimonio Histórico Español [OPHE]”, concebido em março de 2006, para um períogo de 2006 a 2009, “[…] por la Consejería de Innovación, Ciencia y Empresa de la Junta de Andalucía [España] a un grupo de profesores de la Universidad de Granada, fundamentalmente del Departamento de Historia del Arte y Música”. O projeto consiste na análise de diferentes políticas de proteção na Espanha, por diferentes administrações estatais e autônomas, bem como por instituições privadas relevantes, com competências em matéria de Patrimonio Histórico, para,
[…] a partir de dicho análisis, evaluar, comparar y difundir dichas políticas desde los referentes científicos que definen la protección del Patrimonio Histórico a nivel internacional. Especial interés ha revestido para el proyecto la defensa de la diversidad cultural española entendida tanto en lo referente a la pluralidad o diferenciación local, regional o nacional como en lo relativo a los valores y bienes de interés para el conjunto de la sociedad española, sin olvidar tampoco la dimensión universal de dicho legado cultural.
Luís Jorge Gonçalves escreve sobre o “Patrimonio Histórico e Arqueológico: exemplos de intervenção em Évora, Sesimbra e Idanha-a -Nova”; discute o conceito de patrimônio e suas transformações históricas, nos instiga a conhecer três experiências de atividades museológicas, destacando exemplares de arte. O autor trabalha com saberes e interpretações diversas, mostra-nos o conhecimento dos valores encontrados em Évora, Sesimbra e em Idanha-a-Nova; regiões portuguesas, únicas, que contribuem com os estudos de preservação e documentação, conexões com propostas brasileiras. Em Idanha-a-Velha, situado no interior de Portugal, limitado a leste pela fronteira com Espanha e ao Sul pelo Tejo, cuja história remonta à época romana e à Idade Média, os templários construíram uma rede de castelos, integrando, hoje, o concelho de Idanha-a-Nova.
Em 2009, se concretizou uma exposição liderada pela Câmara Municipal sobre os Castelos Templários nos seguintes temas: “Origens dos Templários e a sua presença em Portugal”, “Rituais Templários” e “Castelos Templários de Idanha”. Segundo Luis Jorge, a memória histórica é muito curta, abismo que se aprofunda para épocas recuadas, o público quando visita os monumentos e museus tem, na generalidade, uma atitude contemplativa; é por isso que novos processos metodológicos procuram dar enquadramentos contextuais ao patrimônio. São as visitas guiadas, os catálogos, os guias, os áudio-guias (agora com versões mais económicas como os “iPod” e “iPad”), das exposições retrospectivas, etc. Nesse caso, tanto os meios tradicionais como as novas tecnologias são recursos para os enquadramentos históricos do património. Para Luis Jorge, podemos considerar que hoje ultrapassamos os modelos de J.J. Winkelmann, porvalorizarmos o contexto em desfavor das obras-primas, não significando isto que vamos “deitar fora essas obras”. O enquadramento geral sobre o (s) momento (s) histórico (s) sobre o qual incidimos, como era a vida quotidiana, como viviam as pessoas, o que comiam, o que pensavam, qual a sua visão do mundo, o que significava (m) aquele (s) elemento (s) do patrimônio cultural sobre o qual incidimos o nosso discurso para as pessoas que investiram muito do seu esforço quotidiano, sendo ainda necessária uma comparação com outras áreas geográficas, a chamada história comparada.
Os ingredientes principais são um bom suporte científico com as exposições temporárias e permanentes, a musealização dos sítios, ou seja, a criação de suportes informativos, as visitas guiadas, as publicações para os diferentes públicos, a imagem em movimento. Nos projetos desenvolvidos em Évora, Sesimbra e Idanha-a-Nova existe sempre um suporte patrimonial. O autor ainda assinala que os vestígios arqueológicos e patrimoniais são um fator importante para compreendermos a vida hoje e que correspondeu ao resultado da vida de pessoas, que, como nós, dormiam, comiam, trabalhavam, tinham as suas crenças, festas e tradições.
Cabe-nos desenvolver um discurso acessível para aproximar os públicos, de modo a sentirem que o patrimônio faz parte deles; e principalmente descobrir o patrimônio a “partir do nosso interior, das nossas vivências e da nossa Paixão por compreendermos o mundo que vivemos”.
No artigo Pensar local….agir local. O museu de arte Pré-histórica de Mação, memória, intuição e expectativa, Luis Osterbeek, Sara Cura e Rossano Lopes Bastos nos remetem às percepções da proposta do livro.
