Historia de la apropiación de la cultura escrita entre el pueblo qom del nordeste chaqueño (1960-1976) | Victoria Soledad Almiron

La vacancia de la temática indígena ha caracterizado por algún tiempo al campo de la historiografía educativa latinoamericana y argentina. Tal vez, porque supone centrarse en sujetos históricamente excluidos de los relatos históricos oficiales. Tal vez, porque la mirada estuvo cierto tiempo focalizada en la escuela, obviando otros modos de educación y, con ello, a sujetos y culturas como la indígena (Cucuzza, 1996, citado en Artieda y Nicoletti, 2017). Aunque se registran avances importantes en las investigaciones sobre educación y pueblos indígenas, Artieda y Nicoletti (2017) plantean que la temática sigue siendo incipiente en el campo de la historiografía educativa argentina, que aún no logra formar parte de relatos históricos mayores, lo cual requiere de tiempo, equipos que lo promuevan y de investigaciones. La tesis que aquí se reseña contribuye a esta línea de investigación, pues busca comprender las modalidades de apropiación de la cultura escrita de los qom del noroeste chaqueño, en un periodo aún poco estudiado que comprende las décadas del sesenta y del setenta. Leia Mais

Intelectuais e palavra impressa | Giselle Martins Venâncio

Redes de sociabilidade, geração e cultura política: conceitos que já não são mais desconhecidos dos historiadores brasileiros, dentre esses, pesquisadores que se lançam a investigações que tomam por objetos publicações literárias, culturais, jornalísticas, historiográficas e aqueles responsáveis pela sua produção ou difusão. Dentro deste panorama de pesquisa se apresenta o livro Intelectuais e palavra impressa. Lançada em 2016, a obra tem como organizadora Giselle Martins Venâncio, professora do departamento de História e do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Fluminense (UFF) e pesquisadora vinculada ao Núcleo de Pesquisa em História Cultural instalado nessa mesma instituição. Ao longo de sua trajetória como historiadora, Venâncio buscou investigar temas relativos à história da cultura escrita, tendo como uma das principais preocupações interrogar os usos sociais dos objetos impressos, bem como os conflitos e estratégias que podem nestas materialidades estarem inscritos.

Nota-se que a obra supracitada é fruto dos diversos trabalhos acadêmicos nos quais Venâncio esteve envolvida como orientadora. Os capítulos do livro são recortes de pesquisas, algumas concluídas e outras em andamento, que estão situadas nos mais diversos espaços acadêmicos da UFF, da graduação à pós-graduação e, portanto, têm como autores pesquisadores em diversos graus de formação (de graduandos a doutores) aglutinados em torno do tema da palavra impressa. Sendo assim, de uma maneira geral, o livro permite pensar em como a temática da Cultura Escrita em convergência com a História Cultural e Política é passível de ser abordada. Exibindo um breve panorama dos limites e das possibilidades que se abrem aos pesquisadores que investem nessas áreas de pesquisa e onde todos esses conceitos acima mencionados são de alguma maneira instrumentalizados, o livro proporciona reflexões que tangenciam, por exemplo, a forma de organização e ação de intelectuais ou dos grupos a eles vinculados. Leia Mais

Cartografias da cidade (in)visível: setores populares, cultura escrita, educação e leitura no Rio de Janeiro imperial – VENÂNCIO et al (RHHE)

VENÂNCIO, Giselle; SECRETA, Maria; RIBEIRO, Gladys. Cartografias da cidade (in)visível: setores populares, cultura escrita, educação e leitura no Rio de Janeiro imperial. Rio de Janeiro: Mauad X: Faperj, 2017. Resenha de: SILVA, Giuslane Francisca da. Revista de História e Historiografia da Educação. Curitiba, v. 2, n. 5, p.234-239, maio/agosto de 2018.

A obra Cartografias da cidade (in)visível: setores populares, cultura escrita, educação e leitura no Rio de Janeiro imperial é organizada por Giselle Venâncio, Maria Secreta e Gladys Ribeiro. Está dividida em duas partes e é composta por um total de onze textos escritos por pesquisadores de instituições distintas.

Cada texto traz abordagens inovadoras, visto que resgatam aspectos da cidade do Rio de Janeiro, muitas vezes relegados pelos pesquisadores, ao mesmo tempo em que desconstroem a ideia de que as camadas populares estavam distanciadas ou mesmo excluídas do mundo letrado. Para tanto, “cartografar um Rio de Janeiro ainda invisível” (SECRETO; VENANCIO, 2017, p. 9) constitui o objetivo central da obra.

A partir de fontes como os periódicos, os autores mostram que muitos populares na cidade do Rio de Janeiro Imperial tinham acesso à cultura escrita. Ampliando os sujeitos de suas pesquisas, os autores demonstram que escravos, forros, migrantes pobres, estiveram de alguma forma expostos a cultura escrita. É possível conjecturar que casos assim podem ter ocorrido em outras cidades também.

O livro está dividido em duas partes, a primeira delas, “Usos populares da leitura e escrita”, reúne quatro textos em torno dessa temática. A segunda parte, “Práticas educativas de populares no Rio de Janeiro oitocentista”, agrega um total de sete artigos. Para uma melhor explicitação do livro como um todo, realizo uma breve análise de cada um dos textos.

No primeiro texto, “Em primeira pessoa”, de Giselle Venancio, a autora vai analisar a carta que a liberta, Maria Rosa, escreveu à Princesa Isabel na ocasião de seu aniversário quando era comum alforriar alguns escravos. A carta assinada por Maria Rosa solicitava à Imperatriz que interviesse junto à Câmara Municipal para que sua filha, Ludovina, que era mãe de três filhos, fosse alforriada. Os dados que a autora levantou demonstram que escravos e libertos eram alfabetizados e não muito raro investiam também na formação de seus filhos.

No segundo capítulo, “Posta em cena: educação moral e estética e heterogeneidade social e teatro oitocentista”, cujas autoras são María Secreto e Viviana Gelado, a abordagem recai sobre o letramento popular e/ou negro na cidade do Rio de Janeiro, a partir de um ângulo não muito casual: o teatro, visto como mecanismo de educação moral e estética do público carioca.

Segundo as autoras, não sendo o escravo doméstico e especialmente o urbano, almejado pela cidade das letras, via no teatro a chance de depreender uma moral pragmática, assim como também lições de retórica e boas maneiras que “poderiam coadunar para desobstruir o improvável caminho da ascensão social dentro dos limites jurídicos impostos” (SE-CRETO; GELADO, 2017, p. 44-45).

Em “Saber ler, contar e poupar: reflexões entre economia popular e cultura letrada no Rio de Janeiro, 1831/1864”, de Luiz Saraiva e Rita de Cássia Almico, os autores partem de um consenso da historiografia brasileira, o de que as camadas mais baixas da sociedade teriam tido acesso limitado ao mercado financeiro, além do que a baixa circulação financeira teria restringido os trabalhadores pobres e escravos dos conhecimentos mais “sofisticados no âmbito da economia e de uma monetarização crescente” (SECRETO; GELADO, 2017, p. 49), a exemplo do que aconteceu no Rio de Janeiro no decorrer do século XX. Partindo desse ponto, os autores apresentam evidências de um maior protagonismo das camadas populares em atividades ligadas aos setores financeiros, destacam ainda o impacto dessas atuações na economia da cidade.

A partir de anúncios de jornais, os autores levantaram a hipótese de que havia um mercado de bens financeiros e que poderia ser usado por setores populares. Ressaltam também a importância da economia popular para a cidade.

Carlos Eduardo Villa, em “Escrever como curso de transação dos pequenos agentes do Rio de Janeiro na metade do século XX”, parte de dados cartoriais e evidencia que a cultura escrita aumentou consideravelmente ao longo do século XIX, o que leva crer que houve um aumento também dos grupos alfabetizados. Outra defesa do autor é que o aumento de trabalhadores, que ofertavam seus serviços nos jornais que circulavam na cidade, permite afirmar também que houve um incremento da cultura escrita entre os populares.

O texto “Ler, escrever e contar: cartografias da escolarização e práticas educativas no Rio de Janeiro oitocentista”, de Alessandra Shueler e Irma Rizzini, abre a segunda parte do livro. Nele, as autoras trazem questões ainda pouco debatidas e/ou conhecidas pelos historiadores, pois afirmam que a população pobre e seus filhos, assim como os negros, compunham o grupo escolar da cidade, isto é, frequentavam escolas e que, portanto, uma parcela de populares era alfabetizada.

As pesquisas das autoras contrariam uma ideia durante muito tempo hegemônica na historiografia, a de que não havia escolas noturnas e ensino primário voltado ao atendimento do público trabalhador, além de desmitificar a clássica afirmação de que grande parte da população brasileira no Brasil oitocentista era analfabeta, como se vê, essa não é a realidade da cidade do Rio de Janeiro. O trabalho dessas autoras e alguns outros desconstroem totalmente essas ideias.

Em “Educação no Rio de Janeiro joanino nas páginas da Gazeta do Rio de Janeiro: espaços abertos para a mobilidade social”, Camila Borges da Silva numa perspectiva que se aproxima do artigo anterior, analisa o formato dos espaços educacionais durante a presença da Corte no Brasil. Ela explora também como as aulas noturnas abriam condições de ascensão social às camadas intermediárias da sociedade, formadas em sua maioria por pardos, mulatos e portugueses pobres (SILVA, 2017).

Jonis Freire e Karoline Karula, em “Camadas populares e higienismo no Rio de Janeiro em fins dos anos de 1870”, analisam um grupo social composto por alunos que frequentavam a Escola Noturna da Lagoa, na ci-dade do Rio de Janeiro, no final da década de 1870. Nessa escola foram ofertadas conferências sobre higiene popular, o curioso é que grande parte do público que frequentava essas conferências era composto por alu-nos dessa instituição. As autoras, levando em consideração o fato de que essas conferências ocorriam nos dias em que não havia aula, afirmam que é muito provável que esses alunos iam porque o assunto lhes interessava.

