Arte, política e cultura |  Almanack | 2021

Alphonse Mucha Política e Cultura
Detalhe de capa de Alponse Mucha: msterworks | Alphonse Mucha, 2007

Os registros visuais e audiovisuais de eventos, personagens e processos históricos relacionados às Independências e à formação de identidades nacionais nas Américas, vem merecendo o estudo e questionamento de pesquisadores brasileiros e estrangeiros.

As imagens, para além das representações e sentidos que lhes são atribuídos por seus autores, possuem enorme capacidade de gerar efeitos, de promover e propor intervenções sociais, o que alarga os circuitos de produção, circulação e atualização em que geralmente são inseridas. É fundamental, então, reconstituir e contextualizar historicamente não só as práticas artísticas e formais de que são o resultado mais aparente como, sobretudo, sua dimensão narrativa e o peso por ela desempenhado na construção e introjeção de conceitos e interpretações sobre as “comunidades imaginárias nacionais”, como as denominou Benedict Anderson, forjadas no Brasil e na América, desde o século XIX5. Leia Mais

Os saberes dos povos e a desconstrução: Religiosidade, Natureza e Cultura | Abatirá | 2021

Jacques Derrida writes Política e Cultura
The intimacy of friendship, Jacques Derrida writes, lies in the sensation of recognizing oneself in the eyes of another | Foto: Denis Dailleux / Redux

Jacques Derrida foi um filósofo nascido na encruza, uma encruzilhada chamada Magrebe, entre norte e sul, entre ocidente e oriente. Derrida, um pied noir, como chamavam os franceses aos africanos do norte, um pé-preto, judeu-árabe, mas nem judeu nem árabe completamente, muito branco pra ser Africano, mas muito preto pra ser Europeu, ele vem desse lugar, se assenta nesse lugar e sustenta que só nesse lugar de cruzos se pode pensar. Desse estranho lugar nasce “essa estranha instituição chamada filosofia”: seja na encruzilhada que foi a Grécia Antiga, antes de ser pretensamente purificada pelos alemães do século XIX, seja na encruzilhada que foi o Egito, seja aqui nas nossas esquinas das Américas.

Quando esteve no Brasil para a última conferência que daria em vida, em agosto de 2004 4, Derrida nos pede que deixemos de lado certas picuinhas filosóficas, herdadas da Europa como “os grandes problemas da filosofia”, para pensarmos nossas questões. Acreditava ele que alguns de seus textos poderiam nos ajudar, não como “método” para ser aplicado, nem como modelo, mas, talvez, como inspiração para que cada um possa pensar suas questões desde e a partir de seu chão, que não é nenhuma espécie de fundamento, nem lugar determinado. Leia Mais

Cultura e imágenes en los siglos XIX y XX latinoamericanos  | Claves – Revista de Historia | 2021

En la contratapa de los libros de la colección Picturing History (entre ellos el ya clásico Eyewitnessing. The Uses of Images as Historical Evidence, de Peter Burke), lanzada en 1995 por Reaktion Books, los editores presentaban la serie como «una nueva forma de escribir historia en la que las imágenes constituyen una parte integral […] poniendo de relieve su capacidad como herramienta activa de negociación, parodia y resistencia, como espacio en el que la historia se hace, se pone en marcha y se registra». 1 Tal expresión de optimismo, no en las imágenes per se, sino en nuestra capacidad para utilizarlas, estaba justificada en tanto la disciplina parecía superar décadas de actitudes refractarias. Esa desconfianza – cuando no franco desinterés- por parte de los historiadores profesionales hizo que, durante mucho tiempo, el análisis histórico de las imágenes haya sido emprendido o bien por fuera o bien en los márgenes de una disciplina mayormente abocada a la historia política. Leia Mais

Sociedade, Cultura, Trabalho: Diálogos sobre fronteiras no Mundo Rural (II) / Vozes Pretérito & Devir / 2020

[Sociedade, Cultura, Trabalho: Diálogos sobre fronteiras no Mundo Rural (PARTE – II) ]. Vozes Pretérito & Devir. Teresina, v.11, n.2, 2020. Acessar dossiê [DR]

Imprensa, cultura e circulação de ideias / Estudos Ibero-Americanos / 2020

Este dossiê foi proposto, tendo por norte os objetivos do grupo de pesquisa inscrito no Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq): Imprensa e circulação de ideias o papel dos periódicos nos séculos XIX e XX que reúne cerca de 90 pesquisadores nacionais e estrangeiros, distribuídos em várias linhas de estudos, para pensar a imprensa impressa periódica de grande circulação em suas conexões nacionais e internacionais. Proposto pela linha de pesquisa O Brasil e as Américas, o dossiê aqui apresentado reúne artigos que ultrapassam os limites desta última, apresentando temas que envolvem não só a imprensa ibero-americana, mas também aspectos mais gerais do fazer jornal e do fazer jornalismo.

Demos aos artigos selecionados uma organização cronológica, mas que acaba por atender também a uma divisão temática. O artigo de Karen Racine transporta a questão para a década de 1820, em Birghman, na Inglaterra, a nação mais poderosa do mundo e berço da imprensa periódica. Em um contexto tanto de expansão da imprensa como de novas experiências pedagógicas, jovens estudantes, filhos da elite de uma América hispânica revolucionada foram enviados para o estrangeiro, a fim de estudar numa escola progressiva chamada Hazelwood onde produziram um curioso jornal, o Hazelwood Magazine, que alinhado com os objetivos cívicos e pedagógicos da escola, pretendia formar os cidadãos de bom caráter dentro da lógica revolucionária liberal. Do outro lado do mundo, no Brasil, o embate que se verificava entre as elites de um Maranhão ainda divido entre a adesão à independência brasileira e a fidelidade a Portugal, aparece nas páginas do jornal longevo – para os padrões do tempo –, o Conciliador do Maranhão. Exemplo que demonstra como as notícias e o debate constitucional tiveram uma circulação transatlântica que incluía os pontos mais distantes desse imenso país, como o demonstra o artigo de Marcelo Cheche. Na corte do Rio de Janeiro, uma imprensa incipiente, mas de grande atividade agitaria a cena da independência. Um dos personagens de maior destaque foi João Soares Lisboa, redator do Correio do Rio de Janeiro que liderou o movimento pela convocação de uma constituinte brasileira, a partir de um abaixo-assinado apresentado a d. Pedro. Soares Lisboa foi um difusor da cultura política das luzes e, em seu artigo, Paula Caricchio apresenta e discute a forma como as ideias de Civique Gastine foram difundidas no Brasil através as páginas do Correio do Rio de Janeiro.

Dentro do mesmo recorte temporal, século XIX, reunimos os artigos que contemplam o papel da evolução das técnicas de impressão e da especialização das atividades jornalísticas que sucederam aos embates travados na imprensa do Primeiro Reinado. O uso da litografia pela imprensa periódica possibilitou o surgimento e a popularização das revistas ilustradas dando vez a um elenco de caricaturistas e ilustradores especialmente estrangeiros, que tornariam bem mais animada a cena impressa brasileira. Um dos que aqui aportou, em 1875, foi Rafael Bordalo Pinheiro, maior nome da caricatura portuguesa do XIX. Rosangela de Jesus analisa as dificuldades de adaptação de Bordalo Pinheiro em um ambiente já consolidado em que outros artistas já tinham conquistado renome. Com a multiplicação de jornais e revistas ao longo do século XIX, os empregos nas tipografias para profissionais do ramo também se multiplicaram. Exercendo uma profissão que requeria o bom conhecimento da língua, os tipógrafos foram uma das primeiras categorias a se organizar e a publicar seus próprios jornais. Tania de Luca analisa esse processo a partir do estudo de uma das publicações do gênero, a Revista Tipográfica, que circulou no Rio de Janeiro entre 1888 e 1890, revelando a forma como os tipógrafos viam a profissão e como avaliavam o avanço da arte tipográfica no Brasil. O progresso da imprensa no dezenove também levou a uma especialização setorial com destaque para a imprensa esportiva uma das que primeiro se firmou. Sendo o famoso esporte bretão o que viria a se tornar o mais popular no Brasil, Victor Melo apresenta as adaptações que o futebol sofreu, comparando as informações que a imprensa fluminense fornecia sobre a prática daquele esporte na Inglaterra, na França e na Argentina. Em 1898, a realização, em Lisboa, do Congresso Internacional da Imprensa, como nos revela Adelaide Machado, seria um fator de reconhecimento da grande transformação que a imprensa sofrera ao longo do século XIX: o jornalismo tinha se firmado como profissão independente; fora criado um estilo jornalístico de escrita e a própria imprensa se convertera um negócio altamente lucrativo dando origem às grandes empresa jornalísticas.

A segunda parte de nosso dossiê se ocupa do século XX e se divide entre quatro artigos. Os dois primeiros voltados para o tema da imigração em dois contextos bem diferentes. A política de imigração europeia iniciada por d. Pedro II teve grande impulso no final do século XIX. O artigo de Rosane Marcia Neuman nos apresenta curiosa publicação aparecida em Leipzig, na Alemanha, em 1902 e 1903. Era assinada pelo dono de uma empresa de colonização, Hermann Meyer, com o objetivo de fazer propaganda das vantagens de imigrar para o Brasil. Em sua publicação, Meyer reproduz artigos e cartas de e / imigrantes alemães, membros da colônia criada por ele, entre os municípios de Cruz Alta e Palmeira, no Rio Grande do Sul. Uma outra imigração, bem diversa foi a que, depois da Segunda Guerra Mundial, deu origem a uma colônia formada por certa de 2500 pessoas que se estabeleceram no município de Guarapuava, no Paraná, no hoje distrito de Entre Rios. Esse distrito foi fundado, entre março de 1951 e janeiro de 1952, justamente para acolher aqueles imigrantes. Os membros dessa colônia se identificam coletivamente como suábios do Danúbio e eram oriundos de áreas da antiga Iugoslávia, Hungria e Romênia. Marcos Nestor Stein em seu artigo, apresenta e analisa as narrativas desses imigrantes publicadas em 1991 e 1992 no Jornal de Entre Rios em comemoração aos 40 anos de fundação daquele distrito.

O uso da imprensa para a desconstrução de imagem de um político é contemplado com dois artigos que falam sobre Getúlio Vargas em dois períodos momentos distintos. George Seabra escreve sobre o jornal Anhanguera, principal veículo de divulgação do ideário do movimento bandeirante que se apropriava de representações literária dos bandeirantes paulistas com finalidades políticas. O autor apresenta o perfil de alguns de seus membros, analisa a forma como divulgam seu ideário e mostra como o jornal foi recebido por militares e civis. Destaca ainda o papel de Anhanguera na construção da imagem negativa de Getúlio Vargas, em contraste com a do candidato paulista à Presidência da República, Armando de Salles Oliveira, nas eleições de 1937, abortadas pelo golpe do Estado Novo. Outro Getúlio Vargas, eleito presidente em 1951 e já transformado pela história, será o alvo dos ataques do jornal Correio da Manhã. Luiz Carlos dos Passos Martins, mostra em seu artigo como aquele jornal fundando no final do século XIX, seria uma das trincheiras de combate a Vargas e ao próprio regime democrático.

Finalmente, mas não menos importante, é a contribuição que nos traz de Cuba Yaneidys Arencibia Coloma, que nos revela um pouco do que era a imprensa que se fazia na ilha, antes da revolução de Fidel. A autora nos apresenta a Jorge Manach, jornalista, editor e intelectual de grande influência no seu país, destacando o caráter de ensaística cultural que caracterizava seus escritos, seus vínculos com vários projetos editoriais e sua ação decisiva no sentido de que fosse criada a Universidad del Aire. Esse artigo nos ajuda a conhecer o gradual processo de autonomia e de legitimação do pensamento cultural cubano, além de contribuir para nos mostrar formas específicas de sociabilidade intelectual, originadas pela atuação de Manach em seu tempo.

Temos o privilégio de encerrar esse número com uma entrevista com Celia Del Palácio Montiel, importante pesquisadora da história da imprensa mexicana, fundadora da Red de Historiadores de la Prensa en Iberoamérica (1999) e, desde 2018, coordenadora do Grupo Temático Historia de la Comunicación, da Asociación Latinoamericana de Investigadores de la Comunicación (ALAIC) e autora de inúmeras publicações. Nesta entrevista, Célia del Palácio reafirma a importância da imprensa como campo estratégico fundamental para a história e demonstra como esse campo de estudos vem se consolidando na América Latina. A historiadora também destaca o papel dos estudiosos da imprensa no atual contexto mundial: “A los estudiosos de los medios toca analizar a profundidad lo que ocurre, desde la academia, denunciar los ataques a la libertad de expresión y presentar la evidencia en los foros más allá del reducido espacio académico” [3]. Esperamos que este Dossiê seja uma contribuição à essa tarefa.

Notas

3. PALÁCIO, Célia Del. Depoimento de Célia Del Palácio. Destinatários: Marlise Regina Meyrer e Helder V. Gordim da Silveira. [S. l.], 7 abr. 2020. 1 mensagem eletrônica.

Isabel Lustosa – Fundação Casa de Rui Barbosa, Rio de Janeiro, RJ. orcid.org / 0000-0003-2456-6925 E-mail: isabellustosa@gmail.com

Marlise Regina Meyrer – Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (Pucrs). orcid.org / 0000-0002-6446-7799 E-mail: marlise.meyrer@pucrs.b


LUSTOSA, Isabel; MEYRER, Marlise Regina. Apresentação. Estudos Ibero-Americanos. Porto Alegre, v. 46, n. 2, maio / ago., 2020. Acessar publicação original [DR]

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Cultura e democracia: convergências, conflitos e interesses públicos / Albuquerque: revista de história / 2020

Até ontem a palavra do alto César podia resistir ao mundo inteiro. Hoje, ei-lo aí, sem que ante o seu cadáver se curve o mais humilde. Ó cidadãos! Se eu disposto estivesse a rebelar-vos o coração e a mente, espicaçando-os para a revolta, ofenderia Bruto, ofenderia Cássio, que são homens honrados, como vós bem os sabeis. Não pretendo ofendê-los; antes quero ofender o defunto, a mim e a vós, do que ofender pessoas tão honradas. (Marco Antônio, em Júlio César de William Shakespeare)

O dossiê Cultura e Democracia: convergências, conflitos e interesses públicos, ainda que esteja ligado a temas e problemas temporais próximos ao que estamos vivendo no imediato presente, abrange uma temporalidade mais ampla que envolve os diversos meandros que compõe a estrutura do mundo e do Estado modernos. Desde as revoluções burguesas, que marcaram o surgimento de uma nova sociedade, homens e mulheres em vários espaços geográficos passaram por diferentes tipos de instabilidades políticas, o que gerou muitos debates intelectuais além de lutas e disputas frequentes pelas formas de entendimento sobre o poder de atuação das pessoas no espaço público.

O século XIX, por exemplo, é caracterizado no âmbito do continente europeu por numerosas lutas de trabalhadores que perceberam as possibilidades de transformação de suas condições de sobrevivência e de atuação política inaugurada pelo enredo liberal no final do século anterior. Um dos exemplos mais importantes nesse sentido ocorreu em Paris em 1848 quando a utopia da transformação atingiu inúmeras pessoas que incendiaram e subverteram as ruas da capital. A população invadiu e saqueou o Palácio das Tulherias, então residência do rei Luís Felipe. E antes que um governo provisório fosse formado e a Dinastia dos Orleans perdesse o poder, populares arrastaram o trono pelas ruas e o incendiaram na Bastilha. A força política e simbólica do que ocorreu a partir desse acontecimento foi retratada por imagens e palavras, mas nada mais forte que a análise produzida por Karl Marx em O 18 de Brumário de Luís Bonaparte.

Escrito entre dezembro de 1851 e fevereiro de 1852, Marx elaborou no calor dos acontecimentos uma análise cortante sobre a amplitude da atuação política de setores sociais explorados na vida democrática da França à época. O mesmo país que poucos anos antes havia legado ao mundo o lema “Liberdade, Igualdade e Fraternidade” e a “Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão” utilizou o discurso da democracia para que as subversões e lutas de 1848 fossem acalmadas e conformadas. A derrota imediata dos trabalhadores que ocupavam as ruas de Paris ocorreu a partir de junho de 1848, quando a Assembleia Nacional Constituinte foi formada e começou a elaboração das bases da Segunda República Francesa. O trono queimado de 1848 foi calmamente reconstruído até que, em 1851, o sobrinho imitou o tio e fez do dia 2 dezembro o seu 18 de Brumário.

Esse é apenas um exemplo onde os temas da democracia e da cultura estiveram fortemente imbricados em um “momento de perigo” do século XIX. Nele podemos observar muitas coisas e tirar diversas conclusões, mas o mais importante é perceber que o discurso democrático, por si mesmo, não garante a ampla e profunda participação política de diferentes estratos sociais. Aqui é desnecessário realçar a habilidade de Marx em tratar desse tema, inclusive porque O 18 de Brumário é inquestionavelmente um clássico, mas é impressionante perceber que desde 1852, quando ele foi publicado, temos condições de desdobrar essa discussão principalmente para entender que a democracia não é um bem em si, mas um constructo social que depende de variáveis históricas e, portanto, de condições sociais que precisam ser cotidianamente pensadas e, claro, reescritas. Inclusive o próprio Marx nas linhas iniciais de seu texto chama a atenção para o fato de que “Os homens fazem a sua própria história; contudo, não a fazem de livre e espontânea vontade, pois não são eles quem escolhem as circunstâncias sob as quais ela é feita, mas estas lhes foram transmitidas assim como se encontram” (MARX, 2001, p. 25). A participação política requer responsabilidade de todos. As noções de cidadania, igualdade e direitos, entre outros, como todos os aparatos discursivos, possuem correspondentes na prática. O autor alemão nos mostrou no século XIX, que quando alguns grupos colocam em prática a igualdade, outros reagem, inclusive no campo do discurso lançando mão do vocabulário de participação política inaugurado pelas revoluções burguesas.

Tomando essa reminiscência do século XIX como referência, podemos buscar outras no século posterior. O que nos motiva nesse caminhar é o vocabulário político do Estado Moderno, lembrando sempre que nosso escopo são as convergências entre democracia e cultura.

Ao longo do século XX, as duas guerras mundiais foram acontecimentos que alteraram profundamente os debates sobre democracia. Se antes de começar, o primeiro conflito fora saudado em prosa e verso por inúmeras pessoas embaladas pelo nacionalismo e o imperialismo de fins de século na Europa, 1918 apresentou um quadro muito distinto. Além dos problemas econômicos decorrentes da guerra e do novo quadro de forças políticas mundiais, o nacionalismo adquiriu cada vez mais traços xenófobos e chauvinistas. Isso sem contar o peso que a Revolução Russa de 1917 teve para os debates ideológicos da época bem como a acentuada gravidade do processo de exploração do continente africano para a política internacional. Não por acaso, as derrotas mais duras para o campo democrático não tardaram a chegar. Em 1922, Benito Mussolini promoveu a conhecida Marcha sobre Roma, com isso o fascismo entrava triunfal na cena pública contemporânea e, em 1933, Adolf Hitler foi nomeado chanceler da Alemanha pelo presidente Paul von Hindenburg. Daí até a Segunda Guerra Mundial foi uma questão de tempo e novamente o mundo se viu diante de inúmeros debates sobre a questão democrática.

Muitos autores se dedicaram à discussão sobre democracia e espaço público nesse amplo contexto que abarca também o período posterior a 1945, quando inclusive se coloca em prática no ambiente europeu o Estado de bem estar social. Uma das reflexões mais marcantes da época surge das letras da filósofa Hannah Arendt, em especial por ela entender que o espaço da ação política é o espaço da ação pública por excelência. A política se efetiva onde os Homens se unem aos seus iguais, são capazes de assumir posicionamentos, persuadem, sofrem e aceitam derrotas.

Arendt se dedicou, desde As Origens do Totalitarismo (1951), amplamente às reflexões que envolvem “ação” e “pensamento” no ambiente dos autoritarismos inaugurados no século XX. Os leitores atentos encontram nos seus livros análises primorosas sobre as incongruências que o tema da democracia carrega, entre eles Sobre Revolução (1963), Entre o passado e o futuro (1968) e Crises da República (1969). Nesse último, tratando especificamente da realidade dos Estados Unidos, país que acolheu a autora quando ela fugira do Nazismo, a análise se volta para a revisão da ideia de representatividade política frente às questões da liberdade pública:

Queremos participar, queremos debater, queremos que nossas vozes sejam ouvidas em público, e queremos ter uma possibilidade de determinar o curso político do nosso país. Já que o país é grande demais para que todos nós nos unamos para determinar nosso destino, precisamos de um certo número de espaços públicos dentro dele. As cabines em que depositamos as cédulas são, sem sombra de dúvida, muito pequenas, pois só têm lugar para um. Os partidos são completamente impróprios; lá somos, quase todos nós, nada mais que o eleitorado manipulado. Mas se apenas dez de nós estivermos sentados em volta de uma mesa, cada um expressando a sua opinião, cada um ouvindo a opinião dos outros, então uma formação racional de opinião pode ter lugar através da troca de opiniões. (ARENDT, 2010, p. 200)

É perceptível pela ótica da autora, entre outras coisas, que a participação democrática ampla depende de fatores que vão além do depósito do voto nas urnas e inclui a ampliação dos espaços públicos, a capacidade de diálogo, o processo formativo cultural e educacional, daí a importância do ambiente escolar e da escolarização, discutidos de maneira tão contundente no texto A Crise na Educação. Ninguém nasce em um mundo livre de construções humanas, por isso cada nova geração tem responsabilidade com o passado e com o futuro. Portanto, sem o processo educacional, corremos o risco de ignorar o que as gerações anteriores construíram e, com isso, desprezamos os perigos autoritários inaugurados no passado. E isso, infelizmente, é possível sem o diálogo frequente e a expansão da esfera pública.

Com tantos e profundos autoritarismos no século XX percebemos, lendo autores diferentes e refletindo sobre momentos e sociedades distintas, que é impossível não ser constantemente vigilantes com o processo formativo das pessoas. É ele que minimamente pode garantir um debate mais consistente sobre os meandros democráticos e, principalmente, condições de sobrevivência onde existam conflitos e convergências de interesses públicos.

Apesar de termos percorrido apenas vinte anos do século XXI, está claro que a força autoritária recrudesce imensamente no mundo e no Brasil nos últimos anos. Há inclusive uma extensa bibliografia sobre o tema que vem colocando acentos interpretativos distintos e importantes sobre a ideia de democracia. Desde a publicação de Como as democracias morrem (2018), de Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, temos acesso no Brasil aos livros Como a democracia chega ao fim (2018), de David Runciman; O povo contra a democracia (2019), de Yascha Mounk; Na contramão da liberdade (2019), de Timothy Snyder, entre outros. Já entre autores e pesquisadores brasileiros a situação não é diferente e merece destaque o livro do sociólogo Leonardo Avritzer, O pêndulo da democracia (2019).

Levando em conta toda essa discussão e entendendo, desde os escritos mais contundentes do século XIX, que a democracia é um tema sempre a ser discutido, construído e cultivado que estruturamos a proposição deste dossiê. Assim, a articulação entre Cultura e Democracia não é apenas um jogo de palavras que diz respeito às urgências intelectuais da época em que vivemos, mas é um retorno ao passado carregado de historicidade e de respeito aos contínuos movimentos das lutas de homens e mulheres que formaram nossa sociedade ao longo do tempo. Está também relacionada à constatação de que o conhecimento acadêmico é fundamental para uma época que despreza a ciência e a racionalidade como sintoma de autoritarismos políticos e sociais que desprezam a vida e a multiplicidade humana.

Abrindo o dossiê, Durval Muniz de Albuquerque Júnior no texto Narrar vidas, sem pudor e sem pecado: as carnes como espaço de inscrição do texto biográfico ou como uma biografia ganha corpo problematiza a noção de biografia histórica, trazendo à tona como o ato de escrever biografias maneja a dimensão temporal e carnal da existência. Para tanto, o historiador lança mão da obra Roland Barthes por Roland Barthes (2017) e permite que os leitores compreendam que o ato de narrar e ler sobre vidas é carregado de significados variados. No campo do debate sobre democracia, o texto adquire singularidade por nos permitir compreender que quando lidamos com agentes do passado por meio de biografias estamos diante de uma “potência carnal que corporifica a escrita biográfica”.

Na sequência, disponibilizamos as reflexões de Rosangela Patriota sobre as incertezas contemporâneas em torno de práticas democráticas, por meio do artigo A questão democrática em tempos de incertezas. Com essa preocupação, a autora realiza um mergulho no cenário político internacional das últimas décadas para, posteriormente, discutir o tema do antissemitismo em sociedades contemporâneas, a partir do revisionismo na historiografia do Holocausto e por intermédio da peça teatral Praça dos Heróis de Thomas Bernhard. Articulando diálogos entre passado / presente, Patriota problematiza dúvidas e impasses de nossa história imediata.

Ainda no contexto de elaboração de narrativas históricas, cabe destacar o artigo do historiador Antonio de Pádua Bosi, Trabalho, Imigrantes e Política em “Greve na Fábrica”: o maio de 68 para Robert Linhart. Homem público francês, que viveu um dos momentos mais intensos dos debates democráticos da segunda metade do século XX, Linhart produziu um texto revelador sobre identidades culturais e experiência de trabalho industrial a partir da vivência de operários de diferentes nacionalidades na linha de montagem da Citroën, em 1969. Bosi recupera esses escritos e dá dimensão histórica e crítica ao livro do autor francês. Ler o artigo nos ajuda a perceber o quanto a dinâmica do trabalho e o debate sobre democracia se alterou ao longo do tempo, ao mesmo tempo que trouxe consequências marcantes para a vida e a luta dos operários.

Caminhando para a compreensão das discussões da democracia no Brasil, o artigo Paulo Freire: el método de la concientización, em la educación, para analizar y compreender el contexto actual de la Globalización, escrito por José Marin Gonzáles, traz para o debate sobre democracia o tema da educação por meio do método de Paulo Freire no atual contexto de Globalização. O texto é fundamental para um momento em que muito se critica o educador brasileiro sem nenhum tipo de fundamentação acadêmica e mais ainda quando o processo educacional é pensado prioritariamente como corpo que oferece aos sujeitos, desvinculados de quaisquer coletividades, ferramentas exclusivas para o mercado de trabalho. Freire é um chamamento à coletividade, à noção de educação voltada para o bem comum e principalmente para a justiça social, temas caros às experiências democráticas.

Entrando especificamente no diálogo com linguagens artísticas no Brasil dos últimos anos, o dossiê conta com quatro artigos. Em O homem de La Mancha: aspectos da utopia no teatro musical brasileiro da década de 1970, André Luis Bertelli Duarte promove importantes discussões sobre o teatro brasileiro nos duros anos da repressão política brasileira, com destaque para as possibilidades do debate democrático promovido pela encenação musical de O homem de la mancha (Dale Wasserman, 1965), produzido por Paulo Pontes, sob a direção de Flávio Rangel, em 1972-1973. No ambiente de autoritarismos diversos e em especial contra a figura de artistas e intelectuais, a releitura de Quixote se apresentava como ideal de justiça e liberdade.

Ainda dialogando com o campo teatral, Rodrigo de Freitas Costa promove no artigo O teatro de rua e sua expressão política: os primeiros anos do Grupo Galpão de Belo Horizonte (1982-1990) reflexões sobre o teatro de rua no período logo após o processo de abertura política, tendo por referência o trabalho desenvolvido pelo conhecido grupo teatral da capital mineira. O texto contribui para a discussão sobre democracia e cultura no Brasil especialmente por problematizar e questionar a ideia de “vazio cultural” desenvolvida por inúmeros críticos teatrais que tratam da produção nacional pós Estado Autoritário. Nesse sentido, as primeiras peças escritas e encenadas pelo Galpão são o mote para compreender parte da complexidade do processo cultural brasileiro e a amplitude do teatro político nos anos 1980.

Já sobre a relação entre Cinema, Democracia e História, o artigo de Rodrigo Francisco Dias, Autoritarismo e democracia nos filmes “Jânio a 24 Quadros” (1981, de Luís Alberto Pereira) e “Jango” (1984, de Silvio Tendler), permite ao leitor compreender como os temas do autoritarismo e da democracia são reelaborados nos documentários de Luís Alberto Pereira e Silvio Tendler no início da década de 1980. Abordando aspectos formais, o autor mostra como as configurações estéticas carregam posicionamentos históricos e políticos. Com isso, une forma e conteúdo por meio da historicidade e promove considerações importantes capazes de elucidar as dinâmicas do debate democrático dos anos finais da Ditadura Militar.

Por fim, o dossiê se encerra com uma discussão sobre financiamento cultural nos dias atuais. Essa discussão é fundamental para o Brasil de hoje, onde a arte é menosprezada e diversos artistas e intelectuais são hostilizados publicamente. Em um país que investe pouco em educação e cultura, sabemos que as discussões democráticas são frágeis e que os espaços públicos são minados por discursos surdos e preconceituosos. O artigo Democracia e Arte: as percepções da Lei Rouanet e o financiamento da cultura de Jacqueline Siqueira Vigário e Anna Paula Teixeira Daher promove reflexões importantes recolocando essa discussão em bases acadêmicas inicialmente analisando a lei de incentivo à cultura e, por fim, utilizando como exemplo o caso da exposição “Queermuseu: Cartografia da diferença na arte brasileira” (2017).

Como parte do dossiê para este este número de albuquerque: revista de história, há uma entrevista da Professora Doutora Maria Helena Rolim Capelato. Historiadora atuante na esfera pública, árdua defensora do conhecimento histórico cientificamente elaborado e produtora de reflexões importantes sobre História e Imprensa no Brasil do século XX. Na entrevista, a professora fala de sua formação ainda na Ditadura Militar, destaca os principais debates que dizem respeito à sua pesquisa sobre imprensa no Brasil e na América Latina e, por fim, reflete sobre temas políticos brasileiros contemporâneos.

Esperamos que os leitores aproveitem as reflexões que o dossiê traz e que possam cada vez mais entender e divulgar que a democracia não é um bem em si, mas um processo que precisa constantemente ser reelaborado, inclusive quando o objetivo é favorecer o humanismo em tempos sombrios.

Referências

ARENDT, Hannah. Crises na República. Tradução de José Volkmann. 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 2010.

AVRITZER, Leonardo. O pêndulo da democracia. São Paulo: Todavia, 2019.

LEVITSKY, Steven; ZIBLATT, Daniel. Como as democracias morrem. Tradução de Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Zahar, 2018.

MARX, Karl. O 18 de Brumário de Luís Bonaparte. Tradução de Nélio Schneider. São Paulo: Boitempo, 2011.

MOUNK, Yascha. O povo contra a democracia. Tradução de Cássio de Arantes Leite e Débora Landsberg. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.

RUNCIMAN, David. Como a democracia chega ao fim. Tradução de Sérgio Flaksman. São Paulo: Todavia, 2018.

SNYDER, Timothy. Na contramão da liberdade: a guinada autoritária nas democracias contemporâneas. Tradução de Berilo Vargas. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.

Rosangela Patriota (Universidade Presbiteriana Mackenzie / CNPq)

Rodrigo de Freitas Costa (Universidade Federal do Triângulo Mineiro)

Thaís Leão Vieira (Universidade Federal de Mato Grosso)

Organizadores


PATRIOTA, Rosangela; COSTA, Rodrigo de Freitas; VIEIRA, Thaís Leão. Apresentação. Albuquerque: revista de história, Mato Grosso do Sul, v.12, n.24, 2020. Acessar publicação original [DR]

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Religião, cultura e relações sociais na Península Ibérica / História Revista / 2020

A disciplina História Ibérica ficou por muito tempo relegada a um plano secundário, praticamente inexistente, tanto no ensino básico brasileiro quanto no superior. Poucas universidades brasileiras apresentam essa disciplina nos currículos de seus cursos, e sua presença nos livros didáticos consegue ser ainda menor.

Diante desse quadro, e na tentativa de contribuir para a superação dessa lacuna existente no ensino brasileiro, foi criado e instituído o Programa de Pós Graduação em História Ibérica (PPGHI) na Universidade Federal de Alfenas (Unifal-MG). Trata-se de um Programa de Mestrado Profissional que tem o objetivo de integrar professores de História do ensino fundamental e do ensino médio no processo de formação continuada, qualificando-os para o desenvolvimento de práticas de ensino e de pesquisas que venham a contribuir para o avanço do processo de conhecimento, ensino e aprendizado da História Ibérica. Neste Programa foi criada a linha de pesquisa Cultura, Poder e Religião, de forma a agregar especialistas das áreas de História e afins (https: / / www.unifalmg.edu.br / ppghi / node / 56 , visualizado em 20 jun. 2020).

Buscando ampliar o debate que mantemos no âmbito do PPGHI / Unifal, e em parceria com História Revista da Universidade Federal de Goiás, propusemos o presente dossiê, convidando especialistas e estudiosos a submeterem artigos, contribuindo assim para a valorização dos estudos ibéricos no meio educacional de nosso país. Para a nossa alegria, recebemos artigos de reconhecidos especialistas, a quem agradecemos de antemão tanto pelas submissões como pela receptividade e atenção às observações realizadas durante o processo de revisão cega por pares.

Dessa forma, iniciamos o dossiê com o artigo de Sérgio Feldman, professor da Universidade Federal do Espírito Santo, que há muitos anos atua nas pesquisas sobre judaísmo na Hispânia Romana e Visigótica e que vem dedicando muito dos seus estudos aos textos de Isidoro de Sevilha (560 – 636). No artigo intitulado O cerco em torno a uma minoria. As legislações antijudaicas na Hispânia Romana e visigótica, Feldman apresenta, de forma clara e aprofundada, as legislações antijudaicas, fortalecidas na Península Ibérica com a dominação visigoda.

Dentro dessa mesma linha de pesquisa se encontra o artigo da professora Roberta Alexandrina da Silva, da Universidade Federal do Pará. O artigo intitulado Do oppidum à capital de província: algumas considerações sobre a especificidade de Bracara Augusta e sua integração ao mundo romano (séculos I-IV) destaca a importância econômica, religiosa e política, tanto para os romanos quanto para os suevos e visigodos, de Bracara Augusta, atual Braga, em Portugal. O artigo da autora reflete parte das pesquisas por ela realizada durante estágio pós-doutoral na Universidade Federal do Espírito Santo, supervisionado pelo professor Gilvan Ventura, quando estagiou na Universidade do Minho, atuando com a professora Maria Manuela Martins na análise e pesquisa de materiais arqueológicos sobre Bracara romana.

O artigo Por que estudar a antiguidade da Península Ibérica no Brasil? apresenta as reflexões e o diálogo mantido entre dois especialistas em antiguidade: o renomado arqueólogo e Professor Titular de História Antiga da Unicamp, Pedro Paulo Abreu Funari, e o doutorando em História pela Unicamp, Filipe Silva, que realizou estágio de doutorado no Centro para El Estudio de la Interdependencia Provincial en la Antigüedad Clásica (CEIPAC), dirigido pelo professor José Remesal, Universidade de Barcelona / Espanha. O artigo demonstra, de forma clara e profunda, a importância dos estudos sobre a antiguidade ibérica no Brasil.

Por último, mas não mesmo importante, o artigo produzido pelo professor de História Medieval, idealizador e coordenador do Programa de Pós-Graduação em História Ibérica da Universidade Federal de Alfenas, Adailson José Rui. No artigo intitulado Abd al Rahman III: a implantação do califado e a construção de Medinat-al-Zahra como centro de poder em al Andalus, o professor apresenta uma discussão atualizada sobre a vida política na Andaluzia do século X, analisando tanto os motivos que levaram à auto proclamação do califa Abd al Rahman III como os que induziram esse califa a mandar construir Medina al Zahra.

Esperamos que esse dossiê seja mais um estímulo para pesquisas e estudos sobre a História Ibérica.

Desejamos a todas e todos uma ótima leitura!

Referências

Site do Programa de Pós Graduação em História Ibérica, da Unifal-MG, https: / / www.unifalmg.edu.br / ppghi / node / 56 , visualizado em 20 jun. 2020.

CARLAN, Cláudio Umpierre (org,). A renovação do ensino de história ibérica, contribuições do mestrado profissional da Unifal-MG. Alfenas: editora da Unifal-MG, 2020.

Cláudio Umpierre Carlan – Unifal-MG / PPGHI. E-mail: carlanclaudio@gmail.com


CARLAN, Cláudio Umpierre. Apresentação. História Revista. Goiânia, v. 25, n. 1, jan. / abr., 2020. Acessar publicação original [DR]

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Sociedade, Cultura, Trabalho: Diálogos sobre fronteiras no Mundo Rural (PARTE I) / Vozes Pretérito & Devir / 2020

No dia 12 de fevereiro de 2020, enquanto estávamos às vésperas da publicação deste Dossiê, intitulado Sociedade Cultura e Trabalho: diálogos sobre fronteiras no Mundo Rural, completou quinze anos do assassinato da Ir. Dorothy Stang, em Anapu, na Prelazia do Xingu, no Pará, em 12 fevereiro de 2005, morta com seis tiros em uma emboscada por contrariar interesses de grupos poderosos empenhados na devastação da floresta amazônica e expulsão das populações tradicionais. Dorothy, natural de Dayton, Estado de Ohio, Estados Unidos, no dia 07 de junho de 1931, teve sua trajetória pastoral e social associada aos direitos ambientais e às causas dos trabalhadores rurais nos confins da Amazônia. Trabalhadores rurais migrantes, especialmente do Nordeste, em condições de trabalho escravo, povos tradicionais e indígenas, enfrentam um contexto de exploração e poder do latifúndio na Amazônia. Dados do IBGE (2006) apontam o Brasil como um dos países que possuem estruturas fundiárias mais concentradas no mundo, a maioria sob o controle hegemônico do agronegócio nacional. Por sua vez, os conflitos no campo e luta pela terra avançam e se perpetuam pelos confins do Brasil com aumento do número de mortes, expulsões, torturas e ameaças, compilados e divulgados anualmente pela Comissão Pastoral da Terra – CPT. O assassinato da Ir. Dorothy endossa o cenário de violência e assassinatos de lideranças rurais.

A concentração fundiária que impende o acesso à terra por milhares de trabalhadores rurais como o avanço da grande fronteira livre, mantém famílias de trabalhadores e trabalhadoras rurais aprisionadas à condições históricas de exploração na terra e vulneráveis à migração para o trabalho forçado / escravo, prática contínua transmitida a gerações sucessivas. Nesse sentido, tomamos para o debates sobre o Mundo Rural a percepção de suas fronteiras fluídas, para além da sua compreensão política uma fronteira de muitas e diferentes coisas, como enumera José de Sousa Martins: “fronteira de civilização (demarcada pela barbárie que nela se oculta), fronteira espacial, fronteira de culturas e visões de mundo, sobretudo, fronteiras do humano” (2014, p.11).

Diante desse quadro, e atentos que a problemática entorno da terra, trabalhadores e fronteiras deve ser pensada desde diferentes ângulos, sociológicos, antropológicos, culturais, econômicos e históricos, provocamos a realização de um Colóquio com posterior produção de Dossiê homônimo, no sentido de elaborar reflexões sobre a questão, repensar os modos de vida e trabalho no Mundo Rural como também estimular o desenvolvimento de ações voltadas para esse campo. Este dossiê é resultado do esforço dos pesquisadores das áreas de História, Ciências Sociais e Pedagogia, reunidos em torno das atividades do Núcleo de Documentação e Estudos em História, Sociedade e Trabalho – NEHST da Universidade Estadual do Piauí – UESPI.

Os artigos selecionados para o Dossiê e Seção de Artigos Livres, foram apresentados em comunicações orais do Colóquio no qual foram reunidos pesquisadores de diferentes áreas de conhecimento provenientes de diferentes IES, da região Nordeste do país. Os autores / as entrecruzam diferentes formas de lidar com a pesquisa, desvelam fronteiras fluidas entre as disciplinas e apresentam possibilidades de análise das vidas de sujeitos históricos específicos: migrantes, trabalhadores, rurais e urbanos, escravizados e indígenas em contextos e temporalidades diversos.

No artigo intitulado Entre bons patrões e trabalhadores obedientes? Terra, trabalho e resistências em Miguel Alves / Piauí. (1950-1990), Marcelo Aleff de Oliveira Vieira e Eurípedes Antônio Funes, analisam as relações sociais estabelecidas entre trabalhadores rurais e proprietários de fazendas de Miguel Alves. Teresina, município situado na região Meio Norte piauiense, cenário de múltiplas disputas e tensões no campo.

Em A seca de 1888 / 1889 e seus efeitos na província do Piauí representada no periódico A Imprensa, Marcus Pierre de Carvalho Baptista, Francisco de Assis de Sousa Nascimento e Elisabeth Mary de Carvalho Baptista, a partir de pesquisa bibliográfica e documental hemerográfica, por meio do periódico A Imprensa, evidenciam elementos impostos no contexto da seca à população da província: morte do gado, das plantações, aumento de preço de alimentos e, notadamente, a migração de pessoas de províncias próximas, acarretando outros problemas.

Helane Karoline Tavares Gomes em Etnicidade e mobilização indígena: estratégias de reivindicação e demarcação das áreas indígenas no Estado do Piauí (2000-2018), analisa as estratégias utilizadas no processo de reivindicação ao acesso à terra pelos povos indígenas do Piauí entre 2000 a 2018. O estudo sobre as mobilizações sociais indígenas associadas à construção das etnicidades e reconhecimento da história desses sujeitos inaugura uma nova página da história indígena do Estado.

Em Migrações Ceará- Piauí (1940-1970): Elucidando algumas razões para migrar à luz de narrativas orais, Lia Monielli Feitosa Costa apresenta estudo acerca dos movimentos migratórios do Ceará para o Piauí, no período de 1940-1970, tendo como veículo de ideias e aportes teóricos o testemunho oral de trabalhadores campesinos. Segundo a autora, o deslocamento de trabalhadores cearenses pode ser entendido através do estudo da formação das tendências dos fluxos migratórios, cujas redes de sociabilidade foram delineadas com lastro na década de 1930, período no qual projetos pessoais e coletivos sofreram influência a partir de experiências de migração em direção ao Piauí, que persistiram ao longo das décadas seguintes.

No artigo, A seca de 1979 através do cotidiano dos trabalhadores de Bocaína, Picos- PI (1979-1996) as autoras, Cristiana Costa da Rocha e Milena de Araújo Leite analisam a partir da documentação relacionada ao projeto de construção da Barragem de Bocaína e das narrativas orais, situações que evidenciem as relações de trabalho estabelecidas no contexto dessa obra considerando os conflitos, salários, carga horária, condições de trabalho, e os equipamentos utilizados por esses trabalhadores.

Em A Repartição Especial de Terras Públicas na Província do Piauí (1858-1860): política, burocracia e mediação de conflitos, Cássio de Sousa Borges apresenta a atuação da Repartição Especial de Terras Públicas na Província do Piauí, entre os anos de 1858 e 1860. Mobilizada sua criação pelo Decreto Imperial nº 1318 de 30 de janeiro 1854, que regulamentou a execução da Lei de Terras de 1850, a criação desta repartição pública, com sede em Teresina, foi a primeira experiência de gestão fundiária das terras do Piauí após o fim do sistema colonial de sesmarias.

Em “Era liberto e hoje privativamente é captivo”: Ação de liberdade na cidade de Teresina em 1860, Talyta Marjorie Lira Sousa Nepomuceno estuda as demandas judiciais acerca dos processos de liberdade, demonstrando a relação conflitante entre os senhores e escravizados e a interferência do Estado no processo de negociação. A autora toma como fontes para o estudo os registros das cartas de alforria nos Livros de Notas e Ofícios do Cartório de 1º Ofício de Notas da cidade de Teresina; os relatórios de Presidente de Província; e uma ação de liberdade registrada na Secretária de Segurança Pública da Província do Piauí em 1860.

Em O Vínculo com a Terra e as Diferentes Categorias de Trabalhadores Rurais Livres no Piauí Oitocentista, Ivana Campelo Cabral, dialoga sobre sociedade rural no Piauí oitocentista marcada pela presença de sujeitos diferenciados em decorrência das funções que desempenhavam e a posição jurídico-social que ocupavam. Assim, a autora apresenta e caracteriza cada uma das categorias, expondo suas semelhanças, diferenciações e as atividades desenvolvidas por cada uma destas.