Os autores indagam e se posicionam sobre a preservação, o papel de arqueólogos e da arqueologia através de uma releitura sobre as propostas do que é ser arqueólogo num mundo em transformação. Mostrando a criação do Museu de arte pré-histórica de Mação e as parcerias de um projeto desenvolvido em vários estados do Brasil, incluindo o Piauí, os autores revelam as preocupações de um grupo que entende o valor e a importância do patrimônio de um povo. Lembram que “[…] a prioridade da acção arqueológica permanece, naturalmente, na investigação [sem a qual não há reconhecimento da natureza arqueológica de certas evidências] e na conservação [sem a qual não ocorre a perenização supra geracional das evidências, que é essencial para a sua assimilação social]”; destacam a importância do território e da população local e regional, operando nessa inserção local uma didática da diferença cultural. Finalizando, dizem os autores: “A arqueologia deve promover a exigência de qualidade acreditada e permanentemente avaliada, deixando-se escrutinar pelo juízo crítico de terceiros, fugindo das torres de marfim, e assumindo dessa forma uma eficiente intervenção social, cujo fito social é o de contribuir para a construção de novo conhecimento e sua sucessiva socialização.” Manuel Calado, no texto Arqueologia Pública em Portugal, evidencia o conceito de Arqueologia Pública, considera “[…] um lugar-comum, na América Latina e, em particular, no Brasil; isto, apesar das vidas paralelas que as diferentes perspectivas lhes podem atribuir e, de fato, atribuem”.
Destaca que “Um dos indicadores mais evidentes do desenvolvimento da Arqueologia Pública brasileira prende-se, desde logo, com a prática corrente, exigida pela tutela, de programas de Educação Patrimonial associados a intervenções arqueológicas de resgate.” Para o autor, essa obrigatoriedade na maioria das vezes não se concretiza “[…] no terreno, em acções consistentes e frutuosas”, o que segundo ele cria “[…] um corpus de experiências que, feito o balanço provisório, muito têm contribuído para a criação de uma nova imagem da investigação arqueológica, junto das comunidades e dos poderes públicos”. Em sua análise, a arqueologia e o patrimônio, em sua gênese, revelam um potencial conservador e elitista “[…] muito enraizado que, em certos aspectos, parece contraditório com um mundo dinâmico, empenhado na criação de sociedades mais justas, mais participativas e, em suma, mais democráticas”; contradição que considera ultrapassada.
Em “Arqueologia dos Desaparecidos: identidades vulneráveis memórias partidas. O Registro arqueológico como instrumento de memória social”, Rossano Lopes Bastos trata do registro arqueológico e de sua delimitação legal em diversas normas. “Nas preocupações da Unesco, nas Recomendações de Nova de Delhi (1954) e mais recentemente na Carta de Laussane (1990). As principais definições são quanto a sua amplitude e proteção”. Destaca que no Brasil, “[…] o registro arqueológico tem sua primeira aparição enquanto bem a ser protegido no Decreto-lei nº 25 de 1937, que organiza a proteção do patrimônio histórico nacional no Brasil. Entretanto, o patrimônio arqueológico, para ser protegido, deveria, a despeito de como é formulado com todos os outros bens, ser objeto do procedimento de Tombamento, conforme apregoa o Decreto-lei nº 25 de 1937. Com a edição da lei federal nº 3.924/61, ‘que dispõe sobre os monumentos arqueológicos e pré-históricos’, que ampliou de forma significativa e definitiva a proteção dos sítios arqueológicos em todo território nacional. Destaca-se que a primeira lei de proteção específica do patrimônio arqueológico foi editada no Estado de São Paulo em 1955”.
Na Segunda Parte da obra, Patrimônio e Cultura Indígena, quatro outros capítulos nos remetem às reflexões sobre o que seria o Patrimônio Humano, Cultural deixado pelos antigos habitantes do Nordeste do Brasil: os indígenas. No texto, “A farsa do extermínio: reflexões para uma nova História dos Índios no Piauí”, João Paulo Peixoto Costa nos faz pensar sobre o problema epistemológico e metodológico que acompanha o estudo dos indígenas no Ceará, revelando as atuais preocupações com a urgência da revisão dos conceitos e da política indígena no Brasil. Qual a significação do conceito de extermínio? Como tem sido usada pelos historiadores? O que nos diz a documentação pesquisada e analisada atualmente? No capítulo “Os Senhores das Dunas e os Adventícios d´além mar: a autonomia indígena e o escambo na costa norte brasileira”, Jóina Freitas Borges destaca os conceitos de extermínio e de história negada, mostrando, com base em extenso levantamento historiográfico, a presença indígena no litoral do Nordeste brasileiro; índios enclausurados nas dunas. Esses “senhores” das dunas, como chama a autora, foram responsáveis por um largo comércio com os franceses, de âmbar gris, pau-violeta e ainda foram seguidamente escravizados e vendidos para as Antilhas. Segundo Jóina, se desenvolveu neles, graças a esses contatos com os franceses, uma autonomia única na História dos indígenas brasileiros. Utiliza o conceito de fronteira, desenvolvido por Boccara. O resultado dessa facção isolada e não dominada por mais de um século foi o processo de etnogênese dos tapuias/tremembés.