Em “Cidade solidária: beneficência educacional no cotidiano popu-lar da Corte Imperial”, de Marconni Marotta, discute-se a instrução popu-lar financiada por associações, com destaque para a Sociedade Jovial e Ins-trutiva. Aponta também algumas políticas públicas voltadas para a educa-ção primária das camadas populares.

No texto “Aulas do Comércio: mundo da educação versus mundo do trabalho livre e pobre na cidade do Rio de Janeiro”, Gladys Sabina Ribeiro e Paulo Cruz Terra analisam as aulas do Comércio e o mundo do trabalho na cidade do Rio de Janeiro. Eles enfatizam também as transformações sofridas pela instituição a partir da data de sua fundação até a Reforma de 1854.

Tomando uma instituição de ensino como enfoque de seu trabalho, Alexandro Paixão, em “A educação popular no Rio de Janeiro oitocentista: o caso do Liceu Literário Português (1860-1880)”, discute os primeiros anos do Liceu Literário Português do Rio de Janeiro.

A presente instituição foi fundada no ano de 1868 sob os auspícios de alguns membros do Gabinete Português de Leitura e tinha por objetivo atender os ideais de “’comunidade’ relacionados à questão da cultura por-tuguesa, filantropia e instrução popular” (PAIXÃO, 2017, p. 215) no Rio de Janeiro. Foi talvez a primeira instituição na capital do Império a oferecer cursos noturnos gratuitos de instrução primária.

O Liceu também oferecia aulas de comércio para jovens e adultos que se mostrassem interessados na aprendizagem e no trabalho, logo em seguida passava a compor a classe caixeiral, muito comum naquele mo-mento. Entre os anos de 1868 a 1884, o Liceu formou cerca de 6.500 alu-nos.

O autor destaca a fundação de uma escola noturna que atendia jo-vens e adultos que não podiam frequentar escolas em outros horários. A escola era mantida pelo Gabinete Português. Há também a citação de ou-tra instituição, o Collegio Victorio da Costa, com o externato para meninos pobres, de propriedade de um dos membros do gabinete.

O último texto “Pelos caminhos da liberdade: sujeitos, espaços e prá-ticas educativas (1880-1888)”, Alexandra Lima da Silva e Ana Chrystina Mignot abordam as iniciativas de educação de escravos e libertos, bem como ressaltam o papel do Centro Abolicionista Ferreira de Menezes, que foi criado por funcionários do jornal Gazeta da Tarde e que era, então, dirigido por José do Patrocínio, uma importante figura dentro do movi-mento abolicionista.

Essa perspectiva, defendem as autoras, alarga a compreensão sobre a educação de cativos e libertos para além das escassas escolas que exis-tiam Brasil afora. O Centro Abolicionista, além de abrir e manter escolas primárias noturnas, promovia outras atividades como festas, espetáculos teatrais, musicais etc.

Através da análise de diversos periódicos que circulavam na cidade, as autoras encontraram várias escolas gratuitas que instruíam “menores e adultos livres, libertos e escravos, sem distinção de cor, nacionalidade ou religião” (SILVA; MIGNOT, 2017, p. 245).

Ao analisarem as ações do Centro Abolicionista Ferreira de Menezes, as autoras trouxeram à tona nomes como José do Patrocínio, José Ferreira de Menezes, Israel Soares, dentre outros, que compunham o quadro dos membros do movimento abolicionista. Ressaltam também que figuras como essas, ao escreverem em jornais, pretendiam conquistar a simpatia das elites para benefício de suas causas. No entanto, escreviam também para muitos libertos e descendentes de escravos que possuíam acesso a esses escritos.

Os textos que compõem a obra discutida aqui, com uma linguagem clara e objetiva, levantam questionamentos e desconstroem muitos mitos que se firmaram na historiografia brasileira, no caso específico, o de que as camadas populares no oitocentos estiveram alheias à cultura escrita, ou que sequer entendiam o valor da educação. É justamente isso que os textos buscam desmistificar ao mostrar que havia escolas noturnas, muitas delas mantidas por associações de dentro do movimento abolicionista. Tais escolas eram voltadas ao atendimento de trabalhadores, escravos e libertos, consequentemente uma parcela significativa de populares estavam inseridos no universo da cultura escrita e que, portanto, eram alfabetizados.

Giuslane Francisca da Silva – Doutoranda em Educação na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Brasil). Contato: giuslanesilva@hotmail.com.

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Cultura escrita e circulação de impressos no Oitocentos | Tâni Bessone, Gladys S. Ribeiro, Monique S. Gonçalves e Beatriz Momesso

O diálogo da historiografia do Brasil Império com a Nova História Cultural costuma produzir bons frutos, e Cultura escrita e circulação de impressos no Oitocentos não foge à regra. O propósito do livro é interpretar a consolidação da palavra impressa como parte do processo de formação do Estado nacional no longo século XIX, sugerindo que o desenvolvimento de jornais, revistas e livros possibilitaram a circulação de ideias, o estabelecimento de espaços de sociabilidade e a edificação de trajetórias individuais num movimento de condicionamento recíproco entre história política e história cultural.

Organizado pelas especialistas Tânia Bessone (UERJ) e Gladys Sabina Ribeiro (UFF) – cujos percursos intelectuais privilegiaram respectivamente a história dos livros e a história política do Brasil oitocentista – em conjunto com as pós-doutorandas Monique de Siqueira Gonçalves (UERJ) e Beatriz Momesso (UFF), o livro é o resultado de uma ampla empreitada de trabalho intelectual colaborativo. Com a participação de pesquisadores de diferentes instituições do país, ele amplia a discussão dos projetos de pesquisa desenvolvidos desde 2012 no Centro de Estudos do Oitocentos (CEO-UFF), no Laboratório Redes de Poder e Relações Culturais (REDES-UERJ) e, recentemente, na Sociedade Brasileira de Estudo do Oitocentos (SEO), desdobrando, assim, o debate ensejado por coletânea anterior, O Oitocentos entre livros, livreiros, missivas e bibliotecas (Alameda, 2013).

Dividido em quatro seções temáticas, Cultura escrita e circulação de impressos no Oitocentos esteia-se na premissa de Robert Darnton e Daniel Roche de reconhecer a palavra impressa como “força ativa na história”, um “ingrediente dos acontecimentos” capaz de desempenhar não só o papel de fonte de informação, mas também o de intermediação da prática política e social oitocentista.

Em sua primeira seção, “Impressos políticos”, o livro apresenta análises sobre o significado do pensamento liberal no reordenamento da cultura política e na construção de identidades sociais. Destaca como distintos projetos políticos para o Brasil circularam em jornais, a exemplo das propostas de revisão do Antigo Regime possibilitadas pela Revolução do Porto nas províncias da Cisplatina e Bahia e o embate discursivo entre republicanos liberais quando da crise da monarquia.

Opondo-se à tese que considera o processo de independência do Uruguai como resultado de um “Estado-tampão”, Murillo Winter (capítulo 1) expõe os distintos movimentos políticos e identitários na região. Explorando a imprensa cisplatina, ressalta a repercussão dos periódicos na politização da população e na mudança da conotação da identidade oriental, inicialmente associada aos anos de guerra civil e ao projeto confederado de José Gervásio Artigas. De igual maneira, salienta as particularidades do discurso político veiculado na Banda Oriental, focalizando a construção da “orientalidade”, elemento de diferenciação que negava tanto o domínio colonial quanto outras formas de sujeição.

Moisés Frutuoso (capítulo 2), em pesquisa sobre a produção jornalística na vila baiana de Rio de Contas, expõe como os periódicos publicados na Bahia e no Rio de Janeiro foram determinantes para a constituição da Junta Temporária de Governo e para o recrudescimento do antilusitanismo na localidade. Demonstra a atuação dos periódicos como veículos de propaganda de projetos políticos, especialmente liberais, e consequentemente como espaço de debate que confrontava distintos grupos da sociedade em torno da edificação do Estado Imperial, o que pôde ser caracterizado com primazia na Guerra dos Mata-marotos (1831), fruto de intensos conflitos que opunham “portugueses americanos” e “portugueses europeus”.

Ainda na primeira seção, o texto de Daiane Lopes Elias (capítulo 3) privilegia o Segundo Reinado e a atividade dos republicanos liberais a partir da publicação do Manifesto de 1870. Analisando sua composição discursiva, esclarece como a prática vencedora fundamentava-se na adaptação de doutrinas estrangeiras (no modelo americano de República) para “encontrar nelas as ferramentas capazes de instrumentalizá-las na ação de deslegitimação das instituições, práticas e valores imperiais” (p.64), e, por conseguinte, na reinvenção da elite política brasileira.

A segunda seção do livro, “Impressos periódicos”, enfoca o debate sobre caminhos políticos e artísticos embasados nas ideias liberais que se formataram no país na crise do Império. Para tanto, reúne estudos que, valendo-se da investigação de dois importantes periódicos publicados nas décadas de 1870 e 1880, analisam críticas ao governo e a específicas esferas da sociedade imperial visando reconhecer os obstáculos à chegada da modernidade ao Brasil.

Alexandre Raicevich de Medeiros (capítulo 4) empenha-se no reconhecimento das redes de sociabilidade proporcionadas pela Casa Arthur Napoleão & Miguez, responsável pela publicação da Revista Musical e de Bellas Artes e pela venda de instrumentos e edição de partituras. Destaca a especificidade do público leitor da revista – o que incidiu em sua curta trajetória – e as distintas temáticas que explorava dentro do campo cultural, como resumos de história da arte, notícias estrangeiras, comentários de obras literárias e de peças de teatro. Igualmente, salienta o tom crítico e de denúncia ensejado em seus textos, como a defesa do Theatro Imperial, cuja situação de penúria era atribuída ao descaso do governo, e o debate sobre a evolução das artes plásticas no Brasil.

Também explorando a crítica e o enfrentamento, desta feita por intermédio do humor engajado a surgir das páginas do caricato O Mosquito, Arnaldo Lucas Pires Junior (capítulo 5) estuda as denúncias das ilustrações veiculadas no periódico à chegada da modernidade ao Brasil. Explica como as caricaturas representavam o imaginário social de uma parcela da elite ilustrada que se identificava com o modo de vida europeu, mas que se via emperrada pelas barreiras da realidade nacional, a exemplo da escravidão, do posicionamento dos políticos e das relações entre Estado e Igreja.