No artigo intitulado Pensamento ecológico de Gilberto Freyre na obra nordeste sob o olhar da história ambiental, Daniela Fontenele Rocha e Francisco Gleison da Costa Monteiro analisam como Gilberto Freyre na obra Nordeste, publicada em 1937 pela editora José Olympio discute temáticas semelhantes à História ambiental, e suas contribuições para estruturação desse campo de saber constituído na década de 1970. Para tanto, os autores levaram em consideração a análise do contexto de produção da obra e do conhecimento que proporcionou a escrita do autor. Tais proposições os induziram a buscar indícios para mapear a formação de Freyre e as articulações travadas, com autores e correntes, no âmbito de suas influências na produção textual e a ensaiar o pensar ecológico como ponto nodal de sua composição textual.

Alcebíades Costa Filho, Francisco Rairan dos Santos Vilanova e Salania Maria Barbosa Melo, no artigo intitulado O cultivo de alimentos em áreas do leste do Maranhão: Um olhar para o município de Matões, refletem sobre a cultura de gêneros alimentícios que se instalou nos municípios do leste maranhense no século XVIII, correlacionada com a pecuária, atividade econômica considerada pela historiografia como de fundamental importância na ocupação do território.

No artigo (Re)Configurações das Imagens do Sertão no Cinema Brasileiro, José Luís de Oliveira e Silva no sentido de pensar a construção imagética do sertão no cinema brasileiro, propõe uma reflexão mais ampla sobre a relação entre o fazer historiográfico e os usos de narrativas ficcionais, não para hierarquizar ou opor uma à outra, mas como forma de perceber os modos como a ficção extrapola os aspectos da temporalidade vivida, habilitando-se a materializar, de forma imaginativa, os possíveis não realizados da história.

Em O movimento dos trabalhadores sem teto e a luta pelo direito à cidade em Recife, Igor de Meneses Silva, Jennyfer Annemberg Burlamaqui das Neve e Jully Gardemberg Burlamaqui das Neves abordam luta do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) em Recife, tendo como objetivo analisar as dificuldades encontradas e as ações estratégicas que podem ser adotadas pelo movimento na luta pelo reconhecimento do direito à moradia digna na capital de Pernambuco.

Em Reforma Trabalhista, precarização do trabalho e imperativos do capital, André Conceição de Sousa e Patrícia Soares de Andrade analisam alguns pontos da Reforma Trabalhista (Lei 13.467 / 17) no que diz respeito a flexibilização do trabalho. Segundo os autores a reforma trabalhista ampliou as possibilidades de flexibilização do trabalho, seja através da terceirização, trabalho em regime parcial ou mesmo intermitente, buscando atender a interesses de instituições internacionais e nacionais, respondendo também aos imperativos da acumulação de capital.

Yasminn Escórcio Meneses da Silva e Marcelo de Sousa Neto no artigo intitulado Sob o Signo das Águas e do Esquecimento: trabalho feminino e modernização dos espaços sob olhar das lavadeiras de roupas (Teresina, década de 1970) utilizam a História Oral para compreender a atividade das lavadeiras de roupas na cidade de Teresina na década de 1970, para tanto consideram o constante aumento de mulheres nas margens dos rios na execução da tarefa, como parte dos resultados da intensa migração que se tornou frequente nos anos que sucederam o chamado período do “milagre econômico” dos governos militares, ampliando o número de pessoas sem renda e sem perspectivas nas capitais brasileiras em busca de melhoria de vida.

Na Seção Especial do Dossiê, Maurício Fernandes faz uma abordagem filosófica no artigo intitulado Tecnologia e Ruralidade: Considerações a partir da Tese da Colonização de Jürgen Habermas. O autor discute a problemática do avanço tecnológico no campo tendo como recorte norteador a teoria comunicativa de Jürgen Habermas, e dentro desta, mais precisamente, a tese da colonização. Nesse sentido, analisa o conceito de colonização utilizado por Habermas, que fornece elementos enriquecedores para uma compreensão do atual quadro de desenvolvimento do campo, bem como, uma compreensão dos problemas que envolvem os usos da tecnologia no âmbito do campo.

A edição está dividida em duas partes, além do Dossiê na seção de Artigos Livres os autores analisam fenômenos históricos, sociais, políticos e culturais da história e cultura regional, a partir de múltiplos objetos; ainda assim, aponta perspectivas que se desenrolam no tempo presente e tal é a complexidade que as envolvem que nos contentamos em ser Ciência e não fazer exercícios de natureza profética.

Antonio Alexandre Isídio Cardoso – UFMA

Cristiana Costa da Rocha – UESPI

José da Cruz Bispo de Miranda – UESPI

Robson Carlos da Silva – UESPI

Salania Maria Barbosa Melo – UESPI / UEMA

Teresina, maio de 2020


CARDOSO, Antonio Alexandre Isídio; ROCHA, Cristiana Costa da; MIRANDA, José da Cruz Bispo de; SILVA, Robson Carlos da; MELO, Salania Maria Barbosa. Apresentação. Vozes Pretérito & Devir. Teresina, v.11, n.1, 2020. Acessar publicação original [DR]

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Educação, Cultura e Identidade em perspectiva / Perspectivas e Diálogos – Revista de História Social e Práticas de Ensino / 2020

Atônitos, fomos surpreendidos por poderoso inimigo a atacar por todos os lados. Não se trata de nenhuma nação com seu poderoso arsenal nuclear, mas de estranho organismo, letal e microscópico, a igualar – em um mundo de desiguais – todos os seres humanos, com sua carga mortífera: o Sars-CoV-2. Aos graves problemas que o nosso país enfrenta, somaram-se a Pandemia do Novo Coronavírus e suas trágicas consequências. Findando 2020, o ano que marcará indubitavelmente a primeira metade do século, assistimos desolados ao aumento das mortes a bater novos recordes, passando de mil por dia. Mas a esperança chega em pequenas doses – uma vacina. Nesta manhã de 18 de dezembro de 2020 acompanhamos, pela televisão, um avião pousando no aeroporto internacional de Guarulhos, em São Paulo, trazendo dois milhões de doses de vacina contra a covid 19. Tendo escapado os males do mundo, na caixinha de Pandora restava a esperança, tal qual nessa aeronave a transportar a combatente aniquiladora do inimigo. Rendamos homenagem àqueles heróis, anônimos ou não, que em seus laboratórios dedicaram todo o seu tempo ao estudo do vírus e dos meios de combatê-lo, e seguem sem desanimar. Acreditemos na CIÊNCIA e na EDUCAÇÃO.

Nesse turbilhão, chamado 2020, tivemos de nos adaptar, de descobrir meios de continuar contando as nossas histórias. A universidade, cujo espaço físico está silente, carente do fulgor dos seus jovens, devido ao isolamento social, continua a pulsar. Pulsa firmemente, apesar de todas as dificuldades: em seus vários projetos em andamento, nos inúmeros congressos virtuais, em suas bancas examinadoras de graduação, mestrado e doutorado, em suas aulas remotas, e na publicação de suas revistas científicas. Pulsa, enfim, com o símbolo que é seu por natureza – o da resistência.

É nesse cenário que apresentamos mais um número da nossa revista – Perspectivas e Diálogos – Revista de História Social e Práticas de Ensino.

Condizente com sua proposta de tornar-se um espaço diverso, em que diferentes áreas do conhecimento dialoguem, apresentamos, em seu primeiro número de 2020, um conjunto de artigos e uma entrevista em que a interlocução entre História, Educação, Antropologia e Sociologia ficam evidentes e se atualizam em temáticas instigantes.

A Seção de Artigos conta com oito trabalhos. Abre a edição o artigo magistral – Axel Honneth e Paul Ricoeur su identità personale e lotta per il riconoscimento – de autoria de Vereno Brugiatelli. O artigo, que trata do conceito e das implicações da identidade pessoal e da luta por reconhecimento, descreve como Axel Honneth e Paul Ricoeur enfrentaram tal tema, focando na questão do Outro e da percepção ética de si mesmo, desembocando em conclusões sobre os desdobramentos sociais do reconhecimento mútuo. O artigo seguinte – Caetano Veloso, Gilberto Gil E Jorge Mautner: desafetos nas páginas d’O Pasquim – de autoria de Givanildo Brito Nunes e Milene de Cássia Silveira Gusmão – versa sobre a relação de disputa simbólica entre o jornal O Pasquim e os músicos brasileiros exilados durante a Ditadura Militar. O terceiro artigo, Linhas doutrinárias traçadas por Cubberley em gestões de Anísio Teixeira, assinado por Lívia Maria Goes de Britto e Jaci Maria Ferraz de Menezes, discute a influência de Ellwood Patterson Cubberley no pensamento de Anísio Teixeira. O quarto artigo, As políticas educacionais e a Educação de Jovens e Adultos, de Milene de Macedo Sena e Isabel Cristina de Jesus Brandão, discute as políticas educacionais para a Educação de Pessoas Jovens e Adultas no Brasil a partir de bibliografia especializada. Na sequência temos o artigo, A emergência da intelectualidade conservadora no sertão da Bahia: Alfredo Silva e João Gumes, assinado por Danielly Pereira dos Santos e Diego Raian Aguiar Pinto, analisa o pensamento de duas personalidades que atuaram em Caetité em períodos diferentes, mas conectados em seus escritos e intelectualidade. Segue o artigo Educação, música reggae e direitos sociais no Brasil, tendo como autores Iancarlo Almeida da Silva e Olívia Morais de Medeiros Neta, com abordagem inovadora sobre o Reggae, enquanto manifestação cultural brasileira, e seu diálogo com a crítica social e a com a Educação. O artigo seguinte – O ser e o fazer docente no ensino superior no Brasil: desafios contemporâneos, assinado por Laís Paula de Medeiros Campos Azevedo; Nara Lidiana Silva Dias Carlos; Arthur Cássio de Oliveira Vieira, toma como objeto de investigação a docência no Ensino Superior no Brasil, enfatizando o percurso formativo e as práticas pedagógicas. Encerrando a seção temos o artigo Direitos humanos e religiões: e se Deus fosse mesmo um ativista dos direitos humanos?, em que a autora, Ana Luiza Salgado Cunha, reflete sobre a obra de Boaventura de Souza Santos e a relação entre direitos humanos, religião e justiça social.

Na Seção de Entrevista, Edna Pinheiro Santos e Lília de Jesus Nascimento brindam o público apresentando a entrevista concedida pela professora e pesquisadora Dra. Elizabete Conceição Santana, uma das mais importantes pesquisadoras da atualidade no campo da História da Educação. Suas publicações constituem leitura obrigatória para àqueles que desejem conhecer esse campo do conhecimento.

Em tempos de pandemia e isolamento social que a leitura da Revista Perspectivas e Diálogos – Revista de História Social e Práticas de Ensino seja um alento. Boa leitura!

Márcia Cristina Lacerda Ribeiro

Antonieta Miguel

Equipe Editorial


RIBEIRO, Márcia Cristina Lacerda; MIGUEL, Antonieta. Editorial. Perspectivas e Diálogos – Revista de História Social e Práticas de Ensino. Caetité, v.1, n.5, jan. / jun., 2020. Acessar publicação original [DR]

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Processos de emancipação e educação na América: história, política e cultura (séculos XIX e XX) / Revista Brasileira de História da Educação / 2020

As palavras não são as coisas (Foucault, 2016). Estado, nação, civilidade, emancipação, progresso, educação, são rastros de realidades que se constituíram ao longo do tempo, e de diferentes formas, a partir dos movimentos dispersos, aleatórios ou deliberados de muitos sujeitos. História e memória são elementos da ordem das palavras que transformam o passado em coisas. Nesse processo de legitimação, tais coisas seriam, posteriormente, lembradas, (re)definidas, celebradas, esquecidas.

Estudar as memórias coletivas fortemente constituídas, como a memória da Independência brasileira, implica na análise de sua função, visto que ela se integra às tentativas de definir e de reforçar sentimentos de pertencimento (Pollak, 1989). Assim, se forjam lugares onde a memória se cristaliza e se refugia a partir de um determinado passado, definitivamente morto. Como nos ensina Pierre Nora, a história é exatamente o que as nossas sociedades condenadas ao esquecimento fazem do passado. Para ele, os lugares de memória são, antes de tudo, restos, a forma extrema onde subsiste uma consciência comemorativa numa história que a chama (Nora, 1993). Neste sentido, a coletânea composta aqui se insere nas investigações acerca das palavras (memória, história, narrativas, representações, celebrações, fontes) sobre as coisas (independência, nação, política, educação).

Na perspectiva da historiografia brasileira, a definição de ‘emancipação política’ proposta no verbete do Dicionário do Brasil Imperial (1822-1889), identifica dois momentos: o primeiro deles que considera 1822 como um momento decisivo na construção da nacionalidade, a independência foi analisada por muitas décadas, como o ponto final de um processo contínuo e linear, que desde o século XVIII até o XIX, forjara uma consciência nacional. E, um segundo momento da historiografia, identificado nas últimas décadas do século XX, procurou inserir o processo da independência brasileira na longa duração e na dinâmica mais profunda do Antigo Regime (Vainfas, 2008).

No sentido de interrogar tanto o acontecimento histórico da independência (Brasil, 1822 e demais países), quanto suas representações posteriores (em livros, fontes, documentos, imagens) ou efemérides (cinquentenário, centenário, bicentenário), buscando destacar o papel da educação nesse processo de constituição de memórias (por sujeitos, instrumentos, instituições, políticas) e de forças (Estado, Nação), que se consolidaram os propósitos do presente Dossiê.

Resultado da segunda chamada pública da Revista Brasileira de História da Educação, o Dossiê recebeu 45 propostas. Após avaliação, foram selecionados 11 artigos que demonstraram adesão ao edital e pareceres positivos dos avaliadores ad hoc. Os textos selecionados remetem à presença de investigações sobre os processos de independência em quatro países da América Latina (Brasil, Uruguai, Argentina e Venezuela), conduzidas por três professores estrangeiros (Espanha, Argentina e Uruguai) e dezessete pesquisadores brasileiros de seis estados (MG, RS, RJ, PE, RN e BA). Os autores que integram este dossiê atuam como professores do ensino superior, professores da educação básica, graduandos, mestrandos e doutorandos, apresentando, ainda, uma relativa equidade de gênero (nove homens e oito mulheres). Os 11 artigos deste dossiê dialogam com diferentes áreas do conhecimento das Ciências Humanas e Sociais (Educação, Letras e História), o que imprime marcas específicas nas análises sobre o complexo processo de construção dos estados nacionais, nos século XIX (sete artigos) e século XX (quatro artigos).

Entre os artigos, temos aquele que discorre acerca de temas caros à história da nação brasileira ao longo do século XVIII e XIX, como liberdade, educação, povo, igualdade, estado, e se intitula ‘Cultura ilustrada e educação conservadora: Bernardo Vasconcelos e sua carta aos senhores eleitores (1828)’. Luciano Faria Filho e Dalvit de Paula analisam a continuidade do projeto dos inconfidentes mineiros em Bernardo Vasconcelos (1828), demonstrando que, a despeito da modernidade constitucional de um país recém-independente, a Ilustração também inspirou e justificou o caráter conservador e centralizador do Estado Imperial brasileiro e, da mesma forma, as ações em torno da educação do povo, do esclarecimento das populações fazendo nascer a ‘máquina escolar’ e demais dispositivos culturais.

Rita Cristina Lages evidenciou formas a partir das quais as relações entre instrução e civilização se constituíram e se consolidaram em discursos políticos e projetos educacionais no Brasil Oitocentista. Em ‘Projetos educacionais para Minas Gerais no século XIX: nações estrangeiras na vitrine’, a autora inquire determinadas experiências de países estrangeiros, considerados avançados nos assuntos educacionais, que serviram como parâmetros para ações, experiências e propostas entre o contexto da Independência nacional (1822) e a República (1889), dando a ver certa continuidade na perspectiva do olhar para as ‘vitrines’. Ao tomar os relatórios oficiais da província mineira como fonte documental, o trabalho aborda a problemática das apropriações, da circulação de sujeitos, ideias e conhecimentos, tornando possível refletir, nessa chave de leitura, aspectos da formação e legitimação do Estado Imperial independente.

Ao examinar representações, tensões e impasses atinentes ao projeto de construção de uma unidade latino-americana, o estudo intitulado ‘Abordagens em livros didáticos de História do Brasil sobre a presença brasileira no cone sul latinoamericano (século XIX)’, de André Mendes Salles, professor do Departamento de História da UFRN e do Centro de Ensino Superior do Seridó (CERES-UFRN), e de José Batista Neto, professor titular do Centro de Educação da UFPE, constituiu, como base na investigação, 13 livros didáticos de História do Brasil, publicados entre 1886 e 1999. A partir desses instrumentos de formação escolar, os autores refletem a respeito de as narrativas sobre a presença brasileira na região platina, na segunda metade do século XIX, identificando permanências nos modos de entender e representar o exercício de poder do Império brasileiro, como nação autorizada a legitimar a independência do Uruguai.

Maria das Graças de Andrade Leal, é autora do estudo ‘Educação e trabalho; raça e classe no pensamento de um intelectual negro: Manuel Querino – Bahia (1870-1920)’. Especialista na história das populações afrobrasileiras e instituições operárias e educacionais desenvolve reflexões acerca da educação e do trabalho na obra do intelectual e educador afro-baiano Manuel Querino. Com essa proposta, expõe importante debate sobre projetos de escolarização e projetos de nação, articuladas às perspectivas de liberdade, civilização, progresso, cidadania em um país independente que transita entre as condições de monárquico, escravocrata, abolicionista e republicano. Neste aspecto, problematiza as narrativas recorrentes sobre velho / atraso (Império) e novo / avanços (República), acionando análises atinentes às permanências e continuidades, denunciando a existência de uma determinada divisão social do conhecimento como marca geral da história da educação no Brasil.

Antonio Mauro Romano dialoga com temáticas muito caras à história da educação, como saberes curriculares, Estado, militarismo, modernidade escolar, níveis de ensino, políticas públicas. Neste estudo, analisa aspectos relacionados à inclusão da instrução militar (Gimnástica y Ejercicios militares) como programa curricular do ensino secundário e os debates acerca da extensão da experiência dos Batalhões Universitários em direção ao ensino fundamental, no final do oitocentos (1887). A partir do estudo intitulado ‘Los dilemas en la formación ciudadana. Entre la instrucción cívica y la instrucción militar en los procesos de emancipación política en el siglo XIX en el Uruguay’, o autor questiona a presença do saber militar em um contexto de retirada de cena dos governos militares (1886) e da consolidação de um currículo humanístico como política pública.

No texto ‘La Gazeta de Caracas en el albor del movimiento independentista: análisis de las noticias educativas publicadas en el diario decano de la prensa venezolana’, Jordi Garcia Farrero examina o papel da imprensa no contexto de consolidação da independência política da Venezuela, a partir dos debates direcionados aos assuntos da educação. Procura refletir sobre um conjunto de ideias, memórias, narrativas e representações, dedicado à causa da liberdade no início do século XIX, que chamou de ‘pensamento pedagógico’, produzido por uma determinada geração de intelectuais. A análise incide sobre um período no qual se estabelecem as bases do nascimento de uma nova nação, não mais uma Venezuela colonial e, portanto, se justificavam as preocupações em torno da superação de uma velha condição colonial da educação.

No artigo ‘Pela iluminação do passado: livros e educação no contexto do cinquentenário da Independência (Capital brasileira, década 1870)’, as autoras analisam livros como engrenagens na construção e legitimação de representações, histórias e memórias. Aline de Morais, Aline Machado, Fátima Nascimento e Edgleide Clemente tecem reflexões acerca de determinadas narrativas e entendimentos relativos à Independência brasileira, no contexto de uma de suas efemérides. Ao mesmo tempo, buscam extrair e examinar as perspectivas educacionais e de formação dos sujeitos arroladas em tais livros e suas relações com o processo de consolidação da nação independente. Na análise, dão relevo aos questionamentos erigidos pelos autores dos livros estudados em torno do que se consideravam atrasos e incompatibilidades para um jovem país.

‘Educação e brasilidade: a política de nacionalização getulista no contexto escolar em Lajeado / RS (1939-1943)’ é o título do trabalho de Tiago Weizenmann. A pesquisa analisa a política de nacionalização como estratégia governamental, cuja finalidade era promover uma cultura cívico-patriótica no Brasil. Especificamente, reflete o contexto de uma região marcada pela presença de grupos étnicos europeus e seus descendentes, o Rio Grande do Sul, e suas políticas educacionais direcionadas à escola pública. Marcado pelo objetivo de forjar uma identidade coletiva, o projeto em análise conferiu espaço privilegiado a símbolos oficiais e a biografias dos grandes heróis, evidências de certa continuidade histórica no longo processo de construção e legitimação de um projeto de Brasil, Nação, Estado com reminiscências na Independência (1822) e República (1889).

No estudo de Márcia Cabral da Silva, os impressos e a circulação de ideias emergem como dispositivos culturais importantes para compreender processos de legitimação do Estado brasileiro. No artigo ‘Histórias da nossa terra: sobre o projeto cívico de construção da nação brasileira por meio do impresso’, a autora examina o processo de circulação de determinados saberes com características educacionais e políticas de patriotismo, nacionalismo e civismo no contexto de consolidação do (re)nascimento de uma nação republicana, cujo intuito maior era superar supostos atrasos de um passado imperial. Desta feita, a pesquisa lança ao debate algumas problemáticas acerca de modelos de formação e educação escolar dos sujeitos, impregnados pelo exercício de construção de determinada representação de Brasil (grandiosa, ufanista), de alguns brasileiros (heróis) e de brasilidade (tradição, crença, moral, pátria, território).

No artigo ‘Nacionalistas y libertarios: tensiones en torno de las conmemoraciones y símbolos patrios en la educación primaria (Argentina, 1910- 1930)’, Adrián Ascolani investiga aspectos do nacionalismo e história pátria no campo da educação no século XX, como saber curricular oficial das escolas primárias e como estratégia de formação das memórias por meio de símbolos, cerimônias e livros que deram centralidade ao episódio da independência política argentina (1816). Para tratar de tal problemática, o autor joga na cena reflexiva temas como cultura, positivismo, imprensa, anarquismo, militarismo, doutrinação, patriotismo, imigrantes e colonialismo. No contexto em análise, estava em relevo um movimento de renovação pedagógica, com base no escolanovismo e na necessidade de racionalização da escola moderna.

‘O Centenário da Independência Brasileira em nossas escolas primárias: narrativas históricas escolares em disputa’ é o estudo de Patrícia Coelho da Costa e Jefferson Soares, no qual analisam formas de apropriação e constituição de representações acerca da independência nacional no impresso pedagógico, A Escola Primária, e a sua reverberação nas escolas primárias, com a circulação determinada perspectiva deste fato. Ao examinar as orientações direcionadas aos professores, apontam interesses pela consolidação da identidade nacional, com ritos cívicos, homenagens e celebrações. Da mesma forma, interrogando disputas e tensões em um exercício de poder sobre construção de memórias e histórias, os autores dão relevo à presença e permanência de agentes e agências que tinham uma participação ativa desde o período monárquico, como o Colégio Pedro II e o IHGB.

As organizadoras do Dossiê ‘Processos de emancipação e educação na América: história, política e cultura (séculos XIX e XX)’ e a Comissão Editorial da RBHE entregam aos leitores e leitoras um conjunto composto por 11 artigos que permitem revisitar e agregar novos elementos às reflexões relativas aos processos de independência do Brasil e de três outros países da América Latina na expectativa de que os mesmos possibilitem outras investigações que deem visibilidade à temática da educação e suas relações com os processos de construção dos estados nacionais.

Referências

VAINFAS, R. (Org.). (2008). Dicionário do Brasil Imperial (1822-1889). Rio de Janeiro, RJ: Objetiva.

FOUCAULT, M. (2016). As palavras e as coisas (10a ed.). Rio de Janeiro, RJ: Martins Fontes.

NORA, P. (1993). Entre memória e história: a problemática dos lugares (Yara Aun Khoury, trad.). Revista História e Cultura, 10, 7-28.

POLLAK, M. (1989). Memória, esquecimento, silêncio. Estudos Históricos, 2(3), 3-15.

Aline de Morais Limeira Pasche – Doutora em Educação (2014) pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Professora Adjunta da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Faculdade de Educação e do Programa de Pós-graduação em Educação (PROPED). Integra o Núcleo de Ensino e Pesquisa em Historia da Educação (NEPHE-UERJ). E-mail: aline.de.morais.pasche@gmail.com https: / / orcid.org / 0000-0002-5964-6661

Cláudia Engler Cury – Doutora em Educação pela Universidade Estadual de Campinas (2002). Atuou como Tesoureira da Sociedade Brasileira de História da Educação nos biênios (2013-2015 e 2015-2017), professora associada IV do departamento de história da Universidade Federal da Paraíba. Membro efetivo dos Programas de Pós-Graduação em História e em Educação da UFPB. É editora-chefe da RBHE. E-mail: claudiaenglercury73@gmail.com https: / / orcid.org / 0000-0003-2540-2949


PASCHE, Aline de Morais Limeira; CURY, Claudia Engler. Introdução. Revista Brasileira de História da Educação. Maringá, v. 20, n. 1, 2020. Acessar publicação original

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Alimentação: História, Cultura e Patrimônio | Revista Latino-Americana de História | 2019

Na chamada de artigos que publicamos e divulgamos para este dossiê, havíamos afirmado que “é notável que as discussões em torno dos hábitos e das culturas alimentares têm ganhado cada vez mais espaço na sociedade e na academia”. Podemos considerar o grande número de produções de pesquisadoras e pesquisadores [3] que recebemos para compor este número da Revista Latino-Americana de História um acontecimento que ajuda a comprovar aquela sentença. Hoje, no Brasil, os estudos sobre alimentação estão em vias de consolidação, sendo a perspectiva interdisciplinar um dos seus principais trunfos. Há poucos dias do lançamento desta publicação, experienciamos um evento ocorrido na Universidade de São Paulo que demonstrava justamente isso. O II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação [4] reuniu mais de uma centena de historiadores, sociólogos, antropólogos, museólogos, nutricionistas, gastrólogos, economistas – além de cozinheiros, produtores rurais e ativistas sociais –, compartilhando diferentes mesas, discussões e grupos de trabalho.

Por mais que tenhamos um caminho já trilhado por acadêmicas e acadêmicos que se debruçam sobre a história e a cultura da alimentação desde a década de 1990 [5], há uma nova geração de estudiosos que acabou por ampliar não só o número de projetos de pesquisas em programas de pós-graduação, mas as possibilidades de investigação em termos de objetos, perguntas e metodologias. Pode-se conjecturar que a procura pela temática da alimentação e o alargamento das perspectivas possíveis para abordá-la na academia sejam possíveis e estejam orientando-se pelas próprias demandas e reflexões da sociedade contemporânea. Leia Mais

Diálogos entre cultura, política e história social / Fatos & Versões / 2019

O que é a história social? Pergunta de difícil resposta, como lembram os autores do primeiro artigo deste dossiê (LANGARO e SILVÉRIO, 2019), que comporta múltiplas possibilidades de solução. Seria ela uma denominação ampla e vaga – características que teriam, inclusive, motivado sua escolha para figurar no primeiro nome da revista Annales (d’histoire économique et sociale) (LE GOFF, 2005) – para um campo vasto da investigação historiográfica, que abarca toda a existência humana e, portanto, uma oposição tão somente à história natural? Seria ela uma proposta de estudos dos seres humanos em uma perspectiva abrangente, como propôs Déa Ribeiro Fenelon (2009), que, ao invés de se separar o estudo das atividades humanas em diferentes compartimentos (história política, história econômica, etc.), buscaria estudar os sujeitos históricos de maneira mais abrangente, em suas múltiplas relações com o mundo em que vivem? Ou seria apenas mais um compartimento historiográfico, onde caberiam os estudos sobre movimentos sociais e de história do trabalho, concepção frequentemente repetida e vulgarizada?

Inquietos com tais questionamentos, os historiadores que compõem este dossiê, perseguiram respostas por meio de seus trabalhos de pesquisa. A ideia central deste exercício de convergência de investigações acadêmicas é contrapor o que a história social é hoje com o que ela pode ser, apostando no potencial de renovação da área. Para tanto, tomou-se como ponto de partida a preocupação fundamental da história social com a compreensão da desigualdade social, em suas relações e articulações com a diversidade cultural.

O resultado foi um dossiê amplo e diverso, com artigos que colocam em diálogo cultura, política e relações sociais. São estudos que evidenciam a vida cotidiana, as práticas culturais de grupos populares, a atuação de movimentos sociais, histórias de trabalhadores e de suas relações de trabalho, e as relações entre campo e cidade. Também 2 composto por investigações que dão conta das maneiras como círculos políticos e intelectuais compreendem o “povo” e o popular – particularmente o povo brasileiro e sua miscigenação étnico-racial – ou produzem reflexões teóricas, com apurados estados da arte, referentes à história social brasileira.

Dentro deste amplo espectro de contribuições, o dossiê foi organizado da seguinte maneira: o primeiro artigo, intitulado “Olhares sobre a história social no e do Brasil Contemporâneo: trabalho, trabalhadores / as e movimentos sociais”, escrito por Jiani Fernando Langaro e Leandra Domingues Silvério, problematiza a trajetória da história social do trabalho e dos movimentos sociais, com base na historiografia do Brasil Contemporâneo. Os autores discutem como, de uma perspectiva mais restrita de história operária, caminhou-se para uma proposta mais aberta, de estudos sobre trabalhadores(as) e movimentos sociais.

O segundo trabalho, de Eduardo José da Silva Lima, intitulado “A luta pela moradia e os Estudos Culturais: invisibilidade e silenciamento em Palmas –TO”, estuda a luta pela moradia empreendia por movimentos sociais na cidade de Palmas, estado do Tocantins. A cidade planejada para ser a capital do novo estado criado no final da década de 1980, durante a Assembleia Nacional Constituinte, não deixou de ser excludente com as populações trabalhadoras pobres. Em uma trama que envolve exclusão social, especulação imobiliária, grilagens de solo urbano, mas também resistências, ocupações e luta pela moradia, o autor problematiza as contradições da dinâmica urbana de Palmas.

Na sequência, Rafael Giovanetti Teixeira, em “Para discutir classe social, o caso da usina açucareira paredão”, discute as relações sociais e de trabalho dos operários dessa usina instalada na cidade de Oriente, estado de São Paulo. Outrora uma fazenda de café sob o sistema de trabalho de colonato, ao longo do século XX, tornou-se uma usina açucareira, transformando as colônias em vilas operárias. Diante desse quadro, o autor questiona como os trabalhadores viveram as transformações operadas nas relações de trabalho, que também implicaram em mudanças nas relações com os locais de moradia e com a dinâmica entre campo e cidade.

Lucas Rodrigues do Carmo, em “Alforrias nos livros de notas de Jatahy: estratégias na negociação da liberdade (1872-1888)”, trata de outro importante tema da história social: a escravidão e os escravizados. Tomando como recorte a cidade de Jataí no período que antecede a abolição, e como fonte de pesquisa documentos cartoriais, o autor trabalha as trajetórias de sujeitos escravizados na cidade, em suas lutas para obterem liberdade. Assim, busca compreender os significados plurais da escravidão no Sudoeste goiano, bem como humanizar a escrita da história sobre este período.

“O Patrimônio e a instituição: desafios na formação e no desenvolvimento das políticas culturais patrimoniais”, é o artigo escrito por Lucas Santana Coelho Fonseca, preocupado em pensar o patrimônio cultural sob a ótica da história social. Enquanto tal, tem como preocupação principal os grupos marginalizados pelas políticas patrimoniais brasileiras, as quais analisa em um estado da arte permeado por uma leitura crítica quanto aos seus (des)caminhos.

O artigo seguinte, de Lucas Rezende Cruz, “Plano diretor de Ewald Janssen: a representação de uma Goiânia dos anos 1950”, traça um caminho pouco usual na historiografia brasileira: ao invés de abordar as propostas para a cidade de Goiânia feitas pelo topógrafo, engenheiro e urbanista Edwald Janssen a partir da história urbana, o autor escolhe a história social como campo conceitual para operar a análise. Dessa maneira, Cruz reflete sobre o lugar dos trabalhadores na cidade industrial vislumbrada e projetada por Janssen, uma proposta de correção dos problemas urbanos da Goiânia dos anos 1950, produto de uma expansão desordenada verificada na década anterior.

Por fim, fechando o dossiê, temos o artigo “‘Miscigenação, arianismo e nacionalismo’: uma análise historiográfica das obras de Manoel Bomfim e Oliveira Viana sobre a formação da sociedade brasileira”. Escrito por Luana Dias dos Santos e Luiz Carlos Bento, o texto trata das formas como Bomfim e Viana concebiam o povo brasileiro, especificamente seu caráter miscigenado, passando por temas como a escravidão e a imigração europeia. Os autores também discutem os nacionalismos e as construções identitárias nacionais forjadas pelos intelectuais cujas obras foram analisadas.

O dossiê constitui-se, portanto, em uma pequena amostragem da diversidade de perspectivas e do amadurecimento das reflexões sobre história social, desenvolvidas após o intenso processo de expansão da pós-graduação no Brasil e as transformações operadas na área nos últimos anos, com a ascensão de novas questões e problemas de pesquisa. Sem pretensões de esgotar o assunto, procura apresentar uma história social renovada, em que temas clássicos se repaginam para dar conta de demandas contemporâneas, dividindo espaço com novas propostas de investigação, emergentes no novo momento histórico inaugurado pelo século XXI.

Referências

FENELON, Dea Ribeiro. O historiador e a cultura popular: história de classe ou história do povo? História & Perspectivas. Uberlândia / MG, UFU, n.º 40, pp. 27-51, jan. / jun. 2009.

LANGARO, Jiani Fernando e SILVÉRIO, Leandra Domingues. Olhares sobre a história social no e do Brasil Contemporâneo: trabalho, trabalhadores / as e movimentos sociais. Fato & Versões. Campo Grande, UFMS, vol. 11, num. 21, pp. 5-26, 2019

LE GOFF, Jacques. A história nova. In: LE GOFF, Jacques (org.). A história nova. São Paulo: Martins Fontes, 2005. p. 32-84.


LANGARO, Jiani Fernando. Apresentação. Fatos e Versões. Campo Grande, v.11, n.22, 2019. Acessar publicação original [DR]

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Política, Cultura e Sociedade: temas e abordagens do Brasil Contemporâneo / Projeto História / 2019

O número 66 da Projeto História: Revista do Programa de Estudos Pósgraduados em História, da PUC / SP, traz a público o dossiê “Política, Cultura e Sociedade: temas e abordagens do Brasil Contemporâneo”. Não se trata apenas de publicar pesquisas que abordem a Ditadura Civil-Militar (1964- 1985) e as lutas de resistência à opressão, mas também olhar o passado atento à delicada situação política pela qual atravessa o Brasil no presente, em quem velhos fantasmas que pareciam habitar o passado ressurgem, ameaçadores. Mais do que nunca, é preciso revisar o passado recente, que ainda não terminou de passar. Os autores e as autoras deste número desvelam e iluminam vários aspectos da vida brasileira, enriquecendo o debate público da história mais recente. A eles e a elas, os editores da revista e os organizadores do número agradecem.

A capa desta edição da Projeto, vale dizer, foi selecionada justamente para transmitir a tensão política vivida no Brasil durante os anos finais do regime militar. Trata-se de uma fotografia da Passeata dos Cem Mil, pela Avenida Rio Branco, Candelária e Palácio Tiradentes, na cidade do Rio de Janeiro. Da manifestação, organizada por entidades estudantis, participaram intelectuais, artistas e trabalhadores sindicalizados e milhares de estudantes. Publicada no jornal Última Hora, em 27 de junho de 1968, ao reportar a manifestação do dia anterior, a foto registra aquela que foi a última grande manifestação popular contra a ditadura que logo se enrijeceria, com a decretação do Ato institucional número 5 (AI-5), em dezembro daquele ano.

Abrimos o dossiê com o artigo dos professores Luiz Antonio Dias (PUC-SP) e Rafael Lopes de Sousa (UNISA-SP), intitulado A greve da Volkswagen (1979): o despertar do novo sindicalismo e os métodos de controle da vida operária, no qual os autores analisam as resistências dos trabalhadores da fábrica automobilística frente à ditadura civil-militar. No artigo, contextualizam o desenvolvimento da crise econômica do final dos anos 1970 e começo dos 1980, a fim de compreender a consolidação de um novo sindicalismo. Com isso, partindo dos acontecimentos que culminaram na greve dos metalúrgicos do ABC de 1979, esclarecem “as redes de informações e controle criadas pela empresa para vigiar e punir os operários”. Além disso, os autores buscam jogar luz sobre “a lógica de apoio e cooperação desenvolvida entre agentes públicos e privados” ainda no contexto da greve.

Em seguida, reproduzimos o artigo Entre aplausos e denúncias: as entidades de advogados gaúchos e a instalação da ditadura civil-militar (1964-1966), de Dante Guimaraens Guazzelli. Nele, o autor busca demonstrar como os advogados do Rio Grande do Sul, logo no início do regime civil-militar, em 1964, apresentavam posturas ambivalentes em relação à quebra da legalidade constitucional, ora apoiando ora se opondo ao sistema político. O artigo leva os leitores a compreender a complexidade da instalação da ditadura no país.

Como terceiro artigo do dossiê, apresentamos o texto do professor Pedro Henrique Pedreira Campos (UFRRJ), intitulado Ditadura, interesses empresariais, fundo público e “corrupção”: o caso da atuação das empreiteiras na obra da hidrelétrica de Tucuruí. O artigo discute os projetos dos empresários entre as décadas de 1970 e 1980 envolvidos em escândalos de corrupção. Partindo de uma reflexão teórica sobre o tema da corrupção, o autor problematiza a ocorrência desses casos durante o regime militar e trabalha, mais especificamente, analisando a atuação de empreiteiras na obra da usina hidrelétrica de Tucuruí (1975-1984), no estado do Pará. A hipótese do autor aponta para disputas entre o “fundo público para acumulação de capital e busca de maiores taxas de lucro” como uma explicação viável para se compreender o uso de práticas ilegais pelas empresas e estreitar relações com o Estado.

Já no artigo Estratégia discursiva da ditadura civil-militar brasileira (1964- 1985): a legitimação através da escola, assinado pela professora Rosimar Serena Siqueira Esquinsani (UPF-RS), propõe-se a discussão da escola como um dos meios empregados pela ditadura para operacionalizar o discurso que exaltava o patriotismo, o patrulhamento ideológico, o recurso à autoridade e a politização das datas cívicas, sempre no sentido de legitimar a ditadura. A autora parte de uma metodologia analítico-reconstrutiva, ao utilizar como fonte para embasar sua análise doze livros didáticos adotados nas escolas brasileiras entre 1964 e 1985. A pesquisa demonstra o empenho dos agentes do Estado em legitimar a ditadura, por meio do uso das escolas e dos conteúdos dos livros didáticos.

Na sequência, o artigo de Gustavo Bianch Silva problematiza a relação da Universidade Federal de Viçosa com a política econômica e o plano de desenvolvimento adotados durante a ditadura militar no Brasil. Segundo o autor “o modelo de modernização da agricultura ambicionado na universidade […] teve grande convergência com a concepção da modernização econômica elaborada pelos militares em seus governos”. A hipótese levantada pelo autor indica que o ponto de interlocução entre a universidade e a política de desenvolvimento dos distintos governos das décadas de 1970 e 1980 teria facilitado, por parte das lideranças acadêmicas, uma postura de adesão ao regime

O professor Reginaldo Cerqueira Souza (Unifespa-PA), no artigo Guerrilha do Araguaia: violência, memória e reparação, problematiza o movimento de resistência armada contra a ditadura organizado por militantes de esquerda do Pará, Maranhão e Tocantins, durante a Guerrilha do Araguaia (1972-74). Com base nas teorias da literatura de teor testemunhal e da psicanálise, empregando os conceitos de “trauma”, “repetição” e “esquecimento”, o artigo busca compreender as razões por trás do esquecimento social acerca da guerrilha no estado do Pará, o aumento da violência nessa região e a negação às vítimas do Estado o direito de reparação e memória.

No artigo intitulado História, Cultura e identidade: olhares sobre comunidades quilombolas no estado do Amapá, Elivaldo Serrão Custódio (UNIFAP), Silvaney Rubens Alves de Souza (UNIFAP) e Maria das Dores do Rosário Almeida (UnB), abordam o debate acerca da reforma agrária ligado ao processo de resistência política dos movimentos negros organizados desde a década de 1980. No artigo, os autores contextualizam a longa trajetória de luta pela sobrevivência dessas comunidades tradicionais, remanescentes de quilombos, ainda distantes das políticas públicas das ações afirmativas.

Para encerrar o dossiê escolhemos o artigo Rompendo fronteiras: movimentos e imprensa de direitos humanos no Cone Sul (1970 / 1980), de Heloísa de Faria Cruz, professora do Departamento de História da PUC-SP. Nele, a autora analisa uma série de publicações produzidas por entidades de defesa dos direitos humanos veiculados entre os anos de 1970-80 em países como Chile e Argentina. Seu objetivo é refletir acerca da atuação dessas entidades, bem como sobre a cultura política de resistência aos regimes ditatoriais vigentes nos países do Cone Sul, demonstrando como se constituiu a rede de movimentos em defesa dos direitos humanos, destacando a importância dos circuitos de comunicação que a sustentaram.

No espaço dedicado aos artigos livres, o texto Os institutos disciplinares, a legislação sobre menoridade e a formação de setores estatais especializados em assistência a menores em São Paulo (1900-1935), assinado por Sérgio C. Fonseca e Felipe Ziotti Narita, discute a institucionalização de setores especializados na gestão de serviços públicos de assistência social para menores em São Paulo, entre o início do século XX e a década de 1930. A partir de textos jurídicos, relatórios oficiais e impressos publicados pelos serviços de assistência, o artigo busca analisar os meandros dos dispositivos estatais no âmbito do desenvolvimento socioeconômico e demográfico. Evidenciam-se no texto, as “ramificações institucionais em diálogo com a formação de serviços de saúde, a profissionalização da assistência aos pobres e a legislação referente a protocolos judiciais e policiais destinados ao governo da população”, como apontam os autores.

O segundo artigo livre Releituras do Contestado: O reino místico dos pinheirais, de Wilson Gasino, e a crítica à história oficial, do professor Claécio Ivan Schneider (UNIOESTE) busca problematizar as relações entre história e a literatura na construção do romance O reino místico dos pinheirais, publicado por Wilson Gasino, em 2011. Para o autor, o romance pode ser lido como “um instrumento de denúncia contra aqueles que construíram e compactuaram com interpretações preconceituosas da história, […] e estigmatizaram milhares de sertanejos que até hoje lutam por sua terra, por sua cidadania, enfim, pelos seus direitos humanos”.

O volume traz ainda duas resenhas. O primeiro texto, Brasil, mostra tua cara, mais ligado à temática do dossiê é uma apreciação crítica de Victor Gustavo de Souza sobre o livro Sobre o autoritarismo brasileiro, publicado por Lilia Moritz Schwarcz e lançado em 2019. Em linha com o projeto editorial da revista, marcado pela pluralidade e abertura aos mais diversos temas, a segunda resenha abre espaço para história de São Paulo de fins do século XVIII. Em Um olhar renovado sobre a história dos capitães-generais de São Paulo: o governo de Martim Lopes Lobo de Saldanha (1775-1782) José Rogério Beier debate o livro de Lorena Leite, “Déspota, tirano e arbitrário”: o governo de Lobo de Saldanha na Capitania de São Paulo (1775-1782), também lançado em 2019.

A Projeto História interessada em valorizar pesquisas de jovens pesquisadores há muitos anos mantém Notícias de Pesquisas, espaço que tem o objetivo de valorizar a produção de pesquisas em andamento. Este volume traz a pesquisa de Thays Fregolent de Almeida, intitulada Modernos bandeirantes, antigos interesses: a Expedição Roncador-Xingu e a conquista da fronteira oeste (1938-1948). A autora investiga a Expedição Roncador-Xingu (1943- 1948) como parte da campanha Marcha para o Oeste, importante investimento político realizado pelo Estado Novo (1937-1945). No texto, os conceitos de “fronteira econômica” e “fronteira política” são articuladas com a apropriação do bandeirantismo como símbolo.