No capítulo “Um viés da liberdade: a deserção dos janduís e os conflitos no Maranhão e Piauí”, Juliana Lopes Aragão nos revela histórias desconhecidas da capacidade de certas tribos se organizarem e reelaborarem os conflitos com o grupo colonizador e opressor que chegou no Brasil.
Após uma extensa pesquisa de documentação encontrada no Arquivo Histórico Ultramarino, nos revela como os janduís, com seus contatos com os holandeses do Nordeste desenvolveram uma capacidade que chama de “um viés de liberdade”, se organizando em assembleias e exigindo melhores condições de tratamento. No apresenta a questão dos “terços” dos bandeirantes e o “descimento” dos indígenas para o trabalho doméstico ou nas fazendas.
“Menina Moça: cultura material e simbologia do ritual indígena Guajajara, Maranhão, Brasil”, Síria Borges nos apresenta um conjunto de artefatos ligados à dança, música, gastronomia, adornos corporais e afazeres cotidianos do ritual indígena de passagem conhecido como “Menina Moça ou Festa do Moqueado”, comum a vários grupos indígenas brasileiros. A autora destaca que o ritual fortalece “[…] os saberes tradicionais e justificando as relações sociais e de gênero, o ritual de puberdade feminina do povo Guajajara – Maranhão expõe um conjunto de artefatos e técnicas que dentro do cortejo ritualístico assumem significados específicos dos quais serão analisados neste texto”.
Esta obra é reveladora da importância e da multiplicidade de objetos, temas e abordagens que marcam os estudos e as investigações no campo do patrimônio cultural, notadamente no Brasil, Portugal e Espanha.
Miridan Britto Falci – Professora do Programa de Pós-Graduação em História Comparada do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ e Sócia Titular do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro.
Traços étnicos: espacialidades e culturas negras e indígenas – RATTS (BGG)
RATTS, Alex. Traços étnicos: espacialidades e culturas negras e indígenas. Fortaleza: Museu do Ceará; Secult, 2009. 23p. (Coleção Outras Histórias, 56). Resenha de: RIOS, Flávia Matheus. Boletim Goiano de Geografia. Goiânia, v. 29 n. 1, jan./jun., 2009.
O autor de Traços Étnicos: espacialidades e culturas negras e indígenas não poderia ser mais feliz quando escolheu para a capa do seu livro a pintura de uma menina Tremembé. Eis que a pintura da pequena Josiane, que na época só tinha seis anos de idade, parece à primeira vista construir uma flor, desenho comum feito por crianças da sua idade. Entretanto, a “ingenuidade infantil” nos surpreende com um belo detalhe iconográfico: no centro de nossa suposta flor nos deparamos com o desenho de um olho. Um olho atento e vivo. O movimento plástico ultrapassa nossas primeiras impressões. Certamente a flor ainda está ali, mas agrega o olho à sua identidade. A flor agora é pensada na condição de algo que vê. Mais: pode ser agrupada – compartilha identidade – junto a todos seres que obedecem a mesma classificação: algo que vê. Exemplo: homem e flor podem ser o mesmo. Eis a primeira mensagem da pintura: aquilo que é heterogêneo, que inicialmente não compartilha as mesmas propriedades ontológicas, pode conviver e transformar-se, sem deixar de ser o que é. O homem e a flor são o mesmo e ainda assim, homem é homem e flor é flor. Mas o desenho não termina aí. Do núcleo da flor, exatamente onde reside sua visão, parte um traço quase reto em direção ao canto direito, que se finda no que chamaríamos uma “pequena florzinha”. Nesse movimento a flor é pensada na condição de algo que gera. A florzinha é muito diferente daquela outra que nos vê, mas está ligada por um traço firme e objetivo ao olho que nos captura. Segunda mensagem: o que liga algo que vê e algo que gera a sua própria continuidade e permanência no mundo não é a aparência externa, e sim a própria visão.