Na terceira seção, “Impressos e trajetórias biográficas”, o livro contempla pesquisas dedicadas a percursos individuais de importantes figuras políticas do Império, demonstrando as possibilidades do fazer biográfico oportunizada pela palavra impressa.

Vislumbrando o reconhecimento de ideias antiescravistas no pensamento do escritor e político liberal Joaquim Manuel de Macedo, Martha Victor Vieira (capítulo 6), analisa a obra As Vítimas-Algozes: quadros da escravidão (1869) para caracterizar o empenho de uma parcela da elite política na superação do trabalho escravo e o consequente receio enunciado pelos senhores escravocratas. Com base nos argumentos evocados por Macedo, que objetivavam convencer o público a alinhar-se com a proposta de abolição gradual, a pesquisadora identifica em seu texto “indícios de um traço comum com outros escritos dos homens de letras da primeira geração do romantismo e do IHGB, os quais concebiam a história como ‘mestra da vida’” (p.137).

Utilizando manuscritos e impressos do final do século XIX e início do XX, Samuel Albuquerque (capítulo 7) dedica-se à figura de Antônio Dias Coelho e Mello, barão da Estância, visando à reconstituição de viagem empreendida pelo político sergipano entre Aracaju e o Rio de Janeiro. Tendo por base esse caso, analisa as distâncias percorridas pelos políticos do Império entre as províncias e a Corte para demonstrar as transformações no modelo familiar, a divulgação do padrão de civilização europeu no seio da elite e os espaços de sociabilidade da alta sociedade na capital do Império, em destaque a rua do Ouvidor.

O texto de Rafael Cupello (capítulo 8) investiga as distintas representações existentes sobre Felisberto Caldeira Brant Pontes de Oliveira e Horta, marquês de Barbacena, renomado político do Primeiro Reinado. No intuito de reconhecer quais artifícios foram utilizados na edificação de suas memórias, reconstrói a trajetória social do personagem, bem como suas redes de sociabilidade, esclarecendo, por meio de vasta pesquisa, quais elementos foram privilegiados nas biografias do marquês e como eles instituíram sua identidade histórica.

Na última seção, “Impressos e espaços de sociabilidade: as bibliotecas”, a obra se debruça sobre a circulação de ideias proporcionada pelos “espaços de saber” em diferentes momentos do Oitocentos. Enfatiza o papel das bibliotecas e clubes literários na construção do conhecimento escrito, na consolidação da cultura leitora no Brasil e na manifestação do pensamento político.

Juliana Gesuelli Meirelles (capítulo 9), em estudo sobre a Impressão Régia e a Real Biblioteca do Rio de Janeiro, privilegia as transformações da cidade ao longo do governo joanino. Enfatiza a diversidade de publicações do período – de anúncios a obras de História Natural – e o papel do bibliotecário na circulação dos impressos. Retrata também o processo de edição das publicações, além de sugerir que a implantação da tipografia foi determinante para a firmação da prática de leitura no período, momento em que o espaço público era marcado pela oralidade. De igual maneira, destaca a função desempenhada pela Biblioteca e seu acervo: espaço de saber e status da Idade Moderna.

Karulliny Silverol Siqueira Vianna (capítulo 10), empenha-se em pesquisa sobre a cultura impressa na província do Espírito Santo nos anos de 1880. A autora lança luz sobre a criação de clubes literários e bibliotecas, locais caracterizados não apenas enquanto espaço de leitura, mas também de intenso debate político e científico. Explorando o conteúdo de exemplares de periódicos e de relatórios, Vianna mostra que a construção de redes intelectuais que discutiam e propagavam ideais de novas correntes políticas no Espírito Santo, como no caso da propaganda republicana, ajudou a operar “a exclusão política de alguns grupos na província” (p.216).

Por fim, Carlos André Lopes Silva (capítulo 11) analisa a biblioteca da Academia dos Guardas-Marinha, vinda ao Brasil com a Real Família Portuguesa em 1808. Seu estudo demonstra como a organização de um corpo de livros pode fornecer ao historiador rico instrumento para apreender a sistematização do saber institucional. Privilegiando a atuação de seu organizador, o capitão de fragata José Maria Dantas Pereira, Lopes Silva estuda o papel dos manuscritos e impressos na instrução dos alunos da Academia, atendo-se aos volumes que compunham a biblioteca e à estrutura de funcionamento dela. Em sua análise, é fácil perceber que livros raros de distintas áreas do conhecimento, como matemática, química, botânica e história natural, constituíram referências relevantes para a ciência militar e para divulgação do conhecimento.

Ao abordar de maneira meticulosa as possibilidades da utilização de impressos como fontes ou objetos de pesquisa, Cultura escrita e circulação de impressos no Oitocentos contribui com o importante debate historiográfico sobre as práticas de leitura e escrita e sua imbricação com a formação nacional, enriquecendo o conjunto de estudos que se dedicam aos aspectos políticos e culturais do Oitocentos. Outrossim, ao compor-se de textos de pesquisadores de diferentes níveis de formação e diversas instituições universitárias do país, indica o importante diálogo aberto pelos grupos de trabalho que se empenham no reconhecimento da palavra impressa como instrumento de manifestação da cultura política escrita no Brasil. Ainda, ao abordar as variadas dimensões do universo da imprensa, Cultura escrita e circulação de impressos no Oitocentos evidencia como a divulgação de ideias, valores e costumes estava associada à circulação de jornais, revistas e livros, ou ao “fogo do céu” e à “fórmula da nova ideia” (p.7) evocadas por Machado de Assis.

Referência

BESSONE, Tânia; RIBEIRO, Gladys Sabi-na; GONÇALVES, Monique de Siquei-ra; MOMESSO, Beatriz (Orgs.). Cultura escrita e circulação de impressos no Oitocentos. 1.ed. São Paulo: Alameda, 2016.

Eduardo José Neves Santos – Mestrando. Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). E-mail: eduardo-neves@outlook.com.br


BESSONE, Tânia; RIBEIRO, Gladys Sabina; GONÇALVES, Monique de Siqueira; MOMESSO, Beatriz (Orgs.). Cultura escrita e circulação de impressos no Oitocentos. São Paulo: Alameda, 2016. Resenha de: SANTOS, Eduardo José Neves. “O fogo do céu” e a “fórmula da nova ideia”: escrita, leitura e impressos no Brasil oitocentista. Almanack, Guarulhos, n.18, p. 502-507, jan./abr., 2018. Acessar publicação original [DR]

Letra de índios: cultura escrita, comunicação e memória indígena nas Reduções do Paraguai – NEUMANN (RBH)

NEUMANN, Eduardo. Letra de índios: cultura escrita, comunicação e memória indígena nas Reduções do Paraguai. São Bernardo do Campo: Nhanduti, 2015. 240p. Resenha de: FELIPPE, Guilherme Galhegos. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.36, n.73, set./dez. 2016.

Os estudos sobre a experiência missionária vivenciada por indígenas e catequizadores na região da Bacia do Rio da Prata colonial beneficiam-se da profícua produção textual que acompanhou toda a época da empresa missional. A grande quantidade de registros, apesar de marcada pela diversidade e riqueza de informações contidas em relatos, é caracterizada por ser predominantemente uma escrita produzida pelos estrangeiros. A escrita, para os membros da Companhia de Jesus, era prática de obediência às determinações da Ordem – que remontavam às Constituições de Inácio de Loyola – e ratificação da hierarquia que determinava a eficácia da circulação da correspondência e, consequentemente, das informações merecedoras de serem compartilhadas, a fim de estabelecer a união dos seus membros (Arnaut; Ruckstadter, 2002, p.108).

A escrita epistolar jesuítica, essa “laboriosa persistência na missão” (Hansen, 1995, p.99), garantia a contínua construção da retórica da evangelização do selvagem americano por meio do discurso edificante: escrever não era apenas registrar para manter a comunicação; era, também, justificar a conversão. O trabalho catequético, no cotidiano do meio reducional, implicava aos missionários uma aproximação com os indígenas que deveria ir além do ensino diário de bons comportamentos e das genuflexões nas missas. Os membros da Companhia de Jesus destacaram-se dos missionários de outras Ordens pela imersão que realizaram no contato e convívio com os índios reduzidos por meio da linguagem. A conversão, souberam desde o início, só seria uma possibilidade se os obstáculos da língua fossem superados com o desenvolvimento de meios materiais e simbólicos pelos quais os nativos se incorporassem às relações coloniais por seus próprios termos (Montero, 2006, p.41). Em dois movimentos vetoriais aparentemente contraditórios, os jesuítas aprenderam a língua dos índios para depois ensiná-los a escrevê-la (Agnolin, 2007, p.293).

O domínio da escrita foi, pode-se arriscar, o maior legado que os jesuítas deixaram aos Guarani na época das missões platinas. Contudo, isso não quer dizer que houve uma simples transmissão de conhecimento, em que o indígena, receptor passivo, tenha adquirido os manejos de uma tecnologia da qual não dava conta a não ser no âmbito da repetição e da cópia. É o que Eduardo Neumann procura demonstrar em seu livro Letra de Índios: os Guarani não só aprenderam a escrever – em espanhol e em sua língua nativa -, como, também, apropriaram-se dos métodos, técnicas e funcionalidades que a escrita possibilita para adaptarem-na às suas necessidades.

Publicado pela Nhanduti – editora especializada em estudos indígenas -, o livro de Eduardo Neumann apresenta a sua pesquisa realizada no Doutorado em História Social pela UFRJ, defendida em 2005. Em exaustiva pesquisa em arquivos do Brasil, da Argentina, do Paraguai, de Portugal e da Espanha, o autor coletou dados empíricos que lhe forneceram evidências suficientes para compreender “como os guaranis reorganizaram suas atitudes e seus costumes diante das novas demandas e desafios da sociedade colonial” (Neumann, 2015, p.30).