O volume 66 da revista se encerra com a entrevista que o investigador Marcos Antônio Batista da Silva realizou com o professor e pesquisador Bruno Sena Martins (CES) – Universidade de Coimbra. No texto são problematizadas questões relativas à difusão da cultura científica, a colonização, o racismo, as políticas de ação afirmativa e sustentabilidade. Bruno Sena Martins é investigador do Centro de Estudos Sociais, cocoordenador do programa de doutoramento Human Rights in Contemporary Societies, e docente no programa de doutoramento em Pós-colonialismos e cidadania global.

É parte do esforço editorial da Projeto História: Revista do Programa de Estados Pós-graduados em História da PUC / SP criar espaços para que pesquisadores de outras universidades, de diferentes regiões do Brasil e de outros países possam contribuir com suas pesquisas.

Esperamos que os leitores apreciem criticamente os trabalhos selecionados, e que possam ter recepção fértil, gerar novas pesquisas e outras inquietações.

Alberto Luiz Schneider – Professor do Departamento de História da PUC / SP

Márcia Juliana Santos – Doutora em História (PUC / SP). Professora de História da Escola Móbile


SCHNEIDER, Alberto Luiz; SANTOS, Márcia Juliana. Apresentação. Projeto História, São Paulo, v.66, 2019. Acessar publicação original [DR]

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Cultura e educação na América Portuguesa / Revista de História e Historiografia da Educação / 2019

Este dossiê temático é fruto dos trabalhos apresentados no IV Colóquio Cultura e Educação na América Portuguesa, que aconteceu em junho de 2018, na cidade de Diamantina, MG. Patrocinado pelo Grupo de Pesquisa Cultura e Educação nos Impérios Ibéricos (CEIbero) e pela Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri (UFVJM), com o apoio financeiro da CAPES, o evento tentou agregar pesquisadores que tratam de temáticas correlatas à educação no período colonial brasileiro. É importante salientar que este é um período ainda pouco explorado no campo da História da Educação. Talvez a dificuldade maior apresentada ao historiador da educação seja a habilidade na leitura documental, mas soma-se também uma perspectiva de seus interesses se aproximarem de uma temporalidade mais próxima da atualidade, além da forte tendência e preocupação de restrição das pesquisas à análise do período da ampliação da escolarização brasileira e, consequentemente, a valorização de investigação de instituições escolares. Neste dossiê apresentamos a história de instituições e práticas educativas, na maioria caracterizada como não escolar, uma vez que o período colonial foi marcado por poucas estratégias escolares para a maioria da população que habitava a América Portuguesa.

Dentro da perspectiva da história da educação confessional feminina, iniciamos o dossiê pelo artigo de minha autoria, intitulado Documento, interpretação e representação: os anos iniciais da Casa de Oração do Vale de Lágrimas, Vila de Minas Novas, 1754. Neste artigo busco analisar um conjunto documental que trata da história de uma instituição que poderia ser caracterizada enquanto Recolhimento aos olhos do arcebispo baiano Dom José Botelho de Matos, porém, tanto as mulheres que habitavam a referida casa, quanto a população local tentavam convencê-lo de que lá era apenas um espaço de ensino. O documento representa uma intencionalidade local de enganar o religioso e não deixar que a instituição passasse a ser controlada pelo arcebispado, caso fosse caracterizada como um recolhimento feminino.

A seguir apresentamos o artigo de Breno Leal Ferraz Ferreira, A crítica a “tudo quanto apresenta um caráter de fabuloso” nas memórias de Alexandre Rodrigues Ferreira redigidas na Viagem Filosófica (1783-1792). O autor analisa a crítica ilustrada do naturalista Alexandre Rodrigues Ferreira (1756-1815) acerca das narrativas fabulosas sobre a América. Durante as suas viagens filosóficas pelas Capitanias do Grão Pará, Rio Negro e Mato Grosso, o naturalista, formado na Universidade de Coimbra, narrou as suas experiências com os povos indígenas da América Portuguesa.

No artigo Política, Instrução Pública e Civilização: um exercício de pesquisa a partir dos Relatórios dos Presidentes da Província de Minas Gerais, Danilo Araújo Moreira analisa uma documentação muito utilizada pelos historiadores da educação, especialmente por aqueles que tratam das questões políticas e da legislação que rege a educação, porém o autor se detém na análise dos discursos e das representações que foram construídas no processo de constituição do Império brasileiro acerca dos valores da instrução, do letramento e da formação escolar. Para a compreensão deste período histórico busca interligar com a educação pública do período colonial, especialmente a partir da Reforma Pombalina e a instituição das Aulas Régias em 1759.

De autoria de Fernando Cezar Ripe da Cruz somos brindados com o artigo “O perfeito Pedagogo”: análise de um manual pedagógico português que ensina regras de civilidade e de urbanidade cristã (Portugal, século XVIII). Neste trabalho, o autor apresenta a análise do referido manual, destinado a orientar pais e mestres na educação dos seus respectivos filhos e discípulos, especialmente a partir da constituição discursiva da infância para o período analisado.

A educação não escolar é o fio condutor do artigo de Leandro Gonçalves de Resende, intitulado Educação em oração: os processos educativos não escolares na Vila Real de Nossa Senhora da Conceição de Sabará – século XVIII e XIX. O autor busca analisar elementos artísticos, religiosos e educacionais presentes nas igrejas da referida Vila. A religiosidade cotidiana e local passava então pela intencionalidade de formar bons e fiéis cristãos, além de bons e leais súditos do reino português.

Ludmila Machado de Oliveira Torres apresenta a perspectiva educativa por meio dos ofícios mecânicos. No artigo Entre livres e cativos: aprendizagem de ofício mecânico na Vila Real de Sabará (1735-1829), a autora analisa uma diversidade de documentos (como autos de contas de tutoria e inventários post-mortem) para compreender como ocorria a aprendizagem de determinados ofícios: alfaiate, ferreiro, sapateiro, etc.

Educação e filosofia moral na obra do padre Teodoro de Almeida (1722-1804) é o artigo proposto por Patrícia Govaski, no qual apresenta algumas considerações a respeito das discussões em torno da Filosofia Moral em Portugal na segunda metade do século XVIII, além da visão acerca deste tema proposta pelo padre oratoriano Teodoro de Almeida (1722-1804).

No artigo Práticas educativas das elites coloniais na Capitania de Minas Gerais. Desafios metodológicos, de Talítha Maria Brandão Gorgulho, somos contemplados pela análise de preceitos educativos que aumentariam, manteriam e perpetuariam privilégios das elites locais. O artigo propõe ainda definir o conceito de educação para o período estudado, bem como a análise de fontes e a reflexão metodológica à luz de alguns conceitos propostos por Pierre Bourdieu.

Finalizamos este dossiê com o artigo apresentado por Vanessa Cerqueira Teixeira, intitulado A devoção mercedária e o associativismo leigo no setecentos mineiro. Neste artigo, a autora busca analisar o caráter educativo das irmandades católicas, seus interesses e devoções a partir de uma determinada santa, Nossa Senhora das Mercês, protetora de 20 associações leigas de pretos crioulos nas Minas setecentistas.

Este dossiê é marcado pela diversidade de pesquisas acerca das práticas educativas que circulavam em Portugal e na América Portuguesa, desde a proposta de manuais de instrução, até perspectivas de educação escolar, não escolar, pública ou confessional. Desejamos que a leitura dos artigos possa contribuir para o fortalecimento de novas pesquisas no campo da História da Educação para um período histórico que ainda tem muito a ser estudado.

Ana Cristina Pereira Lage


LAGE, Ana Cristina Pereira. Apresentação. Revista de História e Historiografia da Educação. Curitiba, v. 3, n. 7, jan. / abr., 2019. Acessar publicação original [DR]

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Intelectuais, Cultura e Modernismo / Revista Eletrônica História em Reflexão / 2017

A temática deste dossiê nasceu de um projeto coletivo fruto das discussões de um Seminário entre docentes e discentes do Curso de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Goiás, em colaboração com a Universidade Estadual de Goiás. O nosso objetivo foi o de propor reflexões em torno da figura do intelectual enquanto mediador cultural, destacando-se o seu papel na formação de importantes grupos literários no contexto das correntes modernistas brasileiras das primeiras décadas do século XX. Nessa perspectiva, buscamos ainda problematizar a categoria de intelectual e os seus desdobramentos no conjunto dos debates da História Cultural e das relações entre História, Literatura e Cinema. Somos gratos à acolhida da nossa proposta pelos editores da Revista Eletrônica História em Reflexão, os quais viabilizaram um espaço privilegiado para a publicação dos nossos textos.

Diante da aguda crise política vigente no país, evidenciada por uma polarização radical entre discursos tidos como de direita ou de esquerda e o avanço de um pensamento e práticas conservadoras, faz-se importante os debates em torno do papel dos intelectuais e dos meios de mediação cultural. A coletânea organizada por Ângela de Castro Gomes e Patrícia Hansen (2016), Intelectuais Mediadores: práticas culturais e ação política, traz uma importante contribuição acerca dessas questões e novos olhares no interior do debate historiográfico. Numa acepção mais ampla contemplada pelas autoras, os intelectuais são

[…] homens da produção de conhecimentos e comunicação de ideias, direta ou indiretamente vinculados à intervenção político-social. Sendo assim, tais sujeitos podem e devem ser tratados como atores estratégicos nas áreas da cultura e da política que se entrelaçam, não sem tensões, mas com distinções, ainda que historicamente ocupem posição de reconhecimento variável na vida social (2016, p. 10).

Uma dimensão importante no que concerne ao conceito de mediação cultural é o seu significado para a História Cultural, visto que a mesma busca compreender as operações de apreensão da realidade social a partir dos sentidos atribuídos pelos sujeitos. Nessa perspectiva, analisar as práticas de mediação torna-se estratégico para o entendimento das dinâmicas de circulação, comunicação e apropriação dos bens culturais, pois as mesmas envolvem mudanças de sentidos nas intenções de seus produtores (GOMES; HANSEN, 2016, pp.12-13).

A categoria de intelectual mediador permite ampliar a noção de redes de atuação desses sujeitos, pois tais homens “duplos”, segundo definição de Christophe Charle, assumem o papel de intermediadores, ao circularem entre os produtores da cultura e o público. Os mesmos servem como meio de passagem (passeurs) entre a cultura popular e a erudita, frequentemente analisadas como separadas, estabelecendo um elo fundamental na disseminação da novidade cultural (CHARLE, 1992, pp. 72-75). Algumas ocupações são emblemáticas nesse tipo de mediação, permitindo a aproximação entre os diferentes públicos e os bens culturais, tais como: tradutores, educadores e críticos de música, literatura, cinema, televisão, teatro e artes plásticas.

À luz disso, o conjunto de artigos selecionados para o dossiê contempla textos de docente e discentes de pós-graduação em História (mestrandos e doutorandos), com vistas a ampliar as possibilidades de debate acadêmico e dar maior visibilidade às pesquisas em andamento. Os três primeiros estabelecem uma discussão que amplia a reflexão em torno dos intelectuais mediadores, assim como das práticas de mediação cultural, e os dois últimos colocam em foco as relações entre História, Literatura, Cinema e Periódicos.

O texto de José Fábio Silva, Crítica literária e mediação cultural: Nestor Vítor e o seu papel na divulgação da obra de Cruz e Sousa, analisa o papel exercido pela crítica literária, com destaque para a produção de Nestor Vítor, na difusão e canonização da obra do poeta Cruz e Sousa na virada do século XIX para o século XX. Num primeiro momento, o autor recupera a trajetória intelectual do crítico literário e a sua atuação junto ao grupo de escritores simbolistas brasileiros. Dedica-se ainda a evidenciar a atuação de Vítor como mediador cultural, pois como crítico literário dedicou-se a publicar e disseminar a obra de Cruz e Sousa. Nesse percurso, destacou-se as querelas no meio literário em torno da recepção e rejeições à obra do poeta. Por último, recuperou-se o percurso de consolidação de Cruz e Sousa no cânone literário brasileiro, ao lado do legado de Vítor nesse processo e no campo da crítica literária.

Alex Fernandes Borges, no artigo O Historiador como Intelectual Mediador da Cultura, estabelece uma análise teórica acerca da possibilidade de se qualificar o historiador como um intelectual mediador, com base no conceito proposto pelos estudos de mediação cultural elaborados por Jesús Martín-Barbero e sistematizado no estudo de Ângela de Castro Gomes e Patrícia Hansen. Borges buscou pensar a figura do historiador – como um tipo ideal – à luz das concepções formuladas na teoria de Jörn Rüsen, problematizando-o como mediador cultural, bem como caracterizando-o como um criador de conteúdos e, também, um divulgador, um tradutor capaz de construir sínteses entre as carências de orientação difusas no campo da experiência política, sociocultural e econômica. Dessa maneira, o autor chega à ideia segundo a qual os historiadores propõem narrativas que permitem dar sentido ao agir e contribuem para a formação de identidades, utilizando-se de conhecimentos de sua área e dialogando interdisciplinarmente com todos os campos das chamadas Ciências Humanas, mediando ideais e projetos políticos.

O artigo de Karla de Souza Ferreira, Mediador Cultural ou Antropólogo do Mal: Bruce Albert e o caso de “A Queda do Céu”, propõe uma análise crítica sobre o fragmento “Postscriptum, quando eu é um outro (e vice-versa)”, apresentado na obra A Queda do céu: palavras de um xamã yanomami; livro pensado por um xamã yanomami, Davi Kopenawa, e produzido pelo etnólogo francês Bruce Albert. Souza Ferreira reflete acerca do processo de produção do livro, no qual dois universos culturais se encontram. Sob este prisma, apresenta-se uma produção literária indígena do povo Yanomami, cuja importância para a construção da História Indígena é fundamental, porém, trata-se de um trabalho produzido em coautoria entre personagens com diferentes formações culturais. Por esse motivo, a autora questiona o papel de Albert no processo de elaboração do livro – seria o mesmo um mediador cultural ou um “antropólogo do mal”? – visando estabelecer um cotejamento e reflexões acerca do ato tradutório e suas implicações, destacando-se os desafios e contribuições apresentadas nesse processo.

Por seu turno, Edson Mendes de Almeida no texto Um Tico para formar adultos estabelece uma discussão acerca da revista Tico-Tico, fundada em 1905 no Rio de Janeiro, realçando o seu papel no tocante à formação e educação do público infantil. A mesma era publicada como um Suplemento na revista O Malho, trazendo em seu conteúdo histórias em quadrinhos, lendas, contos, galeria de fotos dos leitores, além das seções do Dr. Sabetudo e das Lições do Vovô. A publicação foi pioneira no âmbito de se direcionar às crianças, enquanto veículo de mediação cultural, com a proposta de estimular o gosto pelo conhecimento e pela leitura. Em vista disso, Almeida selecionou o período 1920 a 1922 do periódico, com vistas a promover um diálogo com o movimento modernista referenciado na Semana de Arte Moderna de São Paulo, em 1922.

Já no artigo intitulado Cinema Novo e sua relação com o Modernismo literário: reflexões sobre aspectos similares, o historiador Julierme Morais propõe uma discussão acerca da relação entre as matrizes culturais que aproximaram os movimentos do Cinema Novo e o Modernismo literário brasileiro, buscando explicitar como o movimento cinematográfico, evidenciado nos anos de 1960, apresenta algumas características similares ao movimento literário, cujo marco construiu-se em torno da Semana de Arte Moderna de 1922. Segundo Morais, a aproximação entre Modernismo e o Cinema Novo pode ser pensada a partir dos questionamentos e desconstrução da linguagem artística tradicional, conduzidos pelo desejo da invenção e de discutir o brasileiro. Esses movimentos buscavam, inspirados nas vanguardas europeias de suas respectivas épocas, uma autonomia no ato da criação, assim como a possibilidade de inventar um instrumental capaz de forjar uma expressão artística que pudesse ser considerada nacional.

Por fim, cabe ressaltar que somos gratos à acolhida da nossa proposta pelos editores da Revista Eletrônica História em Reflexão, os quais viabilizaram um espaço privilegiado para a publicação dos nossos textos. Nesta medida, esperamos que os temas analisados neste dossiê possam contribuir para a edição deste volume do periódico, que constitui um importante espaço de divulgação e diálogo acadêmico, com vistas a fomentar a produção do conhecimento histórico.

Referências

CHARLE, Cristophe. Le tempsdeshommes doublés. Revue d’ HistoireModerne et Contemporaine, n 39, pp. 73-85, jan. / mars. 1992. Disponível em: . Acesso em: 28 ago. 2017.

GOMES, Ângela de C; HANSEN, Patrícia S. Apresentação. In: _______ (org). Intelectuais mediadores: práticas culturais e ação política. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016, pp. 7-37.

Luciana Lilian de Miranda – Professora Doutora (PPGH-UFG)

Julierme Morais – Professora Doutora (UEG).

Goiânia-Morrinhos, GO, setembro de 2017.


MIRANDA, Luciana Lilian de; MORAIS, Julierme. [Intelectuais, Cultura e Modernismo]. Revista Eletrônica História em Reflexão. Dourados, v. 11, n. 21, jul. / dez., 2017. Acessar publicação original [DR]

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Gênero e Negritude / Revista Mosaico / 2017

Nesse dossiê estão presente análises que refletem as experiências históricas provenientes dos processos de escravização dos africanos e as formas cotidianas como se desenrolaram seus modos de sociabilidades que se constituíram por meio dos modos de ser e fazer de diferentes grupos sociais, cruzados e mediados pelos gênero, negritudes e / ou processos de racialização.

Desse modo, o texto assinado por Poliene Soares dos Santos Bicalho, Maria Cristina Campos Ribeiro A História e a identidade dos africanos e seus descendentes na Terra Brasilis: da escravidão ao movimento negro, rediscute o processo histórico de construção da identidade do negro no Brasil desde a sua chegada como escravo até a atualidade, perpassando diferentes momentos e perspectivas; bem como observa e analisa as bases do racismo e como a academia / educação abordou tais questões.

Perseguindo a compreensão do caminho construído pelos descendentes dos africanos aqui no Brasil, o artigo “Filhos do cativeiro – crianças ingênuas em Villa Bella de Morrinhos (Goiás, 1872-1888)”, de Pedro Luiz do Nascimento, demonstra a permanência da família escrava na região sul de Goiás bem como a participação de mulheres cativas no desenvolvimento econômico regional.

A participação das mulheres negras no processo formativo econômico das cidades brasileiras é marca de exemplaridade do papel exercido por elas e é demonstrado na escrita do artigo de Martha Maria Brito Nogueira, intitulado “Empoderamento das mulheres negras: cultura, tradição e protagonismo de Dona Dió do acarajé na ‘lavagem do beco’”, o artigo inspirado na perspectiva da história cultural contribui para desconstruir as ideologias racistas e sexistas que invisibilizam a presença das mulheres negras nos diversos espaços da sociedade, em especial no campo cultural, procurando mostrar a suas ações para promover e estabelecer novos posicionamentos. Para tanto, analisa a trajetória de Dona Dió do Acarajé, mulher negra, de descendência quilombola que sobressaiu em várias manifestações populares na cidade de Vitória da Conquista nas últimas décadas do século XX, tornando-se símbolo da cultura negra.

As reflexões trazidas no artigo acima colocam em evidência a discussão presente no texto “Educação em Direitos Humanos: história, gênero e etnia”, de Maria Cláudia Machado Barros, propõe estabelecer uma consciência histórica para a abordagem de promoção dos valores e relações que promovam o reconhecimento do outro, na promoção da igualdade de direitos, associados ao reconhecimento da diversidade.

Os artigos aqui apresentados são contribuições que levantam questões epistemológicas e políticas; elaboram maneiras e perspectiva de ampliação dos estudos da história social e cultural das redes em que os sujeitos estão envolvidos.


MOREIRA, Núbia Regina. Apresentação. Revista Mosaico. Goiânia, v.10, n.2, jul. / dez., 2017. Acessar publicação original [DR]

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História, cultura e natureza / História Revista / 2017

A história ambiental é um campo historiográfico relativamente novo. Apesar do debate entre história e natureza não ser algo distante dos estudos históricos, a história ambiental procurou enfatizar e privilegiar as relações entre humanos e meio ambiente em diferentes temporalidades e espacialidades. Surgida nos Estados Unidos, na segunda metade do século XX, procurou discutir sobre o papel da natureza no imaginário americano, sobretudo no que se refere a criação de uma cultura nacional fundada na relação com o meio. A partir da década de 1970 ampliou o seu escopo sobre outras abordagens ambientais, se mostrando muito mais interdisciplinar e buscando novas espacialidades. Além dos Estados Unidos, no Brasil, na América Latina e na Europa, um grupo significativo de pesquisadores tem se debruçado em estudos em história ambiental, com temáticas diversas como rios, montanhas, florestas, flora, fauna, cientistas‐conservacionistas, dentre outros, e em diversas temporalidades.

Nessa perspectiva, o dossiê temático História, cultura e natureza se apresenta como um campo privilegiado para a discussão da relação entre história, cultura e natureza. Ao propor o dossiê, nossa intenção foi promover um espaço de debates sobre os vários ambientes e os diferentes fenômenos decorrentes dessa relação. Apesar de ser um campo historiográfico, esse espaço de debates se propunha interdisciplinar, considerando a possibilidade de envolver biólogos, geógrafos, antropólogos e os estudiosos dos diferentes campos das engenharias que se dedicam às questões ambientais. Para tanto, propusemos discutir temas que envolvessem a relação homem e natureza em diferentes cenários, biomas, domínios naturais e paisagens, bem como a utilização de diferentes fontes e métodos na compreensão desses fenômenos, tanto no Brasil como na América, na África e na Europa, em diferentes temporalidades.

Como resposta à chamada do dossiê, recebemos um número significativo de submissões de autores vinculados a instituições de diferentes regiões do Brasil, e também uma contribuição do exterior. Os textos, avaliados e aprovados por reconhecidos especialistas em história ambiental, foram organizados no dossiê de acordo com as temáticas e abordagens apresentadas. Em primeiro lugar, apresentamos os artigos centrados em questões conceituais, teóricas e historiográficas. Em seguida, apresentamos uma abordagem da relação homem e natureza no contexto dos Estados Unidos da América. Depois, aparecem os artigos que analisam o fenômeno no Brasil, iniciando com uma abordagem sobre a história dos projetos de conservação de espécies da fauna brasileira, seguida por outra focada nas transformações na paisagem do estado de Santa Catarina, outra centrada no debate político ambiental no estado de São Paulo, chegando, por fim, ao artigo que se dedica ao Cerrado no século XIX. Excetuando‐se os três primeiros artigos – aqueles de abordagens teóricas –, percebe‐se que nosso critério para a organização dos textos no dossiê foi geográfico, partindo da realidade mais distante geograficamente, os Estados Unidos da América, para a mais próxima do lugar de publicação da História Revista, o nosso Cerrado.

Assim, abrimos o dossiê com três artigos centrados em questões conceitual, teórica e historiográfica.

No primeiro artigo, Roger Domenech Colacios, pós‐doutorando pelo Departamento de História da UNESP / Assis, apresenta uma abordagem conceitual, situada no debate sobre a polissemia do meio ambiente. O autor propõe analisar o conceito de meio ambiente utilizado pela historiografia ambiental brasileira focando as três matrizes teóricas que guiam os estudos históricos no Brasil: ecológica, socioambiental e geográfica. No que se refere à metodologia, a análise utiliza o instrumental Latouriano, utilizado pela história das ciências, referente às caixas‐pretas conceituais, o que está indicado no título do artigo: Os meios ambientes da História Ambiental brasileira: pela abertura da caixa‐preta.

Prosseguindo com a discussão teórica, o segundo artigo, História, meio ambiente e interdisciplinaridade, de Dora Shellard, professora convidada do MBA da ENS / Funenseg São Paulo e pós doutoranda no Instituto de Estudos Brasileiros IEB / USP, apresenta duas questões fundamentais sobre a abordagem do meio ambiente na história. Em primeiro lugar, a autora discute a singularidade da história ambiental frente a outros campos da disciplina, destacando que, até a década de 1950, a exploração do meio ambiente no Brasil também era objeto da história econômica e social. Em seguida, a autora apresenta importantes reflexões sobre a interdisciplinaridade entre as ciências ambientais e sociais, suas possibilidades e seus limites.

O terceiro artigo do dossiê, foi escrito por Márcia Helena Lopes, Cristiane Gomes Barreto e André Vasques Vital, pesquisadores vinculados a diferentes instituições: a primeira é professora na Unievangélica / GO, a segunda é professora na Universidade de Brasília, e o terceiro é doutor pela Fundação Oswaldo Cruz e bolsista CAPES / PNPD do Centro Universitário de Anápolis. Como indica o título, O Papel do Ambiente no Pensamento Social Brasileiro: Contribuições a partir de Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda e Caio Prado Júnior, o artigo apresenta uma análise profunda do papel do ambiente nas interpretações do Brasil desenvolvidas por três grandes intérpretes do nosso país, destacando como a natureza está presente na formação social brasileira, segundo esses autores.

Consoante a proposta do dossiê de discutir temas que envolvessem a relação homem e natureza em diferentes cenários se apresenta o texto de Micah Bacheller e Sandro Dutra e Silva – o primeiro, norte americano, vinculado ao North Central College / USA, e o segundo, brasileiro, professor da Universidade Estadual de Goiás e do Departamento de Ciências Ambientais no Centro Universitário de Anápolis. Em The Birth of National Parks: Culture and Nature in Visiting the Wilderness in the United States (1920‐1940), os autores abordam a relação entre sociedade, cultura e natureza no contexto norte‐americano, estabelecendo como marco inicial o governo do Presidente Wilson (1913‐1921). Com enfoque na história da conservação da natureza e criação de áreas protegidas, os autores abordam a questão proposta em duas perspectivas: o nascimento do Sistema e Serviço de Parques Nacionais nos Estados Unidos e os fatores relacionados ao aumento de visitantes aos Parques entre as décadas de 1920 e 1940.

Passamos, então, ao cenário brasileiro. O primeiro artigo, História dos projetos de conservação de espécies da fauna no Brasil, é fruto da discussão de três pesquisadores, vinculados a importantes centros de pesquisa em história ambiental: Fernanda Cornils Monteiro Benevides, vinculada ao Centro de Desenvolvimento Sustentável da Universidade de Brasília e membro do Observatório das Unidades de Conservação e Políticas Sociais Conexas, José Luiz de Andrade Franco, vinculado ao Centro de Desenvolvimento Sustentável da Universidade de Brasília, e Vivian da Silva Braz, professora no Centro Universitário de Anápolis / GO. O artigo traça uma história dos projetos de conservação de espécies da fauna no Brasil. Nas palavras dos autores: “projetos pioneiros iniciados pela Fundação Brasileira para a Conservação da Natureza (FBCN), entre 1966 e 1972; consolidação e surgimento de novos projetos de 1973 a 1988; e crescimento do número de projetos, de 1989 até o presente. Trata da cooperação da FBCN com o Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal (IBDF), com a Secretaria Especial de Meio Ambiente (SEMA), e com organizações não governamentais (ONGs) internacionais para o desenvolvimento dos projetos de conservação da fauna.” O artigo destaca, em suas conclusões, que os projetos de conservação da fauna revelam‐se importantes para o desenvolvimento de uma consciência ampla sobre a perda da biodiversidade.

Deslocando nosso olhar para o Sul do Brasil, o artigo intitulado Meio ambiente e sociedade: as transformações na paisagem do Oeste Catarinense, na segunda metade do século XX, de Samira Peruchi Moretto, apresenta as diversas transformações ambientais no Oeste catarinense no século passado, provocadas, em sua maioria, pela antropização da paisagem. A autora, que é professora do Curso de História da Universidade Federal da Fronteira Sul, utiliza um denso e variado corpus documental para analisar o processo histórico da transformação ambiental no Oeste catarinense, após o processo de ocupação da região.

No contexto da região Sudeste situa‐se o artigo O conceito de restauração de florestas nativas no debate político ambiental em São Paulo (1912‐1944), de Luiz Antônio Norder, professor do Departamento de Desenvolvimento Rural da Universidade Federal de São Carlos.  Por meio do estudo de publicações que continham conceitos e propostas de restauração de florestas, o autor analisa o contexto e as características do conceito de restauração de florestas nativas no Brasil e, especialmente, no estado de São Paulo, no período de 1912 a 1944.

Finalizamos o dossiê com uma abordagem sobre o Cerrado. Em A diversidade paisagística dos “campos” nas iconografias de Florence e de Martius: alguns aspectos do Cerrado da primeira metade do século XIX, Ana Marcela França de Oliveira, doutora pelo Instituto de História da Universidade Federal do Rio de Janeiro, discute a diversidade paisagística das extensões florísticas que abrangem atualmente parte do Cerrado, da forma como foram registradas pelo botânico alemão Carl F. von Martius (1794‐1868) e pelo artista francês Hercule Florence (1804‐1879). Ao estudar os registros dos dois viajantes, a autora problematiza o uso das imagens dos “cerrados” que ambos construíram como testemunhos de usos pretéritos do ambiente analisado.

Os leitores encontrarão nesse dossiê um debate riquíssimo no âmbito da história ambiental. Os artigos que o compõem apresentam diferentes abordagens e importantes reflexões em um campo historiográfico que, como dissemos no início dessa apresentação, é relativamente novo. Estamos profundamente agradecidos a todos que colaboraram: aos autores, que submeteram suas propostas e aceitaram as críticas e sugestões dos revisores, e aos pareceristas que gentilmente, e no melhor espírito acadêmico, apresentaram reflexões importantes e pertinentes nas suas avaliações, revelando leituras atentas e cuidadosas dos artigos. Nosso muito obrigado!

Sandro Dutra – Doutor (UEG)

Adriana Vidotte – Doutora (UFG)

Organizadores


DUTRA, Sandro; VIDOTTE, Adriana. Apresentação. História Revista. Goiânia, v. 22, n. 2, mai. / ago., 2017. Acessar publicação original [DR]

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Intelectualidade Latino-americana, Cultura e Política no Século XX / Cantareira / 2017

Ao longo do século XX, a figura do intelectual tanto no Brasil quanto na América Latina em geral, foi moldando-se através das décadas. O chamado intelectual circulava entre os meios políticos e culturais, produzindo, criando e recriando através do lugar onde considerava estar e suas relações com a sociedade. Entre as décadas de 1920 e 1940, ocorreu um determinado esforço dos meios intelectuais em construir e afirmar uma identidade nacional no nosso país e pela América. A ideia era definir o que seria a cultura nacional, noção que foi fortalecida após 1930, momento em que essa intelectualidade flertou com os movimentos autoritários, muitas vezes apoiando o fortalecimento das funções do Estado e rejeitando a noção de democracia representativa em todo continente, como vemos claramente no Brasil, Argentina, etc. Por mais que se falasse em nação e sociedade, as formas de ação vinham de “cima para baixo”, tendo a elite à frente dos processos e não as camadas mais baixas, a partir de uma visão hierárquica da ordem social.

Os anos de 1950 modificam essa noção, transformando a visão de mundo e as ideias dessa intelectualidade a partir de um processo de modernização iniciado em décadas anteriores e que ganhou maior impulso nesse período, abrangendo diversos países latino-americanos. Povo e nação tornaram-se indissociáveis, pois as massas populares eram a garantia da unidade nacional, tornando essas noções tanto panfletos da intelectualidade quanto de grupos políticos, principalmente os de cunho populista.

A intelectualidade de esquerda começa a ganhar força a partir das décadas de 1950 e 1960. Muitos desses intelectuais acreditavam ter como missão atuar como interpretes desse povo, ajudando-os na tomada de consciência de sua vocação revolucionária. Estava em curso um projeto que visava ao desenvolvimento econômico e à emancipação das classes populares, o que levaria à independência das noções que se envolvessem nesse plano. Os intelectuais de esquerda desse período, de modo geral, sofreram a influência do marxismo e de ideologias vinculadas aos partidos comunistas espalhados pela América Latina. No Brasil, o Partido Comunista Brasileiro auxiliou na construção de uma cultura política e a identidade do grupo. Havia a existência de um lugar que esses intelectuais atribuíram a si e uma necessidade de reconhecimento de seu lugar e importância dentro da sociedade presente neste processo.

Com o fim das ditaduras militares e governos autoritários, juntamente com o processo de redemocratização política em curso em diversas nações latino-americanas, houve uma transformação na posição dos intelectuais na sociedade. Nessa dança das cadeiras, a intelectualidade abandonava uma determina posição de superioridade em relação às demais categorias sociais. Se durante muitos anos as noções diferenciadas da realidade desses países e a heterogeneidade social desses grupos haviam sido deixadas de lado em prol de uma oposição aos regimes autoritários, o retorno a democracia escancarou os limites dessa, até então, união, abrindo as portas para conflitos de identidade.

Foi a partir de fins dos anos de 1970 e na década de 1980, no novo contexto político e social que se apresentou nesses países latino-americanos, que intelectuais renomados e atuantes foram gradativamente perdendo seus espaços na sociedade, dentro da política, dos meios culturais, onde quer que fossem seus meios de atuação. Aos intelectuais atuantes e engajados das décadas anteriores se propunha um novo dilema: a hora era de adaptação, sendo momento de reinventar-se ou sair de cena. As últimas duas décadas do século XX marcaram um período de transição política, econômica e social no Brasil e no mundo, além de mudanças e buscas por novos espaços pela intelectualidade. O colapso dos regimes comunistas na Europa, a crise do marxismo, o início do desgaste de modelos alternativos de esquerda como o caso da China, levaram a intelectualidade nos moldes que eram até então estabelecidos a diminuir sua influência e credibilidade na sociedade, levando a uma crise política no interior desse grupo.

Dentro desse processo de instabilidade ocorreu uma crise de caráter identitário, principalmente pelo surgimento de novos formadores de opinião, com quem essa intelectualidade característica do século XX veio a disputar lugar. Com a perda de espaço para personalidades midiáticas, paulatinamente, os intelectuais foram perdendo seu locus como porta-vozes das questões nacionais, o que os guiou e reforçou uma crise ideológica que pode ser percebida tanto na América Latina como em outros lugares do mundo. As novas vozes começaram a se levantar da mídia, sendo alçadas ao papel de formadores de opinião e tendo presença marcante nos meios de comunicação. Com isso, aquela intelectualidade identificada com os modelos que vinham desde a década de 1920 ia gradativamente perdendo seus espaços anteriormente conquistados.

As arenas que nas décadas do século XX foram ocupadas por uma determinada intelectualidade através dos livros, passando pelos palcos teatrais e chegando às telas de tevê durante a segunda metade do século XX com o fim do milênio e entrada no século XXI tiveram suas definições foram atualizadas. Hoje, onde a internet com seus canais de vídeos, blogs, vlogs e etc. – através de computadores, tablets e smartphones – ocupa um acentuado papel junto a outras mídias como televisão, cinema e rádio, houve uma ampliação dos ambientes para ver, ouvir e falar. Personagens ligadas à televisão, ao meio musical, à internet, e atividades intelectuais foram ganhando espaço dentro dessas diferentes mídias. Num mundo cada vez mais tecnológico, no qual os livros feitos de “papel e tinta” disputam atenção com os hipertextoscom gadgets, algumas personagens como os astros de futebol mantêm sua importância, juntamente com as novas personalidades. Ocorre também uma tendência de pessoas cada vez mais jovens exporem suas opiniões e ideias para um público igualmente jovem. Esses chamados influenciadores por vezes tornaram-se vozes das novas gerações, que estão cada vez mais conectadas e influenciadas pelas plataformas digitais. Dos ídolos adolescentes a filósofos reconhecidos, esses grupos foram ocupando locais de diálogo que décadas atrás eram vinculados a uma intelectualidade que tinha bases nas definições feitas ainda no século XX.

Esta edição teve como objetivo estimular uma reflexão e debate sobre a intelectualidade através das conexões entre história, política e cultura, essa vista como uma convergência de métodos e interesses diversos, relacionada às atividades culturais e as atividades sociais, estabelecendo uma conexão estreita entre cultura e política.

Esses intelectuais eram, em geral, ideólogos de um projeto que primava pelo desenvolvimento econômico, pela emancipação das classes populares e pela independência nacional. Havia a crença de serem conscientizadores do povo e uma ideia de que a proximidade da revolução, tanto social, política, ou socialista, era latente, movimento esse sentido em diversos países latino-americanos.

As relações entre cultura e política e as discussões sobre o papel da intelectualidade – seus ideais, transformações e permanências – foram os eixos centrais das discussões aqui apresentadas. Os debates sobre a noção de cultura e intelectualidade, oferecendo um panorama geral sobre a cultura latino-americana na primeira metade do século XX; a cultura em tempos de exceção, o papel dos intelectuais – tanto os de direita, quanto os de esquerda – e as formas de engajamento; argumentações acerca da cultura, do papel dos intelectuais e dos seus meios de atuação à partir da redemocratização no Brasil e em outros países da América Latina.

Três artigos articulam as questões levantadas seguindo a temática do dossiê. O primeiro – Literatura e(m) movimento (negro): debates e embates sobre cultura, política e organização entre a intelectualidade negra brasileira (1978-2000) –, de autoria de Bárbara Araújo Machado, analisa os debates e as estratégias políticas, culturais e de organização da intelectualidade – a partir da concepção de intelectuais orgânicos de Antonio Gramsci – dentro do movimento negro contemporâneo. Nele está apontado as mudanças ocorridas dos anos de 1970 até o início do século XXI. Rachel de Queiroz e seu engajamento político dentro de jornais e revistas durante a primeira metade dos anos de 1960, das eleições de Jânio Quadros ao início do governo militar, é o tema do segundo texto – “Jornalismo de combate” nas páginas da revista O Cruzeiro: o engajamento político de Rachel de Queiroz (1960-1964) –, de autoria de Fernanda Mendes. Amanda Bastos da Silva é a autora do terceiro artigo do dossiê – Euclides da Cunha, Manoel Bonfim e a complexidade do século XX. Seu trabalho está centrado nas relações entre intelectualidade, a partir das figuras de Euclides da Cunha e Manoel Bonfim, suas concepções e ideias de Brasil e suas influências na cultura nacional, com foco no cinema, mais especificamente nos filmes O Pagador de Promessas e Deus e o Diabo na Terra do Sol.

Na seção livre, temos o artigo de Paula de Souza Valle Justen – A palavra escrita do rei: chancelaria e poder régio através de uma carta plomada –, que refere-se à análise de um diploma régio emitido por Afonso X, por seu caráter excepcional, além de suas condições e seu lugar de produção, pensando sobre a sua função dentro no contexto da segunda metade do século XIII. Bárbara Benevides, em seu texto Implantação e Normatização da Pena Última no Brasil Colonial (1530-1652), reflete sobre a normatização e estabelecimento da pena de morte no Brasil durante os anos de 1530 e 1652. Limites das Administrações Ibéricas: e Conflitos Sociais no Rio da Prata de Inícios do Século XVIII: Um Estudo de Caso, de Matheus de Oliveira Vieira, se debruça sobre questões concernentes à administração portuguesa e o escoamento de produtos em região de fronteira na Colônia de Sacramento.

Daniel Schneider Bastos trata das polêmicas dentro dos grupos liberais e conservadores em torno da utilização e exploração do trabalho infantil dentro das indústrias da Inglaterra, além da introdução de leis trabalhistas que também beneficiassem a burguesia industrial, durante as décadas de 1830 e 1840 no texto A Questão dos Pequenos Operários: Liberalismo, Conservadorismo e Trabalho Infantil Durante a Fase Final da Revolução Industrial na Inglaterra. O artigo de Fabiane Cristina de Freitas Assaf Bastos – A Crise do Capitalismo e o Mundo Imperialista (1870-1920) – estabelece um debate sobre as relações entre o Imperialismo e as modificações em relação a globalização do mundo a partir da crise do Capitalismo inglês a partir de 1870, além da transição de um antigo para um moderno capitalismo. Finalizando os artigos desta edição, temos o texto de Pedro Sousa da Silva – A Trajetória da Revista Municipal de Engenharia: Planejamento Urbano e Influência do Urbanismo Norte-Americano no Rio de Janeiro (1930-1945) –, que aborda as mudanças dentro dos debates sobre o planejamento urbanístico durante as décadas de 1930 e 1940 através da Revista Municipal de Engenharia, que foram analisados entre os anos de 1932 e 1945.

Fechando esta edição, temos uma entrevista com Paulo César Gomes Bezerra, doutor pelo Programa de Pós-Graduação em História Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro e editor / criador do site História da Ditadura2 , que produz e divulga conteúdos sobre a história recente de nosso país. Nela, apresentam-se aspectos de suas pesquisas recentes, focadas nas relações diplomáticas entre Brasil e França durante as décadas de 1960 e 1970, além de reflexões sobre a produção de conteúdo historiográfico em mídias digitais e a chamada História Pública.

Boa Leitura!

Nota

1. http: / / historiadaditadura.com.br / sobre /

Aline Monteiro de C. Silva – Doutora em História pela Universidade Federal Fluminense. E-mail: alinemsc@gmail.com


SILVA, Aline Monteiro de C. Apresentação. Revista Cantareira, Niterói- RJ, n.26, jan / jun, 2017. Acessar publicação original [DR]

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Cultura e Poder | Em Perspectiva | 2017

As práticas culturais do social se constituem nas relações de poder, no sentido que a cultura é construída em um jogo de tensão a partir do modo de viver e de sentir dos sujeitos situados em suas múltiplas temporalidade e espacialidades.

Neste número, a revista Em Perspectiva reuniu trabalhos que têm como foco as experiências dos sujeitos como campo de conflito, marcadas pelas inúmeras táticas e estratégias de poder, enfatizando o desenvolvimento de reflexões acerca da escrita, da oralidade e da imagem. Leia Mais

Religião, migração e cultura. Imagens da fé / Domínios da Imagem / 2016

Com o termo bastante genérico de “religião”, costuma-se circunscrever um âmbito particular da vida social, feito de crenças míticas, práticas rituais, comunidades de fé e, sobretudo, da experiência do sagrado. Os cientistas humanos, definindo um “fenómeno religioso” como constituído pelos epifenômenos sobreditos, colocaram as bases para uma análise comparada de crenças e práticas culturalmente heterogêneas e geograficamente distantes, identificando, deste modo, um tipo cultural universalmente presente.

Frequentemente, nas descrições dos etnógrafos, a vida religiosa tem sido envelopada pelo ordinário, sendo associada a visões cosmológicas, instituições políticas, categorias identitárias e posturas éticas estáticas ou, pelo menos, homeostáticas. A primeira vista, efetivamente, o diálogo iconográfico aqui proposto, entre religião e mobilidade humana, poderia parecer anómalo, dirigido ao estudo de uma situação extraordinária: a vivência, por exemplo, dos migrantes, dominada pela experiência desconcertante da multiculturalidade. Os protagonistas da maioria dos casos apresentados neste dossiê se encontraram na situação desconfortável de aplicar os próprios “saberes” religiosos a novos contextos; frequentemente, pouco permeados por eles. Em outros casos, o sentido desta relação se inverterá e encontraremos convertidos que tentarão aplicar novos “saberes” religiosos aos seus antigos contextos.

Entretanto – como poderemos apreciar por meio de todos esses trabalhos – é justamente nos contextos de mobilidade e mudança que se revelam com mais claridade as implicações socioculturais das práticas religiosas. Isto porque a relação dos migrantes e dos convertidos com a religião não é a de crentes com uma cosmovisão imutável, etnicamente conotada, nem com uma ordem de preceitos morais, emanação natural das categorias sociais que regem um grupo determinado. A relação destes crentes errantes, fisicamente ou culturalmente, é a de animais simbólicos penetrando situações carentes de sentido com um modo particular de “pensar”, o mitológico.

Por meio do discurso mítico, os crentes, todos, produzem relações de sentido entre os acontecimentos contingentes que vivem e um universo significante que tende sempre a transcendê-los. A história mítica não informa por si mesma, não contém uma verdade absoluta, encapsulada nela; ela adquire valor, ante os olhos dos crentes, somente se demostra-se apta a permear sua história, transformando-a. Os significados extraídos das expressões religiosas, como as imagens aqui analisadas, não são dados, mas constituem o produto de uma síntese simbólica que define, contextualmente, história humana e história mítica – duas realidades que se definem reciprocamente, fusionando-se em um único objeto simbólico, denominado “mito”. O mito faz sentido enquanto proporciona sentido a uma realidade concreta, e vice-versa.