A menina Josiane teria composto um auto-retrato? Ela que é algo que vê e entre os Tremembé tem seu lugar como algo que gera? Não saberemos ao certo. Mas a questão lançada pelo antropólogo Alex Ratts parece ser: quais as possibilidades de que a pequenina Tremembé possuía para permanecer na história como algo que gera, mediante a visão atroz da especulação fundiária, migrações forçadas e encilhamento cultural impostos a todo o seu grupo étnico? Como manter o traço que unifica e transforma aquele algo que vê? Qual a relação entre tradição e criação cultural vivenciada por grupos étnicos que como índios Tremembé, quilombolas cearenses e comunidades negras urbanas, atravessam o dilema da expropriação das condições elementares de existência social e cultural? Esses são os dilemas enfrentados em Traços Étnicos, livro composto por artigos curtos escritos num período de amadurecimento intelectual e político entre 1992 e 2006. Ao longo de diversas temáticas, como mobilização política do ritual do Torém no processo de emergência étnica Tremembé, os impasses da comunidade do trilho com a especulação imobiliária em Fortaleza ou mesmo a apropriação de Zumbi de Palmares nas festas tradicionais da comunidade quilombola de Conceição dos Caetanos, o professor Ratts articula crítica social e análise antropológica na intersecção de dois conceitos basilares: cultura e espaço. Na verdade, o questionamento das fronteiras disciplinares entre a antropologia e a geografia tem sido a marca registrada do autor enquanto acadêmico e militante do movimento negro. Por um lado, a tradição disciplinar de Franz Boas tem lhe permitido notar que “o olho que vê é o órgão da tradição”, o olho que tem um lugar e uma história, aquilo que se depreende da poética plástica de Josiane: a cultura enquanto flores ligadas por uma visão. Por outro, a geografia crítica, atenta tentativa de guetização política do que Milton Santos chamou de o “espaço do cidadão”, informa que os imperativos políticos da economia, da técnica, do racismo ambiental alteram os lugares donde o órgão da tradição vê e neste caso, a visão é outra. Neste sentido, a luta de índios e negros pela terra, pelo direito à cidade e à identidade, ou seja, a emergência das identidades étnicas como variável significativa na economia espacial nordestina e brasileira nos mostra que “olho da tradição” é também o olho da indignação. O olho que tenciona as desigualdades através da re-criação de novos vínculos culturais e políticos, olho que indaga a terra da luz: “quanto dá de ti pra meu viver florir entre ares de verão?” O desafio da construção identitária entre indígenas e negros cearenses é o desafio de fazer emergir na rede urbana de Fortaleza, bem como na estrutura fundiária de todo o Ceará, espacialidades alternativas e democráticas. Negros e índios no Ceará compartilham a experiência de serem “povos invisíveis”, ambos tiveram suas imagens rasuradas nos discursos oficiais, que apresentavam o estado como resultante da mistura entre as raças.[1] Ainda é comum se ouvir dos mais informados cidadãos cearenses que inexistem negros no estado e que os índios que restaram não são “autênticos”. Essa ideologia opressiva, versão cearense do mito da democracia racial, tem relegado as comunidades indígenas e negras à completa invisibilidade até os dias atuais, privando-lhes de políticas públicas que resguardem seus direitos previstos pela Carta Constitucional de 1988. Em hora oportuna, o Museu do Ceará realizou a presente publicação, escrito para um público amplo de variadas faixas etárias. Sem dúvida, encontra-se nele um excelente material de apoio pedagógico para professores e alunos, tendo em vista as medidas atuais do país para garantir a obrigatoriedade do ensino de história e cultura afro-brasileira e indígena, assegurado pela lei federal de número 11.465/08. Esforços intelectuais como esses cultivam a emersão de negros e indígenas como delicadas flores cearenses para aqueles que nunca as tinham visto com esses contornos, esses traços. E olhos.
[1] No segundo capítulo do livro (p. 17), Alex Ratts apresenta um trecho do funesto relatório apresentado a Assembléia Legislativa Provincial por José Bento da Cunha Figueiredo em 9 de outubro de 1863, no qual afirmava: “Já não existem aqui índios aldeados ou bravios. […] Ainda hoje se encontra maior número de descendentes das antigas raças; mas acham-se misturados na massa geral da população, composta na máxima parte de forasteiros, que excedendo-os em número, riqueza e indústria, têm havido por usurpação ou as terras pertencentes aos aborígenes. […] Os respectivos patrimônios territoriais foram mandados incorporar à fazenda por ordem cultural imperial, respeitando-se a posse de alguns índios.”
Matheus Gato de Jesus – Bacharel em Ciências Sociais pela UFMA, pós graduado em Sociologia pela USP.
Flávia Matheus Rios – Mestre em Sociologia pela Universidade de São Paulo, pesquisadora em relações raciais do departamento de Sociologia da USP/CNPQ.