Para isso, o autor desconstruiu duas considerações que por muito tempo foram tomadas como dados irrefutáveis da história das reduções jesuítico-guaranis: que os poucos indígenas que tiveram acesso ao papel e à pena só haviam conseguido exercer a função de copistas, anulando-se, assim, qualquer possibilidade de uma atuação deliberativa por parte dos índios; e, em decorrência disso, que os missionários foram os únicos a produzirem registros que poderiam ser usados como fontes de pesquisa sobre as Missões. A documentação cotejada por Eduardo Neumann comprova não apenas uma intensa e contínua produção textual realizada pelos indígenas durante o período tardio das missões platinas (segunda metade do século XVIII), como, também, uma importante atuação no que competia aos trâmites internos da administração e da burocracia das reduções, principalmente naquilo que cabia às responsabilidades do Cabildo.

A partir disso, o autor ressalta que quase toda a produção escrita pelos indígenas foi produzida, fundamentalmente, por uma elite missioneira composta por membros que ocupavam cargos administrativos. Isto é, o ensino da escrita foi uma atividade restrita àqueles indígenas cuja apreciação, por parte dos missionários, posicionava-os em um grupo seleto, com prestígio e responsabilidades específicas. Escrever possibilitou a essa elite destacar-se dentro das reduções, principalmente para atuar na organização e definições dos expedientes da administração local, mas, também, “adquirindo competências e habilidades que os credenciam como mediadores e protagonistas nesse novo mundo letrado” (Neumann, 2015, p.53).

O acesso à escrita permitiu aos índios a produção de uma variedade de obras, dentre as quais o autor destaca as memórias, as atas administrativas, os vocabulários, as gramáticas e uma importante participação na elaboração de textos devocionais – sem contar os inúmeros bilhetes e cartas, escritos em guarani ou espanhol (algumas vezes, nas duas línguas), que as lideranças indígenas fizeram circular entre si, diminuindo as distâncias entre as reduções e dinamizando a comunicação oficial com as autoridades. Esse intenso trânsito epistolar demonstra “o quanto os guaranis não eram passivos, e como atuavam a partir de dinâmicas emanadas da interação com a sociedade colonial” (Neumann, 2015, p.90).

O livro, dividido em cinco capítulos, inicia apresentando o problema do contato linguístico, em que os jesuítas, que pretendiam fundar as reduções na Bacia do Rio da Prata, buscaram normatizar a língua guarani por meio de uma “redução gramatical” (Neumann, 2015, p.49). Ao definir a escrita como um instrumento a serviço da conversão, os esforços dos missionários voltaram-se para traduzir os signos linguísticos do Guarani a fim de torná-lo o idioma oficial da sociedade missioneira. Como consequência imediata, os índios apropriaram-se da escrita sem, com isso, inferiorizar a importância da oralidade enquanto tradição coletiva. Apesar disso, escrever não foi uma tarefa difundida entre todos os Guarani, restringindo-se apenas à elite que ocupava cargos administrativos nas reduções.

Assim, o Cabildo é descrito como espaço de atuação dos índios que possuíam a habilidade da escrita. A instrução escolar era oferecida a um seleto grupo de meninos e homens nos quais os jesuítas depositavam a expectativa de virem a ser colaboradores no funcionamento e bom andamento da redução. Não demorou muito para que os índios alfabetizados passassem a ter autonomia no envio de correspondências e, por isso, revelassem seu engajamento às causas que lhes eram pertinentes. Exemplo disso foi a época da assinatura do Tratado de Madri, em 1750, e a consequente Guerra Guaranítica. Não só os conflitos armados e as diferenças ideológicas potencializaram a troca de correspondência, como o próprio fato de a aliança entre os jesuítas e as lideranças indígenas ter se enfraquecido em razão das desavenças no que competia à administração das reduções: “a escrita, nesse momento, conferia uma identidade comum no modo de fazer política por parte dos índios rebelados, ao expressarem suas insatisfações com os acontecimentos em curso” (Neumann, 2015, p.125).

Se, por um lado, o uso da escrita esteve reservado a um grupo restrito de índios, por outro, o formato dessa escrita não ficou preso às demandas da burocracia missioneira. Fica evidente que “qualquer novo sistema de escrita constitui-se e é reformulado na dependência de fatores que, além de serem de natureza ‘técnica’ ou ‘científica’, são políticos, ativos ou reativos” (Franchetto, 2008, p.32). Ainda que grande parte dos textos escritos pelos índios fosse de cunho administrativo, os indígenas letrados escreveram memoriais e diários que se tornam fontes para “avaliar os modos pelos quais os índios percebiam os acontecimentos e o seu interesse em estabelecer um registro dos mesmos” (Neumann, 2015, p.144).

Com a expulsão dos jesuítas do território da América espanhola, em 1767, a instalação de uma administração laica nas reduções alterou consideravelmente a forma como a elite indígena passou a se comportar frente à gestão reducional. O novo contexto retirou as reduções e suas lideranças do isolamento político, elevando o grau de relação que os indígenas instruídos passaram a manter com as autoridades coloniais, refletindo-se em um aumento da correspondência trocada – até mesmo em um maior número de cartas bilíngues. Ainda assim, mesmo que a expressão escrita tenha sido fundamental para que as lideranças pudessem deixar registradas as suas opiniões e descontentamentos em relação à nova ordem administrativa, não houve uma disseminação do aprendizado da escrita entre os índios, mantendo-se restrita a uma elite que escrevia entre si, mas assinava por todos.

Referências

AGNOLIN, Adone. Jesuítas e Selvagens: a negociação da fé no encontro catequético-ritual americano-tupi (século XVI-XVII). São Paulo: Humanitas, 2007. [ Links ]

ARNAUT, Cézar; RUCKSTADTER, Flávio M. Martins. Estrutura e organização das Constituições dos jesuítas (1539-1540). Acta Scientiarum, v.24, n.1, p.103-113, 2002. [ Links ]

FRANCHETTO, Bruna. A guerra dos alfabetos: os povos indígenas na fronteira entre o oral e o escrito. Mana, v.14, n.1, p.31-59, 2008. [ Links ]

HANSEN, João Adolfo. O Nu e a Luz: Cartas Jesuíticas do Brasil. Nóbrega – 1549-1558. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, São Paulo, v.38, p.87-119, 1995. [ Links ]

MONTERO, Paula. Índios e missionários no Brasil: para uma teoria da mediação cultural. In: _______. (Org.) Deus na aldeia: missionários, índios e mediação cultural. São Paulo: Globo, 2006. p.31-66. [ Links ]

Guilherme Galhegos Felippe – Doutor em História, Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos). Pós-doutorando, PUC-RS. Professor Colaborador (PNPD/Capes) do Programa de Pós-Graduação em História da PUC-RS.

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Livros e leituras na Espanha do Século de Ouro – CASTILLO (VH)

CASTILLO Gómez, Antonio. Livros e leituras na Espanha do Século de Ouro. Prefácio Marisa Midori Deaecto, tradução Claudio Giordano. Cotia, SP: Ateliê Editorial, 2014, 208 p. NEUMANN, Eduardo Santos. Varia História. Belo Horizonte, v. 32, no. 58, Jan./ Abr. 2016. 

 

Enhorabuena, esta expressão tão castelhana – que felicita uma realização ou parabeniza um determinado feito -, sintetiza de maneira apropriada a publicação em língua portuguesa de mais um livro do historiador, especialista em cultura escrita, Antonio Castillo Gómez. Este é o primeiro livro de Castillo publicado no Brasil, apesar do autor já possuir diversos artigos e capítulos de livros em periódicos e obras coletivas editadas em nosso país.

Desde a conclusão de sua tese de doutorado, publicada em 1997, ele tem direcionado seus esforços para consolidar uma linha de pesquisa cuja atenção está voltada aos materiais escritos, particularmente aqueles produzidos na sociedade hispânica durante os séculos XVI e XVII. É nesse contexto, o Século de Ouro espanhol, que está situado este livro.

A seleção de textos reunidos nesta obra, uma compilação de trabalhos reelaborados e atualizados, são o resultado da trajetória de um pesquisador maduro e interessado em rastrear as distintas práticas da leitura apesar de suas pistas difusas, pois esta é uma atividade plural. É consenso entre os historiadores que o advento da Idade Moderna marca o ingresso definitivo da sociedade ocidental europeia nas práticas da comunicação letrada, período no qual é registrada uma ampliação das taxas de alfabetização e do número de livros impressos. Assim, as indagações do autor estão direcionadas às práticas de leitura na sociedade castelhana, com ênfase nas suas diferentes modalidades e experiências, seja a leitura erudita ou aquela praticada por pessoas comuns que mantinham contato esporádico com a cultura escrita, fosse através de uma gazeta, um panfleto ou mesmos as escritas expostas ou cartazes fixados nas portas das igrejas.

Afinal, no que consiste atualmente história da leitura? Para responder a esta indagação e necessário inseri-la na perspectiva da história social da cultura escrita. Quando surge este novo campo de estudo? Primeiro: trata-se de um termo recente, cunhado em meados dos anos 90, e designa um campo de investigação fértil, que tem conferido sinais de vitalidade à pesquisa histórica. A segunda consideração diz respeito a sua formulação. Sua gênese está relacionada a recuperação ou as reconsiderações em torno da leitura e principalmente da escrita como objeto de análise histórica, mudança iniciada nos anos 60. E a escrita e suas potencialidades tem em Armando Petrucci, paleógrafo italiano, o principal expoente dessa renovação. Ao propor uma “ciência da escrita” ele argumenta que os textos podem revelar além do seu conteúdo expresso, os valores e condutas de uma época. A partir da fusão de duas vertentes – no caso a história social da escrita e a história do livro e da leitura -, cuja reformulação permitiu uma renovação dos pressupostos teóricos e metodológicos que pautava tais temas, tais modificações conferiram ao estudo da escrita e da leitura um ponto de observação privilegiado para a compreensão das sociedades pretéritas.