Esta visão simbólica do mito, presente em todos os textos que compõem o dossiê, leva-nos a uma concepção dinâmica e dialética de uma vida religiosa que, analiticamente, não pode ser nunca desvinculada de sua referência prática e histórica. O crente não sofre passivamente o mito, mas interage com ele e com suas representações materiais, utilizando-o como uma articulação simbólica por meio da qual ligar, semioticamente, a sua contingência a um determinado universo significante. O fenômeno religioso, portanto, adquire relevância analítica, além de significância cosmológica, quando apreciado dentro destes processos culturais de construção social da realidade. Neste sentido, o objeto de estudo religioso se oferece tanto a uma abordagem antropológica, como à historiográfica – especialmente, a um enfoque que integre ferramentas, questões e sensibilidades de ambas estas áreas do conhecimento. Não é por acaso que história e antropologia representam as vozes dominantes deste dossiê interdisciplinar.

As diferentes imagens religiosas analisadas no presente dossiê têm algo em comum: todas elas materializam aquela espécie de istmo cognitivo que, segundo Lewis (2008, p. 56), representaria o mito, com a sua capacidade de conectar a península do pensamento humano (e das suas verdades abstratas) ao vasto continente que habita (por meio de uma experiência direta, sempre ligada ao particular). Se o mito dialoga sempre com situações particulares e vividas diretamente, incorporando-as nas próprias formas simbólicas (SAHLINS, 1990), parece redutivo considerar os contextos de mobilidade como anómalos, cenários de experiências religiosas extraordinárias. Pelo contrário, os textos deste dossiê nos mostram que a vida religiosa dos migrantes e dos convertidos pode representar também um observatório privilegiado para estudar e entender a experiência religiosa ordinária. A prática religiosa é sempre um ato parcialmente criativo, representando uma imparável atividade imaginativa, dirigida à construção de imagens sensatas de uma realidade intrinsecamente instável e mutável.

Estas complexas imagens cosmológicas, sempre in fieri, são frequentemente contidas em, veiculadas por, e manipuladas através de imagens materiais. Refiro-me, em particular, às representações vivificadas das entidades e forças míticas, expressões de uma linguagem metafórica e analógica, isto é, simbólica. As transcendências dos fatos religiosos, as contingências dos fatos humanos e as imagens míticas em que primeiras e segundas encontram-se e sintetizam-se constituem os três pilares deste dossiê; o “trípode délfico” do qual os filhos do homem que não têm “onde reclinar a cabeça” (Lucas, 9,58) extraem suas próprias respostas. A indissociabilidade destes três pilares da vida religiosa atravessa todos os textos que compõem este dossiê.

No texto do historiador Paulo Augusto Tamanini, este trípode assume as formas hieráticas, preciosamente estilizadas, das Nossas Senhoras da iconografia bizantina da comunidade ucraniana de Curitiba. Nem sequer a tradição milenar e os cânones antinaturalistas que dominam esta expressividade religiosa podem encurralar os crentes no domínio da abstração sobrenatural, pois inclusive as suas formas “desmaterializadas” revelam-se sensíveis ao ambiente que as circunda. Tamanini descreve o ícone bizantino dos curitibanos como uma “obra pictórica que ainda está em andamento”. No entanto, de certo modo, esta nunca chega a cumprimento, como pode revelar uma análise historiográfica desta arte imagética, cujas formas, sendo reproduzidas, acabam integrando elementos novos, próprios do lugar, lato sensu, em que o ícone está inserido.

O processo de produção destas imagens representa, para Tamanini, o momento crucial desta maneira expressiva religiosa. As orações, os jejuns, os momentos de contemplação que precedem a feitura de um ícone levam os seus artífices a um novo encontro, localizado, com a divindade e com as suas verdades. A encarnação de Deus no ventre de Maria, representada no ícone da Virgem Orante, não se limita a celebrar o tempo mítico em que o humano e o divino se uniram, senão que convida artífices e devotos da imagem a viver novamente esta união, partindo da própria humanidade e da própria história. Neste sentido, é bastante significativo que em outro ícone aparece a imagem de Maria Odigitura, isto é, daquela que mostra o caminho. Do mesmo modo que a catedral curitubense de São Demétrio dialoga com os novos elementos do panorama urbano que a circunda, os ícones que esta contém abrem-se necessariamente às interpretações e às manipulações físicas e simbólicas de uma humanidade em movimento.

Também no artigo de Daniel Luciano Gevehr e Aline Nandi, as imagens sacras – ocultadas, no texto, pelas quatro pequenas casinhas de santos da comunidade ítalo-riograndense da Boa Esperança que as guardam – mediam as relações entre cosmologia religiosa e espaço físico. Foi graças à instalação, neles, de estátuas de santos católicos, que os sobreditos capitéis – construídos entre 1945 e 1960 pela chamada “segunda geração” – tornaram-se centros sagrados de refundação cosmológica da realidade. São centros periféricos, de tipo familiar, que, dialogando entre eles e com o centro principal da igreja matriz (dedicada à, também italiana, Nossa Senhora de Caravaggio), constituíam coordenadas geográficas importantes, através das quais mapear geograficamente e culturalmente espaços ainda novos e enigmáticos. Por meio destes oratórios, localizados nas margens das estradas da colônia, aqueles católicos italianos estabeleciam uma relação dotada de sentido com um mundo e uma vida novos.

Na imagem do santo familiar, os Boniatti, os Scalcon, os Taufer, os Cambruzzi e os outros moradores de aquelas localidades rurais encontravam um caminho para religar a região existencial das próprias situações críticas ao plano transcendente das soluções míticas. Esta ligação era ativada por meio das promessas, com os seus pedidos e os seus pagamentos. Gevehr e Nandi nos informam que na atualidade estes lugares da devoção desempenham uma função um pouco diferente, tendo sido ressignificados pelas gerações posteriores. Parece, efetivamente, que os capitéis e os seus santos moradores afastaram-se dos grandes e pequenos casos do dia a dia, para tornar-se instrumentos de uma memória coletiva que é cultivada e atualizada declinando, conjuntamente, identidade religiosa e identidade étnico-nacional. Os capitéis da Boa Esperança estão transformando-se: de lugares de oposição mitológica às doenças, às calamidades naturais e a toda adversidade, a lugar de reafirmação de uma identidade, a católicoitaliana, que se redescobre a medida em que se afasta de si mesma – passando do domínio dos atos naturais e inconscientes da cultura viva ao das tradições transmitidas e comemoradas do folclore.

As imagens católicas de um coletivo migrante estão no centro também da contribuição de Sidney Antônio da Silva, antropólogo que estuda há anos a migração boliviana em São Paulo. No texto de Silva, analogamente ao visto nos primeiros dois artigos, as imagens católicas deste coletivo nacional destacam-se pela sua capacidade de representar um centro de agregação étnico, embora transnacional, dentro de um espaço estranho. De fato, nos lugares paulistanos aonde chegaram a Virgem de Copacabana e a Virgem de Urkupiña, além de aparecerem pratos nacionais, produtos típicos daquela região andina e objetos e costumes étnicos, afirmou-se um modo particular de criar sentimentos comunitários e de tecer redes de solidariedade. Silva nos mostra como a imagem sagrada boliviana, por meio da instituição cerimonial do Presterío e do dobro principio de reciprocidade que a rege – o, vertical, que governa as relações entre devoto e divindade e o, horizontal, que sustenta a comunidade de devotos –, continua representando, em terras brasileiras, um importante centro de construção social da realidade.

A festa, em particular, representaria o “fato social total” (MAUSS, 1974) que, por meio daquele poderoso símbolo identitário que é a Virgem regional, agrega, aglutina, organiza e recompõe as humanidades desfiadas e fragmentadas pela contingência migratória. Aqui também, a Virgem não constitui um elemento étnico inerte. Pelo contrário, como simboliza bem o costume para-litúrgico dos cargamentos, ela – ao igual que o Ekeko, seu concorrente/colega “pagão”, na festa de alasitas – carrega-se periodicamente dos novos desejos dos seus devotos, socializando-os e significando-os. Silva conta-nos como foi, justamente, a aspiração da senhora Juanita Trigo de comprar uma casa o que, no final dos anos ’80 do século passado, deu início ao ciclo de festas devocionais na comunidade boliviana de São Paulo.

O antropólogo italiano Riccardo Cruzzolin, em seu artigo, partindo da ideia de iconografia religiosa como espaço cultural e político de imaginação da realidade, analisa o culto que o coletivo peruano de Perúgia (Itália) rende ao limenho Señor de los Milagros. Uma das caraterísticas principais deste espaço é, segundo Cruzzolin, remeter a um imaginário que não é nunca fechado, nem invariável, e que, sobretudo, não leva jamais a visões unânimes da realidade. Pelo contrário, a imagem religiosa desperta e veicula percursos imaginativos diferentes e, frequentemente, discordantes. Isto porque a imagem, embora aspire a evocar mitos atemporais, princípios universais e verdades transcendentes, não se libera nunca dos referentes práticos e imanentes dos que a ela se dirigem. A imaginação religiosa, a despeito da sua natureza social, é sempre parcialmente faciosa. Consequentemente, a imagem religiosa, com o seu poder imagético politicamente legitimador, representa sempre um espaço em certa medida contendido. A imagem, pintada no século XVII, deste Cristo crucificado pode ser sempre cuidada, adornada e enriquecida de objetos que a tornam mais preciosa; e, certamente, preenchida pelas instâncias particulares dos autores destes gestos devocionais.

A imagem do Señor de los Milagros, depois de ter resistido aos terríveis terremotos que sacudiram Lima, parece aguentar também as turbulências da vicissitude migratória; representando para os peruanos perugini o mesmo que representou para os seus primeiros devotos ameríndios e africanos: uma poderosa forma simbólica por meio da qual construir imagens coerentes da realidade vivida, com todas as suas contradições. A imagem é usada pelos seus cargadores emigrados para reconstruir aquela presenza demartiniana (DE MARTINO, 1958) – o Ser-aí-no-mundo heideggeriano – que, embora seja expressada sempre culturalmente, radica-se nas questões existenciais mais profundas do indivíduo; sendo, por isto, constantemente posta em risco pelas incertezas das situações contingentes vividas, como as produzidas pela experiência migratória.

O texto da antropóloga Joana Bahia põe luz a outras duas questões importantes, inerentes ao fenômeno religioso: o seu caráter intrinsecamente transnacional e a inevitável mitificação – entendida como aquisição de qualidades míticas – daqueles seres humanos, normalmente sacerdotes (lato sensu), que se aproximam muito ao mito e à sua essência sagrada, tornando-se eles mesmos efígies do universo religioso. Com respeito à primeira questão, Bahia analisa a expansão da umbanda e do candomblé em terras alemãs, austríacas e suíças. Em particular, o foco do seu estudo é representado pela relação extremamente dinâmica e fluida que, neste cenário (des)localizado das crenças afro-brasileiras, dá-se entre campo étnico e campo religioso. Em todos os terreiros analisados por Bahia na Suíça e na Alemanha, emerge a grande capacidade das religiões afro-brasileiras de dialogar, simultaneamente, com diferentes contextos étnicos e culturais, incorporando-os e deixando-se incorporar por eles.

Tais diálogos e outras relações entre estados, planos e universos diferentes são interpretados, principalmente, pelos pais e as mães de santo ativos em terras alemãs. Por meio de uma leitura mítica das respetivas trajetórias migratórias, existenciais e espirituais, eles tornaram-se formas vivas de um universo significante e, consequentemente, como nos diz Bahia, viraram “construtores de histórias e ideologias sobre o grupo”. As narrativas autobiográficas da “suíça” Mãe Habiba, e dos berlinenses Mãe Dalva e Pai Murah confundem-se continuamente com as histórias míticas dos terreiros que dirigem. Em um tipo de tradição religiosa fortemente ritualista e que funciona pelo princípio da incorporação – que vai bem além do transe mediúnico –, estes personagens desempenham um importante papel simbólico, veiculando com o próprio corpo processos de construção mítica da realidade. Eles transformam-se, de facto, em imagens religiosas vivas, capazes de evocar imaginários coletivos e de impulsar processos imagéticos.

A possibilidade do ser humano encarnar o mito é tão concreta no artigo do historiador Alexandre Karsburg, que se transforma no principal obstáculo da sua pesquisa historiográfica. Karsburg desloca-se de um lugar para outro do planalto meridional do Brasil, para seguir o rastro do venerado monge João Maria. Em particular, ele está interessado em desvendar as pessoas reais que, entre meados do século XIX e o início do século XX, foram identificadas com ele; a começar do primeiro destes estranhos personagens, o italiano João Maria de Agostini. Seguindo diferentes percursos historiográficos, alguns dos quais pouco frequentados, Karsburg reconstrói com certa precisão o itinerário deste primeiro monge andarilho. Embora a vicissitude analisada neste texto comece com um movimento “migratório”, a relação aqui descrita entre religião e mobilidade é atípica e inversa à que costumamos encontrar: o deslocamento deste “monge” não constitui uma incômoda condição a ser resolvida miticamente, mas, pelo contrário, um caminho místico regenerador, por meio do qual sair dos pântanos mortíferos da vida mundana.

Curiosamente, o “desaparecimento”, em 1852, do homem João Maria coincide com a afirmação do seu mito, interpretado por uma quantidade indefinida de andarilhos penitentes percorrendo o extenso território sulino desde 1855. O texto de Karsburg ajuda-nos a entender que quando um homem aproxima-se demais do mito, tentando permanecer dentro do seu âmbito sagrado e procurando viver conforme seu modelo, ele mesmo torna-se uma imagem vivente da realidade mítica. A trajetória brasileira (documentada) de Giovanni Maria de Agostini é relativamente curta, durando menos de um decênio. Contudo, desde o começo, pelo seu estilo de vida hierático e solitário, inspirado na figura de Santo Antão Abade, o Anacoreta, ele chamou a atenção dos que cruzavam o seu misterioso caminho, excitando a imaginação deles e transformando-se em um modelo a seguir. Na medida em que lhe eram reconhecidos atributos míticos, construía-se um lugar da imaginação mitológica, ao passo que os confins espaciais, temporais e até mesmo somáticos da sua trajetória existencial ofuscavam-se e dilatavam-se; para receber e englobar, como um rio com os seus afluentes, as peregrinações de dezenas de outros “monges” – como João Maria de Jesus e José Maria de Santo Agostinho (que participou da Guerra do Contestado) – que procuraram imitarlhe a vida penitente e de rejeição dos valores mundanos. Também estes últimos, fundindo-se com o primeiro e com o imaginário por este inaugurado, de imitadores viraram imitados, imagens vivas de um “pensamento”, o mítico, que, como sabemos, é homeopático e contaminante por definição.

Também no texto da antropóloga Maria Raquel da Cruz Duran, a questão da mobilidade na experiência religiosa não está diretamente relacionada ao fenômeno migratório, mas a um processo de evangelização, pelo qual estão passando os membros de um povo indígena do Mato Grosso do Sul. Quando, nos anos ’60 do século passado, um missionário evangélico alemão chegou a Alves de Barros, “capital” dos Kadiwéu, encontrou um povo cuja vida religiosa fundamentava-se em uma mistura de pajelança e catolicismo popular, vivido essencialmente por meio do culto às imagens. A autora analisa, por meio de um emblemático depoimento, como a entrada exitosa dos protestantes na vida deste povo mudou a percepção dos seus membros para com as imagens sacras.

Duran explica-nos como a devoção da sua interlocutora baseava-se na percepção de uma coincidência ontológica entre uma entidade divina, real e um sentimento piedoso, radicado no mais fundo do seu ser. Tal devota teria tomado consciência dessa duplicidade justamente quando experimentou a sua ruptura: “descobrindo” que aquela suposta entidade real era um pedaço de madeira esculpido por homens e que o próprio sentimento religioso era sustentado por uma ilusão. Este “descobrimento”, evidentemente, foi propiciado pelo discurso iconoclasta protestante e pela sua desmitificação das representações iconográficas como lugar de encontro com a divindade. Contudo, paradoxalmente, a rejeição das imagens católicas, no depoimento recolhido pela autora, corresponde também a uma demonização das mesmas, isto é, à sua revitalização, embora em chave demoníaca.

O último texto representa uma contribuição minha, de caráter antropológico, dirigida à compreensão da natureza do poder sedutor que as imagens religiosas exercem sobre os seus devotos. Especificamente, interesso-me em compreender qual é a força que, cada fim de semana, leva dezenas de equatorianos a deslocar-se de diferentes distritos de Nova Iorque e, inclusive, de outros estados contíguos, para a igreja de Saint Veronica, no Lower Manhattan. O fato de que lá é guardada uma imagem da Virgen del Quinche – muito venerada no norte do pais andino – poderia sugerir uma resposta que aponte para um processo de “retribalização” em terras estrangeiras. Contudo, a opção da compreensão daquela imagem como mero símbolo étnico, ao qual os equatorianos locais acorreriam para não esquecer quem são, representa um atalho que, apesar de ser extremamente cómodo e atraente, afasta-nos de um entendimento mais profundo do fenômeno observado.

Certamente, os quitenhos de Nova Iorque que se dirigem a Saint Veronica fazem-no porque vivem um sentimento de proximidade com a Nossa Senhora lá representada. Entretanto, essa proximidade não é de um tipo transcendente ou essencial – como normalmente é entendida a étnica –, mas apresenta um forte caráter contextual e experiencial. Eles consideram e veneram aquela Virgen porque por meio dela veem – no sentido cognitivo do termo – a própria história e a própria vida. Em particular, ao longo deste texto, tento demostrar como a capacidade sedutora desta imagem deriva do seu grande poder simbólico. Este poder, por sua vez, repousa sobre a síntese de duas propriedades fundamentais, que os devotos reconhecem nela: a de representar a história mítica e as categorias culturais que esta veicula; a de fazer novamente presente, nas próprias histórias, a entidade mítica e o universo de sentido ao qual ela dá acesso. Os equatorianos que, todos os domingos, atravessam Nova Iorque para alcançar Saint Veronica e o tesouro devocional que esta contém, não o fazem porque lá encontram representações culturais e estruturas sociais determinadas a priori pelo gênio étnico, mas porque lá encontram as ferramentas simbólicas para construí-las dia após dia.

Além dos textos que compõem o dossiê, este número conta com o artigo da sociológa Iael de Souza que, a partir da análise do filme “Entre les murs” (do diretor Laurent Cantet, de 2008) como recurso mimético, busca compreender os problemas educacionais enquanto manifestações da totalidade das relações sociais e de produção capitalista. Assim, para Souza, “entre os muros” de uma escola pública parisiense pode ir além dos muros, pois é reflexo estético dos problemas sociais enfrentados pela sociedade atual.

Por fim, temos o artigo do historiador Gustavo Silva de Moura que discute as relações entre a juventude e a sociedade, analisando como se dá sua composição social e cultural na “cena” Rock/Metal de Parnaíba-Piauí. Dessa forma, Moura aborda a importância das mídias (rádio, televisão, jornais, revistas), na propagação do Rock e Heavy Metal na cidade de Parnaíba-PI, nas décadas de 1980 e 1990, considerando a visão da sociedade sobre essa nova prática que estava em ascensão no Brasil e em várias localidades do Nordeste.

Referências

A Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Editora Paulus, 2003.

DE MARTINO, Ernesto. Morte e pianto rituale nel mondo antico: dal lamento pagano al pianto di Maria. Torino: Boringhieri, 1958.

LEWIS, Clive Staples. Dios en banquillo. Madrid: Rialp, 2008.

MAUSS, Marcel. Sociologia e Antropologia. V. I e II. São Paulo: EPU-EDUSP, 1974.

SAHLINS, Marshall. Ilhas de História. Rio de Janeiro: Zahar, 1990.

Francesco Romizi


ROMIZI, Francesco. Apresentação. Domínios da Imagem, Londrina-  PR, v.10, n.18, jan/jul, 2016. Acessar publicação original [DR]

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“Cultura, Modernidade, Cidades” / Tempos históricos / 2016

Em “Marcovaldo ou as estações na cidade”, Ítalo Calvino (1997) [3] convidava os leitores a entrar no universo cômico e dolorido de Marcovaldo, sujeito que experenciava uma estranha relação com a cidade: “semáforos”, “buzinas”, “vitrines”, “letreiros luminosos” ou “cartazes” não detinham a sua atenção; mas uma “folha amarelando num ramo”, “uma pena que se deixasse prender numa telha”, o “buraco de cupim numa mesa” ou a “casca de figo se desfazendo na calçada” jamais escapavam ao seu olhar e crivo.

Por meio desta forma peculiar de apreender o “real”, Marcovaldo buscava “decifrar” a cidade (e até “encontrar-se”) em meio às transformações do mundo moderno. Era como se, para conhecer melhor e com maior complexidade, as múltiplas experiências da cidade, fosse preciso distanciar-se delas, a ponto de, no limite, deixar entrever (revelar?) a “artificialidade”, as “normatizações”, as “convenções”, as “tensões”, os “conflitos” e o “caos” inerentes a vida urbana…

Paradoxalmente, nada mais “familiar” aos olhos de Marcovaldo do que a necessidade de experenciar a cidade ao avesso (o amor pela natureza) ou, como diria Walter Benjamin – na senda do materialismo dialético de Marx – por meio do “estranhamento”, o que, neste caso, colocaria aos sujeitos modernos o objetivo de “varrer a história a contrapelo”.

Este foi, em grande medida, o intento que moveu os organizadores do dossiê e os autores dos artigos abaixo apresentados.

Em “A crônica urbana de São Paulo pela luneta invertida do historiador (1910- 1922)” – singela homenagem ao historiador Nicolau Sevcenko (1952-2014) – Elias Thomé Saliba convida o leitor a adentrar ao universo irreverente e humorístico de um conjunto de cronistas paulistas (Juó Bananére, Iago Joé, Silvio Floreal, Galeão Coutinho, dentre outros) que, por diferentes perspectivas, procuraram representar o processo histórico de urbanização na capital paulista durante a Primeira República. Tratam-se, segundo Saliba, de registros históricos pouco conhecidos e de grande valia para os estudos de cultura urbana, posto que ofuscados pela “metropolização” de São Paulo e a hegemonia do movimento modernista de 1922.

Significativo também para as reflexões sobre cultura, modernidade e experiências urbanas é o tema da medicina e da saúde pública, com destaque para uma visada específica: o incipiente processo de “medicalização” social na cidade entre o último quartel do século XIX e a primeira metade do século XX. É esta a proposta central do artigo “Medicina casera, remedios y curanderos en los inicios de la medicalización de la ciudad moderna. Buenos Aires, 1870-1940”, de Diego Armus, que, ao focalizar a capital argentina, analisa as contradições e os impasses da ciência médica e seus agentes oficiais diante da presença de formas híbridas de medicalização, representadas nos jornais da época pela ação de “curandeiros” e “charlatães”.

De volta ao território brasileiro, mas igualmente preocupada em debruçar-se sobre as interfaces entre cidade, modernidade, modernização e saúde pública, temos o artigo “Santos – porto-cidade: modernização, saneamento e viagem”, de Maria Izilda Santos de Matos. A historiadora busca analisar as transformações e tensões urbanas vividas em Santos – as epidemias e a reforma do porto, as relações entre saneamento e modernização, os projetos urbanísticos – tendo por eixo problematizador as narrativas sobre a cidade existentes nos relatos deixados por viajantes de diferentes nacionalidades que estiveram na cidade portuária paulista, entre a segunda metade do século XIX e as décadas iniciais do século XX, de modo a compreender, de acordo com a autora, os “olhares” e as “representações” sobre a cidade de Santos.

Ainda nos domínios dos projetos de modernização urbana em cidades-capitais brasileiras, temos o artigo de Fabiano Quadros Rückert intitulado “Porto Alegre e o problema das “materias fecaes”: o serviço de asseio público e a construção da primeira rede de esgoto na capital do Rio Grande do Sul (1879-1912)”. O objetivo do autor é o de explorar os projetos de saneamento e salubridade urbana na capital sul rio-grandense levados a cabo pelo poder público municipal – com especial atenção para os serviços de coleta e descarte dos materiais fecais – por meio de dois “marcos” de intervenção pelas autoridades públicas (prefeitos, vereadores, médicos, engenheiros): o serviço de Asseio Público, em 1879, e a construção da primeira rede de esgoto, em 1912.

No Sul do país, nos tempos das charqueadas, além dos projetos de modernização e saneamento um outro estudo procurou focalizar as transformações sociais e urbanas por intermédio da (re)produção das riquezas numa localidade específica durante o Brasil Imperial: é o caso do artigo ““Entre ricos e pobres””: desigualdade econômica, diversidade ocupacional e estratificação social no Brasil oitocentista: uma análise da cidade de Pelotas-RS (1850-1890)”, de Jonas Moreira Vargas. Como o próprio autor alude, tomando Pelotas como eixo norteador de seu texto, ele procura deslindar a diversidade profissional e a estrutura social de uma cidade (e uma população) que se urbanizava, enquanto mote de análise de um processo articulado de concentração de riquezas e de desigualdades sócio-econômicas.

A então capital do Império, Rio de Janeiro, experienciou processo histórico de modernização urbana que incidiu não apenas sobre os espaços públicos e privados, como, notadamente, nos hábitos, comportamentos e sujeitos considerados “indesejados” que perambulavam por suas ruas. Este último “alvo” é o mote principal do artigo de Monique de Silveira Gonçalves, em “Pelas ruas da cidade: mendicidade, vadiagem e loucura na Corte Imperial (1850-1889)”, que analisa uma das faces perversas deste processo: as práticas violentas e excludentes do Estado e da opinião pública (jornais) de reprimir e ocultar “mendigos”, “loucos” e “vadios” das ruas da cidade em defesa de uma “ordem urbana” ancorada em discursos médicos, com o objetivo de afastá-los da cena pública.

Os projetos de modernização da cidade do Rio de Janeiro nos tempos do Império envolveram também estratégias de regulação e controle do poder público sobre o comércio local. Um dos “problemas” apontados pelas autoridades municipais era a presença das negras quitandeiras, mulheres escravas ou livres, que vendiam gêneros alimentícios pelas áreas públicas do Rio. Tal “problema”, entretanto, desdobrou-se em disputas e conflitos litigiosos pela ocupação destas áreas entre o poder público e a comunidade negra. Esse é o objetivo do artigo de Fernando Vieira de Freitas, “As negras quitandeiras no Rio de Janeiro do século XIX pré-republicano: modernização urbana e conflito em torno do pequeno comércio de rua”, ao abarcar as relações entre modernidade e conflitos na capital imperial.

Com o enfoque na história de africanos e afrodescendentes no Brasil e, em particular, em Curitiba, Paraná, a contar do final da abolição da escravatura, o artigo de Joseli Maria Nunes Mendonça, “Escravidão, africanos e afrodescendentes na “cidade mais europeia do Brasil”: identidade, memória e história pública”, tem por objetivo central desconstruir narrativas sobre a identidade e a memória regional que ocultaram a presença e a participação da população africana / afro-brasileira na produção de outras histórias que também guardam sentido de pertencimento à história regional do Paraná. Para sustentar seu objeto de análise, a autora apropria-se das contribuições teóricas e metodológicas da vertente historiográfica denominada “História Pública”, visando apresentar uma concepção mais democrática de identidade e memória.

Para finalizar, Antônio Gilberto Ramos Nogueira e André Aguiar Nogueira em “Patrimônio cultural do litoral de Fortaleza: os desafios da pesquisa histórica” promovem reflexões metodológicas e discutem experiências sobre tradições e sociabilidades urbanas constituintes do patrimônio cultural de Fortaleza / CE. Partindo do uso e análise de entrevistas, os autores buscam inventariar “práticas culturais e representações sociais”, bem como “lugares”, “memórias” e “personagens” identificados ao processo de modernização do litoral, que fazem parte da história e da memória do lugar – caso das “comunidades praianas” e dos “trabalhadores do mar”, formados por pescadores, portuários, meretrizes, operários, surfistas, pequenos comerciantes e trabalhadores informais.

Entendendo que o eixo temático deste dossiê atravessa, por diferentes caminhos e perspectivas, os textos aqui apresentados, e que neles podemos reconhecer um conjunto de estudos que procuram “varrer a contrapelo” as diversas experiências de modernidade urbana para apreendê-las e interpretá-las com outros olhos – como os de Marcovaldo, que “estranho à cidade, é o cidadão por excelência” – é que convidamos os leitores a dividir conosco a “estranha familiaridade” de viver a (e na) cidade.

Uma ótima leitura!

Notas

3. A primeira edição italiana da obra é de 1963

Humberto Perinelli Neto – Docente do IBILCE / Unesp / São José do Rio Preto e do Programa Multidisciplinar Interunidades de Pós-Graduação Strictu Sensu “Ensino e Processos Formativos” (UNESP São José do Rio Preto / Ilha Solteira e Jaboticabal). E-mail: humberto@ibilce.unesp.br.

Rodrigo Ribeiro Paziani – 2 Docente dos Cursos de Graduação e Pós-Graduação em História da Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE), Campus de Marechal Candido Rondon. E-mail: rpaziani@yahoo.com.br.

Os Organizadores


PERINELLI NETO, Humberto; PAZIANI, Rodrigo Ribeiro. Introdução. Tempos Históricos, Paraná, v.20, n.1, 2016. Acessar publicação original [DR]

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História, Imagem, Ciência & Cultura | ArtCultura | 2016

O minidossiê História, Imagem, Ciência & Cultura tem como objetivo trazer a público uma análise do papel cultural da ciência no mundo ocidental, enfatizando suas formas de divulgação e de difusão. Tal empreitada faz coro ao movimento mais recente da historiografia de não considerar o desenvolvimento das ciências tão somente com base na demarcação entre ciência e não ciência, ou, segundo Thomas Gieryn, entre o “analítico (teorizações) e o prático”1 , mas de buscar uma apreensão a partir das práticas e dos jogos de acomodação/negociação que propiciam sua circulação.

Com uma proposta integradora, centrada na temática de cultura visual da ciência construída no tempo histórico, o minidossiê reúne trabalhos que discutem a utilização de imagens e os diferentes contextos de visibilidade, suas práticas representacionais e objetivação do conhecimento, procurando reconhecer, valorizar e (re)significar as relações constituintes entre imagem e produção do conhecimento. Leia Mais

A invenção da América: estudos sobre Educação, História e Cultura na América Latina (1879-1950) / Cadernos de História da Educação / 2015

A historiografia contemporânea apresenta um interesse renovado nos fenômenos de produção, circulação e apropriação de saberes em diferentes espaços e tempos. Neste sentindo o dossiê que ora apresentamos procura analisar aspectos da representação da educação e da cultura na América Latina, a partir de obras literárias, ensaios teóricos, textos jornalísticos e narrativas históricas. A proposta consiste em tentar observar pontos de contato entre o que se percebe “no interior” das fronteiras nacionais, com o que se passa em suas exterioridades. Para tanto, procuramos observar os pertencimentos teóricos e institucionais de alguns autores, o recurso às traduções, identificar os destinatários, o regime de citação, núcleo documental mobilizado, bibliografia, editoras e projeto editorial para pensar os padrões narrativos das escritas que foram produzidos e / ou circularam no velho e no novo continente. Nesse caso, trabalhamos com parcela do universo latino-americano e com o sistema de referência à Europa e à própria América, de modo a observar: os modelos de escrita legitimados, as concorrências estabelecidas, bem como as tradições forjadas a partir destas experiências. O texto Na rota do progresso: representações a respeito da instrução pública na argentina (1879) analisa algumas representações forjadas pelo francês Celéstin Hippeau, por intermédio do relatório sobre instrução pública na Argentina, publicado em 1879. O procedimento do autor pode ser caracterizado como uma operação que busca construir um programa a ser seguido pelas nações, no qual dois países do novo mundo são apresentados como modelo – Estados Unidos e Argentina. Trata-se, portanto, de uma representação que termina por defender uma racionalização do modelo de instrução como saída para os diversos problemas identificados em todas as modalidades e níveis de ensino da Argentina; condição necessária para inscrevê-la na rota do progresso. José Ricardo Pires de Almeida entre duas vocações: a política e a ciência é o titulo do artigo que trata da obra L`Instruction Publique au Brésil: Histoire – Législation, escrita em 1889. O texto visa problematizar dois aspectos específicos: por um lado, explicita as convicções políticas defendidas pelo autor, particularmente a ideia da superioridade da instrução pública no Brasil em relação aos demais países da América do Sul; e, por outro, investe na discussão das características que legitimaram esta narrativa como expressão de uma concepção da escrita da história que visava interpretar o passado com isenção e objetividade. Outro historiador brasileiro analisado nesse dossiê foi Primitivo Moacyr, no texto intitulado Nacional e Continental – Brasil e Américas na perspectiva de Primitivo Moacyr. Este artigo explora aspectos da historiografia da educação e argumentos que sustentam os diagnósticos empreendidos e modelos propostos a partir da remissão às experiências provinciais entre o mundo latino-americano e as Províncias do Rio de Janeiro e Minas Gerais. Também entre os autores brasileiros, temos América Latina, cultura e educação nos escritos de José Veríssimo. O artigo objetiva discutir como José Veríssimo articula cultura e educação em textos por ele publicados sobre a América Latina, situados teoricamente nos campo da crítica literária e da política. Os resultados indicam que as reflexões escritas por José Veríssimo sobre a América Latina reforçam a importância que atribuía à educação ao colocá-la como recurso de superação dos problemas sociais e políticos, promovidos pelo legado colonial e pelo processo de consolidação das repúblicas liberais. Fechando a proposta, La América enseñada: Colombia, primera mitad del siglo XX aborda as representações subjacentes ao ensino da categoria América, particularmente pela sua inserção no projeto político de definição da identidade de diferentes países latino-americanos, com ênfase para o contexto colombiano. Nas suas conclusões, o artigo aponta que a representação da América funcionou para justificar a existência de um povo, um território e uma raça que, apesar das fronteiras nacionais, compartilhava de um mesmo destino.

Os cinco artigos apresentados procuram em comum interrogar os projetos de educação, instrução e de civilização em curso no novo mundo. No conjunto, procuramos analisar o processo de constituição de matrizes de história da educação, algumas estratégias de legitimação, difusão e apropriação internacional desse saber e, no seu interior, o espaço reservado para se construir determinadas representações da América.

Carlos Eduardo Vieira

José Gonçalves Gondra

Organizadores


VIEIRA, Carlos Eduardo; GONDRA, José Gonçalves. Apresentação. Cadernos de História da Educação. Uberlândia, v. 14, n.3, set. / dez., 2015. Acessar publicação original [DR]

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Ensino de História, Cidadania, Cultura e Identidades / História e Diversidade / 2015

História e Diversidade: Ensino de História, Cidadania, Cultura e Identidades

É com grande satisfação que apresentamos o sétimo volume da Revista História e Diversidade, do curso de Licenciatura em História da Universidade do Estado de Mato Grosso – UNEMAT – Campus de Cáceres que tem como objetivo a constituição de um espaço de divulgação de pesquisas e reflexões sobre História e Diversidade, priorizando a publicação de artigos que versam sobre História, Ensino de História, Diversidade Cultural, Formação e Prática Docente.

Este volume apresenta o Dossiê intitulado História e Diversidade: Ensino de História, Cidadania, Cultura e Identidades que é composto por duas seções: 1) Ensino de História, Patrimônio e Diversidade, que tem como foco principal a dinâmica entre o ensino de história, diversidade, e direitos sociais; e 2) Teoria da História, Capital e Diversidade, que articula artigos com reflexões sobre a construção do conhecimento histórico, o setor elétrico brasileiro, e uma discussão de gênero a partir da personagem Laura de Vison.

O artigo de abertura intitulado “Entre muitos ‘outros’: ensino de história e integração latino-americana”, de autoria de Juliana Pirola da Conceição, Doutora em Educação pela Faculdade de Educação da Unicamp, tem como objetivo analisar de que maneira o ensino de história influencia a prática cotidiana dos indivíduos, em especial a relação entre o ensino da América Latina e a integração entre os latinos americanos. Para tanto, teve como objeto de estudo específico um conjunto de entrevistas realizada com 73 jovens, de duas escolas públicas da região central da cidade de São Paulo, desse universo de jovens, 6 eram bolivianos, o que potencializa a contribuição do seu recorte analítico.

O segundo artigo “As decisões do Tribunal Superior do Trabalho como instrumento para o ensino dos Direitos Sociais: a formação de um banco de dados”, elaborado por Alisson Droppa (Doutor em História pela Unicamp) e Magda Barros Biavaschi (Doutora em Economia pela Unicamp), tem como objetivo apresentar o banco de dados das decisões do Tribunal Superior do Trabalho, que teve como área de jurisprudência a terceirização, com o propósito de pensar na constituição de documentos para o ensino dos direitos sociais e da luta pela construção do direito e da cidadania no Brasil.

O terceiro artigo “A importância do ensino de história para a reflexão do tempo presente: o conceito de estranhamento e seu potencial para um inconformismo sadio” de Filipe Cambraia do Canto, graduado em História, é um relato e uma reflexão sobre a prática docente, a partir da experiência com o desenvolvimento do estágio, em que ministrou 24 aulas para o Ensino Médio. Os questionamentos e interesses dos estudantes possibilitaram indagações, procurando estabelecer conexões com o tempo presente, o ensino de história, e a desnaturalização dos objetos, possibilitando a problematização da realidade dos alunos do Ensino Médio, como ponto de partida para o fazer histórico em sala de aula.

O quarto artigo “Territórios negros: patrimônio, diáspora e tempo” elaborado por Gabriel Gonzaga, estudante da licenciatura em História da UFRGS, teve como objetivo questionar a noção temporal que norteou a construção de algumas práticas no interior do projeto patrimonial “Territórios Negros: Afro-brasileiros em Porto Alegre”, procurando estabelecer relações transversais entre a cultura afro-brasileira e o ensino de história.

O quinto artigo, o primeiro da segunda seção desse dossiê, intitulado “O sentido da História: entre metanarrativas e particularidades”, de Paulo Robério Ferreira Silva, Mestre em Ciências Sociais pela PUC Minas, propôs reflexões sobre o fazer histórico, sobretudo sobre os questionamentos provenientes da consideração de que o conhecimento histórico é uma modalidade do discurso. Diante desse questionamento, procurou estabelecer conexões para o conhecimento histórico, em que se destaca os elos da generalização e da especificidade.

O sexto artigo, “A “ética” da concorrência: concentração de capital no setor elétrico brasileiro – 1900 / 1950”, de Marcelo Squinca da Silva, Doutor em História pela PUC São Paulo, discutiu a postura de alguns empresários frente ao processo de urbanização do Brasil, em especial a superação da demanda da energia elétrica, o que evidenciou a postura conservadora da burguesia empresarial, que foi gestada dependente e subordinado ao Estado.

O sétimo artigo, “Laura de Vison: um(a) artista de nossos tempos de discussão sobre gênero”, de Walace Rodrigues, Doutor em Humanidades pela Universiteit Leiden (Holanda), a partir da apresentação da personagem Laura de Vison, sobre o seu trabalho performático nos anos 1980 e 1990, no cenário gay do Rio de Janeiro. O autor propõe uma historiografia das personalidades históricas LGBT brasileiras. Além do dossiê, este número da Revista História e Diversidade, publica ainda cinco artigos extras e uma resenha.

O primeiro artigo intitulado “Entre guerras “justas” e “injustas”: jogos de interesses no hinterland de Benguela e a produção de cativos (século XVIII), de Bruno Pinheiro Rodrigues, Doutor em História pela Universidade Federal de Mato Grosso, apresenta uma análise do quadro de alianças formado no hinterland de Benguela, um dos maiores portos exportadores de cativos para a América portuguesa durante o século XVIII e início do XIX, e uma reflexão sobre a construção da legitimidade de uma guerra “justa”, a partir dos arranjos políticos e alianças com chefes locais.

O segundo artigo, “Relações entre Museus e Cidades: experiências de professores de história no Museu de Artes e Ofícios em Belo Horizonte- MG”, de Jesulino Lucio Mendes Braga, Doutor em Educação pela Universidade Federal de Minas Gerais, aborda a relação entre o Museu de Artes e Ofícios (MAO) e a cidade de Belo Horizonte a partir de uma pesquisa feita com professores de história que fazem uso educativo da exposição museal. A análise considera as experiências e as narrativas que os docentes produzem no contato com a exposição. Os docentes elaboram significados para as ações de ensino com o uso da exposição do MAO e apontam as potencialidades de usos dos espaços da cidade para a educação.

O terceiro artigo, “As cadeias no Mato Grosso do século XIX: um olhar sobre o cárcere”, de autoria de Patrícia Figueiredo Aguiar, doutoranda em História pela Universidade Federal de Uberlândia, realiza uma análise sobre as circunstâncias em que se estabeleciam as cadeias na primeira metade do século XIX na província de Mato Grosso.

O quarto artigo denominado “Práticas de esporte, educação física e educação moral e cívica na Ditadura Militar: uma higiene moral e do corpo”, de Reginaldo Cerqueira Sousa, doutorando em História pela Universidade Federal do Paraná, analisa as formas de legitimação do regime autoritário por meio da análise dos manuais e Educação Moral e Cívica e das práticas esportivas nos espaços de educação de jovens e o processo de constituição de uma espécie de pedagogia moral e do corpo viabilizado, principalmente, pela reestruturação do ensino por meio de reformas na educação, de programas e de projetos educacionais em fi ns dos anos de 1960 e durante a década de 1970.

O quinto artigo, “O efeito Cólera em meio às mutações ideológicas do Punk brasileiro”, de Tiago de Jesus Vieira, doutorando em História pela Universidade Federal de Mato Grosso, analisa dois álbuns da banda Cólera, como elementos interlocutores para explicitar o conturbado contexto da produção das identidades punk no decurso da década de 1980. A partir da análise dos álbuns, o estudo visa compreender como estes se inseriram no processo de “composição ideológica punk” no Brasil.

Por fim, a resenha organizada por Valdeci da Silva Cunha, doutorando em História pela Universidade Federal de Minas Gerais, apresenta a obra de RANCIÈRE, Jacques. O espectador emancipado. 1ª edição. Trad. Ivone C. Benedetti. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2012.

Desejamos que as leitoras e os leitores apreciem os artigos que compõem esse volume da revista História e Diversidade, se sintam encorajados a participar dos debates propostos e enviem contribuições para os próximos volumes.

Boa leitura!

Caroline Pacievitch

Halferd Carlos Ribeiro Júnior

Osvaldo Mariotto Cerezer


PACIEVITCH, Caroline; RIBEIRO JÚNIOR, Halferd Carlos; CEREZER, Osvaldo Mariotto. Apresentação. História e Diversidade. Cáceres, v.7, n.2, 2015. Acessar publicação original [DR]

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América Latina independente: história, política, cultura e território / Dimensões / 2015

Em setembro de 2014, a Universidade Federal do Espírito Santo e a Universidade Nacional Autônoma do México estabeleceram um convênio de colaboração. O primeiro fruto desse convênio é o Dossiê “América Latina independente: história, política, cultura e territórios” do número 35, referente ao segundo semestre de 2015, da Revista Dimensões que, com muita satisfação, apresentamos aos leitores.

A resposta obtida à convocatória para este dossiê foi muito além de nossas expectativas. Recebemos mais de trinta artigos, enviados por colegas de universidades de todo Brasil, além de latino-americanas e europeias. Esta ampla resposta denota também a internacionalização da Revista Dimensões, publicação do Programa de Pós-graduação em História da UFES, que se consolida como um espaço de prestígio entre as publicações acadêmicas latino-americanas. Para produzir o dossiê contamos com a colaboração de aproximadamente setenta e cinco pareceristas, brasileiros e hispano-americanos, que generosamente nos apoiaram na avaliação e seleção final do material para publicação. Leia Mais

Exílios: Política, Cultura e Resistência / Projeto História / 2015

Exílios – Política – Cultura – Resistência / Projeto História / 2015

“El exiliado mira hacia el pasado, lamiéndose las heridas; el inmigrante mira hacia el futuro, dispuesto a aprovechar las oportunidades a su alcance.”1 (Isabel Allende)

“Pode-se arrancar o homem de seu país, mas não se pode arrancar o país do coração do homem” (John Roderigo dos Passos)

Exilar-se é desterrar-se. É fratura e rompimento. É um deslocamento involuntário e traz consigo o sentimento de perda. É deixar para trás todo um repertório de afetividades não rompidas, porém distantes geograficamente, isolando o exilado de qualquer contato com seu país de origem. Temporário? Eterno? Uma mistura imponderável de elementos da legislação com acontecimentos do contexto histórico o dirão. Seja qual for a temporalidade, o indivíduo, nessa reelaboração forçada, pelo próprio sofrimento experimentado, já deixa de ser o mesmo. Consequências terríveis provoca o exílio.