O livro no seu conjunto está organizado em 6 partes. No primeiro capítulo, o autor aborda os diferentes significados da leitura na sociedade hispânica – o que se lia, como liam e as avaliações a respeito desse habito-, pois como registrou Miguel de Cervantes, através de seu imortal personagem, Dom Quixote, do qual se dizia que de “tanto ler secaria o cérebro”. No segundo dedica atenção a leitura erudita, a leitura por excelência nas avaliações mais tradicionais sobre o tema, e seu vínculo imediato com a escrita. O terceiro “Paixões solitárias”, apresenta um estudo sobre as práticas de leitura daqueles indivíduos privados de liberdade, que exatamente pela reclusão atrás das grades, buscavam na leitura um alento. No quarto capitulo “Ler em comunidade” trata das leituras femininas, particularmente aquelas realizadas por religiosas efetuadas em conventos, no caso a leitura de textos espirituais que tem nas monjas carmelitas descalças, seguidoras de Santa Teresa de Jesús, seu exemplo maior. Nos capítulos finais, Castillo dedica atenção a dois temas de sua predileção: as práticas leitoras cotidianas e o contato estabelecido com a leitura nas ruas, através de folhetos, avisos ou mesmo os pasquins infamantes. O último capítulo é dedicado ao contato com os livros e a leitura. Analisa como esta prática despertou em alguns o desejo de se converter também em autores, seja através da redação de diários ou de “autobiografias”, uma manifestação de uma memória pessoal.

Pelo exposto e evidente que diante da primazia da cultura letrada durante o Século de Ouro espanhol a leitura e a escrita promoveram transformações que afetaram tanto as formas de organização política como as relações sociais. Sem dúvida, a prática da escrita e da leitura foi mais acentuada nos espaços régios, nos círculos cortesãos, mas também estava presente nas oficinas dos artesãos e mesmo nas ruas. Em seus trabalhos o autor tem procurando descrever através da análise dos materiais escritos, tanto os permanentes ou efêmeros, os significados relacionados à presença da leitura e da escrita, indagando a respeito dos efeitos da alfabetização entre as camadas médias e subalternas.

Ao contemplar a atividade de leitores particularmente nos espaços urbanos Antonio Castillo centra atenção àqueles que ao transgrediram as normas vigentes, fizeram outros usos da leitura. Afinal, não saber ler não implicava obrigatoriamente estar excluído do mundo da cultura escrita, e muitos indivíduos ao compartilharem a leitura com os demais utilizaram-na para finalidades distintas. O foco são os outros leitores. As leituras realizadas pelos grupos menos favorecidos, que nos espaços públicos entram em contato com os textos lidos de forma coletiva, independente do fato de serem escutadas ou lidas, permitiram aos distintos públicos contato com os últimos acontecimentos ou mesmo o conteúdo das edições recentes.

No seu conjunto a análise morfológica dos produtos escritos, dos textos manuscritos, está voltada a reconstruir as possíveis conexões existentes entre as diferentes práticas letradas e seus contextos sociais de recepção. Esta é uma das particularidades presentes a história social da cultura escrita, ou seja, uma interpretação pautada em evidências, na constituição de um corpus documental.

Por suas inquietações Antonio Castillo Goméz não se rende às explicações simplistas a respeito dos recortes sociais em sociedades de Antigo Regime. Seu interesse são aqueles grupos cujas evidências de sua capacidade alfabética, apesar de mais esparsas, comprovam a abrangência social da leitura. E a escrita, apesar de suas implicações imediatas com o poder, nem sempre remete obrigatoriamente a uma leitura elitista da sociedade e seu estudo têm sinalizado outras indagações a respeito do consumo cultural. Enhorabuena, repito, os leitores brasileiros agora têm ao seu alcance este excelente conjunto de textos.

Eduardo Santos Neumann – Pós-Graduação em História, Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Rua Ivan Iglesias 184, Porto Alegre, RS, 91.210-340, Brasil eduardosneumann@gmail.com.

 

Cadernos à vista: escola, memória e cultura escrita – MIGNOT (RBHE)

MIGNOT, Ana Chrystina Venancio (Org.). Cadernos à vista: escola, memória e cultura escrita. Rio de Janeiro: Eduerj, 2008. Resenha de: PETRY, Marília Gabriela Petry; MOREIRA, Glória Cristina Maciel Moreira. Revista Brasileira de História da Educação, n. 23, p. 261-267, maio/ago. 2010.

Conforme anuncia o título, o propósito da obra é trazer os cadernos escolares à nossa vista. Objeto ordinário da educação escolar, o caderno é reconhecido como elemento fundamental da escolarização moderna, mas muitas vezes passa despercebido aos nossos olhos, já tão acostumados à sua presença. O subtítulo da obra – Escola, memória e cultura escrita –, destaca o objeto “caderno escolar”, as memórias nele incrustadas bem como a reflexão acerca da cultura escrita que perpassará boa parte dos textos.

Organizado por Ana Chrystina Venancio Mignot, o livro possui 272 páginas divididas em 14 artigos escritos por autores brasileiros e estrangeiros. Sua editoração é impecável, sendo grande parte dos artigos ilustrados com fotografias que representam fontes das pesquisas.

Os 14 artigos que compõem o livro estão estruturados em quatro eixos, propostos por Mignot. São eles:

1) Balanço dos estudos feitos no âmbito da historiografia da educação;

2) Produção e circulação dos suportes e utensílios da escrita escolar;

3) Usos dos cadernos escolares;

4) Iniciativas pessoais e familiares de salvaguarda desses documentos produzidos durante a trajetória escolar.

Em “Os cadernos escolares como fonte histórica: aspectos metodológicos e historiográficos”, Antonio Viñao faz um mapeamento desses materiais pedagógicos ao longo da história, tomando-o como produto da cultura escolar, e discorre acerca das dificuldades metodológicas que perpassam as pesquisas debruçadas sobre essa temática. Discute, ainda, a utilização dos cadernos escolares como instrumento de conhecimento e reconhecimento da escola e seu cotidiano, abordando a importância de um entrecruzamento de fontes.

Em “Os cadernos de classes como fonte primária de pesquisa: alcances e limites teóricos e metodológicos para sua abordagem”, Silvina Gvirtz e Marina Larrondo apresentam um estudo, realizado em alguns países da Europa e da América do Sul, no qual evidenciam quanto os cadernos escolares dizem a respeito dos sistemas educativos e são produtores de saberes, além de transmissores. Saberes esses que devem ser incorporados pelos alunos, sendo, portanto, produtores de efeitos.

Dentre os trabalhos que apontam para um estudo da origem, produção e disseminação do uso dos cadernos escolares, bem como da importância e do sentido que esse suporte tomou em sala de aula, encontra-se o capítulo escrito por Rogério Fernandes, “Um marco no território da criança: o caderno escolar”. O autor faz uma genealogia dos cadernos escolares, os quais, aos poucos, substituíram as caixas de areia e as ardósias, que eram aparatos de baixo custo da cultura escrita. Remete o olhar para o âmbito da indústria e do mercado, os quais deram suporte para a disseminação do uso do caderno individual. Para Rogério Fernandes, não obstante o mercado estar atento às mudanças e contribuir para o uso em massa do caderno, foram necessárias também mudanças nas práticas escolares. Os alunos passaram a ser protagonistas no processo de ensino e aprendizagem, por meio da teorização e individualização, o que facilitou a difusão do caderno como principal instrumento de escrita do aluno, refletindo naquele o trabalho do professor.

Ana Chrystina Venancio Mignot, em seu capítulo “Antes da escrita: uma papelaria na produção e circulação dos cadernos escolares”, fala da trajetória da Casa Cruz, que passou de mercado de artigos de pesca a uma renomada papelaria, atendendo à elite do Rio de Janeiro, em fins do século XIX e início do século XX, estando em funcionamento até os dias atuais e atribuindo seu enorme sucesso ao ecletismo com que trabalhava. Afirma que o caderno há muito não é mais um conjunto de folhas cosidas juntas. Utilizando-se de exemplares de coleções de cadernos, anúncios em periódicos e entrevistas com antigos proprietários, Mignot faz uma relação entre os processos de escolarização, industrialização e comércio que contribuíram para a massificação do uso dos cadernos, elevando-os de objetos de desejo a objetos de consumo. Observou, ainda em seu estudo, como os cadernos contribuíram para a transmissão de valores e ensinamentos que deveriam ser perpetuados: “mensagens introjetadas de amor à pátria, de obediência à ordem e amor ao trabalho” (p. 72). Por fim, conclui que esses suportes da escrita foram banalizados, mas ao longo da história afetaram as práticas de escrita, os processos de ensino-aprendizagem e os uso do tempo nas salas de aula.

No capítulo “Instrumentos da escrita na escola elementar: tecnologia e práticas”, Márcia de Paula Gregório Razzini fala de uma demanda por outros instrumentos que começaram a servir de suporte ao papel com o crescente uso dos cadernos escolares e se consagraram ao longo do tempo, como penas, tintas e, posteriormente, lápis, canetas, entre outros. Ao utilizar várias fontes para seu estudo, entre elas anúncios, dicionários, manuais pedagógicos e inventários de escolas, a autora aponta que, além da substituição da caixa de areia ou da ardósia pelo caderno, se operou também a substituição de seus aportes, o dedo ou o lápis de pedra pelas canetas de pena, lápis e canetas de madeira. Ao concluir, a autora chama a atenção para que façamos uma reflexão sobre os usos excessivos das canetas e lápis em sala de aula, o que poderia contribuir para um empobrecimento da oralidade escolar, a qual é peculiar, uma vez que possui padrões formais que só a escola poderia e pode oferecer à maioria da população, de acordo com a autora.

Rosa Maria Souza Braga, no capítulo “A boa letra tem grande importância: Orminda Marques e as prescrições sobre a escrita”, versa sobre os cadernos de caligrafia e discute a importância que estes adquiriram no período em questão. Em seu estudo, Rosa Maria utiliza o livro escrito por Orminda, cujo intuito foi unir ciência e educação, tendo como título A escrita na escola primária. Nesse livro, Orminda defende a incorporação de uma metodologia da escrita por parte dos alunos, a qual contempla graciosidade no traço, ou seja, a necessidade de um senso estético desde cedo, além de economia do tempo na tarefa de escrita e disciplinamento do corpo.

“Aprendendo com cadernos escolares: sujeitos, subjetividades e práticas sociais cotidianas na escola”, capítulo escrito por Inês Barbosa de Oliveira, mostra como supostos consumidores não são apenas passivos de uma ação, mas usam o que lhes é oferecido para consumo e imprimem subjetividades, tornando esses objetos muito particulares e diversificando seus usos. Inês Barbosa de Oliveira defende que é possível, partindo desse pressuposto, colocar como sujeitos de um estudo não somente os alunos a quem esses cadernos pertencem, mas também os demais sujeitos da cultura escolar, como os professores e as metodologias por eles aplicadas, o que permite compreender uma “pluralidade de redes tecidas entre alunos e escola”.

No texto “Aprendendo a usar cadernos: um caminho necessário para a inserção na cultura escolar”, Anabela Almeida Costa e Santos, pela ótica da psicologia escolar e da pesquisa etnográfica, analisou cadernos de alunos de uma turma de 1ª e outra de 4ª série de uma escola pública paulista. Segundo a autora, essas duas séries marcam momentos distintos da escolarização e apropriação do objeto “caderno”, a 1a como fase de iniciação quanto ao seu uso e, no caso da 4a série, de autoria, uma vez que nesta os alunos passam a criar novas formas de se apropriar do caderno, revelando co maior ênfase características pessoais. Conclui que, ao longo dos anos, os estudantes começam a ter domínio das regras do uso desse material, o que possibilita que seja utilizado efetivamente como auxiliar de estudo.

María del Mar del Pozo Andrés e Sara Ramos Zamora, no texto “Representações da escola e da cultura escolar nos cadernos infantis (Espanha, 1922-1942)”, têm como objeto de estudo uma coleção de 300 cadernos oriundos de escolas públicas espanholas. A análise desse material permitiu um aprofundamento acerca das práticas escolares de cultura escrita dessas instituições. O foco do texto está nas “percepções da escola e dos valores educativos que se refletem nos cadernos escolares” (p. 162).

De acordo com as autoras, um dos aspectos mais interessantes da prática de escrita era a redação de cartas pelos alunos, atividade muito esmerada e presente nos cadernos. O estudo concluiu que nesses cadernos coexistiam os escritos disciplinados e dirigidos pelos professores e uma principiante forma de expressão infantil espontânea. Entretanto, as autoras não se propuseram a responder se os escritos refletiam exclusivamente a personalidade do professor ou da criança.

Em “Cadernos escolares: memória e discurso em marcas de correção”, Isa Cristina da Rocha Lopes trabalhou com uma coleção de 45 cadernos da 1a a 4a séries do ensino fundamental, originários de acervos pessoais. O estudo propôs-se a delinear tendências visíveis nesses cadernos e pode-se perceber o quanto a marca da presença do professor no período estudado (1951-2003) esteve aparente nos cadernos dos alunos, por meio de registros escritos, sinais gráficos e imagens constituintes de um discurso escolar indicador de identidades. De acordo com a autora, conclui-se que produções discursivas semelhantes podem cumprir funções diferentes, pois dependem de quando aparecem e de quais sentidos estão impregnados.

No texto “O conteúdo emocional de três cadernos escolares do franquismo”, Kira Mahamud Ângulo fala-nos da educação de meninas na Espanha, a partir da análise de três cadernos pertencentes a uma professora. Esses cadernos são conhecidos como “cadernos de circulação” ou “de aula” e são assim chamados porque todos os alunos participavam de sua escrita; destinavam-se ao registro da memória das aulas, uma espécie de diário. O objetivo do trabalho centrou-se em enfatizar o conteúdo emocional desses cadernos, a partir de três elementos: transparência da professora na expressão dos seus sentimentos, referências ao amor pátrio e religioso nas lições de comemorações e recurso à poesia para o ensino. Os cadernos continham várias poesias favoráveis ao regime franquista e serviam como impregnadores da nova ideologia. A autora concluiu, entre outras coisas, que a professora concebia o caderno de circulação como um recurso e material educativo, que exercia função de introjeção da cultura escrita, de doutrinação de uma visão de mundo a partir do conhecimento e sentimentos, não se caracterizando apenas como dispositivo de controle e inspeção.

Eurize Caldas Pessanha, no texto “Entrevendo o currículo: um estudo sobre cadernos escolares de normalistas”, usa como fonte de pesquisa dois cadernos de duas normalistas da década de 1930, um de higiene e outro de rascunho (anotações rápidas). A autora considerou esses cadernos frestas para enxergar parte do processo de negociaçãodo currículo e pretendeu analisar quais práticas de transmissão de conhecimentos poderiam ser deduzidas a partir deles. O texto está estruturado em três partes: na primeira, a autora situa os cadernos a partir da história das escolas frequentadas pelas normalistas; na sequência, descreve-os materialmente; e, por último, explicita os conhecimentos e práticas possíveis de serem visualizadas.

Em “A estética e as ilustrações nos cadernos escolares: o caso de uma escola de meninas na Espanha franquista”, Ana María Badanelli Rubio analisa cadernos pertencentes à mesma professora mencionada no artigo de Kira Mahamud Ângulo, porém de períodos diferentes. Estes “cadernos de rotação”, que relatavam os acontecimentos escolares, continham ilustrações de qualidade excepcional feitas pelas alunas. Além de servirem como diário, a professora selecionava atividades que as alunas deveriam desenvolver, o que indica que eram meticulosamente planejados. Sendo assim, esses cadernos não eram um espaço de fruição, imaginação e fantasia. A autora conclui que os cadernos não eram apenas um meio para aquisição de conhecimentos, mas também um local de registro do cotidiano escolar e de informações a respeito dos atores envolvidos. Ana María pontua, ainda, questões a respeito da estética presente nos cadernos, devido à inspeção pela qual passariam, questões de gênero e de religiosidade.

Para finalizar, em “Velhos cadernos, novas emoções”, Mirian Paura Sabrosa Zippin Grinspun dá voz às próprias lembranças a respeito dos cadernos de família e os motivos que a levaram a guardá-los. Pela análise dessa coleção, evidencia permanências e rupturas ao longo da escolarização da sua família.

Da leitura desta obra, retiramos algumas reflexões acerca do objeto “caderno”, hoje consagrado e tornado quase invisível, banalizado por aqueles que o usam.

Conforme os autores dos artigos sublinham, os cadernos são, pela especificidade que os sujeitos lhes emprestam, passíveis de serem compreendidos para além de sua materialidade, uma vez que nos falam, de modo próprio, de características de uma época. Versam sobre currículos e métodos de ensino e de como e em quais circunstâncias esses métodos foram empregados. Falam-nos de subjetividades, não somente de alunos e de professores, mas de atores envolvidos no processo de escolarização, de uma cultura específica e de processos naturalizados e internalizados por quem passa pelos cadernos escolares e deixa suas marcas escritas nas linhas e nas entrelinhas.

Os textos enfatizam a importância dos cadernos como fontes de pesquisa ocupadas de investigações que ajudam a compreender a complexa construção da cultura escolar (ou culturas, como têm preferido alguns autores). Escrevendo a partir de espaços geográficos diferentes, mas tendo em comum esse suporte material tão marcante da vida escolar, os autores remetem a diferentes abordagens e possibilidades de leitura de um mesmo objeto.

Marília Gabriela Petry – E-mail: marilia_petry@yahoo.com.br

Glória Cristina Maciel Moreira –  E-mail: gloriamoreira@gmail.com

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Cultura escrita: séculos XV a XVIII – CURTO (RBH)

CURTO, Diogo Ramada. Cultura escrita: séculos XV a XVIII. Lisboa: ICS, 2007. 438p. Resenha de: DURAN, Maria Renata da Cruz. Revista Brasileira de História. São Paulo, v.30, n.60, 2010.

O livro Cultura escrita: séculos XV a XVIII, de Diogo Ramada Curto, é categórico em sua proposta: “orientado analiticamente … desafia toda e qualquer forma de modelação dos sistemas de comunicação, visando trazer para o centro da análise a instabilidade criativa que se encontra presente na intervenção de cada agente (autores, impressores, mecenas, censores, leitores, etc.)” (p.12).

Seu autor, professor na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, na Escola dos Altos Estudos, nas universidades de Brown e Yale, no King’s College e no Instituto Universitário Europeu, funda a proposta ora apresentada na prerrogativa de que “tais estruturas podem ser vistas como definindo lugares onde se enraízam regimes de práticas” (p.14). Tal constructo nos é apresentado por meio de 12 capítulos, dispostos segundo uma lógica em que as fontes de pesquisa, a noção de história, os agentes do processo, seu modo de produzir e seu tipo de produção são concatenados em textos já conhecidos do público europeu, seja por meio de palestras ou de artigos. Separados, em sua escrita, por cerca de dez anos, os ensaios serão abordados pontualmente.

No primeiro capítulo, intitulado “Gravura e conhecimento do mundo em finais do século XV”, Curto procura abstrair do estudo do modo de produção dos livros que circularam na Alemanha, na Itália e na Península Ibérica a longevidade da combinação entre textos e imagens impressas, e as interferências entre a forma de transmissão de uma mensagem e o sentido dos conteúdos transmitidos.

No segundo capítulo, “A língua e a literatura no longo século XVI”, o foco são as “questões que supõem a possibilidade de determinar a vitalidade do uso social de uma língua” (p.58), por meio de um estudo sobre o estabelecimento de hierarquias em luta pela imposição de discursos legítimos.

No terceiro capítulo, “Historiografia e memória no século XVI”, o autor se volta para a corte de d. João II, propondo uma sondagem acerca da genealogia das obras no âmbito cotidiano e ordinário de sua existência.

No quarto capítulo, “Orientalistas e cronistas de Quinhentos”, Curto pretende demonstrar o vínculo entre feitos e obras a partir de um sentido comum, por ele afixado nas lógicas de família e de parentesco.