Em Atenas, durante a Antiguidade Clássica, o exílio era imposto como defesa da democracia. Chamado de ostracismo, representava uma punição forte, que bania o cidadão por dez anos da convivência com seus pares.

Passados mais de dois mil anos, a política e seu mais cruel desdobramento, a guerra, continuam produzindo exilados, com seus silêncios significativos ou suas falas eloquentes. Diferente do emigrado, o exilado, mesmo aquele auto exilado, é obrigado a vivenciar um sofrimento solitário, no qual as novas relações afetivas, difíceis de serem conquistadas, não substituem a mágoa da ausência das anteriores.

O exilado, não raro, é obrigado a se reinventar completamente, sem esquecer os padrões de cultura que são mantidos pela saudade. Essa palavra intraduzível que, no falar de Lévi-Strauss, remete à rememoração de seres, coisas, lugares, e que é uma tomada de consciência impregnada do sentimento agudo de sua fugacidade. Um aperto no coração que a lembrança de certos lugares, físicos ou da memória, nos mostra que não há, no mundo, nada de permanente e nem de estável em que possamos nos apoiar. Somos, portanto, exilados em potencial.2

Este número da revista Projeto História nos apresenta, neste segundo número da temática “Exílio”, uma importante polifonia de assuntos e interpretações substanciosas de autores que nos fazem vivenciar o significado do exílio.

O dossiê Política, Cultura e Resistência: Exílios é composto por uma gama de estudos que possibilitará a reflexão do pesquisador. O Investigador Titular do El Colegio de la Frontera Sur, Enrique Coraza de los Santos, abre o dossiê com uma visão conceitual em perspectiva comparada sobre o exílio através dos casos na Espanha, México, Argentina e Uruguai. Com o mesmo olhar, a especialista em estudos latino-americanos, Silvia Dutrénit Bielous, identifica nos anos 70 observações pautadas entre México e Uruguai, estabelecendo uma importante reflexão sobre as encruzilhadas do exílio.

Na esfera conceitual, o especialista em história intelectual, Maurício Parada, destaca as várias possibilidades entre esse meio com o exílio, estabelecendo uma vasta relação entre a história, exílio, política e intelectualidade, buscando analisar três trajetórias em especial, Otto Maria Carpeaux, Villém Flusser e Stefan Zweig.

No âmbito do contexto varguista e hitlerista, Marlen Eckl, analisa os efeitos do Decreto-Lei n° 383, de 1938 para os alemães. Partindo desse princípio, no artigo Entre resistência e resignação – as atividades políticas do exílio de língua alemã no Brasil, 1933-1945 é possível verificar os obstáculos que os exilados encontraram no Brasil.

Concluindo a primeira seção, Luis Roniger, destaca a importância analítica do exílio como uma experiência geradora de aberturas conceituais, institucionais e de sociabilidade. No artigo, o pesquisador da Wake Forest University, estabelece algumas reflexões, demonstrando a singularidade do caso brasileiro em uma perspectiva transnacional.

O dossiê conta com Alfredo Moreno Leitão e Geny Brillas Tomanik na seção Projetos, que apresentam resultados de suas pesquisas. O primeiro com aspectos em torno do salazarismo e a segunda com interpretações sobre o exílio espanhol.

Há ainda a resenha de duas obras ligadas a temática do dossiê. Francisco Osvaldino Nascimento Monteiro, apresenta ao público, a obra de Victor Barros, Campos de Concentração em Cabo Verde: As Ilhas Como Espaços de Deportação e de Prisão no Estado Novo, enquanto Estela Cristina Mansilla, apresenta a obra de Silvia Dutrénit Bielous, La Embajada Indoblegable. Asilo Mexicano en Montevideo durante la Dictadura.

Para fechar o número, os editores e organizadores, apresentam três artigos na seção livre. Partindo do Método Documentário de Análise de Imagens, Vinícius Liebel, busca o exercício de análise de uma charge do semanário nacional-socialista Der Stürmer. Luis Carlos dos Passos Martins, objetiva analisar como a imprensa carioca abordou o crescimento acelerado e desordenado das cidades brasileira durante o Segundo Governo Vargas, causando o aumento das “favelas” na Capital Federal e fechando o número Silvia Liebel estabelece uma importante análise, destacando à chamada “guerra dos sexos” nos inícios da impressão na Europa moderna.

Desejamos uma ótima leitura e boas reflexões historiográficas!

Notas

1 “O exilado olha para o passado, lambendo as feridas; o imigrante olha para o futuro, disposto a aproveitar as oportunidades a seu alcance”.

2 LÉVI-STRAUSS, Claude; MENDES, Ricardo. Saudades de São Paulo. Companhia das Letras, 1996.

Leandro Pereira Gonçalves (PUCRS)

Yvone Dias Avelino (PUC-SP)


GONÇALVES, Leandro Pereira; AVELINO, Yvone Dias. Apresentação. Projeto História, São Paulo, v.53, 2015. Acessar publicação original [DR]

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50 anos de golpe: arte, cultura e poder (Parte I) / Antíteses / 2015

No ano de 2014 o golpe de 1964 completou 50 anos. Se não houve motivo para comemorações também não houve (e não há) justificativa para menosprezá-lo como marco histórico. Fato é que no ano de 1964 deu-se início a uma ditadura que durou mais de duas décadas e cujas práticas são sentidas ainda nos dias de hoje. No entanto, 50 anos depois, o evento (e tudo que ele representa) vem se transformando numa oportunidade de examinar o fenômeno do autoritarismo e suas práticas, difundir as pesquisas sobre o regime militar, também expandi-las através de novas abordagens e fontes, tornando-as conhecidas de um maior número de interessados que, durante um longo período, esteve apartado dos espaços de discussão acerca dos rumos do país ou alijado do processo de construção democrática no Brasil.

Embora tenhamos inúmeras tipologias para abordá-la como, por exemplo, ditadura civil, militar e até empresarial, acenando para a participação de grupos de natureza diversa tanto na concretude do golpe quanto na consolidação do regime, muito pertinente se torna a definição do sociólogo Juan Linz que definiu os casos brasileiro e argentino e também o espanhol de Primo de Rivera e o português de Salazar como regimes autoritários de natureza burocrático-militares que, em linhas gerais, representa “uma coalização chefiada por oficiais e burocratas e por um baixo grau de participação política”, na qual se “falta uma ideologia e um partido de massa; existe frequentemente um partido único, que tende a restringir a participação; às vezes existe pluralismo político, mas sem disputa eleitoral livre” (BOBBIO; MATTEUCCI, PASQUINO, 2004, p.102).

Partido dessas definições gerais em torno do fenômeno do autoritarismo e a versão brasileira dele, podemos tomar a produção bibliográfica no contexto imediato ao golpe de 1964 e no período pós-regime militar como objeto de estudo, analisando os temas mais recorrentes em determinados momentos bem como o impacto dessa discussão no encaminhamento das pesquisas.

Nos primeiros anos do regime militar, de 1964 a 1968, não se sabia ao certo o que estava por vir e não haviam sido fechados os espaços de atuação política, ainda que neles não fosse mais tolerada a interação interclasses como outrora vinha sendo efetivada no plano da cultura por instituições como o Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB), a União Nacional de Estudantes (UNE), o Centro Popular de Cultura (CPC), o Movimento de Cultura Popular (MCP), entre outros.

Paulatinamente, o regime militar expandiu suas práticas repressivas, utilizando-se da censura e repressão para coibir manifestações contestatórias da intelectualidade engajada que outrora buscaram a interação com as classes populares e outros extratos da sociedade e, naquele momento, encontravam-se restritos ao contato com as classes médias. Artistas e intelectuais, por sua vez, não se mantiveram passivos às decisões impostas de “cima para baixo” e se uniram em torno do projeto de consolidação da chamada resistência cultural.

Apesar das divergências vivenciadas por artistas e intelectuais no que concerne à construção de uma unidade em torno das reivindicações comuns, houve uma articulação efetiva deles no contexto pós-golpe e pré-AI-5, isto é, entre 1964 e 1968. As discussões anteriormente restritas à produção individual ou de grupos ganharam dimensões mais amplas e coordenadas durante o regime militar, o que podiam transitar de questões pontuais como a liberação de obras e a libertação de artistas até problemas mais complexos como a extinção da censura e um programa de subvenções.

A construção de uma unidade a partir do enfrentamento de um “inimigo comum”, não extinguiu os impasses teórico-políticos entre diferentes grupos. Isto porque a luta de uma intelectualidade contra o regime militar nunca se definiu por uma convivência pacífica entre integrantes da oposição. Como assinalou o editorial do periódico Arte em revista, num volume especial sobre teatro engajado de outubro de 1981, é necessário “relativizar a possível coerência que muitos querem enxergar numa atividade regida pela economia de mercado, pelos modismos artísticos, pelo jogo das influências externas, como as relações com o Estado, a censura, etc.” De qualquer forma, a atuação dos mecanismos de controle e do aparelho repressivo estimularam a convergência de opiniões divergentes em torno de reinvindicações comuns.

Assim durante pelo menos 10 anos, mais sintomaticamente entre 1968 e 1974, o regime militar, através de uma série de restrições, não só ignorou as principais demandas de artistas e intelectuais, sendo a liberdade de expressão a mais importante delas, como também os impediu de se comunicar com a sociedade brasileira, impondo-lhes a censura de peças teatrais, filmes, revistas, livros, jornais, publicidade, programas de rádio e televisão e também sujeitando-os a mecanismos de repressão como a perseguição, prisão, tortura e até morte de artistas e intelectuais.

Como se vê, este foi um período conturbado para artistas e intelectuais que não mais nutriam expectativas de unidade como outrora, dividindo-se cada vez mais. Diante do processo repressivo deixaram de lutar por questões mais amplas para reivindicar questões pontuais, transferiram a luta contra a censura das manifestações públicas para a esfera jurídica e, mais tarde, para o campo econômico, interiorizavam práticas de autocensura no processo de criação e também promoviam alianças táticas para enfrentar este estado de coisas.

Para se entender este embate de forças durante o regime militar (1964-1985), especificamente a partir de 1968 e durante a década de 1970, devemos ir além das interpretações consolidadas que propuseram dicotomias como resistência x cooptação como ocorreu com grande parte da literatura dos anos 1980 que analisou a produção artística e intelectual produzida durante os anos de censura e repressão; mais que isto, esta se insere num processo complexo e contraditório de projeção da cultura na vida nacional com o fechamento dos espaços tradicionais de atuação política, progressivamente a partir de 1968, que tinha como elemento catalisador as políticas culturais em seus múltiplos matizes como as de caráter proativa realizadas pelo Serviço Nacional de Teatro (SNT), a Empresa Brasileira de Filmes Sociedade Anônima (Embrafilme), entre outros, e as de natureza repressiva executadas pela Divisão de Censura de Diversões Públicas (DCDP), pelos Serviços de Censura de Diversões Públicas (SCDPs) e pela “supercensura” (NAPOLITANO, 2010, p.145 e 150).

Somente no contexto de abertura, o governo Geisel tentou uma aproximação a esses grupos permitindo-lhes expressar anseios reprimidos por longo tempo e convidando-os a participar da elaboração de políticas no âmbito do governo. Claro que isto não foi recebido com unanimidade por artistas e intelectuais, alguns consideraram a iniciativa uma oportunidade de subverter as estruturas por dentro ou, pelo menos, ver atendidas as reivindicações mais pontuais, outros viram nisto mais uma forma de cooptação adotada pelo governo militar e se colocaram contra ele e contra todos que, após longos anos de repressão e censura, aceitaram participar de planos do governo na área da cultura. Desse impasse, advém a rivalidade entre os artistas e intelectuais comunistas mais abertos à interlocução com o governo da abertura e o movimento da contracultura contrário a qualquer tipo de negociação.

Na década de 1980, mais especificamente no pós-1985, artistas e intelectuais buscaram entender o que havia acontecido nos 21 anos de regime militar e isto refletiu diretamente na produção bibliográfica e também nos debates públicos que se concentraram em apontar culpados pela passividade da oposição diante do golpe de 1964; não poupando críticas ao Partido Comunista Brasileiro (PCB) e tudo que esteve direta ou indiretamente relacionado a ele, já mencionamos o ISEB, o CPC e o MCP, entre outros.

De meados dos anos 1980 até o fim do século, a ditadura enfim acabara, mas as feridas continuaram abertas… e os arquivos fechados. Durante 30 anos pelo menos, a construção historiográfica acerca do regime militar pautou-se pelas apropriações da memória e a propensão de se confundir com a história. De um lado, militares e aqueles que apoiaram o golpe e a ditadura (a alta cúpula da Igreja Católica, as associações representativas das classes dominantes, os meios de comunicação de grande porte, os partidos e políticos de caráter conservador) contavam a versão deles da história através de restrições plenas ao acesso a arquivos e mecanismos sofisticados de manipulação dos fatos, um dos mais significativos e até hoje confundido refere-se ao tratamento do movimento golpista como revolução ou  redentora (TOLEDO, 2014). De outro, grupos de oposição, nem sempre articulados entre si, colocavam-se como “alvos” do sistema cuja perseguição ostensiva dos agentes da ditadura justificou, em alguns casos, a adesão à luta armada (rural ou urbana). Em ambos os casos, porém de maneiras distintas, consideramos oportuna a observação de Jacques Le Goff acerca da memória coletiva, na qual se tornar “senhores da memória e do esquecimento é uma das grandes preocupações das classes, dos grupos, dos indivíduos que dominaram e dominam as sociedades históricas” (LE GOFF, 1996, p.426) e isto aconteceu também aqui, durante e depois do regime militar, considerando obviamente as diferenças entre eles e seu poder de inserção social.

A memória, no entanto, não é algo concreto e definido, cuja produção e acabamento se realizaram no passado e cumpre transportá-los para o presente bem como preservá-la dos riscos de desgaste através da restauração integral dela nem se resume a um “pacote de recordações” também já previsto e acabado. Ao contrário, “é um processo permanente de construção e reconstrução” (MENESES, 1992, p.10).

Portanto, que memória e história não são termos convergentes, ainda que possam ser considerados fenômenos complementares. Enquanto a memória, filha do presente e tendo como objeto a mudança, “é formação de imagem necessária para os processos de constituição e reforço da identidade individual, coletiva e nacional”; a história, operação cognitiva, tem como referencial o passado e “é a forma intelectual de conhecimento”. Noutras palavras, a História não é o “duplo científico da memória” a qual, por sua vez, precisa ser tratada como objeto da história (Id. Ibid., p.14, 22-23).

Nessas disputas pela consagração da memória coletiva, as restrições de acesso aos documentos de época favoreceram a construção de memórias a partir de questões do presente, sobretudo do primeiro grupo que exercia plenos poderes e controle dos arquivos públicos, inclusive dos critérios de descarte deles, orientados não por técnicas arquivísticas e sim por demandas políticas. Daí resulta a importância de pesquisadores de áreas como o jornalismo, a história, a sociologia, a antropologia e a ciência política que tomam hoje a memória coletiva como objeto de pesquisa e transformam a luta pela democratização da memória social numa das prioridades das pesquisas em Ciências Humanas e, assim, trabalham para que “a memória coletiva sirva para a libertação e não para a servidão dos homens” (LE GOFF, op. cit., p.477).

A produção intelectual e bibliográfica em torno daquele contexto histórico começou a sofrer alterações consideráveis na virada do século quando a sociedade brasileira já se encontrava mais preparada e sem as amarras do passado para discutir nosso passado recente, os arquivos públicos estavam sendo paulatinamente abertos e, através deles, os pesquisadores brasileiros (e não somente os brazilianistas) iniciaram um amplo processo de revisão historiográfica que não só desconstruiu teses cristalizadas no imaginário social  como também apresentou novas abordagens de temas tratados anteriormente pela historiografia oficial.

É exatamente nesse contexto que o dossiê se inscreve. Um momento em que a produção científica e acadêmica no campo das humanidades se volta para reconsiderar uma série de temas que hoje ganham um contorno mais claro e evidente, sobretudo quando se trata, por exemplo, da questão dos direitos humanos. Porque regimes autoritários não atingiram apenas seus opositores e detratores, mas desfiguraram radicalmente os conceitos de democracia e de sociedade civil. Aliás, muitos desses regimes – como foi o brasileiro – usaram da repressão e da violência para impor e proteger uma noção estéril de democracia e de sociedade. Por isso que os estudos, as investigações que ora emergem nesses 50 anos do golpe se apresentam como fundamentais para não somente capitular os eventos que fundaram diversos tipos de oposição ao regime, mas reconsiderar as narrativas e as representações que serviram de fundamento às resistências contra o autoritarismo.

Tanto é fato que cada vez mais pesquisas são elaboradas em torno do tema, que o número de artigos recebidos para esse dossiê ultrapassou todas as expectativas dos organizadores. O montante de material de excelente qualidade serviu para a elaboração de dois tomos da revista. O primeiro deles, intitulado “50 anos do golpe: arte, cultura e poder”, reúne artigos que abordam a produção cinematográfica, teatral, literária, musical, bem como a atuação de artistas e intelectuais na oposição ao regime militar. Publicou-se primeiro porque no conjunto de todos os artigos aprovados, esse tema foi aquele em que os trabalhos de revisão e edição foram concluídos mais cedo. O segundo tomo, intitulado “50 anos do golpe: memória, política e movimentos sociais”, aparece em seguida trazendo consigo um conjunto de artigos que abordam os aspectos comparativos entre as ditaduras do Cone Sul, a construção da memória política sobre a ditadura e o papel da sociedade civil na organização dos movimentos sociais pela abertura política.

Pela realização desse trabalho agradecemos aos autores que colaboraram com esse dossiê e tornaram a publicação possível. Da mesma forma, agradecemos aos pareceristas que emprestaram seu trabalho à Antíteses no processo de leitura e avaliação dos artigos recebidos. A Carolina Sobreira pelos trabalhos gráficos que ilustram as capas dos dois tomos da publicação.

A todos uma boa leitura!

Referências

BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de política – de A a J. 5. Ed. São Paulo: Imprensa Oficial, 2004. p. 102.

LE GOFF, Jacques. História e memória. 4. ed. Campinas: UNICAMP, 1996. p. 426.

MENESES, Ulpiano T. Bezerra. A história, cativa da memória? Para um mapeamento da memória no campo das Ciências Sociais. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, São Paulo, n. 34, p. 9-23, 1992. p. 10.

NAPOLITANO, Marcos. “Vencer Satã só com orações”: políticas culturais e cultura de oposição no Brasil dos anos 1970. In: ROLLEMBERG, Denise; QUADRAT, Samantha Viz (orgs.) A construção social dos regimes autoritários: legitimidade, consenso e consentimento no século XX. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010. p. 145 e 150.

TOLEDO, Caio. Quase 50 anos do golpe de 1964: nada a comemorar. Consultado na Internet em 6 jan. 2014: http: / / blogdaboitempo.com.br / 2013 / 03 / 30 / quase-50-anos-do-golpe-de-1964- nada-a-comemorar /

Miliandre Garcia

Rodrigo Czajka

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50 anos de golpe: arte, cultura e poder (Parte II) / Antíteses / 2015

Como parte complementar ao dossiê “50 anos do golpe: arte, cultura e poder”, publicado no primeiro semestre de 2015, chega a público este segundo tomo intitulado “50 anos do golpe: memória, política e movimentos sociais”. A publicação do dossiê em duas partes justifica-se por dois motivos essenciais: a) dividir as contribuições em dois grandes temas de pesquisa sobre a ditadura militar no Brasil; b) contemplar o maior número possível de artigos enviados à Antíteses para este dossiê, que recebeu uma quantidade substancial de colaborações.

Cumpre também constatar, com esse dossiê, que os estudos sobre ditadura militar no Brasil vêm ganhando gradativa repercussão nacional e internacional. Na última década os trabalhos de pesquisa sobre regimes autoritários têm se tornado atuais não apenas pela necessária, ainda que tardia, abertura de arquivos da repressão, mas também pelo modo como ecos do autoritarismo de outrora hoje, mais uma vez, recolonizam o imaginário social, provendo discursos pelo retorno do controle, da repressão, da militarização do sociedade que consagraria, por sua vez, a vitória por revanche de um certo tipo de nacionalismo caduco.

Vê-se hoje setores da sociedade brasileira, sobretudo aqueles comprometidos com a formação de uma opinião pública sobre os rumos da “vida nacional”, engajados às avessas com panelas estridentes em sacadas de edifícios, tornando esse espaço um camarote particular a partir do qual se constrói um falsa noção de democracia: é necessário, pois, participar daquilo que alguns meios de comunicação chamam de “festa democrática”, mesmo que essa festa barre a entrada daqueles que não estão a caráter ou que não foram simplesmente convidados.

Daí que iniciativas da Antíteses, tais como essa, promovem o debate e permitem uma contemporização dos estudos aqui publicados que, a rigor, não estão necessariamente situados há 50 anos. Pois, se a recorrência dos estudos dessa matiz ainda é verificada no ambiente acadêmico, é porque atual nunca deixou de ser o tema do autoritarismo. Mais que isso: é necessário entender como ele próprio se metamorfoseou em instituições, em movimentos, em indivíduos que hoje perfilam os antigos delírios autoritários de tempos sombrios.

Assim, o artigo que abre este segundo volume, “Recordar é vencer: as dinâmicas e vicissitudes da construção da memória sobre o regime militar brasileiro”, de Marcos Napolitano, propõe uma periodização inédita para analisar o processo de construção da memória do regime militar brasileiro. Partindo do princípio que a memória social e a experiência histórica de uma dada sociedade estão conectadas, o autor analisa a construção de uma “memória mutável” sobre o regime desde os anos 1970 até a primeira década do século XXI.

Florencia Lederman, com o artigo “La nación representada en los héroes. Las estrategias de legitimidad de las dictaduras de Brasil (1964-1985) y Argentina (1976-1983): visiones del tiempo y ejercicio del poder”, analisa como as ditaduras deste dois países se apropriaram dos heróis nacionais. Por serem estes protagonistas de “momentos fundantes” da nação, foram amplamente retomados pelos regimes em questão.

Em “O governo Geisel (1974-1979): o ápice da disputa pelo poder entre duros e moderados e sua expressão memorialista entre os militares”, Maria Gabriela da Silva Martins da Cunha Marinho e Sonale Diane Pastro de Oliveira analisam a disputa memorialista entre “duros” e “moderados” acerca da abertura política no Brasil (1974-1985).

Adrianna Setemy no artigo intitulado “Liberdade sob vigilância: um diálogo entre narrativas históricas sobre o exílio latino-americano no Cone Sul”, pretende, a partir da análise das singularidades, confluências e contradições que caracterizam os diferentes registros escritos sobre o exílio de brasileiros nos países do Cone Sul latinoamericano, promover um debate sobre a pluralidade de formas de narrar a saída indesejada do país de origem, a natureza desses diferentes registros históricos e a construção simbólica do exílio enquanto experiência traumática transcorrida fora das fronteiras nacionais.

Também discutindo a relação entre as ditaduras do Cone Sul, Hernán Ramírez, com artigo intitulado “Reflexiones acerca de las dictaduras del Cono Sur como proyectos refundacionales”, pretende evidenciar as ditaduras como eventos estruturais e não apenas simples conjunturas políticas, que repercutiram de forma profunda nas sociedade latino-americanas, não de modo homogêneo, e que ainda hoje se fazem sentir seus desdobramentos, ao ter remodelado aspectos sociais estruturais em diferentes nações da América Latina.

No texto seguinte, Agenor Sarraf Pacheco e Jaime Cuéller Velarde, analisam em “Silêncios da historiografia brasileira: o golpe civil-militar em experiências de pesquisa no Pará” as narrativas sobre a ditadura militar brasileira no Pará, levando em consideração que apesar das difíceis trajetórias que a nação e seus habitantes trilharam em distintas parte de seu território, a experiência dos longos tempos de regime de exceção na Amazônia ficou quase nas dobras das produções historiográficas nacionais.

Carla Brandalise e Marluza Marques Harres em “Brizola e os comunistas: os Comandos Nacionalistas na conjuntura do golpe civil-militar de 1964”, pretende circunscrever as divergências de concepção e ação entre Leonel de Moura Brizola e seus aliados na contraposição aos vinculados a Luiz Carlos Prestes no Partido Comunista Brasileiro (PCB).

Em seu artigo intitulado “Formas de militancia en el Partido Comunista argentino durante la última dictadura militar (1976-1983)”, Natalia Casola analisa como a linha definida pelo PC durante a última década da ditadura militar na Argentina, o apelo a construir a “convergência cívico-militar”, se materializou nas diferentes frentes de militância e nas chamadas organizações de massas.

Discutir alguns usos de termos derivados do campo semântico da loucura quando o assunto é a ditadura civil-militar de 1964, analisar o funcionamento dos mecanismo de suspeição e propor uma análise do aparato repressivo ditatorial, do ponto de vista da paranoia, são alguns dos objetivos traçados por Daniel Faria, no artigo “Sob o signo da suspeita: as loucuras do poder ditatorial”.

Partindo para um conjunto de estudos com objetos mais específicos e pormenorizados, o artigo “Carlos Santos e os usos da ideologia da democracia racial na ditadura civil-militar brasileira”, de Arilson dos Santos Gomes visa conferir visibilidade ao protagonismo político negro no parlamento do Estado do Rio Grande do Sul no período da ditadura civil-militar (1964-1974), analisando a atuação do deputado estadual Carlos da Silva Santos.

Rivail Carvalho Rolim procura dar enfoque a algumas formas de resistência à ditadura militar no Brasil exercidas a partir da organização e mobilização de movimento populares, em seu artigo “Repressão e violência de Estado contra os segmentos populares durante os governos militares”.

No artigo “Todo artista tem de ir aonde o povo está”: o movimento político das Diretas Já no Brasil (1983-1984)”, Vicente Saul Moreira dos Santos tece comentários sobre a relação entre História do Tempo Presente e História Política, com objetivo de inserir o movimento político das Diretas Já, transcorrido no Brasil entre 1983 e 1984. Partindo do pressuposto de ter sido um evento da conjuntura do final da ditadura militar, da luta por democracia e cidadania no país.

No mesmo sentido de compreender e detalhar a organização dos movimentos sociais no curso do regime militar, o artigo “O golpe de 1964 e a repressão ao movimento de ‘trabalhadores favelados’ de Belo Horizonte”, de autoria de Samuel Silva Rodrigues de Oliveira, discute o “Inquérito DVS-096” que atingiu a Federação dos Trabalhadores Favelados de Belo Horizonte (FTFBH). Segundo o autor, mais do que destruir a estrutura associativa que articulava o movimento social, a repressão desconstruiu a gramática pública que permitia aos “trabalhadores favelados” reivindicarem o “direito de morar”.

Tal como o artigo anterior, o seguinte aborda a organização de movimentos sociais na ditadura. Intitulado “Repressão política contra trabalhadores rurais: reflexões a partir de um estudo de caso em Magé (RJ)”, o artigo de Marco Antonio dos Santos Teixeira, discute a ação de um grupo de trabalhadores rurais em Magé, na Baixada Fluminense, que lutou pelo direito de permanecer na terra que ocupava e se transformou num exemplo de resistência em todo estado do Rio de Janeiro.

Em “A reforma agrária em projeto: o uso do espaço legal para garantir o acesso à terra no Pará (1960-1962)”, Edilza Joana Fontes, coloca em discussão a proposta de reforma agrária no Pará, ocorrido no pré-64, tendo como análise os decretos dos governos do Estado do que procuram definir uma faixa de terras em torno das estradas estaduais, para fins de assentamentos de pequenos produtores rurais. Um artigo que retoma um tema importante no seio das resistências do campesinato, mesmo antes do golpe de 1964.

Por fim, o artigo que fecha esse dossiê, de autoria de Reginaldo Benedito Dias, intitulado “Maringá no nascimento da ditadura civil-militar de 1964: análise do processo movido contra o vereador Bonifácio Martins e seus desdobramentos”, objetiva analisar o processo movido pelo Estado brasileiro, após a implantação da ditadura civil-militar de 1964, contra o Bonifácio Martins, que exercia mandato de vereador no município de Maringá (PR). Perseguido por causa de seu envolvimento com lutas sociais e sindicais e por presumido vínculo com o Partido Comunista Brasileiro, Bonifácio Martins, por motivos de segurança, evadiu-se de Maringá, ficando impossibilitado de concluir seu mandato. O texto de redimensiona os efeitos da ditadura militar sobre os aspectos biográfico e políticos de um figura importante da resistência e oferece uma interpretação mais densa do fenômeno da repressão.

Assim, com esse segundo tomo do dossiê “50 anos do golpe” foi elencado um conjunto representativo de colaborações que, assim como no primeiro, demonstram – como dissemos – a atualidade do tema de pesquisa e sua pertinência crítica nestes dias em que fantasmas do autoritarismo ganham força, mesmo que 50 anos depois.

A todos, uma boa leitura!

Miliandre Garcia

Rodrigo Czajka

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História e Cultura / Contraponto / 2015

Apresentamos à comunidade acadêmica dos pesquisadores da área de História e das ciências humanas de modo geral o Dossiê História e Cultura, enfocando diferentes objetos de pesquisa, os fundamentos teóricos e procedimentos metodológicos que orientam a construção do conhecimento.

Entendemos que a relação entre história e cultura é indissociável, pois enquanto a História arrisca-se a investigar a elaborar narrativas sobre os fazeres humanos ao longo do tempo, a cultura é a construção e o acúmulo de todas as experiências e vivências socialmente erigidas da espécie humana, em intima relação com a natureza. A experiência humana é dinâmica e propicia um contínuo processo de adaptação, mudanças, acomodações empreendidas, em grande medida, pela alteridade, e de transmitir nossas experiências para as gerações futuras, daí resulta o seu caráter cumulativo e transformador.

Vale ressaltar ainda que as pesquisas atuais que utilizam chaves interpretativas da História Cultural ou da História Social da Cultura já privilegiam as diversas dimensões da cultura material e imaterial, produzidas em grande medida, pela multiplicidade de manifestações, pela perspectiva interpretativa dos fatos e símbolos, pelos quais um conjunto de signos e significados pertencentes a grupos sociais se misturam e se entrelaçam na formação da cultura. Interessa, portanto aos pesquisadores da cultura, uma interpretação e vivência da mesma como processo fervilhante de experiências individuais e coletivas, que se inserem no campo simbólico e da materialidade e vão preservando, acrescentando, retirando e dando continuidade a manifestação cultural a qual fazem parte.

É desafiador para os historiadores entender a estreita relação entre as práticas culturais e as variadas formas de poder dos produtores e consumidores da cultura. Neste sentido, a cultura não é apenas “um poder, algo ao qual podem ser atribuídos casualmente os acontecimentos sociais, os comportamentos, as instituições ou os processos; ela é um contexto, algo dentro do qual eles podem ser descritos de forma inteligível, isto é, descritos com densidade” (GEERTZ, 1989, p. 20).

A concepção de cultura como construção densa também denota seu caráter amplo, complexo e circular. Em relação a essa problemática é sabido que a circularidade cultural resolve, em grande parte, a querela de separação entre cultura popular e cultura erudita, sendo que ao longo dos anos ambos compartilham de seus conceitos e práticas.

Percebemos as possibilidades de análise histórica da cultura por meio dos trabalhos publicados no presente dossiê, que não serão resumidos nesta apresentação, sob risco do reducionismo e superficialidade, portanto deixamos o desafio hermenêutico aos leitores, com profundo desejo que os textos sejam socializados, utilizados em salas de aulas, em monografias, dissertações e teses.

Boa leitura.

Francisco de Assis de Sousa Nascimento – Universidade Federal do Piauí – UFPI


NASCIMENTO, Francisco de Assis de Sousa. Apresentação. Contraponto, Teresina, v. 4, n. 2, ago., 2015. Acessar publicação original [DR]

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Livros, Leitura, Poder e Cultura / Revista Maracanan / 2014

Lire um texte? Quoi de plus facile en apparence. Quoi de plus délicat, pour peu qu’on s’interroge non seulement sur les conditions d’élaboration, de destination, de diffusion des imprimés […] mais sur notre comportement personnel, daté, conditionné par une culture, heritée et acquise, de lecteur.

Denis Richet [1]

Há alguns anos, debruçar-se sobre a história do livro e da leitura representa mais do que um simples inventário do que se lia ou do que se produzia em dada sociedade em certo momento histórico. Os estudos produzidos pela historiografia francesa, como pela anglo-saxã e a ibérica abriram inúmeras vias de pesquisa, possibilitando que a análise dos impressos e da leitura signifique, sobretudo, um meio de buscar opções diversificadas da pesquisa histórica para abordar práticas culturais e políticas. Embora informações também se veiculem por meio da oralidade, o trabalho com textos permite identificar o sentido das mensagens transmitidas pela palavra escrita, ainda quando em ambiente de cultura letrada rarefeita, como aquele das sociedades do Antigo Regime.

Dessa maneira, os impressos transformaram-se em meio privilegiado “de diálogo com o passado, de criação e de inovação”.[2] Sob esse prisma, como afirmaram Darnton e Roche [3], o livro (ou qualquer texto impresso) não deve ser visto apenas como memória de um tempo, que narra as diferentes percepções de um mesmo fato; ou como simples ingrediente do fato; mas, sim, enquanto agente que intervém nos processos e episódios. Poderosos elementos de continuidade, os livros também podem ser importantes vetores de rupturas na tradição. Afinal, os livros, textos e suas representações investem-se de múltiplas missões: a de educar, de formar, de criar tanto um espírito de universalidade, quanto de edificar as nações particulares, especialmente ao longo do século XIX. [4] No Brasil, o oitocentos constituiu-se no período em que o discurso escrito anunciou a conquista de sua autonomia, numa sociedade ainda profundamente dominada pela oralidade, com o vislumbre do nascimento de uma opinião pública, no sentido moderno do termo [5].

Não se quer dizer, no entanto, que os textos impressos, por si só, sejam capazes de fazer revoluções.[6] Ainda que não se confira tal poder aos textos, pois estes podem ser apreendidos de modos distintos por indivíduos diferentes, é possível afirmar, contudo, que são os textos escritos, em seus conceitos e linguagens, que abrem espaço à criação de novas culturas políticas. Portanto, os impressos registram igualmente uma historicidade.

Por outro lado, ao debruçar-se sobre a história dos livros, dos textos e da cultura escrita, diversos momentos mostram-se fundamentais: o Antigo Regime, o longo século XIX e o tempo contemporâneo. Na primeira temporalidade, encontram-se as novidades em relação às práticas de leitura, à constituição do esboço de uma voz geral, mas também as resistências em relação a tais propostas por meio do papel repressivo da Inquisição e da censura. Além disso, naquela época, os que detinham o privilégio do saber e da escrita, embora ainda dependessem do Estado para a sobrevivência, encontravam nesse trunfo um instrumento de poder. Na segunda temporalidade, o impresso se integra ao tecido cultural e político da sociedade, com as palavras vendo-se revestidas, por esse modo, de conotações particulares e diversas. Ou seja, ao transcender seu contexto originário, uma idéia projeta-se no tempo sob a forma de um novo conceito, que transforma os discursos contemporâneos em práticas novas, capazes de revelar as diversas identidades políticas e sociais presentes naquela conjuntura histórica. Por fim, no tempo contemporâneo, além de transmitirem mensagens a um público mais amplo, em função do grau maior ou menor de alfabetização, os textos demonstram tanto a formação de um campo intelectual autônomo, na pespecriva de Bourdieu [7], quanto pressupõem que a palavra escrita se tenha convertido em objeto privilegiado de uma luta político-ideológica que se configurou no oitocentos. Tais temporalidades acham-se presentes nessa coletânea, cujo foco dirige-se não só para o Brasil, mas também para a França, Portugal e Espanha.

Nessa perspectiva, o conjunto de artigos reunidos neste dossiê pretende contribuir, sob a forma de debate intelectual, para essa análise da função assumida pelo livro, pelo impresso e pelo manuscrito na transmissão da cultura; na formação da opinião pública e das culturas políticas; em seu papel como instrumento do poder, em especial nas monarquias; no processo de constituição dos intelectuais; e, mesmo, em outras formas de que o escrito pode revestir-se, como o de caricaturas ou partituras musicais, evidências igualmente de acervo cultural comum a uma população.

Os sete artigos integrantes do dossiê foram redigidos tanto por nomes emblemáticos nessa linha de estudos, como por jovens pesquisadores, possibilitando um encontro de gerações. Sem seguirem um fio condutor único, os artigos apresentam grande variedade de abordagens e de questões, que transparecem dos próprios títulos. De um lado, a formação de bibliotecas, o ato de traduzir e publicar textos enquanto práticas e estratégias do poder monárquico, a censura e a Inquisição, que adquiriram outra dimensão após a invenção da imprensa, com seu papel multiplicador. De outro, a historicidade do literário na ótica específica de José de Alencar, o estudo da “arte menor” do caricaturista, transformada em elemento primordial de uma imprensa militante na Modernidade, o uso das partituras musicais consideradas como meio para valorizar a mestiçagem no Brasil enquanto patrimônio cultural, e as disputas intelectuais de meados do século XX no Brasil, refletindo o processo de reconfiguração de seu campo intelectual. Cabe ainda ressaltar que, embora não faça parte intrínseca do dossiê, soma-se uma resenha com temática a ele vinculada, sobre o mais recente livro de Robert Darnton traduzido para o português.[8]

São, portanto, narrativas distintas, mas que, ao ultrapassar uma abordagem unívoca, se conjugam para formar uma teia entrelaçada, capaz de lançar redes de significados sobre o passado, a fim de oferecer ao leitor, como sempre acontece, elementos com que (re)construir a sua própria interpretação do mundo.[9]

Notas

  1. Préface. In: JOUHAUD, Christian. Mazarinades: la Fronde des mots. Paris: Aubier, 1985, p. 12.
  2. BARATIN, Marc & JACOB, Christian. O poder das bibliotecas. A memória dos livros no Ocidente. [Trad.]. Rio de Janeiro: Ed. da UFRJ, 2000, p. 11.
  3. DARNTON, Robert & ROCHE, Daniel (orgs.). Revolução impressa. A Imprensa na França, 1775-1800. [Trad.]. São Paulo: EDUSP, 1996.
  4. RIBEIRO, Maria Manuela Tavares. “Livros e leituras no século XIX”. Revista de História das idéias. Coimbra, 20: 187- 228, 1999, p. 187
  5. BAKER, Keith. M. Au tribunal de l’opinion. Essais sur l’imaginaire politique au XVIIIe siècle. Paris: Payot, 1993; FARGE, Arlette. Dire et mal dire. L’opinion publique au XVIIIe siècle. Paris: Seuil, 1992.
  6. Ver CHARTIER, Roger. Les origines culturelles de la Révolution française. Paris: Seuil, 1990 e BARBIER, Fréderic. História do livro. [Trad.]. São Paulo: Paulistana, 2008.
  7. BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. [Trad.]. São Paulo: Perspectiva, 1974, pp. 183-202.
  8. DARNTON, Robert. Poesia e polícia: redes de comunicação na Paris do século XVIII. [Trad.]. São Paulo, Companhia das Letras, 2014
  9. O Laboratório Redes de Poder e Relações Culturais foi criado a partir do grupo de pesquisa do CNPq (1997) intitulado “Ideias, Cultura e Política na Formação da Nacionalidade Brasileira”, e está integrado ao Programa de Pós-graduação em História da UERJ. Foi chancelado em dezembro de 2006 como núcleo de excelência no âmbito do programa Pronex FAPERJ / CNPq. Desde então, passou a reunir professores de outras instituições, próximos seja pela temática, seja pela abordagem e foi responsável pela organização desse dossiê, que contou com a ajuda de Tania Bessone e Lúcia Guimarães, suas integrantes, às quais cabe aqui um agradecimento especial.

Lucia Maria Bastos Pereira das Neves


NEVES, Lucia Maria Bastos Pereira das. Apresentação. Revista Maracanan, Rio de Janeiro, v.10, n.10, 2014. Acessar publicação original [DR]

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Revoluções, cultura e política na América Latina / Cordis – Revista Eletrônica de História Social da Cidade / 2013

A Cordis: Revista Eletrônica de História Social da Cidade contempla em seu número 11 uma temática já bastante consolidada nos estudos acadêmicos no Brasil. Contudo, tal consolidação, fruto do trabalho de inúmeros pesquisadores no decorrer de décadas, não a torna menos atual e nem livre de debates acalorados, revisões e análises bastante inovadoras à sociedade. Referimo-nos aqui à temática Revoluções, cultura e política na América Latina.

Este número 11 da Cordis é composto por 12 trabalhos, sendo 9 artigos e 3 pesquisas. Dora Eloisa Bordegaray, no artigo intitulado Padre “Pichi” Meisegeier y la Villa 31. Una “opción por la fe y la justicia” entre dos dictaduras, problematiza “la acción de la Iglesia Católica con los pobres de la sociedad”, focalizando “la opción de sacerdotes y laicos en la década de las dictaduras militares de Onganía y Videla.” Camila Bueno Grejo, no texto Nuestra América: pensamento racial e construção da identidade nacional argentina, desenvolve “uma análise da obra Nuestra América. Ensayo de psicologia social, escrita em 1903 por Carlos Octavio Bunge”.

Genilder Gonçalves da Silva e Marcelo de Mello, em A Revolução de 1930 e o discurso da ruptura: Goiânia e a Marcha para o Oeste, concentram suas atenções para externar “a relação travada entre Goiânia e a Marcha para o Oeste”, ao passo que apresentam “elementos registrados no tempo e no espaço que possibilitam distingui-las, como produtos de processos históricos que se aproximam e se distanciam”. Marcos Antonio da Silva, no artigo denominado Revolução e política externa: os fundamentos e tensões da política externa de Cuba, analisa “a política externa cubana após a Revolução (1959) que conduziu ao poder os revolucionários liderados por Fidel Castro.”

Wanderlene Cardozo Ferreira Reis, no trabalho intitulado Duras memórias: resiliência e resistência feminina à repressão civil-militar no Brasil, que teve como base os “depoimentos de algumas mulheres que sobreviveram à repressão política Civil-Militar, no período de 1970 a 1974”, centra a sua análise em discutir “o papel da resiliência como um fenômeno psicológico”. Eduardo Scheidt, em “Revolução Bolivariana” nos discursos de Hugo Chávez, “analisa as representações de “Revolução Bolivariana” nos discursos do recentemente falecido presidente da Venezuela Hugo Chávez.”

Carlos Alexandre Barros Trubiliano e Márcia Pereira da Silva, no artigo Os Códigos de Posturas de Campo Grande (1905): questões de ordenamento e o controle do espaço social, externam como os Códigos de Posturas procuraram “disciplinar e racionalizar a ocupação do território” da cidade de Campo Grande, “buscando orientar as relações sociais entre os moradores e as relações deles com o espaço em que habitavam”.

Jussaramar da Silva, no trabalho denominado A ação das Assessorias Especiais de Segurança e Informações da Usina Binacional de Itaipu no contexto das atividades de cooperação extrajudiciais no Cone Sul, apresenta e analisa “a função que as Assessorias Especiais de Segurança e Informações (AESI’s), sediadas na Usina de Itaipu, cumpriram no imbricado sistema de troca de informações no Cone Sul num expediente que, a partir de 1975, foi denominado de Operação Condor.” Carmélia Aparecida Silva Miranda, em Comunidades quilombolas do Brasil: desafios e perspectivas, discute “a trajetória das lutas empreendidas pelos remanescentes das comunidades quilombolas do Brasil, considerando a incorporação do artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), da Constituição Federal de 1988, o Decreto 4887 / 2003, a convenção 169 / OIT e o Estatuto da Desigualdade Racial.”

O item Pesquisas, composto por trabalhos tão oportunos à reflexão do nosso presente quanto os artigos, é iniciado pelo escrito de Pedro Henrique Soares Santos e do seu orientador Thiago Tremonte de Lemos. Em Reflexões sobre uma epochal war: o Brasil e seus vizinhos platinos (1825-1870), os autores afirmam que “as relações entre Brasil e seus vizinhos da região platina não é algo novo: desde os tempos do Império o tema é revisto, discutido, reinterpretado. É a partir deste entendimento tentaremos explicar as guerras entre o Brasil e seus vizinhos.”

Assis Daniel Gomes e Jane Derarovele Semeão e Silva, que orientou a pesquisa intitulada A “Cidade do Progresso”: do transporte público aos dilemas com o abastecimento de água e luz em Juazeiro do Norte (1950-1980), analisam “os problemas urbanos que assolaram Juazeiro do Norte entre 1950 e 1980 e que foram denunciados por alguns jornais e discutidos nas Atas da Câmara Municipal de Juazeiro do Norte (ACMJN)”.

Por fim, Ana Cristina Feitoza e o seu orientador Marcelo Flório, em A educação como código de exclusão na cidade de Embu das Artes: as representações do educando na fase final do ensino fundamental, realizaram uma pesquisa com o intuito de “entender como funciona a mente do jovem contemporâneo, sua visão sobre a escola e seus educadores, o sistema de ensino e quais as propostas que o mesmo traz para adequar a educação às suas necessidades de forma a reinseri-lo de fato socialmente, colocando-o em condições justas e com oportunidades reais para uma vida digna e igualitária.”

Oferecemos agora aos leitores deste número da Cordis reflexões intensas e gratificantes tanto quanto é para nós a satisfação de disponibilizarmos este volume, dando visibilidade para os textos e não menos ao empenho dos autores em analisar questões e problematizar realidades das mais diversas. Todas versam sobre um ponto que é central: a América Latina, suas sociedades e culturas.

São Paulo (SP), dezembro de 2013

Yvone Dias Avelino

Nataniél Dal Moro

Editores Científicos


AVELINO, Yvone Dias; MORO, Nataniél Dal. Apresentação. Cordis – Revista Eletrônica de História Social da Cidade, São Paulo, n. 11, jul. / dez., 2013. Acessar publicação original [DR]

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Festas, Cultura e Ambiente no Caribe / Revista Brasileira do Caribe / 2013

O Caribe surpreende pela sua capacidade de mostrar frequentemente ao mundo que a modernidade é um processo contraditório e que as desigualdades e injustiças vêm se perenizando no seu curso, para além do desenvolvimento tecnológico e das possibilidades que este abre em termos de educação, saúde, moradia e outros domínios da existência humana. A inquietude de sua gente diante da dominação colonial que ainda não conheceu o fim, a efervescência cultural verificada em diversas linguagens, os processos migratórios em várias migrações e suas intensas conexões com diversas outras regiões do mundo fazem do Caribe um desafio permanente de pesquisa e reflexão.

Este número se debruça diante da relação entre festa, cultura e ambiente. Seu primeiro artigo, de Giliard da Silva Prado, apresenta a relação entre as comemorações da Revolução Cubana e sua legitimação, a partir da análise dos discursos de seus líderes, focando principalmente as transformações verificadas neste processo ao longo de mais de cinco décadas.

O segundo artigo, de Milton Moura, bem como o terceiro, de Edgar Gutiérrez, abordam as festas populares no Caribe Colombiano, mais precisamente, em Cartagena de Indias. Milton Moura aborda sobretudo as transformações recentes ocorridas na Festa de Independência daquela cidade, enquanto Edgar Gutiérrez tece considerações mais amplas sobre o fazer festivo na Costa e sua importância na história desta porção do Caribe, abrangendo iniciativas de produção cultural neste âmbito. De forma complementar, o quarto texto, de Eduardo Hernández Fuentes, discorre sobre a dimensão festiva da Costa a partir da reflexão sobre o Projeto BordCaribe, relacionando este aspecto da sociedade caribenha a expressões artísticas contemporâneas.

De que é feito o Caribe? De praias e rotas de navegação? De fortalezas e praças de comércio? De tambores, guitarras e ritmos que alcançam sucesso em boa parte do mundo? Em que mesmo consiste esta região de história tão dramática, de natureza tão singular, em que vivem sociedades tão marcadas pelos trânsitos interétnicos e pela violência? O que faz como que esta parte da América atraia tanto os olhares e ouvidos da humanidade como uma região especialmente vigorosa na sua expressão?

Poder-se-ia perguntar, em tantos casos, onde termina a peleja política e onde começa a festa. A esta indagação, em vão se procuraria responder. As sociedades caribenhas, desde o início, têm suas expressões plásticas, musicais e coreográficas no núcleo de sua vitalidade diuturna. Por isso não se poderia pensar autenticamente em um tipo de arte desencarnada, assim como não se poderia falar em um tipo de festa que não tivesse, estampada em suas manifestações, sua dimensão política. Assim como o ambiente, que aparece sempre paradisíaco na propaganda turística e, por outro lado, se constitui como uma arena de conflitos, quando se coloca a perspectiva da escassez dos recursos naturais e a questão ético-biológica da sustentabilidade.

O Caribe surpreende pela sua capacidade de mostrar frequentemente ao mundo que a modernidade é um processo contraditório e que as desigualdades e injustiças vêm se perenizando no seu curso, para além do desenvolvimento tecnológico e das possibilidades que este abre em termos de educação, saúde, moradia e outros domínios da existência humana. A inquietude de sua gente diante da dominação colonial que ainda não conheceu o fim, a efervescência cultural verificada em diversas linguagens, os processos migratórios em várias migrações e suas intensas conexões com diversas outras regiões do mundo fazem do Caribe um desafio permanente de pesquisa e reflexão.

Este número se debruça diante da relação entre festa, cultura e ambiente. Seu primeiro artigo, de Giliard da Silva Prado, apresenta a relação entre as comemorações da Revolução Cubana e sua legitimação, a partir da análise dos discursos de seus líderes, focando principalmente as transformações verificadas neste processo ao longo de mais de cinco décadas.

O segundo artigo, de Milton Moura, bem como o terceiro, de Edgar Gutiérrez, abordam as festas populares no Caribe Colombiano, mais precisamente, em Cartagena de Indias. Milton Moura aborda sobretudo as transformações recentes ocorridas na Festa de Independência daquela cidade, enquanto Edgar Gutiérrez tece considerações mais amplas sobre o fazer festivo na Costa e sua importância na história desta porção do Caribe, abrangendo iniciativas de produção cultural neste âmbito. De forma complementar, o quarto texto, de Eduardo Hernández Fuentes, discorre sobre a dimensão festiva da Costa a partir da reflexão sobre o Projeto BordCaribe, relacionando este aspecto da sociedade caribenha a expressões artísticas contemporâneas.

O quinto artigo, de Joseania Miranda Freitas, coloca a importância dos museus como estratégia de dinamização cultural e de reflexão sobre o patrimônio cultural a partir de pesquisas e intervenções no Museu Afro-Brasileiro da Universidade Federal da Bahia, em Salvador, destacando a importância da formação dos estudantes para a percepção do valor das coleções presentes nos museus aos efeitos de uma educação etno-cultural.

O sexto artigo, de Dernival Venâncio Ramos Júnior, toma como problema a construção da nacionalidade moderna na América Latina, enfocando o drama colombiano. O autor sublinha as dificuldades que as elites andinas, que capitanearam o estabelecimento dos estados nacionais ao longo da cordilheira, encontraram no sentido de forjar um projeto propriamente nacional, que pudesse incluir e integrar diferentes territórios e grupos étnicos. Destaca-se o papel dos intelectuais neste processo.

Olga Cabrera e Rickley Leandro Marques construíram o sétimo artigo a partir de pesquisas realizadas em Santana dos Pretos, no Maranhão, Brasil, e no Palenque de San Basílio, em Cartagena de Indias, na perspectiva de uma educação etno-histórico-ambiental. Consideram a importância da percepção da dimensão transnacional manifesta nas culturas negras da Diáspora para uma reflexão sobre os rumos e modelos da educação, justamente em áreas tão empobrecidas em que a dominação colonial perdura de formas renovadas.

O oitavo artigo, de Gilberto Javier Cabrera Trimiño, enfoca as práticas da agricultura urbana em Ciudad Habana, Cuba. Esta estratégia foi estimulada para a produção de alimentos para as populações urbanas, levando em conta os saberes destas populações em termos ambientais como um recurso fundamental para enfrentar o drama da segurança alimentar.

A perspectiva de gênero se mostra cada vez mais relevante na análise das sociedades caribenhas. Sonia Catasús Cervera, no nono artigo, mostra que o modo como se dá o desenvolvimento econômico e social tem influxos sobre o comportamento reprodutivo da população, como se pode verificar pelas modificações na taxa de nupcialidade e na idade média para o enlace matrimonial, bem como na taxa de divórcio. O estudo parte da comparação entre os quadros de Cuba e República Dominicana, destacando a especificidade do Oriente Cubano.

Por fim, o décimo artigo, de Isabel Ibarra, apresenta as transformações na sociedade cubana contemporânea a partir da análise realizada pela autora das cartas de cubanos à ONG Puente Familiar con Cuba.

A partir destas miradas múltiplas, temos mais uma oportunidade de nos voltarmos reflexivamente sobre o Caribe e continuar desdobrando nosso papel de pesquisadores, artistas, pensadores e profissionais envolvidos em políticas públicas, no sentido de buscar estratégias de desenvolvimento que não somente respeitem o legado etno-histórico destas sociedades; mais do que isto, trata-se de pensar estratégias que considerem o próprio patrimônio cultural caribenho como uma base fecunda a partir da qual se possa pensar caminhos de construção da prosperidade, da paz e da liberdade. O Caribe anseia por isto.

Milton Moura – Universidade Federal de Bahia. Salvador de Bahia, Br.


MOURA, Milton. Festas, Cultura e Ambiente no Caribe. Revista Brasileira do Caribe, São Luís, v.14, n.27, p.7-10, jul./dez., 2013. Acessar publicação original [IF].

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Cultura, Política e Identidade / História.com / 2013

Em sua primeira edição, a Revista Eletrônica Discente História.com materializa um projeto de árdua luta, mas acima de tudo, possível. Este periódico é um canal de publicação de produção acadêmica de discentes que atuam na área de História e demais Ciências Humanas e Sociais que dialoguem e contribuam para o campo da prática historiográfica.

Para esse número, a presente edição recebeu trabalhos que foram submetidos à avaliação de seus pareceristas oriundos de várias universidades federais e estaduais do Brasil, fato que demonstra a lacuna que uma revista discente como esta preenche no meio acadêmico e o quanto discentes e seus respectivos orientadores acreditaram na credibilidade da proposta deste meio de divulgação do conhecimento científico.

Para a seção Dossiê Temático Cultura, Política e Identidade foram selecionados textos que, dentro desses três grandes campos dos estudos e pesquisa, trazem problematizações e olhares onde se espera que o leitor se sinta instigado a conhecer e, quem sabe, produzir novas pesquisas que enriqueçam o conhecimento histórico.

No texto A Flauta Doce: a história do percurso desse instrumento na música contemporânea de Claudio Alves Benassi, encontra-se uma interessante contribuição ao campo da História da Música ao ser realizada uma discussão sobre a história da flauta doce em diferentes momentos da história da música contemporânea em que a prática de tocar esse instrumento conflitou com mudanças na história da arte.

Na abordagem de Jaqueline J. Fernandes Vilas Boas em As lavadeiras de Santa Clara e Bicas dos Monteiros em Diamantina: sabão, pão e tradição encontramos a trajetória de uma importante pesquisa de campo que objetiva a descrição dos locais de trabalho das lavadeiras das referidas cidades mineiras enunciadas no título, além de sua vida cotidiana. Este trabalho demonstra os possíveis diálogos que os pesquisadores do campo da História podem estabelecer com a Antropologia.

Com o intuito de contribuir com o campo da História da Religião, o artigo intitulado A manifestação festiva de uma divindade africana em Salvador de autoria de Fernanda Reis dos Santos discute a prática da religiosidade afrobrasileira, em especial o caso de Salvador / Bahia, através do significado do ato de festejar. Este artigo contribui para pensarmos as práticas religiosas e seus significados do candomblé com recorte e abordagens originais.

A discussão de Jamille Oliveira Santos Bastos Cardoso em Circularidade cultural no espaço colonial: a Santidade de Jaguaripe e o processo de reinvenção identitária, ao reconstruir a história da Santidade de Jaquaripe, estuda a transculturação envolvendo relações entre etnias no cerne dessa religiosidade ameríndia. A investigação da autora investiu na tentativa de compreender os diferentes sujeitos históricos envolvidos no evento.

Como interessante contribuição para o entendimento de uma das instituições mais antigas no século XIX, o artigo de Wellington da Silva Medeiros, Concílio Vaticano I (1869-1870): centralização do catolicismo, demonstra como a Igreja Católica conseguiu se adaptar às transformações do século, mesmo mantendo antigas tradições.

No trabalho Contextualizando o Espaço: idéias e artifícios na construção da imagem de Nordeste (1920-1940), Rosana Alexandre Santos apresenta uma reflexão sobre o pensamento regionalista e os elementos da musicalidade de Luiz Gonzaga em meio ao cenário de construção de uma identidade nacional, além disso, discute de que forma esse pensamento e essa música foram de fundamental importância na construção de um imaginário a respeito da região Nordeste.

Em Escolha do itinerário terapêutico diante dos problemas de saúde: considerações socioantropológicas, de autoria de Nadson D. S. Júnior, George Gonçalves e Franklin Demétrio os leitores compreenderão o processo de construção do itinerário terapêutico de um paciente diante dos problemas em relação à saúde, passando pelo viés da relação que esse processo apresenta junto às representações da cultura desse indivíduo.

“Folhas Venenosas”: a reação católica à difusão de livros e bíblias protestantes na Bahia na década de 1860, de Leonardo Ferreira de Jesus, reconstrói a história de religiões que concorreram frente à Igreja Católica brasileira, mas a grandeza da pesquisa está na contribuição historiográfica do autor para entendermos os conflitos não apenas religiosos como igualmente políticos e culturais entre essas religiões na Bahia do século XIX.

Renan Falcheti Peixoto em Hesíodo e o Alfabeto Grego no Processo de Politização da Palavra Na Formação da Polis estuda a história da construção do caráter político da palavra no que tange à maneira como esta foi utilizada nos mecanismos de elaboração intelectual e sociabilidade na Grécia Antiga. A originalidade do tema e construção bem trabalhada e cuidadosa do presente artigo nos convida a uma leitura agradável e informativa.

Na análise de Estefanni Patrícia Santos Silva e Janaina Cardoso de Mello, Imágenes de La Shoá: história e expografia crítica no Museo Del Holocausto em Buenos Aires, as autoras trazem visão crítica sobre a expografia que compõe o Museo Del Holocausto na cidade de Buenos Aires, Argentina. Assim, elas discutem as categorias que englobam a museografia e o contexto histórico do nazifascismo. Sem exageros, é uma forte contribuição na renovação dos modos de abordagem dos efeitos da Segunda Guerra Mundial e da ideologia nazista e fascista na vida e no cotidiano das pessoas.

No artigo O conto do vigário e outros contos: revoltas escravas no Espírito Santo dos oitocentos, Rodrigo da Silva Goularte capta interpretações sobre as tensões sociais e políticas que envolvia a independência do Brasil e as rebeliões escravas no Espírito Santo.

A discussão de Carlos Eduardo da Silva Moraes Cardozo em Ó Pátria Amada, Salve, Salve: reflexões sobre nação, identidade nacional e juventude brasileira, o autor reflete, teoricamente, a articulação entre o conceito de nação elaborado por Benedict Anderson e o fenômeno que abrange os jovens contemporâneos que é a reconfiguração e reteritorialização dos jovens no Brasil ao serem presentes nos espaços das redes sociais.

Mayara Amanda Januário, no texto Ofícios, Celibato e Identidade Clerical: o padre Francisco Lopes Lima, discute a possibilidade de uma identidade clerical focada no estudo de caso do padre Francisco Lopes Lima, este recebeu sentença da Inquisição tendo recebido como pena a interdição das suas atividades como clérigo. A autora demonstra a partir de sua pesquisa a possível aplicabilidade dos métodos da “micro historia” para o caso específico.

Fechando a seção Dossiê Temático, o autor Guilherme Mascarenhas em Um Estudo Temático Comparativo Entre a Sacralidade do Infante Santo, D. Fernando, e o Messianismo de D. Sebastião demonstra como a diversidade de aspectos relacionados ao sebastianismo podem ter relação com o discurso de santidade do culto ao Infante Santo. É uma investida interessante do autor, que descortina um encadeamento de tradições e discursos que permaneciam no silêncio, e aqui eles são trazidos à tona.

Na seção História Na Sala de Aula, espaço dedicado a trabalhos que abordam as práticas de ensino envolvendo a disciplina de História nos ensino fundamental e médio, encontra-se a pesquisa de Cássia da Silva Dias, Joseane Pereira Souza e Iara Silva A Utilização de Programações Televisivas No Ensino de História: as representações de mulheres negras e indígenas no programa “Zorra Total” que discute como as mulheres de descendência africana e indígena são representadas nesse programa de humor da televisão no Brasil. Demonstrando que os programas televisivos não apenas se apresentam como bons recursos a serem usados na sala de aula, como evidenciam os tipos de conteúdos que jovens, crianças e adultos tem acesso em suas casas.

A seção Artigos Livres, dedicada a artigos que abordam diversas temáticas que não necessariamente precisem contemplar o dossiê temático, tem-se o artigo de Eliseu Santos Ferreira Silva, Criminalidade e Cotidiano No Município de Cachoeira e Seus Termos (1890-1893) que objetiva levantar casos relacionados à criminalidade na cidade de Cachoeira para ter uma compreensão dos significados e experiências dos crimes e dos comportamentos dos indivíduos que os praticaram.

As contribuições dos autores para o entendimento de diversos períodos da história é uma realidade nesta edição. Espera-se que os trabalhos selecionados e publicados sejam estimuladores de discussões e produções de conhecimentos. Este é um dos ideais em que a Revista Eletrônica Discente História.com se ancora, seguindo o ideal acadêmico de que ela deve servir não apenas para a divulgação de trabalhos, mas como meio de disseminação e apropriação de conhecimentos, além de ser um canal de diálogo entre os estudiosos do país.

Equipe Editorial

Adalton Passos Barbosa

Antonio Cleber da Conceição Lemos

Elder Luan dos Santos Silva

Elias dos Santos Conceição

Geferson Santana de Jesus

Iansmin de Oliveira

Gonçalves João Paulo Pinto do Carmo


BARBOSA, Adalton Passos; LEMOS, Antonio Cleber da Conceição; et al. Apresentação. História.com. Cachoeira, v.1, n.1, 2013. Acessar publicação original [DR]

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Ideia, cultura e política na América Latina / Dimensões / 2012

Neste número, a revista Dimensões apresenta um conjunto de trabalhos que procuram integrar história política, intelectual e cultural. O campo dos estudos que pensa as relações entre política e cultura ainda está em construção na América Latina, embora tenha conquistado diversos avanços. Entre eles está a consolidação de núcleos de pesquisa dedicados à história intelectual, como o Centro de Historia Intelectual da Universidad Nacional de Quilmes, na Argentina. Na mesma linha, temos observado o crescimento de periódicos dedicados ao tema, como Prisma – Revista de Historia Intelectual, La Razón Historica – Revista Hispanoamericana de Historia de las Ideas Políticas y Sociales e Estudios de Filosofía Práctica e Historia de las Ideas, além da publicação de projetos amplos sobre a história dos intelectuais no continente, como a recente publicação em dois volumes da Historia de los intelectuales en América Latina, organizada por Carlos Altamirano. Nesse sentido, acreditamos que as atividades do Laboratório de História Política e História das Ideias – LEHPI, que coordenamos na UFES, seja uma contribuição para este campo em expansão. Leia Mais

Gênero, cultura, identidades: experiências e narrativas / Revista Mosaico / 2012

Gênero, cultura, identidades: experiências e narrativas é título e tema do dossiê que integra o presente volume da Revista Mosaico da PUC Goiás, organizado pelas professoras Maria do Espírito Santo Rosa Cavalcante (PUC Goiás), Maria Zeneide Magalhães Carneiro de Almeida (PUC Goiás) e Diva do Couto Gontijo Muniz (UnB).

Ao contemplar tal temática, a Mosaico traduz uma política editorial sintonizada com a contemporaneidade do campo historiográfico brasileiro, reconhecidamente ampliado no que tange aos seus objetos, suas abordagens, problematizações, perspectivas e fontes.

A perspectiva dos estudos de gênero e a abordagem interdisciplinar informam e aglutinam as reflexões das autoras de diferentes universidades do país, cujos artigos compõem o presente dossiê: “O governo de Rosas em Camila (1984) – filme de Bemberg”, de Alciene Cavalcante (UFF); “Perfis femininos na literatura infantil: uma abordagem histórica e comparativa (1930-1950)”, de Ana Carolina Siqueira Veloso (UERJ) e Marcia Cabral da Silva (UERJ); “A Revista Feminina e suas imagens: narrativas visuais de discursos de gênero”, de Ana Carolina Eiras Coelho Soares (UERJ); “Gênero, sexualidade e sedução no discurso jurídico”, de Claudia Jesus Maia (Unimontes / MG) e Renata Santos Maia (Unimontes / MG); “Mulheres e política: a participação nos movimentos abolicionistas do século XIX”, de Diva do Couto Gontijo Muniz (UnB) e Fabiana Francisca Macena (UnB); “Santa Casa da Misericórdia na Capital da Corte Imperial: o abandono, a honra e o progresso impressos em corpos de mulheres escravizadas”, de Maria Elizabeth Ribeiro Carneiro (INHIS / UFU / MG); “Carregadeiras d’água: um ofício silenciado pela modernização em Vila Boa de Goiás”, de Lúcia Ramos de Souza (FACMAIS / GO); e “Uma experiência de História em Clarice Lispector”, de Albertina Vicentini (PUC Goiás).

Na segunda parte deste número da Mosaico, na seção temas livres, dois artigos avulsos: “A imprensa e os usos do passado: o projeto de Armando Salles Oliveira e o grupo político do jornal O Estado de São Paulo (1933-1934)”, de Carolina Soares de Sousa (UnB), e “Representações literárias do sertanejo em “ O Tronco”, de Bernardo Élis, e em “Serra dos Pilões-Jagunços e Tropeiros”, de Moura Lima”, artigo de Daiany Ribeiro Teixeira (UFT) e Marina Haizenreder Ertzogue (UFT).

Convidamos você, leitor, a compartilhar de uma história pensada diferentemente.

Maria do Espírito Santo Rosa Cavalcante

Maria Zeneide Magalhães Carneiro de Almeida

Diva do Couto Gontijo Muniz

As organizadoras


CAVALCANTE, Maria do Espírito Santo Rosa; ALMEIDA, Maria Zeneide Magalhães Carneiro de; MUNIZ, Diva do Couto Gontijo. Editorial. Revista Mosaico. Goiânia, v.5, n.1, jan. / jun., 2012. Acessar publicação original [DR]

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Cultura e Religiosidade / Revista Trilhas da História / 2012

A Revista Trilhas da História, do curso de História da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, Câmpus de Três Lagoas, chega a seu segundo número com a felicidade de contar com colaboradores que endossam e contribuem sobremaneira com a maior vocação desse periódico, a saber, constituir-se cada vez mais em veículo do saber acadêmico sério, democrático e representante de um conhecimento histórico na sua melhor relação com outras disciplinas humanas.

O presente dossiê “Cultura e Religiosidade” foi pensado a partir do “II Simpósio Internacional de História e XIV Semana de História da UFMS / CPTL, Cultura e Religiosidade: abordagens e métodos”, em 2011, e dá continuidade aquela temática e seus escopos, ou seja, cuidar de dois conceitos tão ricos à historiografia como às ciências humanas que a auxiliam e a enriquecem. Por isso, como o leitor poderá averiguar aqui, assistimos a feliz contribuição de abordagens sociológicas, antropológicas e históricas nas suas mais diversas abordagens, assim como de seus respectivos especialistas. Igualmente pudemos contemplar temporalidades múltiplas, espacialidades específicas, fontes e objetos singulares, sem perder de vista a dupla temática que une a todos, “Cultura e Religiosidade”, as quais, por sua vez, estão em estreita consonância, se tivermos por parâmetro as abordagens multidisciplinares a respeito da cultura, entendida agora, mais por sua universalidade do que, por exemplo, por sua tradicional e estanque dualidade “erudita”, “popular”.

Como já se disse, a cultura popular é aquela que contempla e oferece às mais diversas camadas sociais, um denominador comum cultural; por fim, que populariza algumas expressões, visões de mundo, formuladas tanto por uma camada mais erudita como aquela proveniente das tradições ditas folclóricas, orais, mais ligadas à memória, as suas modificações e retificações mais dinâmicas, caracterizada ainda por uma licença criadora e sensível as instabilidades do vivido e do experimentado, da policromada visão de mundo apresentada pelas práticas e pelos conceberes cotidianos. Daí que a religiosidade, no âmbito da relação homem / sagrado, é uma das mais ricas expressões dessa cultura popular.

A religião, ou sua melhor expressão no âmbito dessa cultura, a religiosidade, liberta os conceberes e os sentimentos humanos das amarras do canônico, erigi-se em um fenômeno humano privilegiado que liga o homem ao simbólico, as sensibilidades, aos ideários e sentimentos mais profundos daquela universal visão de mundo humana que são os arquétipos, o denominador comum que nos liga, ainda que modificado espaço-temporalmente por tradições socioculturais específicas sobre o qual recai a essência do existir e da experiência humana.

Por isso, a religiosidade só pode falar do sagrado enquanto cuide do humano e o entenda inserido em uma cultura específica, embora extrapole seus próprios limites em razão desse duplo denominador comum: aquele que abole ou relativiza a dualidade erudito / popular e aquele que une as diversas tradições socioculturais, quando se busca a universalidade e a essencialidade do ser e existir humano, presente sobretudo nas abordagens de longa duração, das emoções que, não obstante, inferindo mesmo na razão, prezam mais pelas permanências que pelas transformações.

Portanto, apresentamos aqui artigos que endossam e testemunham a importância e a amplitude do que vimos expondo. Textos que cuidam das vicissitudes do cristianismo antigo em sua confrontação ou conformação com espaços e tradições culturais a princípio a ele não tão consoantes, como as cidades e territórios povoados por outras tradições socioculturais e religiosas (Gilvan Ventura da Silva); que cuidam do cristianismo medieval, sobretudo a partir da visão da religiosidade por escritos oriundos da tradição erudita (Everton Grein). Trabalhos mais estreitamente ligados a uma abordagem antropológica da religião, como a construção do estereótipo da feiticeira a partir de uma visão tanto da Igreja, quanto da cultura popular, de onde se destaca, ademais, o papel da mulher na História (Helen Ulhoa Pimentel); ou das práticas religiosas afro-brasileiras no seu embate com a cultura cristã, fundamentada numa visão católica, a qual sempre procedeu em um sentido de “demonização” das religiosidades fundadas numa visão animista e politeísta do sagrado, estigmatizando essas práticas não só no campo do espiritual, mas na e pela sociedade tradicional, a exemplo da macumba, pelo Tribunal de Justiça de São Paulo (Roberta Soares Machado; Mario Teixeira de Sá Junior); ou aquele que trata de uma abordagem mais sociológica, das influências na visa social a partir do aparecimento de novas denominações religiosas, as igrejas neopentencostais, e seu influxo na vida social e psicológica dos novos adeptos (Claudia Neves; Denice Barboza de Souza; Patricia Vicente Dutra).

A contribuição a esse número fica ainda por conta dos ensaios de graduação apresentando temas como: a cultura camponesa, com ênfase para o modo de vida do camponês em confronto com o do latifundiário (Wagner José da Rosa), a religiosidade popular colonial e as dimensões do sagrado e o profano (Marcos Sanches da Costa) e a história da 2ª. estação ferroviária de Londrina – PR, vista como portal de ferro, expressão de um estilo urbanístico e ao mesmo tempo lugar de cultura (Priscilla Perrud Silva). Tem-se ainda a resenha de um livro que contempla a temática da história, gênero e sexualidade (Tânia Regina Zimmermann).

Encerrando os trabalhos tem-se como fonte a Entrevista realizada por Lourival dos Santos com Vicente Paula da Silva, devoto de Nossa Senhora Aparecida. A partir da transcriação, o autor nos apresenta um exercício de análise e tratamento da fonte oral, interpretada como testemunho das visões e práticas da religião católica popular brasileira.

De modo especial desejo lembrar da professora Maria Celma Borges (UFMS / CPTL) que, embora não tendo seu nome constando diretamente nesse número, foi a sua mais calorosa e laboriosa promotora, como o foi para o número anterior, e já tem sido para os próximos.

Queremos assim, expressar nossos agradecimentos a todos os colaboradores desse Dossiê, professores, pós-graduando, alunos de graduação; àqueles que doaram um pouco de si, que nos presentearam com aquilo que deve lhes ser mais rico e laborioso, ou seja, o trabalho escrito, fruto moroso e amadurecido de leituras, reflexões, discussões e que expõe aquilo que vivemos nas relações mais particulares conosco mesmo em nossos gabinetes para colaborar com a vida acadêmica e com a sociedade humana de uma forma mais geral.

Ronaldo Amaral

Inverno de 2012


AMARAL, Ronaldo. Apresentação. Revista Trilhas da História. Três Lagoas, v.1, n.2, jan. / jun., 2012. Acessar publicação original [DR]

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Religiões: história, política e cultura na era contemporânea / História – Questões & Debates / 2011

Neste presente volume da revista História: Questões & Debates apresentamos o dossiê “Religiões: História, Política e Cultura na Era Contemporânea”, reunindo nove artigos de historiadores brasileiros e estrangeiros que examinam diversas expressões do cristianismo em seus conflitos e redes de solidariedade. Além disso, o dossiê traz considerações sobre como a História das Religiões vem se constituindo como campo de estudos no mundo ocidental em decorrência de transformações no próprio status da religião no período contemporâneo.

O artigo de Karina Kosicki Bellotti (Universidade Federal do Paraná), “História das Religiões: conceitos e debates na era contemporânea”, explora a historicidade do conceito de religião, que se dessacralizou aos olhos da ciência para se tornar objeto de pesquisa desde meados do século XIX na Europa. Esse trabalho aponta para novos campos de estudos e novos objetos que a História Cultural das Religiões vem constituindo nos últimos anos, tomando por abordagem cultural tanto produções artísticas como de cultura de massa e de modos de viver na contemporaneidade. Por sua vez, o artigo de Elton Nunes (PUC-SP), “Teoria e metodologia em História das Religiões no Brasil: o estado da arte”, discute as produções mais recentes na área de História das Religiões no Brasil nas últimas décadas, explicando as razões pelas quais o tema das religiões em suas diferentes interfaces atrai cada vez mais historiadores, em contraste com um período extenso de nossa história acadêmica em que pouca atenção lhe foi dispensada.

Em seguida, há quatro artigos que abordam diferentes embates políticos e culturais enfrentados pelo catolicismo nos séculos XIX e XX: primeiramente, o artigo de Antonio Moliner Prada (Universidad Autónoma de Barcelona), “Clericalismo y anticlericalismo en la España Contemporánea”, que discute as configurações do anticlericalismo e da irreligiosidade na Espanha dos séculos XIX e XX, apontando para o jogo de forças e embates políticos e religiosos em torno de projetos de modernidade cultural e política. O escasso desenvolvimento do catolicismo liberal e a divisão interna dos católicos motivaram o auge do clericalismo e o aparecimento do anticlericalismo violento em diferentes momentos entre o início do século XIX até a Guerra Civil Espanhola (1936-1939).

Seu artigo aponta para os problemas dos conflitos religiosos, mostrando a importância do desenvolvimento de um diálogo inter-religioso em um mundo multicultural. O artigo de Euclides Marchi (Universidade Federal do Paraná), “Igreja e povo: católicos? Os olhares do padre Júlio Maria e de Dom Sebastião Leme da Silveira Cintra sobre a catolicidade do brasileiro na passagem do século XIX para o XX”, analisa os textos publicados pelo Padre Júlio Maria de Morais Carneiro e por Dom Sebastião Leme da Silveira Cintra em 1898 e 1916, respectivamente, os quais expressavam sua visão de Igreja e dos católicos no final do século XIX e nas primeiras décadas do século XX. Ao fazer o diagnóstico dos males que afetavam a sociedade e a Igreja, ambos apontavam remédios e soluções para adequar a catolicidade aos parâmetros exigidos pela implantação das reformas romanizadoras adotadas desde a segunda metade do século XIX e pela contundência dos problemas que afetavam a sociedade mundial e brasileira.

O texto de Marcos Gonçalves (Universidade Estadual do Paraná – Unespar), “Nostalgia e exílio: o intelectual católico Galvão de Sousa e a ideia de ‘hispanidade’”, discute a noção de uma identidade hispânica desenvolvida em parte da reflexão do intelectual católico José Pedro Galvão de Sousa (1912-1992). Requisitado nos círculos católicos tradicionalistas, monárquicos e integristas de ambientação ibérica, Galvão de Sousa é um dos difusores desse pensamento no Brasil. Nostálgico dos regimes monárquicos e teórico do corporativismo, o intelectual em questão busca lugar para uma concepção de mundo que se defronta perante um amplo cenário de mudanças ideológicas e doutrinárias estabelecidas nas décadas de 1960-70: o avanço da teologia da libertação, o Concílio Vaticano II e, num contexto histórico mais imediato, a ditadura militar brasileira.

Em “A Liga Eleitoral Católica e a participação da Igreja Católica nas eleições de 1954 para a Prefeitura de Curitiba”, Renato Augusto Carneiro Junior (Unicuritiba-Museu Paranaense) analisa as relações entre o Estado brasileiro e a Igreja Católica, enfocando as atividades da Liga Eleitoral Católica (LEC) nos primeiros anos da década de 1950, em Curitiba, analisando como a Igreja Católica, por meio da LEC, buscava influenciar o resultado das eleições para a Prefeitura de Curitiba, em 1954, participando do jogo político ao indicar de forma clara os candidatos que poderiam ser apoiados pelos católicos.

O artigo de Eduardo Gusmão Quadros (Universidade Estadual de Goiás e PUC-GO), “O vírus protestante e a ação profilática de um bispo de Goiás”, enfoca o conflito entre católicos e protestantes no início do século XX a partir de um estudo de caso. No ano de 1918, o bispo de Goiás, D. Prudêncio Gomes da Silva, publicou a carta pastoral “Sobre o protestantismo”, contra a presença protestante que se iniciava naquele Estado. O historiador analisa o conjunto de representações, valores e estratégias evocados naquela carta para o combate ao protestantismo, mostrando os pontos em comum entre o catolicismo romanizado e a pregação protestante.

Em tais artigos, observamos a multiplicidade de expressões do catolicismo, envolvido em embates internos e externos. Os agentes dessa história são tanto lideranças quanto leigos, em um período em que a hegemonia católica no Brasil e na Espanha se vê enfraquecida diante do processo de modernização e competição religiosa – e irreligiosa – em curso desde o século XIX na sociedade ocidental como um todo. Nesse caso, história, política e cultura se entrecruzam para mostrar os diferentes papéis que a religião passa a assumir no período contemporâneo.

Por fim, dois artigos internacionais trabalham com fenômenos de transnacionalização – os caminhos da Teologia da Prosperidade no Brasil e na América Latina são o tema do artigo de Virginia Garrard-Burnett (University of Texas at Austin), “A vida abundante: a teologia da prosperidade na América Latina”, que demonstra os sentidos adquiridos por essa crença e prática religiosa desde a sua gênese norte-americana no século XIX até a evangelização empreendida pela Igreja Universal do Reino de Deus nos Estados Unidos, África e Europa, além da atuação de outras igrejas da Ásia e África, que miram ao bem-estar de seus fiéis neste mundo. Fechamos com o esmerado estudo de R. Andrew Chesnut (Virginia Commonwealth University) sobre a popularização do culto de Santa Muerte no México e nos Estados Unidos desde o início dos anos 2000, entre diferentes estratos da população hispânica nos dois lados da fronteira. Reunindo entrevistas, depoimentos e estudos sobre santos populares não reconhecidos pela Igreja Católica, Chesnut explora as intersecções entre religião, mercado, devoção e circulação cultural para mostrar as diferentes faces da Santa Morte, que responde a diversas demandas de seus fiéis em um período de crescente recessão econômica e violência urbana endêmica.

Além do dossiê, o volume conta com o artigo “Cinema, esporte e Apartheid: considerações balizadas pelo filme ‘No futebol, nasce uma esperança’”, de André Mendes Capraro, Riqueldi Straub Lise e Natasha Santos, que analisa o filme No futebol, nasce uma esperança (originalmente More than just a game), cujo foco está na prática do futebol por prisioneiros políticos sul-africanos, durante o regime Apartheid. Tendo em pauta esta temática, questiona-se: seria o futebol realmente um meio propício para manifestações políticas contrárias ao sistema vigente na África do Sul – o regime Apartheid? Qual o significado da modalidade, naquele contexto específico, e como foi representado artisticamente na obra? Para responder a essas questões, adotou-se o procedimento metodológico denominado por Carlo Ginzburg (1996) de “paradigma indiciário”, a fim de identificar pistas e indícios que levassem a compreender a concepção histórica manifesta no filme.

Na sessão de resenhas, contamos com três textos: a resenha de Antônio César de Almeida Santos (Universidade Federal do Paraná) sobre a obra de Quentin Skinner, Visões da política: sobre os métodos históricos; as considerações de Naira de Almeida Nascimento (Universidade Tecnológica Federal do Paraná) sobre o livro Joana d’Arc, de Colette Beaune; e o texto de Diogo da Silva Roiz (doutorando da Universidade Federal do Paraná) sobre A Europa diante do espelho, de Josep Fontana.

Karina Kosicki Bellotti

Curitiba, dezembro de 2011


BELLOTTI, Karina Kosicki. Apresentação. História – Questões & Debates. Curitiba, v.55, n.2, jul./dez., 2011. Acessar publicação original [DR]

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Elementos materiais da cultura e do patrimônio / Varia História / 2011

Pensar sobre a materialidade e não apenas
a cultura material é um bom ponto de partida.

Arjun Appadurai[1]

As coisas existem e exigem gestos. O homem as inventa, as torna úteis e elas participam de sua sobrevivência e atendem às suas necessidades. Elas são por ele manipuladas como instrumentos de vivência, mas dele requerem gestos artesanais: as técnicas. As coisas conformam a materialidade da cultura, mas, também, são conformadas por significados que vão além de sua concretude. Elementos materiais de nossa cultura e a relevância de seus significados identitários são os objetos de reflexão do presente Dossiê. Se campo ou abordagem, se domínio ou enfoque, se plataforma ou subdisciplina, a tradicionalmente denominada cultura material é objeto importante da história e aqui é tratada como fundamental perspectiva de análise da história social da cultura em uma dimensão pluridisciplinar que articula materialidade, imaginário, simbologia, gestualidade, identidade.

O presente Dossiê, Elementos materiais da cultura e patrimônio, além de tudo, busca focar os elementos materiais da cultura como documentos de realidades sociais, não como reflexos destes, mas integrados à sua construção. Os objetos, assim, não são apenas fetiches ou simples detentores de sentidos sociais deslocados de seus usos. Como quer Vânia Carvalho,

o artefato, como qualquer documento, deve ser compreendido na sua intertextualidade, ou seja, dentro de um conjunto amplo de enunciados que dão sentido, valor, induzem e instrumentalizam as práticas.[2]

Temáticas ligadas à cultura material têm sido recorrentes no campo da História, a cada tempo e em cada lugar privilegiando temas vinculados à arte, às técnicas, aos significados sociais do cotidiano, à domesticidade ou à vida privada, às condutas comerciais, aos processos alimentares, aos consumos do homem etc. Embora não haja efetividade na busca de propostas definitivas de conceituação do termo, ele sempre aparece como uma nova possibilidade do fazer historiográfico. Optando pela obviedade (parâmetro que não pode ser negligenciado na temática da materialidade da cultura), resumiríamos que cultura material é o complexo e dinâmico repertório do que os homens são capazes de produzir, fazer circular e consumir. Tais dimensões das ações não apenas sinalizam a(s) funcionalidade(s) da criação humana, como também denotam os diferentes significados atribuídos a um dado artefato por uma comunidade e / ou sociedade ao longo do tempo.

O conjunto de textos deste dossiê busca subsidiar as reflexões sobre a temática e objetiva mostrar a amplitude de suas perspectivas nos estudos históricos. Tem como objeto os elementos materiais da cultura – expressão mais condizente com uma proposta de que o homem, ao construir culturas, faz coisas concretas e essas são dignas de serem historiadas, oferecendo possibilidades de construírem-se como manifestações sociais identitárias que nomeamos de patrimônio cultural – material e imaterial. Essa última expressão vem nomeando os valores, os símbolos, os modos de fazer e as técnicas decorrentes dessa materialidade da vida. A nosso ver, no entanto, não podem ser dissociados dela. Não há, a rigor, uma cultura que se possa cindir entre o material e o imaterial. O chamado patrimônio imaterial é, sendo mais rigoroso, patrimônio vivencial ou experencial.

Partimos do pressuposto de que os historiadores podem tomar os elementos concretos da cultura, em si mesmos, como expressão social, na dinâmica dos interesses econômicos, das convicções ideológicas; como representações sociais de valores e de símbolos de relevâncias humanas. Cada um deles pode ser compreendido no bojo das relações sociais que os produzem. Concebidos, pois, como matéria da História, os elementos materiais da cultura tornam-se objeto de estudo e análise histórica, ou seja, permitem ao historiador compreendê-los e explicá-los integrados e conformados nas relações sócio-culturais de uma dada realidade histórica.

A recorrência da temática no campo da história e das outras ciências sociais permite novos e enriquecedores enfoques, mas, apenas para ficarmos no último século, nos remete aos trabalhos de Fernand Braudel, Sérgio Buarque de Holanda, Giovanni Levi, Daniel Roche e tantos outros e, mais recentemente, aos estudos acerca do crescente e dinâmico consumo de produtos pelas sociedades a partir do século XVII, sem esquecer que consumos nos indicam, também, gostos, distinções sociais, estratégias de sociabilidade e de poder, como são exemplos os textos de John Brewer, Roy Porter, Lorna Weatherill, Woodruff D. Smith, Jan de Vries, Mary Douglas, Marshall Sahlins, Colin Campbell, Deyan Sudjic, Daniel Miller, Pierre Bourdier e Arjun Appadurai, só para citar alguns.[3]

Como nos atenta Daniel Roche, lembrando a reflexão de Karl Gottlob Schelle ao buscar “reconciliar a filosofia com o cotidiano”, é preciso especular sobre “os objetos da vida” e buscar a compreensão das nossas relações com as coisas e de nossas mediações com os objetos e com o mundo.[4] Para o autor, a noção de cultura material, pouco definida, “permite aos historiadores de qualquer período e de qualquer área cultural relacionar um conjunto de fatos marginais em relação ao essencial, o político, o religioso, o social, o econômico”, possibilitando perceber as “adaptações” que os homens fazem ao viver, “através das quais o natural se revela fundamentalmente cultural”.[5]

As coisas e os objetos da fatura humana não podem ser dissociados das realidades vividas.[6] Na História, teóricos marxistas construíram as primeiras tentativas conceituais para expressar tal relação como cultura material. Tentaram delimitar seu campo para a história posicionando seus limites nos meios de trabalho (o homem e os utensílios), no objeto do trabalho (as riquezas materiais, as matérias primas), na experiência humana nos processos de produção (as técnicas), na utilização dos produtos materiais (o consumo), como se posicionou Henri Dunajewski. Também firmaram outra percepção, simplificando esse esquema anterior e restringindo o campo da cultura material, às condições naturais e às modificações que o homem imprime ao meio, gerando produtos, como definiu Jerzy Kulczyski.[7] Ao pensar elementos materiais na construção das culturas não podemos nos restringir ao campo das técnicas, mesmo entendendo a expressão braudeliana de que “tudo é técnica”.[8] As relações humanas nos usos de seus objetos de sobrevivência e de produção, são mais que os artifícios técnicos. Como quer André Leroi-Gourhan, “Nunca se tinha pensado que quem possui o fuso conhece também o movimento circular alternado e que quem utiliza a roda de fiar utiliza também o moinho e o torno do oleiro”.[9] Diríamos, parafraseando Braudel, que tudo é ação humana e que as técnicas são indissociáveis das ações / relações. Ele próprio completa a sua conclusão anterior exprimindo que “A técnica nunca anda só”.[10]

Podemos distinguir a materialidade da cultura das representações mentais e do pensamento religioso, político, filosófico, artístico, da construção linguística etc, mas não podemos separá-los, tratá-los na individualidade redutiva. Advém dessa premissa, evitarmos a expressão cultura material e adotarmos elementos materiais da cultura, do mesmo modo que estranhamos acima a ideia de uma cultura material e de uma cultura imaterial, separadas em didatismo simplificador. No processo de vivência, ou de outra forma, na dinâmica das experiências humanas ao viver, tudo é cultura, intrinsecamente compondo repertórios de construções de realidades.