No quinto capítulo, “Uma tradução de Erasmo: Os louvores da parvoíce“, Curto reproduz palestra proferida no colóquio “Erasmo na Cultura Portuguesa”, realizado pela Academia de Ciências de Lisboa em maio de 1987.

No sexto capítulo, “Uma autobiografia de Seiscentos: a Fortuna de Faria e Sousa”, o autor repassa a figura do bricoleur, apontando registros autobiográficos, discursos confessionais, relatos picarescos e memoriais de serviços como interessantes fontes de pesquisa para o estudo dos homens de letras. Para mais, recorre à noção de tomada de consciência para traçar o percurso e distinguir a consciência de si de homens como Faria e Sousa.

No sétimo capítulo, “Grupos de rapazes, violência e modelos educativos”, o descentramento em relação aos processos de organização social, a valorização da esfera privada e o fim de “uma determinada concepção de espaço público” compõem o texto.

No oitavo capítulo, “Mercado e gentes do livro no século XVIII”, Ramada Curto é diligente, procurando nos arquivos notariais, comerciais e religiosos as referências pessoais das “gentes do livro” residentes em Portugal. O que o autor, outrora editor da coleção Memória e Sociedade da Difel portuguesa, acompanha são as mudanças na forma de trabalhar do escritor ocidental, o que encontra é o estabelecimento de uma relação com um público alargado e com novos tipos de mecenas.

No capítulo nono, a presença da corte portuguesa nos domínios da cultura escrita lhe permite traçar sua noção de iluminismo. Com “D. Rodrigo e a Casa Literária do Arco do Cego”, apresentam-se “numa lógica de relações claramente cortesãs” as tensões de uma época em que coabitavam figuras como d. Rodrigo e Pina Manique, protagonistas do excerto.

No décimo capítulo, “Literaturas populares e de grande circulação”, o historiador português prossegue na companhia dos documentos notariais, mas, agora, sai das casas e vai para as ruas, procurando valorizar o espaço urbano “a partir dos significados atribuídos a cada espaço particular, bem como às suas respectivas relações” (p.299).

Em “Notas para uma história do livro em Portugal” e em “Da tradição bibliográfica à história do livro” o autor problematiza as pesquisas lusófonas sobre o livro. Primeiro apontando a subalternização da produção e da divulgação de novos conhecimentos em função da cristalização de algumas explicações; depois, afirmando que suas observações têm “a ambição exclusiva de poder funcionar como guia crítico de futuras investigações” (p.414).

Nessa construção de uma “história dos sistemas de conhecimento imperiais” tendo em vista o modo como nela se desencadearam “novas perspectivas em relação ao estudo da cultura escrita” (p.17), Curto procura orientar seu pensamento a partir de dois modelos historiográficos: o de Lucien Febvre, com seu Rabelais “vivendo numa época cujas estruturas mentais não lhe permitiam pensar sequer no problema da descrença”, e o de Carlo Ginzburg, com seu Menocchio “que, uma vez interrogado pelos inquisidores, demonstrava a sua originalidade em fabricar uma visão própria do mundo” (p.14). Não se trata, todavia, de optar por um desses rumos, mas, sim, de “reforçar um ponto de vista capaz de explorar as diferentes dinâmicas sociais presentes mesmo quando se trata de sociedades altamente hierarquizadas e caracterizadas – como sugeriu Vitorino Magalhães Godinho – por diversos bloqueios” (p.15).

Do mais, que Ramada Curto traga novas questões e novas fontes para enriquecer o estudo dos domínios da cultura escrita é tão certo quanto sua proposta de movimentar a historiografia lusófona. Acerca dessas provocações e do lançamento de Cultura imperial e projetos coloniais (séculos XV a XVIII), editado pela Unicamp em 2009, deu-se um encontro ocorrido no dia 23 de outubro de 2009, no IFCH da Unicamp, aqui descrito para melhor esclarecer o lugar do autor na historiografia contemporânea.

No encontro, Silvia Hunold Lara apresentou e Alcir Pécora debateu um texto de Ramada Curto pautado pela discussão do barroco, da cultura letrada e do período compreendido entre o final do século XVI e o início do XVII. Em sua fala, o historiador português ponderou que a assistência teria contato com uma visão estrangeira de sua terra e, então, anunciou a pretensão de analisar um “conjunto de atitudes” capaz de desenhar uma autorrepresentação da época à luz dos seus “diversos contextos pertinentes”.

A arguição de Alcir Pécora distinguiu o ardil de Curto: cria-se no seu tipo de historiografia um inventário calculado que dissolve lugares comuns, mas que, ao mesmo tempo, esquiva-se de polêmicas. Ramada Curto respondeu mencionando a necessidade do historiador de buscar novas fontes e de tirar das mais comuns o estatuto absoluto por elas alcançado, não para desautorizá-las, mas para avançar com a pesquisa – no que evoca Irving Leonard, afirmando a prerrogativa de se fugir às totalizações para não perder as distinções.

A réplica de Pécora foi enfática – “Mas seu texto não responde o que pergunta!” –, no que Curto se explicou descrevendo a própria formação: lecionou uma Sociologia da Literatura Brasileira em universidades norte-americanas; aprendeu, na juventude, a ideia de mosaico; participou da efervescência francesa sobre o estudo do fragmento (o que considera um privilégio). Em Portugal, tomou lições sobre o neolusotropicalismo e aprendeu a manter o discurso sobre as colônias “a panos quentes”. Em seguida, Ramada Curto afirmou que sua intenção não é tanto fazer uma proto-história, quanto ressaltar os contrastes de cada época para dar a ideia de sua dinâmica, tendo em vista que “uma cultura deve ser vista a partir de seus fragmentos e em relação a um conjunto de práticas que envolva pessoas concretas”. Alcir Pécora não expressou convencimento ou concordância. Os espectadores, inquietos, passaram a perguntar.

Laura de Mello e Sousa foi a primeira, indagando sobre sua proximidade com Nathalie Zamon Davies na obra “A ficção no arquivo” e sobre sua opinião acerca de uma construção literária que permite o tipo de história que ela detectava nos livros do historiador português.

Para responder, Curto citou Naipaul, se disse longe de Davies e afirmou sua posição como a de alguém que busca na realidade, e não na ficção, os seus recursos. Concluiu essa resposta recomendando a leitura de Pierre Chaunu para os espectadores mais jovens.

Silvia Hunold Lara, brincando com a expressão de Pécora sobre o texto de Curto – “uma muralha” –, refere-se a ele como um mar, cujos vagalhões vêm na forma de notas de rodapé e onde as correntes têm maior importância que a desembocadura. Para ela, Sérgio Buarque de Holanda é correnteza subterrânea nesse mar, no que um aceno de Ramada Curto nos faz crer que estava certa.

Iris Kantor assinalou que não apenas os historiadores portugueses não conhecem a bibliografia brasileira, como os brasileiros não conhecem a historiografia portuguesa; que talvez esse seja um problema geracional, mas que ele só tem aumentado. Menciona a ideia de uma geografia política de intelectuais e pede que Ramada Curto se localize ali.

Ramada Curto enunciou Pierre Vilar a propósito do que colocou como uma de suas principais perguntas: “Como pensar a nação?”. Depois, descreveu suas preocupações acerca do desconhecimento da historiografia e, sobretudo, das fontes históricas assinalando, relutante, que as bibliotecas e arquivos possuem muito mais manuscritos guardados que catalogados, e que, destes, “basta que a ficha seja roubada, para se perder a memória do mesmo”.

Faço uma pergunta: de onde vem e para onde vai a ideia de uma tomada de consciência em sua obra? Ele responde: vem de uma tradição marxista e da necessidade, no momento em que vivemos, de suscitar ideias como essa. Daí por diante, entre fragmentos dispersos, tais como algo sobre a impossibilidade de classificar o passado, mas buscando conferir se seus agentes o fazem, recordo que Ramada Curto, respondendo a uma reivindicação de Pécora sobre sua metodologia, assinalou: “Não digo isso no próprio texto porque não posso estar sempre a dizer das regras do jogo que estou a jogar”.

Maria Renata da Cruz Duran – Doutora pela Universidade Estadual Paulista (Unesp). Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior, Quadra 02, Bloco L, 7º andar Brasília – DF. E-mail: mrcduran@bol.com.br.

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Esclavos de la ciudad letrada. Esclavitud, escritura y colonialismo en Lima (1650-1700) – MARTÍN (E-CHH)

MARTÍN, José Ramón Jouve. Esclavos de la ciudad letrada. Esclavitud, escritura y colonialismo en Lima (1650-1700). Lima: Instituto de Estudios Peruanos, 2005. Resenha de: WANDERLEY, Marcelo da Rocha. Especiaria – Cadernos de Ciências Humanas, Ilhéus, v.10, n.8, p.797-804, jul./dez., 2007.

Nos últimos vinte anos a historiografia brasileira tornou-se responsável por uma parcela considerável e significativa da produção sobre a problemática da escravidão nas Américas, fato incontestável tendo em vista importantes evidências, tais como o papel de destaque ocupado pela matéria nos currículos dos cursos universitários de história, nos catálogos editoriais e nos diversos congressos sobre a história do Brasil realizados desde então.

Por sua vez, o incremento do debate sobre o tema nos meios universitários brasileiros haveria de privilegiar marcadamente a interlocução com os estudos provenientes dos meios acadêmicos norte-americanos, tendo em vista algumas pautas de similaridades entre ambos os processos quanto às formas de organização da instituição escravista e, sobretudo, em razão do interesse comum quanto aos problemas relacionados à escravidão rural.

Menor ressonância tiveram os trabalhos dedicados à questão da escravidão no mundo hispano-americano – excetuando-se relativamente o Caribe hispânico de Manuel Moreno Fraginals e Fernando Ortiz. As razões vão desde raros e descontínuos intercâmbios acadêmicos até o desinteresse ocasionado pela percepção da limitada importância do trabalho africano nos territórios da monarquia castelhana quando comparados a magnitude de sua utilização nas denominadas América Portuguesa e Inglesa, recortes territoriais evidenciados pela historiográfi ca mais tradicional.