Nesses termos, a pesquisa histórica objetiva, não apenas a descrição dos objetos e das técnicas em um processo temporal de mudanças e de permanências, mas a interpretação de realidades sociais que os usam, distintas no tempo. Como quer Daniel Roche:

Os objetos, as relações físicas ou humanas que eles criam não podem se reduzir a uma simples materialidade, nem a simples instrumentos de comunicação ou de distinção social. Eles não pertencem apenas ao porão ou ao sótão, ou então simultaneamente aos dois, e devemos recolocá-los em redes de abstração e sensibilidade essenciais à compreensão dos fatos sociais.[11]

A compreensão dos fatos sociais a partir de sua materialidade é, enfim, o objeto de reflexão dos textos aqui apresentados.

Os elementos materiais de qualquer cultura denotam a construção cotidiana da vida e, assim, têm sido objetos da história do cotidiano. Não apenas os hábitos de consumo e os produtos e serviços feitos e consumidos, mas os significados atribuídos a todas as ações do ser humano e aos instrumentais por ele inventados na relação com o mundo natural, na busca da sobrevivência, no atendimento das suas necessidades, na construção dos gostos, na edificação do repertório de sua cultura. Materialidade e imaterialidade são inseparáveis na análise desse repertório, mesmo que distinguíveis entre si.

O aumento da gama de produtos a que a população tem acesso a partir do processo de contato globalizado da modernidade tem estimulado, no âmbito dos estudos históricos, as reflexões temáticas sobre os elementos materiais da cultura. No entanto, a materialidade de períodos históricos anteriores, também, motiva estudos em perspectivas e enfoques novos.[12]

Esses artefatos da vida são cada vez mais numerosos, complexos e produzidos em velocidade cada vez mais acelerada. A conservação desses objetos no tempo – através do uso e da guarda memorialística, associada aos significados e aos valores a eles atribuídos, evidenciando formas de viver, de manifestar saberes e fazeres, de memorizar sentidos e condutas que não se querem esquecidas, enfim, um acervo de coisas e de gestos, de vivências -, configura patrimônios e formas de patrimonialização, a outra vertente, neste Dossiê, de nosso olhar sobre a materialidade da cultura.

Vivemos um tempo de padronizações de processos interpretativos da cultura que culminam em pasteurizações empobrecedoras da diversidade cultural. Paradoxalmente, os registros do dito patrimônio imaterial suscitam a ampliação do conceito de patrimônio cultural, mas, por outro lado, estimulam um esquadrinhamento didático que reduz a visão sobre a complexidade dinâmica das culturas. Linguagens interpretativas e museológicas tornam-se, assim, um campo de saber exigente e requerem criatividade que ressalte tal dinamicidade e diversidade. Legislações de salvaguarda e práticas educativas exigem igual criatividade. Caso contrário, teremos um gestual interpretativo das manifestações de cultura a negar tal diversidade. No caso da preservação de patrimônios urbanos o risco de homogeneidade é claro e já mensurável e, como critica Henri-Pierre Jeudy segue a mesma fórmula de patrimonialização, estetização, espetacularização, padronização e gentrificação.[13] No Brasil temos exemplos dessa “globalização” empobrecedora, onde as singularidades locais foram extintas, em nome de uma estética urbana uniformizada que atende a um gosto equilibrado / massificado.

As contribuições textuais a este Dossiê, a cujos dedicados autores agradecemos, são exemplos claros dessa diversidade de olhares sobre a materialidade de nossas vivências na história. Em um eixo que traça um percurso de reflexões teóricas e temáticas e que objetiva pensar objetos como bens materiais e identitários e suas formas de constituir riquezas, saberes, consumos, gostos, técnicas e, também, memórias, os textos promovem um diálogo essencial, na medida em que suas leituras ajustam sintonias e promovem embates de pensamentos diversos.

Os artigos dos convidados percorrem um eixo que integra padrões metodológicos e narrativas interpretativas, com problemáticas muito presentes na atualidade: a construção de riquezas familiares, as práticas alimentares, a domesticidade, os processos interpretativos do patrimônio e de musealização, os saberes tradicionais, os usos da água, a educação patrimonial e a leitura documental do historiador. Todos eles discutem a investigação temática e os problemas frente às fontes da materialidade da cultura ou as linguagens memorialísticas do processo de patrimonialização e de musealização.

Em sequência, Legados de um passado escravista: cultura material e riqueza em Minas Gerais, de Cláudia Eliane Parreira Marques Martinez, associa a investigação sobre a materialidade e a riqueza, como estratégia para a compreensão da sociedade escravista diante do fim da escravidão. O problema investigado é a re-organização da riqueza e dos padrões materiais no pós-1888. Seguindo os passos de Ulpiano Toledo Bezerra de Meneses, a autora lê os Inventários post mortem como possibilidades de “inflexão no circuito da vida social do artefato”.

Cultura material, espaço doméstico e musealização, de Vânia Carneiro de Carvalho, é um estudo das dimensões materiais da vida social e suas formas de expressão no processo curatorial no museu histórico. O museu é visto pela autora como um instrumento estratégico para fomentar as investigações sobre o espaço doméstico e este é tomado “como um lugar fértil para a incorporação das formas de distinção social e de gênero por meio do uso de objetos”.

Em Cultura, história, valores patrimoniais e museus (Culture, histoire, valeurs patrimoniales et musées), Dominique Poulot reflete sobre as diferentes formas de apropriação da ideia de patrimônio no mundo moderno, a partir do século XVIII. Para o autor, o termo patrimônio tem, na atualidade, grande poder de evocação e os museus de história são lugares onde essa evocação parece acompanhar o fluxo da produção contemporânea de artefatos. O museu, lugar exemplar de interpretação histórica e formal específica, conforma diferentes formas de problematizar o passado material, onde a materialidade e a inteligibilidade de seu contexto andam juntas.

Maria Eliza Linhares Borges nos apresenta em Cultura dos ofícios: patrimônio, história e memória, um ethos fundado em formas artesanais de produção e em suas estratégias de regulação, transmissão de saberes, expressão de valores, crenças, comportamentos e sociabilidades que, frente aos modos industriais de produção, tornam-se “pitorescos” e jogados à sombra pelos museus e pela cultura visual. Para a autora, a memória dessa cultura é idealizada “porque saudosista e nostálgica”, mas reconhece que o “tempo gramatical da Cultura dos Ofícios foi mais longo do que se imagina”.

Em A patrimonialização dos saberes técnicos, entre história e memória: o caso dos depósitos de invenção na França e na Inglaterra (La patrimonialisation des savoirs techniques, entre Histoire et Mémoire: le cas des dépôts d’invention en France et Angleterre au XVIIIe siècle), Liliane Hilaire-Pérez trata da tensão entre História e Memória no processo de patrimonialização dos saberes e do papel dos “depósitos legais” que, a partir do século XVIII, inauguram nova forma de pensar o patrimônio, distinta daquela das coleções, gabinetes e museus. A autora, refletindo sobre casos concretos de uma prática nova na França e na Inglaterra, contrapõe um novo direito na economia do conhecimento e nos mercados de inovação técnica com o papel memorialístico da guarda de saberes e de sua importância como leitura das identidades de comunidades técnicas novas, mesmo com a participação das tradicionais corporações de ofícios.

Jaime Rodrigues, na linha de uma história social da alimentação que considera integrados a produção, o consumo e a construção do gosto, analisa o impacto da industrialização, da renda familiar e da propaganda na tradição alimentar paulistana no século XX. Seu texto, Uma história das práticas alimentares de trabalhadores paulistanos em dois momentos do século XX, tem como problema as relações entre culinária e memória, sobretudo no âmbito familiar, analisando-as pelos seus vestígios materiais – a materialidade dos próprios alimentos, de suas embalagens e de suas peças promocionais – e simbólicos.

O desenho e a história da técnica na Arquitetura do Brasil colonial é o texto de Marcos Tognon que propõe aos historiadores um conjunto de procedimentos para explorar os valores artísticos e técnicos dos desenhos como importantes registros documentais. Como fontes, essas “representações” são, para o autor, linguagens capazes de referenciar claramente as mais distintas realidades arquitetônicas. Assim, propõe quatro abordagens que contrapõem o plano artístico e a materialidade cotidiana das edificações.

O artigo de Jesús Raúl Navarro García, Salud y Paisaje: contribución desde el Termalismo a la revitalización de zonas rurales (El caso de Pozo Amargo, cuenca del Guadaira, España), apresenta um processo de interpretação do patrimônio paisagístico (natural) e material (cultural) ligado ao uso da água em instalações termais, onde ação governamental e cidadã se integram em projeto econômico. Historia essa materialidade integrada à paisagem, desde o século XVIII, numa tradição de ligar o ócio à “recuperação anímica” dos visitantes do lugar. O texto nos trás importante reflexão sobre o conceito de paisagem e as teorias acerca de seu papel como patrimônio histórico-cultural, contrapondo suas dimensões natural-hidrológica, cultural, utópica, arquitetônica, material. É, enfim, a interpretação histórica de uma ideia de bem-estar que harmonizava homem e paisagem, como propugnava o geógrafo anarquista Élisée Reclus.

A presença de estudantes: o encontro de museus e escola no Brasil a partir da década de 50 do século XX é o texto de Paulo Knauss que interpreta as raízes da renovação do debate sobre museus e educação a partir de experiências de 1950 e de anos anteriores, como no caso da criação do Museu Histórico Nacional, em 1922, e o do Museu Mariano Procópio, na cidade de Juiz de Fora, que se distinguem dos “museus de ciência” criados no século XIX. Knauss mostra como a questão da relação entre museus e educação contribuiu para renovar o conceito de museus e o perfil dos profissionais de museus no Brasil. As fontes de análise do autor são os textos produzidos por intelectuais do período, ligados aos museus históricos, publicados como livros ou artigos em revistas e que têm como tema a museologia como instrumento educativo da juventude. Nessa história dos museus brasileiros no século XX, o autor percebe a busca do encontro das instituições museológicas e de educação e a força crescente de um diálogo inevitável.

Os homens constroem coisas, seus nomes e gestos que as colocam como instrumentos. Além de tudo, como afirma o dito popular, se tem nome é porque a coisa existe. Inspirado nessa premissa banal articulamos no Dossiê que se apresenta a força temática e documental dos elementos materiais da cultura e do patrimônio cultural com o instrumental de memórias, imaginários, simbologias, técnicas e gestualidades. Seguimos com isso, a tradição das Ciências Humanas e temos a expectativa da crítica dos leitores.

Belo Horizonte, julho de 2011.

Notas

1.Em entrevista concedida à Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v.23, n. 45, p187-198, janeiro-junho, 2010.
2.CARVALHO, Vânia Carneiro de. Gênero e cultura material: uma introdução bibliográfica. Anais do Museu Paulista, São Paulo, v.8-9, p.293-324, 306, 2000-2002. Ver também REDE, Marcelo. Estudos de cultura material: uma vertente francesa. Museu Paulista, São Paulo, v.8-9, p.281-291, 2000-2002.
3. Para citar algumas obras que nos remetem a essa perspectiva de análise histórica: BRAUDEL, Fernand. Civilização material, economia e capitalismo, séculos XV-XVIII. São Paulo: Martins Fontes, 1995. 3 vols.; HOLANDA, Sérgio Buarque de. Caminhos e fronteiras. São Paulo: Companhia das Letras, 1994; LEVI, Giovanni. A herança imaterial. Trajetória de um exorcista no Piemonte do século XVII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000; ROCHE, Daniel. História das coisas banais. Nascimento do consumo nas sociedades do século XVII ao XIX. Rio de Janeiro: Rocco, 2000; a edição organizada por BREWER, John e PORTER, Roy. (eds.) Consumptions and the world of goods. London-New York: Routledge, 1994, com textos de Jean-Christophe Agnew, Joyce Appleby, T.H. Breen, John Brewer, Peter Burke, Colin Campbell, Patricia Cline Cohen, David Cressy, Jan de Vries, Cissie Fairchilds, C.Y. Ferdinand, Iaroslav Isaievych, Sidney Mintz, John Money, Chandra Mukerji, Jeremy D. Popkin, Roy Porter e Simon Schaffer; WEATHERILL, Lorna. Consumer behaviour and material culture in Britain, 1660-1760. New York: Routledge, 1996; SMITH, Woodruff D. Consumption and the making of respectability. 1600-1800. New York: Routledge, 2002; DE VRIES, Jan. The industrious revolution: consumer behavior and the household economy, 1650 to the Present. Cambridge: Cambridge University Press, 2008; APPADURAI, Arjun. (org.) A vida social das coisas. Niterói: EdUFF, 2008.
4. ROCHE, Daniel. História das coisas banais. Nascimento do consumo nas sociedades do século XVII ao XIX. Rio de Janeiro: Rocco, 2000, p.11.
5. ROCHE, Daniel. História das coisas banais, p.12-13.
6. PESEZ, Jean-Marie. História da cultura material. In: LE GOFF, Jacques. A História Nova. São Paulo: Martins Fontes, 1993, p.177-213, 186.
7. PESEZ, Jean-Marie. História da cultura material, p.188.
8. BRAUDEL, Fernand. Civilização material, economia e capitalismo, p.303.
9. LEROI-GOURHAN. Cf. PESEZ, Jean Marie. A história da cultura material. In: LE GOFF, Jacques, CHARTIER, Roger e REVEL, Jacques. A Nova História, p.124.
10. BRAUDEL, Fernand. Civilização material, economia e capitalismo, p.397.
11. ROCHE, Daniel. História das coisas banais, p.13.
12. Como por exemplo, estudos sobre alimentação, família e patrimônio no mundo antigo e medieval, como, dentre outros, podemos citar REDE, Marcelo. Família e patrimônio na antiga Mesopotâmia. Rio de Janeiro: Editora Mauad X, 2007.
13. JEUDY, Henri-Pierre. Espelho das cidades. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2005. Este livro traduz e conjuga dois estudos do autor: La machinarie patrimoniale e Critique de l’esthetique urbaine. Embora contextualizado em uma realidade europeia da última década do século XX e primeira do XXI, as reflexões têm validade para a problemática das políticas de patrimonialização no Brasil.

José Newton Coelho Meneses – Departamento de História. UFMG. E-mail: jnmeneses@uol.com.br. Organizador


MENESES, José Newton Coelho. Apresentação. Varia História, Belo Horizonte, v.27, n.46, jul. / dez., 2011. Acessar publicação original [DR]

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Cultura e Poder / Revista Trilhas da História / 2011

A organização do Dossiê Cultura e Poder, apresentado como o primeiro número da Revista Trilhas da História, resulta da seleção de textos produzidos para o VI Ciclo de Palestras “A História em Movimento: Cultura e Poder na Antiguidade e no Tempo Presente”, ocorrido em 2010, no campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. Resulta também de trabalhos desenvolvidos no Curso, em 2011. Já no contexto do Ciclo tínhamos por objetivo discutir a história antiga e no tempo presente, buscando culturas, poderes e saberes em objetos, sujeitos e tempos distintos.

Se o objetivo, neste momento, é a abertura de trilhas na história, nada melhor que iniciarmos com o texto “Homossexualidade na Bíblia Hebraica ou uma Historiografia Bicha?”, de Fernando Cândido da Silva, ao problematizar, de forma provocativa, esta temática da cultura e poder, mostrando a sua relevância na construção de outras histórias, não apologéticas, nem muito menos neutras, mas reveladoras da potencialidade que o tema enuncia.

O texto “As transformações das imagens de Dioniso (séculos VI e V a.c): o caso da Tirania”, de Leandro Mendonça Barbosa, contribui semelhante ao anterior, para refletirmos sobre a importância dos estudos da antiguidade. Ao trabalhar, com maestria, as transformações da imagem de Dioniso, por meio da análise dos vasos fabricados nos séculos relacionados e de pesquisadores que tratam da temática, o autor discorre sobre a utilização deste deus pelos governos liderados pela tirania, observando como as divindades campestres tornaram-se presentes no meio urbano.

O texto “O Batalhão Sagrado de Tebas: militarismo e homoafetividade na Grécia Antiga”, de Fortunato Pastore, dando continuidade aos estudos da antiguidade, objetiva, conforme o autor, contribuir para a compreensão da “capacidade militar do Batalhão Sagrado de Tebas, unindo fatores e interpretações que, geralmente, se apresentam separadas ou com frágil vinculação”. O cerne está na discussão da relação entre a capacidade militar e a homoafetividade na Grécia Antiga, partindo da análise de Epaminondas, apresentado como o principal representante do Batalhão Sagrado de Tebas, e um dos responsáveis pelas inúmeras vitórias desse corpo militar.

Adentrando as reflexões do presente – ou de um presente mais próximo – a discussão de Isabel Camilo de Camargo, em “A ocupação de Paranaíba no século XIX e a gênese do latifúndio na região”, traz o debate do século XIX para este tempo, ao enunciar o processo de ocupação da terra no sul de Mato Grosso, e enfatizar a gênese da grande propriedade em Paranaíba, com o olhar para os sujeitos envolvidos. Sua discussão inova por propor um debate para além da história dos pioneiros, ao enfocar as pessoas comuns como agentes da história e problematizar a questão da escravidão, tão importante por adentrar na “periferia” da escrita da história e se dispor a discutir abordagens consagradas na historiografia regional.

O artigo “Dinâmica econômica e organização territorial da Mesorregião Leste de Mato Grosso do Sul”, de Patrícia Helena Minali e Edima Aranha Silva, ambas geógrafas, contribui para a história e a compreensão das relações de poder, ao enfocarem a “ferocidade das ações” e as mudanças na dinâmica territorial da Mesorregião Leste de Mato Grosso do Sul, particularmente com o aumento ostensivo do plantio de eucaliptos, visando atender aos interesses do capital. As figuras apresentadas pelas autoras (mapas, tabelas), em especial as que se referem ao modelo celulose-papel, possibilitam entender o peso do poder da empresa Votorantim na ocupação de espaços em redes geográficas pelo globo terrestre, internacionalizando o trabalho e, consequentemente, a exploração do meio-ambiente, do trabalhador e da sociedade como um todo.

Os artigos “Sob a Insígnia do Trabalho: Notas Sobre a Potencialidade Transitivo-Fundacional da Sociedade”, de Júlio Cezar Ribeiro, e “Um exercício historiográfico sobre o tema trabalho: um breve ensaio”, de Juliano Alves da Silva, discutem a importância do trabalho como categoria analítica e expressão da ação humana, a partir de abordagens que propõem tanto o debate teórico, particularmente o primeiro, quanto a reflexão das experiências do cotidiano dos sujeitos no presente, a exemplo da classe trabalhadora nas indústrias de Aparecida do Taboado-MS, realizada por Silva. A questão do poder norteia as abordagens, pois é impossível discutir o trabalho sem relacioná-lo ao poder.

O texto “Edificando a diferença: mecanismos de Biopoder durante a construção da Usina Hidrelétrica de Ilha Solteira”, de Tiago de Jesus Vieira, aponta para os mecanismos de poder utilizados pela empresa responsável na construção da hidrelétrica de Ilha Solteira e, mais que a usina, pela edificação da cidade e a estratificação dos sujeitos. Utilizando o jornal “O Barrageiro”, e fontes da CESP, entre outras, inspirado em Michel Foucault, discorre sobre os meandros de poder e os interesses implícitos nas práticas da empresa.

O ensaio de Graduação “A ditadura econômica e a política autoritária: subversão dos militantes católicos do IAJES na região do Alto Paraná”, de Marcelo Fernandes Brentan, principiando pela análise das formas repressivas de Getúlio Vargas aos anos da ditadura militar, tal como sobre os projetos econômicos desses contextos, busca analisar as pastorais sociais e parte da igreja católica na região do Alto Paraná, com o olhar para a relação entre a igreja e a política. A sua preocupação está em problematizar o papel do IAJES (Instituto Administrativo Jesus Bom Pastor), nos anos de 1960 e 1990, entendendo-o como propulsor de novos movimentos sociais.

Outro ensaio de Graduação, que traz uma temática profundamente relevante sobre a cultura e poder, é o de Larissa Fernanda Garcia Botacci, em “A construção social do sexo: alguns aspectos a considerar sobre a terceira idade”. Partindo do estudo sobre os sentidos da sexualidade dos idosos, a autora busca “descortinar alguns significados e implicações do comportamento sexual no processo de envelhecimento”. A sua abordagem é instigante para repensarmos o lugar ocupado pelo idoso em nossa sociedade. Ao desvendar preconceitos possibilita que possamos avançar no debate.

O terceiro ensaio de Graduação, “A luta pela terra em Andradina-SP: os posseiros da Fazenda Primavera”, de Hélio Carlos Alexandre, apresenta uma discussão fundamental para pensarmos a cultura e o poder na história do Brasil. Ao trabalhar a questão agrária na fazenda Primavera e a luta dos posseiros até o assentamento Primavera, o autor nos faz enxergar os homens e mulheres que há décadas construíram suas histórias, alicerçando ações em memórias de luta. Ao analisar esses sujeitos, o autor, por ser parte dessa história, em meio a ela vai se enredando, mostrando a trama que envolve milhares de famílias brasileiras, historicamente relegadas ao peso do latifúndio, do poder econômico e político que impera em nossa sociedade.

Somando-se aos Artigos e Ensaios temos ainda duas Resenhas. A primeira de Charles Assi, graduando em História, na UFMS de Três Lagoas, e da autora desta apresentação. A obra resenhada, “Nervos da terra – Histórias de Assombração e Política entre os Sem-Terra de Itapetininga-SP”, do antropólogo Danilo Paiva Ramos, conta histórias e memórias da luta pela terra, a partir do estudo das narrativas das “histórias de assombração”, contadas pelos assentados, entrelaçando luta e política. Uma abordagem instigadora do diálogo entre a História e a Antropologia.

A segunda Resenha, escrita pelo graduando em História, do CPTL / UFMS, Dante Duran Previatti de Souza, apresenta o livro: O mundo se despedaça, de Chinua Achebe. Uma obra que retrata a cultura e a ancestralidade Ibó, da qual Achebe é descendente. Conforme Souza, a abordagem deste autor imprime à obra “um caráter histórico, além do literário”. A seleção desta Resenha, produzida por um acadêmico do segundo semestre do Curso, expressa a esperança de que os graduandos continuem a produzir textos de qualidade, passíveis de serem publicados e horizontes para as novas pesquisas.

Temos ainda uma parte muito especial: as Fontes. Esta seção traz o texto “A utilização de processos-crime em busca de novos sujeitos: perspectivas e desafios”, de Joycimeire Carlos Lélis e Rejane Trindrade Rodrigues, ambas graduandas de História, da UFMS. Na apresentação da fonte, as autoras escolheram um fragmento de um processo criminal, instaurado em Sant’Ana do Paranaíba, em 1881, que versa sobre uma história de amor e de violência. Fazendo um exercício teórico-metodológico, observam os caminhos e descaminhos na interpretação de fontes desta natureza.

As trilhas da história fazem com que sujeitos e tramas se entrelacem, em lugares e tempos diversos: na antiguidade e no presente; na graduação e pós-graduação. Produções advindas de outras áreas, como a Geografia e a Antropologia, contribuem para a confecção de saberes que vão além das especificidades das disciplinas, por possibilitarem um diálogo rico e constante, num exercício interdisciplinar. Que nossas trilhas permaneçam assim, entrelaçando áreas e conhecimentos (de doutores, doutorandos, mestres, mestrandos, graduados e graduandos…) em caminhos que somente se efetivam no desafio da escrita e no sabor da pesquisa.

Maria Celma Borges

Primavera de 2011.


BORGES, Maria Celma. Apresentação. Revista Trilhas da História. Três Lagoas, v.1, n.1, jun. / nov., 2011. Acessar publicação original [DR]

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Arte e Cultura na História | Temporalidades | 2011

Este novo número da Revista online Temporalidades apresenta não somente mais um vasto número de artigos de especialistas e alunos atentos ao estudo da história, mas em especial a edição do primeiro volume em forma de dossiê totalmente endereçado ao campo de investigação da história da arte, intitulado Arte e cultura na história. A organização e disposição dos textos no referido dossiê seguiram uma ordem alfabética, pois dado a ampla diversidade de assuntos não seria possível reuni-los numa escala temática.

Neste sentido, novas problemáticas são abordadas ou reativadas. Dentre elas a questão específica da arte sob o ponto de vista técnico-formal, mas também as questões histórico-culturais como os estudos pertinentes à conservação e ao restauro. O campo de análise investido neste dossiê é amplo e permite criar uma visão panorâmica da história da arte disponibilizando possibilidades de pesquisas num campo pouco investigado, mas nem por isso menos importante. É nesta área de estudos, rica e próspera, as vezes mal compreendida porque não suficientemente investigada, que se vêm alguns textos mais reveladores e inovadores da historiografia da arte geral. Muito tem sido descoberto e quase tudo tem sido repensado e reavaliado. Leia Mais

Cultura e Autoritarismo nas Américas | Revista Eletrônica da ANPHLAC | 2011

O número 10 da Revista Eletrônica ANPHLAC apresenta o dossiê Cultura e Autoritarismo nas Américas e inaugura uma oportuna mudança da publicação, que passa a ter periodicidade semestral.

Em contextos marcados pelo autoritarismo político, tão recorrente na história do continente americano, as complexas – e por vezes inesperadas – relações entre o poder e a cultura, em suas mais variadas expressões, perfazem um campo extremamente fértil de investigação que tem atraído pesquisadores de distintas especialidades no meio acadêmico. Compreender as diversas formas de autoritarismo, seus mecanismos e instituições; analisar as lutas políticas travadas no campo da cultura; entender as dinâmicas dos projetos e movimentos artísticos, bem como a natureza das negociações e dos impasses vigentes no meio artístico-intelectual são apenas algumas das preocupações que transparecem em pesquisas voltadas a esse tipo de abordagem. Leia Mais

Cultura e Política na América Latina / História Social / 2010

O campo da História, no Brasil, vem se beneficiando de um aumento significativo da produção bibliográfica a respeito da América Latina. O crescimento do interesse pela região à qual tradicionalmente o país “dava as costas” deve-se a uma multiplicidade de fatores, entre eles: maior facilidade de acesso a fontes, através da digitalização de acervos documentais; ampliação do mercado editorial, que hoje disponibiliza muito mais títulos estrangeiros; e desenvolvimento de uma política econômica, educacional e cultural cada vez mais voltada aos nossos vizinhos. Este movimento vem sendo ainda reforçado por uma série de iniciativas dos governos da região no sentido de promover a integração latino-americana. Para lembrar apenas alguns empreendimentos nesse domínio, podemos citar o Mercado Comum do Sul (Mercosul), desde 1991; a União de Nações Sul-Americanas (UNASUL), projeto de uma zona de livre comércio continental, estabelecido em 2004, e, mais recentemente, a Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (CELAC), criada em 2010, com o intuito de fortalecer a integração continental, política, econômica, social e cultural da região.

No meio acadêmico, essas políticas de integração vêm se refletindo em um incremento na troca de experiências científicas, no fomento de pesquisas envolvendo países da região, na organização de eventos internacionais e na produção acadêmica de trabalhos versando sobre a América Latina. No Brasil, a área de História tem passado por uma ampliação notável, com a expansão dos cursos de pós-graduação por todo o país e a criação de novas áreas de estudo, como História da África ou História da Ásia. O campo de estudos latino-americanos vem ganhando destaque, consolidando-se, ao mesmo tempo, pelo acúmulo de uma produção de várias décadas e pelas novas publicações que ampliaram temas e perspectivas historiográficas.

Nesse sentido, o Dossiê Cultura e Política na América Latina expressa o vigor alcançado pela pesquisa em História da América Latina e oferece uma amostragem bastante interessante dos trabalhos que vem sendo desenvolvidos na atualidade. Revela, sobretudo, grande interesse pela história contemporânea, período que abarca o maior número de textos neste Dossiê. Vale também assinalar a variedade de proveniência dos pesquisadores: Acre, Rio Grande do Sul, São Paulo, Brasília e Chile.

Comecemos essa apresentação pelo artigo que trata o tema mais recuado no tempo. Deise Cristina Schel transporta-nos ao século XVI, analisando as cartas de Lope de Aguirre, um dos protagonistas da Jornada de Omagua e Dorado, realizada em 1560 e 1561 na região do Amazonas. Buscando fugir às interpretações tradicionais que descrevem o conquistador como um traidor, louco ou herege, Schel analisa três cartas redigidas pelo personagem dando sua versão sobre os conflitos surgidos durante a expedição da qual tomou parte. A autora identifica a ambigüidade de Aguirrre, nessa sua “escrita de si”, entre a admissão de sua rebeldia e a reafirmação de sua qualidade de bom servidor da Coroa.

Priscila Pereira, por sua vez, discute um tema clássico da historiografia latino-americana, o das independências, mas sob um novo prisma, pois afasta-se do “centro”, para concentrar seu estudo na província de Salta. Analisa a emergência de novos atores sociais na guerra que agitou a região, entre 1814 e 1821. O artigo discorre sobre as razões que levaram os gauchos e os paisanos saltenhos a entrar em um conflito armado que se prolongou por vários anos. A autora dedica-se, do mesmo modo, a compreender os possíveis significados que o conceito de gauchos, empregado por Martín Miguel de Güemes para nomear os membros das milícias campesinas sob sua liderança, adquiriu na província de Salta, no contexto das guerras de independência rio-platenses.

Ainda no terreno da política, mas num recorte cronológico muito mais próximo, Lucas Gebara Spinelli problematiza o zapatismo no México, refletindo sobre as contradições de sua atuação como movimento social, por um lado, e como organização de luta armada, por outro. Desvela, igualmente, o contexto de repressão militar e paramilitar, de cerco midiático e de criminalização da imagem do Exército Zapatista de Libertação Nacional por parte do Estado. Outro trabalho sobre conflitos sociais no México, já no cruzamento entre política e cultura, é o artigo de Caio Pedrosa da Silva, que analisa a historiografia a respeito da Rebelião Cristera, movimento armado deflagrado na década de 1920 contra a limitação do papel da Igreja católica, prevista pela Constituição de 1917. Nesse texto, há destaque para duas interpretações distintas do movimento: aquela de Jean Meyer, que privilegia a oposição entre o Estado e os camponeses católicos e aquela de David G. Ramirez, que publicou, em 1930, sob o pseudônimo de Gorge Gram a obra Héctor, na qual a dicotomia mais importante situa-se no campo dos católicos, entre aqueles que recorrem à luta armada e aqueles que preferiram buscar uma negociação com o Estado.

Articulando também história política e cultura, Germán Albuquerque discute como o conceito de Terceiro Mundo, criado pelo demógrafo Alfred Sauvy, em 1952, para designar os países coloniais ou recém-emancipados, generalizou-se, tornando-se uma expressão complexa, com vertentes econômicas, políticas, geopolíticas e culturais. Na vertente cultural, como aponta o autor, a matriz a partir da qual os intelectuais nutriram relações e debates foi a noção segundo a qual os homens de letras tinham um papel político importante a desempenhar nas sociedades terceiromundistas, como porta-vozes e consciência crítica dos excluídos. O artigo aborda as críticas que foram surgindo, no mesmo seio dessa intelectualidade, a um conceito considerado ambíguo e confuso, por agrupar dentro de uma mesma categoria países com realidades sociais e políticas extremamente distintas. Continuando no terreno do cruzamento entre os intelectuais latino-americanos e a esfera política, Felipe de Paulo Góis Vieira discorre sobre a obra Doze contos peregrinos, de Gabriel García Márquez, procurando compreender os discursos identitários presentes nos contos do escritor colombiano. O artigo estabelece uma relação entre o período histórico no qual García Márquez redigiu os contos, no final dos anos 1970, e a construção, em sua obra, de uma identidade latino-americana ancorada nas noções de exílio, ditadura, violência e solidão.

Silvia Sônia Simões também trabalha com os estreitos laços que unem cultura e política, ao evocar o movimento artístico que ficou conhecido como a Nova Canção Chilena. Em seu artigo explica que esse movimento caracterizou-se pelo engajamento político e pela denúncia social, mas também por uma nova leitura da música tradicional chilena, atualizando e renovando o folclore do Chile e dos países vizinhos, além de promover a fusão de gêneros eruditos e populares. Uma canção que empregava vários instrumentos musicais, recolhidos nas províncias mais distantes do país, num esforço em produzir uma arte profundamente chilena, latino-americana, que tocasse nos problemas sociais vividos pelo povo no campo e na cidade.

Encerrando o Dossiê, dois dos artigos discutem o tema da política externa brasileira em relação aos vizinhos latino-americanos durante a ditadura militar. Ananda Simões Fernandes mostra como o governo militar brasileiro procurou evitar supostas ameaças de esquerda oriundas da Bolívia, do Uruguai e do Chile, por intermédio de um apoio efetivo aos golpes militares de direita nesses países. Observa, ainda, que essa intervenção tinha por objetivo a consagração do Brasil como uma potência na região. Vicente Gil da Silva aborda o mesmo tema, mas sob um prisma um pouco distinto, pois parte da documentação do Departamento de Estado dos EUA e da embaixada estadunidense no Brasil. A ênfase, portanto, recai no alinhamento do Brasil com os Estados Unidos, materializado na contenção do comunismo e na promoção de golpes de Estado na região, por intermédio de uma atuação política calcada na vigilância e transmissão de informações, no intercâmbio entre os agentes de inteligência e na interferência direta na política dos países vizinhos.

Como se pode observar, vários dos textos aqui presentes parecem dialogar entre si, citando os mesmos eventos-chave – Revolução Cubana (1959), I Encontro da Organização Latino-Americana de Solidariedade (OLAS) em Cuba (1967), guerra do Vietnã (1959-1975) – que marcaram toda uma geração de latino-americanos, bem como um conjunto de temáticas – terceiromundismo, antiimperialismo, identidade latino-americana, ditaduras militares – que estiveram no centro dos debates políticos e culturais da América Latina nas últimas décadas.

Por fim, demonstrando o vivo interesse que as problemáticas mais contemporâneas vêm despertando, completam esse número da Revista História Social um artigo e uma resenha. O artigo de Taís Sandrim Julião aproxima-se dos últimos dois textos do Dossiê aqui apresentados ao tratar da política externa brasileira durante a ditadura militar brasileira. Entretanto, diferentemente desses trabalhos, que enfocam o governo do general Garrastazu Medici, contempla o período logo posterior, o do governo do militar Ernesto Geisel, e centra-se preferencialmente na atuação do Brasil junto à ONU. Nesse trabalho, o foco situa-se no conceito de “Pragmatismo Ecumênico Responsável” como mote da política externa brasileira voltada aos interesses do projeto de desenvolvimento nacional. Segundo a autora, no governo Geisel o Brasil conduziu uma política externa de diversificação das parcerias, mostrando pragmatismo na atuação política e econômica e certa independência em relação aos antagonismos ideológicos que regiam a Guerra Fria.

A resenha que fecha o volume, de Felipe de Paula Góis Vieira, dá um toque de século XXI a esse Dossiê de Política e Cultura na América Latina, com um comentário sobre a obra do antropólogo Néstor García Canclini, Latino-americanos à procura de um lugar neste século. A escolha é bastante apropriada para finalizar as discussões levantadas por vários dos artigos, menos no sentido de dar coerência e organicidade a esse conjunto de pesquisas, do que para abrir para novas perspectivas, indagando o que significa a latino-americanidade dentro de uma conjuntura pós-moderna marcada pelas migrações maciças, pelas comunidades transnacionais, pela cultura globalizada e pela fragmentação. Não há respostas prontas. Há que seguir caminando e reinventando.

Mariana Joffily – Universidade Federal de Santa Catarina.

JOFFILY, Mariana. Apresentação. História Social. Campinas, n.18, 2010. Acessar publicação original [DR]

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História, Cultura e Linguagens / Albuquerque: Revista de História / 2010

Manter um periódico no Brasil não é tarefa das mais fáceis, especialmente no que se refere a publicações no campo das Ciências Humanas. Apesar de todas as dificuldades impostas aos cursos de história da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, materializadas, sobretudo, na sua pulverização em seis dos dez campi mantidos por essa instituição no interior do estado, o que vem inclusive obstando a construção de um Programa de Pós-Graduação na área, a Revista Albuquerque, graças ao empenho de seus colaboradores, dos membros de seu Conselho Consultivo e de seus editores, tem sustentado o desafio de apresentar à comunidade acadêmica os resultados de estudos de profissionais vinculados ao campo da História e áreas correlatas, do país e do exterior.

O saldo desse empenho revela-se na profícua troca de experiências que os profissionais da área de História da UFMS têm estabelecido entre si, bem como com professores e pesquisadores de diferentes áreas das Ciências Humanas que atuam nas mais diversas instituições de ensino e pesquisa nacionais e internacionais, permitindo não só a abertura de novas possibilidades de estudos, mas a constante ampliação do debate acadêmico, tido pelos editores da Revista Albuquerque como elemento essencial para o amadurecimento do conhecimento histórico.

Exatamente por isso, o periódico, dirigido e organizado por docentes dos cursos de graduação em História da UFMS, tem merecido o apoio de professores das várias instituições que compõem o Conselho Consultivo. Também a coordenação e os pesquisadores atrelados à Base de Pesquisas Históricas e Culturais das Bacias dos Rios Aquidauana e Miranda (BPRAM) assumem, a partir desta edição, papel importante para a manutenção da revista. Criada em março de 2009 como uma Unidade Técnica de Apoio ligada ao Departamento de História do Campus de Aquidauana da UFMS, a BPRAM é hoje um dos órgãos responsáveis pelas atividades científicas e culturais de interesse da UFMS. Entre as suas diversas atribuições constam o estímulo à pesquisa de caráter teórico e empírico visando ao aprofundamento e avanço do conhecimento da ciência histórica e de seus campos correlatos, o apoio e fortalecimento dos grupos e linhas de pesquisa, o estimulo e o apoio aos pesquisadores no tocante à publicação e divulgação de suas produções científicas. Nascidas ao mesmo tempo e agora juntas, a Revista Albuquerque e a BPRAM constituem-se em elementos fundamentais para a expansão da pesquisa histórica na UFMS.

Procurando manter e consolidar sua trajetória de instrumento de divulgação e debate acadêmico entre professores, pesquisadores e pessoas ligadas à produção do conhecimento, e seguindo uma proposta mais específica de sua linha editorial, a seção Artigos deste terceiro número da Revista Albuquerque acolhe importantes trabalhos referentes às regiões platinas e mato-grossenses. Os desdobramentos do encontro entre as cosmovisões do colonizador espanhol e dos indígenas americanos são examinadas por Raúl Prada Alcoreza no artigo Poder, Saber y Subjetividad en los Movimientos Indígenas. Já a memória e cultura das Comitivas, bem como o registro do cotidiano do peão pantaneiro, é tema abordado por Eron Brum em Cenários do Pantanal: o Gado, os Peões e as Comitivas. A seguir, um artigo de Ely Carneiro de Paiva contempla as expedições do explorador alemão Karl Von den Steinen, considerado o iniciador da investigação científica dos povos indígenas da América do Sul no final do século XIX. A seção se encerra com texto Charqueadas: uma alternativa na economia pecuária do sul de Mato Grosso (1880-1930 / 40), no qual Valmir Batista Corrêa e Lúcia Salsa Corrêa analisam papel das charqueadas na economia regional do sul de Mato Grosso.

Trilhando o caminho aberto no número anterior, esta edição da Revista Albuquerque apresenta o dossiê “História, Cultura e Linguagens”, que traz, em sua abertura, o artigo de José D’Assunção Barros intitulado Um caminho percorrido e perspectivas sobre os novos tempos. Nele, seu autor busca compreender a tarefa do historiador no tratamento que dá às fontes polifônicas, baseado no dialogismo inerente à própria forma contemporânea assumida pela narrativa histórica. D’Assunção Barros aponta para as transformações na historiografia a partir de meados do século XIX e, sobretudo, a partir da aproximação entre a História e outras disciplinas do campo das Humanidades no segundo quartel do século XX. Importa ao autor a constituição de uma historiografia dialógica incrementada a partir da absorção das linguagens artísticas como fontes possíveis para a interpretação dos historiadores.

Se este dossiê é inaugurado por uma reflexão de caráter teórico metodológico, ele segue com o estudo de caso apresentado por Marcos Antonio de Menezes em Baudelaire, a mulher e “o amor que não ousa dizer seu nome”. Tal reflexão baseia-se na interpretação de alguns dos poemas de As Flores do Mal, de Charles Baudelaire, especialmente naqueles que apresentam temas antes não atingidos pela leitura do historiador, como o erotismo lésbico. Ali, o historiador se encontra com o crítico literário e a junção de ambos oferece ao leitor uma visão pormenorizada da maneira como a sociedade parisiense de meados do século XIX interpretava os desejos que figuram além da heteronormatividade.

Se a margem social experimentada pelas discípulas de Safo nos é apresentada por Marcos Antonio Menezes, a composição de outra margem acadêmica é proposta por Peterson José de Oliveira. No artigo intitulado Novela: um gênero polêmico, o autor aponta para uma crítica literária canônica que negligenciou tal gênero em seus estudos, considerando-o menor. Para além desta constatação advinda da revisão da bibliografia especializada, Peterson José de Oliveira nos leva para outro campo, aquele do esfacelamento dos gêneros literários na contemporaneidade, ao mesmo tempo em que as convenções nominativas dos gêneros permanecem.

A sessão é finalizada com o artigo Movimento Divisionista e as diversas interpretações na historiografia: análise do Movimento Guaicuru, de Thaís Leão Vieira e Aline Xavier Cana Verde. As autoras se voltam para o Movimento Cultural Guaicuru e a reconstrução que tal movimento – posteriormente à divisão do Estado de Mato Grosso e o surgimento do Estado de Mato Grosso do Sul – faz da memória do indígena Guaicuru e sua distribuição espacial que, em última análise, apontaria para a existência de uma unidade espacial autônoma bem antes da divisão do Estado. Se outros suportes já foram utilizados para construir / compreender uma possível identidade sul-mato-grossense, para Vieira e Cana Verde importam o pensamento e a produção artística aqui estabelecidas nos anos 1980 e seguintes.

O dossiê “História, Cultura e Linguagens” constitui-se, portanto, de trabalhos das áreas de História e Crítica Literária, bem como do encontro das duas áreas, e, ainda, de historiadores que assimilam, em sua produção, as linguagens artísticas como fonte privilegiada de análise, no que se irmanam a um esforço da historiografia brasileira das duas últimas décadas, renovando o campo de interpretação das ações humanas no tempo e no espaço.

Finalmente, a seção Caderno Especial traz o documento intitulado Viagens a Mato Grosso (1887 / 88). Segunda Expedição ao Xingu, por Peter Vogel, traduzido pela Professora Doutora Maria Alvina Krähenbühl.

Esperamos que essa nova edição da Revista Albuquerque contribua para que o espaço por ela conquistado até aqui seja mantido e mesmo expandido.