Neste contexto de abstenção do debate sobre os rumos da historiografi a da escravidão em diferentes países da América hispânica, encontram-se principalmente a obras de Rolando Mellafe – de caráter mais global e que seria durante largo tempo uma sólida referência sobre a questão – e de Enriqueta Vila Villar sobre o problema do tráfico de escravos naquela região e finalmente os trabalhos paradigmáticos de Gonzalo Aguirre Beltrán para o México e de Frederick Bowser e de Carlos Aguirre para o caso Peruano.

No caso dos estudos sobre a escravidão no Peru durante o período do Antigo Regime, despontam nos últimos anos alguns trabalhos que inspirados nas linhas abertas por Bowser e Aguirre se encaminham a uma análise da questão da escravidão a partir da perspectiva da História Cultural. É este exatamente o caso do livro de José Jouve Martín, professor do Departamento de Estudos Hispânicos da Universidade de McGill em Montreal.

O livro se dedica principalmente a analisar a problemática das interseções entre a cultura letrada e cultura oral tendo como objeto particular a comunidade de africanos e seus descendentes, todos residentes na cidade de Lima na segunda metade do século XVII, período quando já estão consolidadas as estruturas burocráticas nos reinos americanos. Aliás, uma Lima percebida pelos cronistas e ainda recenseada entre o século XVI e a primeira metade de XVII como uma cidade de caráter africano, por conta de uma população majoritariamente formada por grupos provenientes do Congo e de Angola.

Concentrado no campo da escravidão urbana, tal estudo revela como negros, mulatos e zambos participavam ativamente das articulações da cultura letrada sem que necessariamente houvessem adquirido a habilidade de ler e principalmente a de escrever. É justamente esta evidência das interações dos segmentos africanos com os signos da cultura letrada e com os textos escritos sem necessariamente implicar a aquisição de habilidades cognitivas num sentido estrito que demarca o inovador deste trabalho. Ainda que condicionada pela instituição da escravidão os usos da escrita servem aqui como referência para evidenciar a extrema complexidade dos processos de inserção dos africanos nas sociedades americanas – tal qual a historiografi a brasileira tem demonstrado nos últimos anos.

Sendo assim, os problemas destacados por Jouve encontram inspiração em larga medida nos fundamentos de interpretações anteriores voltadas para a comunidade indígena – sobretudo as de Serge Gruzinski para o México. Tais perspectivas buscaram dar conta das práticas de apropriação da cultura escrita pelos nativos como meio de adaptação à complexidade do aparato jurídico castelhano e ainda como garantia de ver reconhecido suas posições na sociedade e ainda requerer privilégios de isenção tributária.

O autor robustece o argumento da mescla da cultura letrada com a oral, ao pretender comprovar em particular que os contatos dos africanos chegados à cidade de Lima com a cultura escrita ocorrem quase exclusivamente por meio dos mecanismos da predicação cristã levados a cabo pelas ordens religiosas. Em segundo plano, o processo de assimilação imposto aos negros se dava principalmente através dos materiais de catecismo, a exemplo do Catecismo para los rudos y ocupados editado em Lima no fi nal do século XVI.

Tais fatos não produziram necessariamente as condições de aquisição conjunta das habilidades de leitura e escrita, mas sim uma evidente assimetria entre ler e escrever que caracterizaria tanto a aquisição parcial de habilidades como também os distintos níveis de interação dos indivíduos pertencentes às nações africanas com o mundo letrado.

Ainda que tivessem sido excluídos das instituições formais de educação, negros, mulatos e zambos adquiriram familiaridade com a cultura letrada através de diferentes modalidades que estavam profundamente demarcadas pela convivência entre os textos alfabéticos e visuais. As relações com instituições civis e eclesiásticas – como ocorre por exemplo, com o zambo Santiago Benítez em relação ao Tribunal da Santa Inquisição e o mulato Francisco de Santa Fé no tocante ao Arcebispado -, bem como a participação em atos públicos e festas civis e religiosas constituíram situações onde a tradição escrita dos setores proeminentes desta sociedade eram de certo modo assimiladas mediante formas visuais inscritas no cotidiano daquelas comunidades.

Outra questão debatida diz respeito ao papel desempenhado por diferentes elementos do mundo jurídico como mediadores nos processos de inserção dos africanos na sociedade colonial.

Tal contexto se explica pela relação estabelecida com os escrivães, facilitada imensamente pela condição ladina da população de origem africana, justo em razão da produção de eventos onde se buscavam por exemplo obter as “cartas de liberdade”. Ao lado destes especialistas da escrita encontram-se também na documentação – ainda que de forma mais difusa – os escribas, gente dedicada à elaboração de textos fora dos domínios burocráticos da administração do reino.

Os processos de concessão de liberdade, a quitação de obrigações como as cartas de pagamento, os episódios de estabelecimento de acordos e contratos com indivíduos de origem africana ou de castas superiores, acabam demarcando alguns aspectos da inserção desta população na vida econômica e gremial de Lima como faz ver José Jouve através da referência às chamadas “causas de negros”.

Além disso, tais processos mostram-se fundamentais à hora de compreender tanto os meios de os africanos negociarem posições dentro da sociedade – que não são independentes da condição de subordinação – como os casos de outorga de um poder agenciador a negros e mulatos livres que fi ndava por garantir o cumprimento de certas condições em suas relações contratuais com pessoas de posição superior na sociedade limenha.

O tema da negociação das identidades de grupo nas sociedades coloniais é retratado ainda através das formas de resistência expressas através do recurso à cultura legal. Nesta dimensão, são os registros de maus tratos, queixas e demandas apresentadas aos tribunais pelos de origem africana que elucidam a interação com as autoridades coloniais por meio do uso de textos e ainda descortinam as disputas e os confl itos muitas vezes infrutíferos com os proprietários de escravos, tal como no caso do escravo Antonio Português apresentado no texto.

Do mesmo modo, os registros em questão sublinham os esforços de amigos e familiares do reclamante de modo a fazer chegar os papéis das denúncias às mãos das autoridades legais. Por conseguinte, indicam a ação concertada com outros indivíduos, dado que em muitos casos há evidências de que os solicitadores das causas em favor dos escravos podiam ser na verdade tanto funcionários do tribunal, advogados ou ainda quem sabe um procurador.

Neste sentido, cabe ressaltar também as disputas decorrentes das operações legais para embargar a venda dos cônjuges dos escravos, proibida tanto pela justiça civil e mais que tudo pela eclesiástica; proibição continuamente desrespeitada pelos proprietários.

Jouve sublinha o papel desempenhado pelas redes sociais dos escravos no sentido de tornar possível a apresentação da denúncia quanto aos abusos relacionados às operações de venda mencionada.

Ainda nesta linha, se apresentam as petições que denunciam situações ambíguas de liberdade do escravo e por sua vez evidenciam as disputas em torno do pagamento do “jornal”, uma prática em geral bastante associada à escravidão urbana em Lima. Segue-se a esta realidade, as demandas apresentadas contra os espanhóis por negros e mulatos livres como modo de defender-se de abusos praticados contra eles ou mesmo com o objetivo de proteger bens e propriedades acumuladas.

Após analisar as relações verticais dos africanos no cotidiano daquela sociedade, o autor dedica-se a partir de então ao problema das relações entre os membros do grupo africano, sobretudo as contendas internas. A principal conclusão é a ausência de coerência nas formas de oposição a ordem colonial. Discute-o considerando os confl itos entre casais verifi cados nos tribunais em razão de promessas de matrimônio descumpridas, da anulação de matrimônios em decorrência de coação ou registrar-se situação de maus tratos e por fi m, tendo em vista os problemas oriundos das uniões entre livres e escravos com todos os seus efeitos sobre o status social.

Contudo, é a análise das petições encaminhadas às cortes judiciais coloniais pelas confrarias, tendo em vista as disputas em torno da regulação e controle destas instituições, uma das etapas mais signifi cativas da problemática das relações horizontais na vida da comunidade. Neste sentido, as confrarias funcionaram tanto como espaços de conservação de elementos das identidades africanas como de integração dos africanos a cultura americana de matiz europeu pela via da religiosidade.

Sem embargo, como demonstra Jouve, é o papel destas instituições como mediadoras entre esta população, a administração e a sociedade que explica as tensões no interior daquelas comunidades. Organizadas em muitos casos a partir dos vínculos com as “nações”, a exemplo da Confraria de Nossa Senhora do Rosário formada por Nalúes e Cocolíes, tais irmandades são apontadas como meios de articulação das identidades coletivas que mantinham entre si acirrada disputa. Isto explica as fortes lutas internas em torno do seu controle e em particular a necessidade de conhecer as estratégias e os discursos legais vigentes.

O domínio dos conhecimentos legais serviria também para garantir aos africanos participar no mercado de escravos como compradores, evidenciando claros processos de diferenciação social no interior desta comunidade e de controle sobre indivíduos de uma mesma casta. Aqui sobressaem as disputas judiciais em razão do direito de posse dos escravos – travadas tanto com outros membros da comunidade e com os espanhóis -, seguidas pelos casos de omissão nas escrituras daqueles “defeitos” dos escravos objetos da venda e por fi m as contendas empreendidas por criollos ou peninsulares com vistas a recuperar os escravos que estivessem em poder dos negros.

A obra se encerra na análise do papel dos testamentos para esta comunidade, diante tanto do seu papel como difusor da cultura notarial entre negros, mulatos e zambos, como por haver sido capaz de redefi nir suas posições em relação às identidades dos grupos. Como demonstra Jouve tais documentos serviam especialmente à articulação de lealdades, como confi rmação do domínio e infl uência de certos membros na sua comunidade, ou ainda melhor, como elemento de ligação entre membros de diferentes castas que a escrita preservaria em face da morte.

Marcelo da Rocha Wanderley – Doutor em História Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, Professor Adjunto da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro – UFRural (RJ), Departamento de História e Economia (DHE). E-mail: marcelorw@yahoo.com.br

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