Editores. Apresentação. Albuquerque: revista de história, Mato Grosso do Sul, v.2, n.3, 2010. Acessar publicação original [DR]

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Religiosidade e cultura / História – Debates e Tendências / 2009

As pesquisas sobre religiões e religiosidades nos âmbitos das ciências sociais e das ciências humanas têm sido consideravelmente ampliadas qualitativa e quantitativamente nas últimas décadas. Avaliando o significado que as crenças incutem em atos (abordagem fenomenológica), a historiografia sobre as religiões e religiosidades tem demonstrado que as propaladas benesses progressistas da secularização e laicização não foram consolidadas como se previra e que os investimentos institucionais e subjetivos em objetos ditos “sacros” (ou mesmo sacralizados), além de se intensificarem, estão cada vez mais evidentes em nosso cotidiano. Nesse sentido, o presente dossiê temático da revista História: Debates & Tendências também se integra a esse esforço pela divulgação das profícuas pesquisas já realizadas ou em andamento que versem sobre religiosidade e cultura. Leia Mais

Cultura e Poder | Em Tempo de Histórias | 2008

A Revista Em Tempo de Histórias apresenta em sua 13ª edição um dossiê cujos termos, cultura e poder, foram substancialmente ressignificados na segunda metade do século XX, ampliando o alcance dos usos possíveis e das perspectivas acerca das realidades históricas. A partir disso, pode-se questionar o que é cultura e/ ou poder? Ou, melhor, quais relações não são culturais ou permeadas de poder? A fim de estabelecer um norteador que perpasse artigos tão distintos entre si, é possível compreender a relação entre cultura e poder, nesta edição, enquanto construções humanas marcadas pela dinamicidade e tentativas mútuas de influência, controle e também pelos mecanismos de resistência e subterfúgios culturais. Conscientes do caráter polissêmico dos termos, não foi objetivo do dossiê adotar noções fixas e definitivas dos mesmos, mas, acima de tudo, apresentar interpretações historicamente constituídas em que as relações entre poder e cultura estivessem imbricadas. Leia Mais

Cultura e Poder / Em Tempos de História / 2008

Apresentação

A Revista Em Tempo de Histórias apresenta em sua 13ª edição um dossiê cujos termos, cultura e poder, foram substancialmente ressignificados na segunda metade do século XX, ampliando o alcance dos usos possíveis e das perspectivas acerca das realidades históricas. A partir disso, pode-se questionar o que é cultura e/ ou poder? Ou, melhor, quais relações não são culturais ou permeadas de poder? A fim de estabelecer um norteador que perpasse artigos tão distintos entre si, é possível compreender a relação entre cultura e poder, nesta edição, enquanto construções humanas marcadas pela dinamicidade e tentativas mútuas de influência, controle e também pelos mecanismos de resistência e subterfúgios culturais.

Conscientes do caráter polissêmico dos termos, não foi objetivo do dossiê adotar noções fixas e definitivas dos mesmos, mas, acima de tudo, apresentar interpretações historicamente constituídas em que as relações entre poder e cultura estivessem imbricadas.

Fazendo uso de fontes como os Códigos de Posturas Municipais da Câmara Municipal de São Luís de 1866 e 1892 e do periódico Jornal Para Todos, João Costa Gouveia Neto destaca em Hábitos costumeiros na São Luís da segunda metade do século XIX, o descompasso entre as posturas municipais e as formas de sociabilidades que homens e mulheres constituíam nas ruas da capital do Maranhão. Também trabalhando com o século XIX, Ana Flavia Magalhães Pinto analisa dois periódicos oitocentistas de “homens de cor” em Democracia Racial em nome do Progresso da Pátria – Jornais Negros na São Paulo do Fim do Século XIX.

Os embates entre a modernidade e a tradição são avaliados em A Modernidade e o Rádio em Ribeirão Preto (1924-19370). Neste artigo, Sonia Jorge investigou a presença do rádio na cidade do interior paulista e as relações entre o projeto de modernização e as mudanças engendradas com o novo veículo de comunicação no cotidiano da população nas décadas de 1920 e 30. Trabalhando com obras literárias, teatrais, crônicas e imprensa humorística, André Rosemberg aborda as representações da polícia no Rio de Janeiro e em São Paulo no artigo Herói, vilão ou mequetrefe: a representação da polícia e do policial no Império e na Primeira República.

A realocação de ideários europeus e norte-americanos para o contexto hispanoamericano é o foco da pesquisa de Carolina da Cunha Rocha que, em Frei Servando Teresa de Mier e o exotismo às avessas – o selvagem ilustrado desbrava as terras do Velho Mundo, utiliza o conjunto documental Memorias para elucidar as contribuições do frei para construção do estado mexicano independente.

No ensejo do cinqüentenário da Revolução Cubana, Rickey L. Marques levanta questões referentes à prisão do poeta Heberto Padilla após a publicação de seu livro Fuera del Juego em O papel dos intelectuais na revolução cubana – o caso Padilla. O autor se envereda pelos caminhos trilhados por artistas e intelectuais cubanos entre 1959 e 1971.

Na seção Artigos são apresentados cinco estudos de temas livres. Uma abordagem de cultura na História Antiga é encontrada no primeiro texto. A partir de estudos arqueológicos realizados em Cartago, José Guilherme da Silva se debruça sobre as representações sociais e identidades étnicas na antiga cidade africana. Em seu trabalho Cartago: arqueologia e representações, o autor propõe duas hipóteses para a destruição daquele espaço pelos romanos.

A expansão colonial pelo Atlântico ganha foco em duas pesquisas. Em fins do século XVII a Jamaica, colônia inglesa, possuía a próspera cidade de Port Royal. Arrebatada por um terremoto em 1692, a urbe colonial foi destruída e, apenas nos últimos anos, vem recebendo maior atenção da historiografia. Luís A. Galante, no texto Port Royal, toma os inventários da época para interpretar o cotidiano e economia da cidade colonial inglesa. De outra forma, a experiência colonial portuguesa é abordada por Victor Hugo Abril, em Os modos de governar de Gomes Freire de Andrada no Rio de Janeiro, ao estudar as relações entre o governador da capitania do Rio de Janeiro, as elites locais e o governo de Lisboa, no período de 1733 à 1743.

Por meio de uma metodologia comparada, o artigo Indigenismo e Indianismo, de Poliene Bicalho, traz uma análise dos movimentos indígenas no Brasil e na Bolívia, enfatizando as particularidades e evoluções de suas relações com o Estado e a sociedade civil.

Fechando a seção, Eduardo Bay apresenta, em Os Mutantes e a Contracultura, alguns aspectos do movimento conhecido como Tropicalismo e sua relação com a contracultura, tomando por enfoque a participação do grupo musical Mutantes.

Para concluir esta edição, apresentamos a resenha de Léa Maria C. Iamashita referente à obra A Corte e o Mundo: uma história do ano em que a família real portuguesa chegou ao Brasil, Andréa Slemian e João Paulo Pimenta, publicado em 2008 pela Editora Alameda.

Boa leitura! Ricardo Marques de Mello Eric de Sales Membros do Conselho Editorial

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História das Américas: Política e Cultura / Varia História / 2007

O presente dossiê da Varia Historia dedica-se à História das Américas, com artigos que tratam de diferentes temáticas, particularmente relacionadas às dimensões políticas e culturais do conhecimento histórico e, em grande parte dos textos, suas inter-relações. Os artigos, em seu conjunto, têm grande amplitude espacial e temporal: do sul da América do Sul aos Estados Unidos, dos séculos XVI ao XXI. Ao lado de textos que abordam temas mais diretamente relacionados à história de determinados países, o dossiê traz artigos que analisam as circulações e conexões político-culturais entre diferentes países e espaços sociais.

O dossiê expressa o crescimento, diversificação e aprofundamento dos estudos sobre a América Hispânica e os Estados Unidos no Brasil, além de ressaltar o intercâmbio cada vez maior com a produção historiográfica sobre o continente americano produzida em outros países das Américas e da Europa.

Esclarecemos que, em razão da diversidade temática, espacial e temporal, optamos por apresentar os artigos em ordem cronológica.

O dossiê inicia-se com o artigo de Serge Gruzinski, Estambul y México. O autor esteve em Belo Horizonte em junho de 2007, como pesquisador convidado pelo Instituto de Estudos Avançados Transdisciplinares – IEAT, da UFMG, ocasião em que proferiu várias conferências, inclusive sobre o tema do artigo publicado nesse dossiê. O autor apresenta mais um trabalho, em sua já vasta e rica produção historiográfica, em que avança nas suas reflexões em torno das “histórias conectadas” – conforme a proposição do historiador indiano Sanjay Subrahmanyam. No artigo aqui incluído, o autor analisa – em uma primeira aproximação ao tema – duas fontes extremamente interessantes que conectam a Cidade do México e Istambul, entre fins do século XVI e inícios do século XVII. O autor mostra que havia um interesse recíproco entre a Nova Espanha e a Turquia, em uma época em que, a priori, não consideraríamos a possibilidade da existência de conexões intelectuais entre o “Novo Mundo” e o Império Otomano. O autor pretende apresentar, ao abordar suas fontes, problemas teórico-metodológicos que “surgem quando se comparam duas fontes relegadas pela historiografia tradicional”.

Víctor Mínguez analisa – em seu artigo La ceremonia de jura en la Nueva España. Proclamaciones fernandinas en 1747 y 1808 – as cerimônias públicas de juramento de lealdade aos monarcas espanhóis na Nova Espanha, atual México. Essas celebrações marcavam a demonstração coletiva de fidelidade à dinastia governante e ao rei recentemente coroado. Ausentes fisicamente, os monarcas eram materializados simbolicamente, nos vicereinos, através da arte. O autor mostra como imagens, palavras e sons eram combinados habilmente para conformar esses eficazes espetáculos de propaganda da monarquia espanhola nas colônias. Mínguez compara, em seu artigo, as cerimônias de jura de 1747, a Fernando VI, no apogeu da colônia, e a de 1808, a Fernando VII, no ocaso do período colonial. O autor sustenta que, apesar de celebradas em dois momentos significativamente distintos da ordem monárquica espanhola, a cerimônia de juramento manteve sua eficácia, mesmo na conjuntura de 1808, de crise aguda, “quando a situação política da monarquia espanhola era insustentável”.

O artigo de Fabiana de Souza Fredrigo, As guerras de independência, as práticas sociais e o código de elite na América do século XIX: leituras da correspondência bolivariana, revela as contribuições do próprio Símon Bolívar na construção dos mitos em torno de sua figura. A construção do mito Bolívar começou, também, a partir dos textos escritos pelo próprio líder das guerras de independência. Nesse sentido, ganha ainda mais pertinência a análise da correspondência de Bolívar, na qual essa construção da imagem de si mesmo, para a posteridade, começou a se estabelecer. A autora analisa, em seu texto, o vasto epistolário de Simón Bolívar, produzido entre os anos de 1799 e 1830 – mais de 2800 cartas -, demonstrando os vínculos entre a escrita de cartas, a memória e a historiografia.

Stella Maris Scatena Franco dedica-se a analisar – em artigo intitulado Gertrudis Gómez de Avellaneda entre Cuba e Espanha: relatos de viagem e ambivalências em torno da questão da identidade nacional – os relatos de viagem da escritora Gertrudis Gómez de Avellaneda (1814-1873), que nasceu em Cuba, mas viveu muitos anos na Espanha. O artigo mostra as ambivalências presentes no discurso de Avellaneda em relação à sua identidade nacional. Escritora de dois mundos – o cubano / antilhano e o espanhol / europeu -, Avellaneda, como revela Stella Franco, situou-se em meio ao debate na ilha de Cuba em torno da luta pela independência. A autora analisa também os debates políticos e literários em torno da sua personagem, tanto no século XIX como em reflexões mais recentes. No caso das últimas, ganham relevo as análises que procuram compreender o lugar e as possíveis peculiaridades da escrita feminina.

O artigo de Mary Junqueira, Ciência, técnica e as expedições da marinha de guerra norte-americana, U. S. Navy, em direção à América Latina (1838- 1901), também analisa relatos de viagem do século XIX – além de relatórios -, mas de natureza distinta daqueles analisados por Stella Franco. A partir do levantamento das expedições realizadas pela U. S. Navy – a marinha de guerra dos Estados Unidos – em direção à América Latina, no século XIX, a autora faz uma análise dos objetivos e significados das doze viagens realizadas pela U.S. Navy para a América Latina entre 1838 e 1901. Mary Junqueira mostra que, no período anterior à Guerra Civil, o interesse da marinha recaiu principalmente sobre a América do Sul e o Pacífico, revelando claramente o empenho norte-americano em “conhecer, mapear e apreender as possíveis possibilidades comerciais” dos territórios visitados, isso desde a década de 1830. No caso das viagens à América Central, no período posterior à Guerra Civil, o objetivo fundamental foi a busca pelo lugar mais adequado à construção do canal interoceânico, empreitada ambiciosa que foi finalmente concluída em 1914, com o término da construção do Canal do Panamá, sob estrito controle dos Estados Unidos.

A história norte-americana também é alvo do interesse de Cecília Azevedo, no artigo Amando de olhos abertos: Emma Goldman e o dissenso político nos EUA, particularmente a trajetória de Emma Goldman – militante anarquista, pacifista e feminista nos Estados Unidos, entre fins do século XIX e as primeiras décadas do século XX. A autora recupera Emma Goldman, inserindo-a numa tradição de dissenso nos Estados Unidos. Cecília Azevedo contextualiza a trajetória de Goldman dentro do debate político norte-americano da sua época, além de analisar como a memória e o legado de Goldman foram recuperados na década de 1960 e em anos recentes, em meio à crescente oposição às intervenções norte-americanas no Vietnã e no Iraque, respectivamente. O debate sobre o lugar de Emma Goldman – lituana de família judia que escolheu o exílio como uma forma de livrar-se das perseguições do regime czarista – na história dos Estados Unidos relaciona-se, como mostra Cecília Azevedo, às disputas políticoideológicas em torno da identidade nacional norte-americana e de seus mitos fundacionais.

Andrés Kozel, por sua vez, dedica-se, em artigo intitulado En torno a la desilusión argentina, a um tema muito presente no debate intelectual argentino – principalmente na primeira metade do século XX: a discussão sobre o suposto “fracasso argentino”. O autor rediscute a bibliografia que aborda o tema e analisa obras de cinco intelectuais argentinos que endossaram a idéia do “fracasso”: Lucas Ayarragaray, Leopoldo Lugones, Benjamín Villafañe, Ezequiel Martínez Estrada y Julio Irazusta. Ao contextualizar a produção dos cinco autores, Kozel mostra como a concepção de que a Argentina havia “fracassado” foi ocupando o lugar, antes hegemônico, de uma pretensa “grandeza argentina”, denominada pelo autor de “ilusão argentina”.

O artigo de Gabriela Pellegrino Soares, Novos meridianos da produção editorial em castelhano: o papel de espanhóis exilados pela Guerra Civil na Argentina e no México, é mais um exemplo de pesquisa que procura ressaltar as circulações culturais e as histórias conectadas. A autora analisa o impacto da Guerra Civil Espanhola (1936-1939) sobre a produção editorial na Argentina e no México a partir dos últimos anos da década de 1930. O enfoque recai, principalmente, sobre as contribuições de exilados espanhóis para o incremento da indústria editorial argentina e mexicana.

Os três últimos artigos abordam períodos recentes da história latinoamericana. Priscila Antunes e Patricia Funes analisam os sistemas de inteligência das últimas ditaduras militares no continente, abordando, respectivamente, os casos chileno e argentino. Waldo Ansaldi, por sua vez, dedica-se a analisar a situação política argentina dos últimos anos.

Priscila Antunes, em seu artigo O sistema de inteligência chileno no governo Pinochet, faz, inicialmente, um histórico acerca dos serviços de informação e das comunidades de inteligência no mundo ocidental para, em seguida, debruçar-se sobre o caso chileno, durante a ditadura militar chefiada pelo general Augusto Pinochet. A autora analisa a estrutura interna da comunidade de inteligência chilena e destaca seu papel, central, nos mecanismos de controle e repressão da ditadura militar chilena (1973-1989).

O artigo de Patricia Funes, “Ingenieros del alma. Los informes de los Servicios de Inteligencia de la dictadura militar argentina sobre América Latina: canción popular, ensayo y ciencias sociales, analisa os informes dos serviços de inteligência argentinos – em particular, aqueles contidos no arquivo da extinta Direção de Inteligência da Polícia da Província de Buenos Aires (DIPBA) – sobre a produção artística e intelectual acerca da América Latina, durante a última ditadura militar argentina (1976-1983). A autora analisa os informes dirigidos, principalmente, a controlar e censurar a produção de canções populares, ensaios e obras (livros, artigos e revistas) de cientistas sociais. Patricia Funes parte da “hipótese que o conceito ‘América Latina’ é conotado a priori como ‘subversivo’, ‘comunista’ e ‘revolucionario’ ”. Sendo assim, toda a produção cultural que se propunha a discutir e a pensar a América Latina era colocada, a princípio, sob suspeição. A autora sustenta que a força desses mecanismos repressivos contribuiu para afastar as ciências sociais argentinas da América Latina, com repercussões até o presente. E acredita que, provavelmente, algo similar teria ocorrido nos demais países da região submetidos a ditaduras militares.

As reflexões de Patricia Funes sobre o último período ditatorial na Argentina nos levam a pensar sobre a trajetória da produção intelectual brasileira sobre a América Latina. Se na década de 1960, em razão de vários fatores – entre eles, sem sombra de dúvida, o impacto político-cultural da Revolução Cubana -, foi evidente o crescimento do interesse e da produção artísticointelectual brasileira sobre a América Latina e acerca do lugar do Brasil no continente, a forte repressão desencadeada pelo regime militar a esses artistas e intelectuais, e a censura a toda essa produção, tiveram efeitos mais duradouros do que, num primeiro olhar, poderíamos reconhecer.

Waldo Ansaldi, em seu artigo Tanto andar a los mandobles para terminar a los besuqueos. Acerca de la relegitimación de los políticos argentinos, dedica-se a analisar a história política recente da Argentina, com ênfase nos últimos anos, a partir de dezembro de 2001. Ansaldi discute a crise de legitimação dos partidos e dos políticos argentinos em 2001 e a possível relegitimação nas eleições de 2003. O artigo é um competente exemplo de história do tempo presente e de análise de conjuntura, na interface da história com a ciência política.

Complementam o dossiê as resenhas dos livros, recentemente publicados, de autoria de Gabriela Pellegrino Soares, Semear horizontes: uma história da formação de leitores na Argentina e no Brasil, 1915-1954 – por Sílvia Cezar Miskulin -, e a coletânea organizada por Marcela Croce, Polémicas intelectuales en América Latina: del “meridiano intelectual al caso Padilla (1927-1971) – por Adriane A. Vidal Costa. As obras constituem relevantes contribuições para a história cultural e intelectual da América Latina.

Esperamos ter colaborado, com esse dossiê de Varia Historia, para incrementar, ainda mais, o interesse pela História das Américas no Brasil e, também, para aprofundar o intercâmbio com pesquisadores de outros países. Agradecemos a todos os autores que nos brindaram com seus textos.

Belo Horizonte, inverno de 2007.

Kátia Gerab Baggio – Organizadora. Departamento História / UFMG. E-mail:
kgbaggio@fafich.ufmg.br


BAGGIO, Kátia Gerab. Apresentação. Varia História, Belo Horizonte, v.23, n.38, jul. / dez., 2007. Acessar publicação original [DR]

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Política, Arte e Cultura no Brasil (Anos 1940–1970) | ArtCultura | 2007

Expressivos profissionais das áreas de conhecimento histórico e afins aderiram, de forma renovadora, às mudanças de paradigmas metodológicos e temáticos, que ganharam maior consistência nos últimos tempos. Nesse sentido, ocorreu um afastamento das histórias estruturais e da escrita sintética ou holística. Por outro lado, têm proliferado estudos monográficos, muitas vezes inspirados pela abordagem da micro-história e por forte enfoque culturalista, não poucas vezes desprendidos das movimentações sociais e políticas mais amplas da própria história.

O dossiê que o leitor tem em mãos reúne diferentes textos, amalgamados pela temática Política, Arte e Cultura no Brasil (Anos 1940–1970). Seu título define, por si mesmo, que nossa compreensão sobre História Cultural agrega os novos aportes teóricos e as novas abordagens que alargaram o campo de conhecimento abrangido pela História. Mas que também, a par da perspectiva interdisciplinar que os caracteriza, considera que os macromovimentos da história estão relacionados aos micromovimentos e vice-versa. Leia Mais

Cultura, cidade e trabalho / História & Perspectivas / 2007

A Revista História & Perspectivas, criada em 1988, completará em 2008 vinte anos de existência, trajetória marcada pelo constante esforço por apresentar investigações, reflexões, produzidas ao longo dos anos pelos Cursos de História da Universidade Federal de Uberlândia, bem como pelos mais diversos pesquisadores do País, que têm colaborado para tornar esta revista um importante espaço de debate.

Em meio a tantos percursos já trilhados, contando com o apoio e trabalho de vários professores e pesquisadores, a Revista vive neste momento uma fase de mudança. A partir do segundo semestre de 2007, o Núcleo de Pesquisa e Estudo em História, Cidade e Trabalho – NUPHECIT assumiu a Coordenação das atividades da Revista História & Perspectivas. Reunindo professores e alunos da graduação e pós-graduação, o Núcleo construiu como tema articulador de suas preocupações a discussão central sobre cidade e trabalho, que tem sido ampliada, nos últimos anos, com a reflexão em torno de memórias e linguagens, resultado de trabalhos desenvolvidos com outros núcleos de estudo.

Desde aquele momento em que nos colocamos o desafio de pensar a cidade e o trabalho como campos de investigação necessários, nossas expectativas encaminham-se para ampliar possibilidades de compreensão das experiências históricas, acompanhando os sentidos das conformações que desenham socialmente modos de viver e suas transformações. Para isso, estimulamos o diálogo com múltiplas posições e estabelecemos o debate com variados campos de conhecimento.

O tema Cultura, Cidade e Trabalho, ao longo das últimas décadas na historiografia brasileira, e também nas áreas afins, tem provocado pesquisadores a apresentar renovadas questões no âmbito das mais diferentes abordagens. Estimulou no passado, e tem nos instigado hoje ainda, a organizar perguntas, explorar múltiplas dimensões das fontes, desafiando as diferentes linguagens que as constituem e nos fazendo olhar para outros espaços de reflexão a respeito da história e de nossa própria prática. Tal tarefa tem exigido dos pesquisadores cada vez mais atenção para nossas trajetórias teórico-metodológicas, assim como para os sentidos políticos de nossas escolhas.

O texto de Alessandro Portelli, aqui traduzido, e os debates que em Uberlândia tivemos com o autor no ano de 2007 têm nos ajudado a aprofundar reflexões entre histórias, memórias e fontes orais, a pensar sobre pesquisas com documentos e narrativas orais, a problematizar os procedimentos históricos na discussão da natureza específica dessas fontes e de outras, a analisar o processo de construção das interpretações na perspectiva da História Social. Os vários artigos que compõem os Números 36 e 37 nos convidam à leitura pelos mais variados percursos investigativos, sejam eles lidando com a história oral, com a imprensa, com outras documentações, que sempre fazem enfrentar diferentes temas e sujeitos: a cidade, o trabalho, a organização do espaço urbano, os usos da água, a atividade garimpeira, a exploração de madeira e a agricultura; trabalhadores negros, pobres, imigrantes, garimpeiros e muitos outros que fazem parte das pesquisas aqui apresentadas.

Com estes temas, pretendemos reavivar campos de reflexão fincados na perspectiva da História Social, cujo entendimento passa pela nossa atenção às relações entre os homens, como constroem suas vidas socialmente, como estas se expressam historicamente entre os diversos grupos sociais, nas lutas sociais, na organização de trabalhadores e moradores da cidade e do campo a constituir vivências que se expressam em formas e ritmos específicos. A trajetória de tornar visível a multiplicidade de processos e sujeitos sociais e suas relações não começou agora, mas continua a nos desafiar. É com esse espírito que, nesse momento, damos prosseguimento às atividades da Revista História & Perspectivas.

Conselho Editorial


Cultura, cidade e trabalho. História & Perspectivas, Uberlândia, v.1, n.36-37 – jan./dez. 2007. Acessar publicação original [DR].

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Natureza e cultura / Revista Brasileira de História / 2006

O problema dos nossos tempos é que o futuro não é mais como era antigamente.
Paul Valéry

Pensar a relação entre natureza e cultura significa considerar necessariamente o elemento tempo. Assim foi com a mudança cultural fundadora da vida contemporânea, a passagem do tempo intrínseco do homem medieval ao tempo mecânico da Renascença e dos mercadores. Quando se passou a exigir orientação temporalmente exata, uma nova relação natureza e cultura se impôs caracterizando um novo tipo de sociedade.

Hoje, o tempo da história se acelera vertiginosamente. É um tempo marcado, por um lado, pela analogia entre velocidade e exatidão, e, por outro, pelas mudanças, dúvidas e destruições, que contrastam com outros tempos, da permanência, da continuação e da memória. Essas tensões da contemporaneidade têm levado os historiadores a se debruçarem sobre estudos que contemplam a temática natureza e cultura, e o resultado disto é que, por sua vez, este interesse tem causado impactos na disciplina, ampliando horizontes e favorecendo pesquisas alternativas. Enfim, as novas pesquisas têm contribuído para a renovação temática e metodológica, redefinindo, ampliando e favorecendo o questionamento das polarizações dicotômicas.

Entretanto, assim como o Angelus novus de Klee, na seminal metáfora de W. Benjamin — alegoria na qual a tempestade da modernidade arrasta o homem ao progresso, não mais concebido como a panacéia dos males humanos —, o historiador procura pensar o fluxo da evolução histórica a partir dos limites e perspectivas de seu tempo. Ele quer “dominar” o passado, mas ao mesmo tempo é ultrapassado pela força das circunstâncias — esta não permite que sua vontade se concretize.

O resultado desse embate — considerados os limites da área de atuação de que dispomos em nosso periódico — é o que se pode ler neste número da Revista Brasileira de História. Os estudos que aqui apresentamos procuram, cada um a seu modo, ampliar os limites da disciplina e abrir áreas de pesquisa, buscando observar no passado mudanças e permanências, descontinuidades e fragmentações, apresentando possibilidades que se compõem e recompõem continuamente.

Os artigos presentes neste dossiê percorrem vários aspectos da temática natureza e cultura. A partir de relatos deixados por intelectuais formadores de suas disciplinas, tais como Élisée Reclus, Capistrano de Abreu e Caio Prado, Antonil e Rocha Pita, destacam-se os textos de Regina Horta Duarte (“Natureza e sociedade, evolução e revolução: a geografia libertária de Élisée Reclus”), Dora Shellard Corrêa (“Historiadores e cronistas e a paisagem da colônia Brasil”) e Francisco Eduardo de Andrade (“A Natureza e a gênese das Minas do Sul nos livros de André João Antonil e Sebastião da Rocha Pita”).

Tomando a literatura como campo de análise, Valdeci Rezende Borges (“Culturas, natureza e história na invenção alencariana de uma identidade da nação brasileira”) aborda a obra de José de Alencar, e Daniel Faria (“Makunaima e Macunaíma. Entre a natureza e a história”) procura entender a questão do desejo romântico pela natureza como resposta a conflitos políticos contemporâneos.

Cultura material e patrimônio são os eixos pelos quais Maria Clara Tomaz Machado (“(Re)significações culturais no mundo rural mineiro: o carro de boi — do trabalho ao festar (1950-2000)”), Flávia Arlanch Martins de Oliveira (“Padrões alimentares em mudança: a cozinha italiana no interior paulista”), Sandra Pelegrini (“Cultura e natureza: os desafios das práticas preservacionistas na esfera do patrimônio cultural e ambiental), Silvia Helena Zanirato e Wagner Costa Ribeiro (“Patrimônio cultural: a percepção da natureza como um bem não renovável”), apresentam reflexões nas quais ações sociais implicam interpretações da relação entre natureza e cultura no tempo.

O ambiente em sua forma mais direta — as estradas, as florestas e os fluxos d’água — compõe o cenário para outros três artigos: Marcos Lobato Martins (“As variáveis ambientais, as estradas regionais e o fluxo das tropas em Diamantina, MG: 1870-1930”); Franciane Gama Lacerda (“Entre o sertão e a floresta: natureza, cultura e experiências sociais de migrantes cearenses na Amazônia”); Glaura Teixeira Nogueira Lima (“O natural e o construído: a estação balneária de Araxá nos anos 1920-1940”).

Seguem-se ainda duas resenhas, compostas por José Eduardo Franco (Jesuítas e Inquisidores em Goa), e Reinaldo Nishikawa (Fronteiras: paisagens, personagens, identidades).

Conselho Editorial


Conselho editorial. Apresentação. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.26, n.51, jan. / jun., 2006. Acessar publicação original [DR]

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Política e cultura na Antiguidade Tardia e / ou Primeira Idade Média / História Revista / 2006

GONÇALVES, Ana Teresa Marques; CARVALHO, Margarida Maria de. Apresentação. História Revista, Goiânia- GO, v.11, n.1, 2006. Acesso apenas pelo link original [DR]

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Cultura e Política / História (Unesp) / 2006

Neste dossiê sobre Cultura e Política estão reunidos trabalhos que buscam refletir sobre o cruzamento entre história cultural e história política. Temas como identidade política, cultura política e a relação, sempre controversa, entre arte e política no Brasil, na América Latina e no mundo são abordados nos artigos que os leitores terão oportunidade de apreciar neste volume.

Abrimos este número com um artigo do professor de História da Universidad Nacional da Colômbia (Sede Medellín) Yobenj Aucardo Chicangana-Bayona. O autor parte de uma questão central: por que os indígenas são representados nas gravuras renascentistas como corpos escultóricos? Interpretando as gravuras de Theodor de Bry em relação à teoria da arte renascentista, o autor procura perceber o alcance etnográfico e o cânone artístico na construção da representação do corpo do índio como categoria universal.

O professor Carlos Eduardo Jordão Machado, percorrendo a experiência intelectual de dois críticos da modernidade Siegfried Kracauer e Walter Benjamim, mapeia as afinidades estético-teóricas de ambos tendo como tema central a vivência do exílio e a concepção de história expressas em suas obras sobre Paris e o Segundo Império Francês.

O artigo de Elizabete da Costa Leal investiga o estabelecimento do calendário republicano de feriados oficiais e a participação de membros da Igreja Positivista do Brasil na sua implementação, principalmente na festa do dia 3 de maio como homenagem ao descobrimento do Brasil.

Maria da Conceição Francisca Pires, pesquisadora da Fundação Casa de Rui Barbosa, faz uma incursão extremamente prazerosa e instigante pelo universo do cartunista Henfil, demonstrando como este estabeleceu uma crítica política, mas também de costumes, à ditadura militar brasileira. A autora demonstra como o humor pode ser uma excelente arma contra o autoritarismo e o conservadorismo.

Flamarion Maués, coordenador editorial da Editora Perseu Abramo, utiliza as fontes orais para reconstruir a história da Editora e Livraria Kairós, entre os anos de 1978 e 1983, em pleno processo da redemocratização brasileira, procurando vislumbrar a relação entre a política editorial e a conjuntura histórica.

Os dois últimos artigos do Dossiê abordam a América Latina. O trabalho de Everaldo de Oliveira Andrade, professor da Universidade de Guarulhos, nos apresenta uma reflexão sobre a relação entre arte e política de um país pouco estudado entre nós, mas que tem estado em todos os meios de comunicação brasileiros nos últimos tempos, a Bolívia. O eixo de sua investigação é a trajetória do muralista e militante político Miguel Alandia Pantoja. Já Mônica Cristina Araújo apresenta uma pequena parte de sua tese de doutorado defendida no Programa de Pós-Graduação em Integração da América Latina (Prolam), da Universidade de São Paulo, em que analisa o Instituto de Cinematografia de Santa Fé na Argentina, mais conhecido como Escola de Documental de Santa Fé. Este instituto, fundado por Fernando Birri, foi um centro de desenvolvimento do cinema na Argentina, ademais de ser um espaço muito importante de troca de experiências e de sociabilidade de cineastas latino-americanos.

Os artigos que se encontram fora do dossiê abordam temas e personagens do Brasil colônia e império. O primeiro de Sezinando Luiz Menezes, do Departamento de História da Universidade Estadual de Maringá, trata de Alexandre de Gusmão e a tributação em Minas no período colonial. Os dois artigos seguintes se circunscrevem ao período imperial brasileiro, um de José Flávio e Lupércio Antônio Pereira sobre o pensamento econômico e jurídico de José da Silva Lisboa, enquanto Wlamir Silva, professor da Universidade Federal de São João Del Rey, analisa os liberais mineiros do período regencial.

O artigo que fecha este número da revista aborda a constituição da Comunidade Européia como um “super-Estado”. O autor, desde uma perspectiva crítica do surgimento desta união, entende que tal estrutura visa, de fato, o avanço da globalização e da ideologia neoliberal. Temática extremamente atual nos leva a uma aguda reflexão sobre o futuro do mundo e do Brasil, cada vez mais inserido no processo de globalização capitalista.

Conselho Editorial


Conselho Editorial. Apresentação. História (São Paulo), Franca, v.25, n.2, 2006. Acessar publicação original [DR]

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Cultura, Trabalho e Poder / Esboços / 2005

No último ano e meio a Esboços — revista do programa de pós-graduação em história da Universidade Federal de Santa Catarina, vem passando por uma lenta e contínua mudança no seu projeto editorial, mudança que se refletiu, também, na sua apresentação gráfica. Desde o número 11, com o dossiê Cidade e memória, no primeiro semestre de 2004, nosso objetivo tem sido o de ampliar o elenco de colaboradores da revista, estendendo-o a de todas as áreas das humanidades — história, sociologia, antropologia, filosofia, literatura, política, etc. — das mais amplas vertentes teórico-metodológicas e, principalmente, a pesquisadores de fora do estado de Santa Catarina e de fora do país. Acreditamos que uma revista acadêmica de qualidade se faz, simultaneamente, com pluralidade temática e diversidade de contribuições.

Neste período a revista manteve a sua periodicidade, ampliou sensivelmente seu leque de colaboradores, estabeleceu um novo patamar de qualidade editorial e realizou uma mais apurada seleção científica dos textos publicados. Esse esforço se refletiu na nova avaliação feita pelo Qualis da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), referente a 2004. Hoje somos uma revista B, nacional. Se por um lado, estamos satisfeitos com essa melhor avaliação — afinal a revista tem sido produzida, muitas vezes, superando obstáculos kafkianos — por outro, esse é apenas um primeiro passo para que tenhamos uma revista que, de fato, ocupe um lugar expressivo na produção acadêmica na área de história.

Continuamos caminhando.

Neste número, apresenta-se o dossiê: Trabalho, cultura e poder, resultado do encontro regional de história ocorrido em setembro de 2004. A conferência de abertura do encontro — proferida pela professora Mirta Lobato, da Universidade de Buenos Aires — abre o número, seguida por um conjunto de artigos de pesquisadores de várias regiões do Brasil e do Uruguai, todos calorosamente discutidos na ocasião. Apresenta-se também a tradução de texto inédito em língua portuguesa de Carlo Ginzburg Conversare con Orion, publicado originalmente em Quaderni Storici, em dezembro de 2001. Completam esse número cinco artigos que abrangem as regiões sul, sudeste e norte, além de duas resenhas.

Os editores

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Cultura e Poder: O golpe de 1964 – 40 anos depois (I) | Projeto História | 2004

RC Destaque post 2 12 Política e Cultura

Transcorridos quarenta anos do golpe militar de 1964, vários eventos significativos aconteceram nas universidades, no Brasil e nos Estados Unidos, nos centros culturais, privados e públicos, contando com a participação de muitos pesquisadores. Artigos foram publicados em jornais e revistas da grande imprensa. O público leitor em geral e acadêmico em particular teve a seu alcance biografias, narrativas de experiências pessoais, livros analisando o golpe e o significado histórico e político do governo militar. Todos esses eventos marcaram, em 2004, os quarenta anos da instauração do regime militar em nosso país. Na ocasião, várias linhas de pesquisa, várias interpretações do governo de João Goulart e do governo militar foram dadas a conhecer ao público.

Uma das posições que mais se difundiu foi a de que aqueles acontecimentos trágicos, em especial toda a atuação dos dez anos de governos, de Vargas a Jango, eram negadores da democracia. Como uma diátese, o grosso dessa interpretação contaminou todo o corpo do pensamento acadêmico brasileiro, em especial o paulista. Leia Mais

Cultura e Poder: O golpe de 1964- 40 anos depois (II) / Projeto História / 2004

Cultura – Poder: O golpe de 1964- 40 anos depois (II) / Projeto História / 2004

Neste tomo 2 da Revista Projeto História, que ora se apresenta, com a justa homenagem ao cientista político e historiador René Armand Dreifuss, autor de obra seminal intitulada 1964: a conquista do estado, desenvolvemos o III Encontro de Estudos de Realidade Nacional, que o Programa de Estudos Pós-Graduados em História estimulou e organizou em fins de março e princípios de abril de 2004. As contribuições desenvolvidas no Encontro mais aquelas recebidas configuram esta edição temática.

A Revista Projeto História reúne expressivos artigos que sobrevoam assuntos variegados e aqui pontualmente apresentados. Recebe atenção a reflexão acerca das lutas sociais no campo brasileiro que incitaram os grandes proprietários rurais a se mobilizarem para o complô contra João Goulart, o presidente democraticamente eleito. Campos de disputas, também no historiográfico, destacam-se a história das Ligas Camponesas de Francisco Julião, a atuação dos comunistas na mobilização dos lavradores rurais, a atuação dos camponeses no Centro-Sul. A rica história das lutas sociais na região da Alta Mogiana, Noroeste de São Paulo, no pré-64. No interior desse vasto painel, destacam-se a resistência armada no sul do Pará, em 1972, e as concepções militaristas de nossa esquerda comunista. Traçam-se as formas de atuação e de organização específicas na articulação das lutas no campo e na cidade. No seguimento dos fracionamentos no V Congresso do PCB, em 1960, a formação da dissidência já comportava uma duplicidade de concepções, seja na preparação, organização e desencadeamento da resistência armada, seja nas organizações legais. No plano cultural, estudos analisam a literatura de cordel, o “folheto epitáfio” com a isotimia e a assimilação do articulador do golpe, o morto pranteado que aparece como “vulto” nacional, general Castello Branco, no seu leito de morte. Interrogam-se as funções das representações políticas nos folhetos populares. O conspirador visto como o salvador das “garras do anticristo”. Os poetas populares justificam ideologicamente os atos autoritários do presidente como promotores de bem comum à nação.

Na esfera artística, examinam-se peças teatrais, como Calabar, de Chico Buarque e Ruy Guerra, que atuaram na crítica, refletindo sobre as invasões holandesas, para servir de crítica às formas de dominação reinantes. As experiências estéticas de Glauber Rocha são revisitadas num texto instigante que explora o “cinema-verdade” do documentário, todavia, recheado de estratégias de agressão e do grotesco alegórico. Detém-se nas conexões entre Maranhão 66 e a obra-prima Terra em Transe (1967), percebendo a articulação entre história, política e ficção.

Este número da Projeto História também congrega inúmeras pesquisas de nosso mestrado e doutorado, as que estão em vias de se completar ou aquelas já defendidas em nosso programa, abrigando contribuições de outras instituições e de fora do nosso estado. Podemos sumariar, para não nos alongarmos em demasia, algumas delas, como a questão do terrorismo oficial e da rede de estruturas e equipamentos da repressão; a questão da anistia da perspectiva dos jogos de afetos, dos direitos humanos e das associações da sociedade civil que com sua luta criativa souberam penetrar no coração do regime. O papel da Igreja católica, abrigo e eficácia na denúncia do arbítrio e da barbárie, dos massacres transformados em “banalizações do mal”. No plano da cultura, importantes temas se apresentam, com destaque para resistência cultural, no plano artístico. Questão complexa e de difícil tratamento, mas vital para a compreensão das ditaduras latino-americanas, alinham-se pesquisas sobre a Operación Condor.

Reafirmando as críticas inscritas no tomo 1: por esta engrenagem monstruosa e seus resultados, é legítimo se perguntar sobre a responsabilidade da guerra suja. Os crimes cometidos são, independentemente dos espaços nacionais onde foram praticados, crimes de lesa humanidade. Assim como ocorreu com as Mães da Praça de Maio, em Buenos Aires, que mantêm a memória sempre viva, não para repor perdas do passado, mas porque representam a continuidade da luta pela “memória do futuro”; em nosso país, as responsabilidades pelos desaparecidos, crimes, seqüestros, esquartejamentos, torturas ficaram novamente impunes. A impunidade é a nossa marca registrada. Reconhece-se que houve abusos e atos arbitrários; no entanto, extinta a máquina, com ela desapareceram os agentes da repressão, e com eles, o esquecimento e o silêncio de seus atos, mandantes e inspiradores. O cinismo dominante afirma que nossa ditadura foi “branda”. Há que rebater, no entanto, graças a coragem das famílias, do grupo “Tortura Nunca Mais”, de historiadores e combatentes, que continuam a pesquisar, a denunciar e a refazer as contas acerca do número de mortos e desaparecidos. Há que acrescentar, aos 386 até aqui constatados, aproximadamente mais de um milhar de trabalhadores do campo exterminados.

As conseqüências dos atos bárbaros e arbitrários se misturaram à violência caseira do cotidiano: a prática cotidiana da tortura – comum nas cadeias brasileiras – torna-se, com os esquadrões da morte, com os aparelhos do Estado, uma prática institucionalizada. Um tipo de prática de extorsão, de ascensão social rápida, de enriquecimento ilícito nos meios policiais, de prostituição e jogatinas à luz do dia, vão se juntar à prática suja e indigna dos empresários no financiamento da repressão oficial.

A divulgação recente de várias fotos montadas e falsificadas, do jornalista Vladimir Herzog – numa delas, nu e em posição desesperada e humilhante, e noutra, com uma mulher ao lado –, só comprovam como os órgãos de repressão se valeram de todos os meios para intimidar, amordaçar, amedrontar, punir, eliminar.

Uma “Nota” afrontosa do Centro de Comunicação Social do Exército, publicada na Folha de S. Paulo, dia 19 de outubro de 2004, tentava justificar os seus “métodos” na luta contra a “subversão”. Nela se faz a apologia dos atos criminosos e, invertendo os próprios fatos, responsabiliza a oposição por se fechar ao diálogo. A facção durista sustenta que “as medidas tomadas pelas Forças Legais foram uma legítima resposta à violência dos que recusaram o diálogo, optaram pelo radicalismo e pela ilegalidade e tomaram a iniciativa de pegar em armas e desencadear ações criminosas”. Ao revés do esperado, não houve responsabilizações; pior, o posicionamento contrário de José Viegas Filho, o ministro da Defesa, custou-lhe caro, sendo destituído pelo governo dito de esquerda e popular, que atendeu às reivindicações dos chefes militares. A partir de então, a pressão pela abertura dos arquivos da ditadura foi realimentada ainda que o general Francisco Roberto de Albuquerque tenha salientado que o Exército não possuía mais nenhum documento sobre a guerrilha do Araguaia. A ABIN (Agência Brasileira de Inteligência), de sua parte, diz ter aproximadamente 4 milhões de documentos da ditadura militar.

No Chile, a 10 de novembro, o presidente Ricardo Lagos divulgava relatório com mais de 35 mil testemunhos de vítimas de tortura sob a ditadura de Augusto Pinochet (1973-90). “Quantos países se atreveram a olhar com profundidade sua própria história? Quantos países se atreveram a chegar ao fundo do que ocorreu? O Chile se atreve”, declarou o presidente chileno. Ao contrário da atitude regressiva e covarde do governo brasileiro, o comandante-em-chefe do Exército, general Juan Emilio Cheyre, reconheceu a monstruosidade praticada pelas Forças Armadas de seu país no arbítrio e desumanidade dos atos cometidos. Como escreveu o jornalista Jânio de Freitas, a 19 de dezembro, à página A 13, de 19 de dezembro de 2004, “A participação de militares brasileiros na Operação Condor está razoavelmente conhecida. Mas as Forças Armadas brasileiras deram contribuição importante ao golpe de estado no Uruguai e tiveram participações comprometedoras no golpe de Pinochet. […] As razões para a recusa à abertura de arquivos são muito maiores do que a solidariedade por espírito de corporação.”

Não custa repetir a rigorosa síntese acerca dos momentos significativos da ditadura militar, que o historiador Nelson Werneck Sodré fez, à época dos trinta anos do golpe, e, com isso, nós fechamos essa apresentação: “O movimento vitorioso em abril de 1964 foi uma ditadura anunciada, longamente anunciada, amadurecida ao longo dos anos da guerra fria. Estabelecida, desenvolveu-se em três etapas: a inicial, até o AI-5; a intermediária, do AI-5 à chamada distensão; o final, da distensão à derrocada. Note-se: a ditadura não foi deposta, daria lugar a profundas modificações na estrutura do regime. Tendo sido extinta pelos seus próprios gestores, pela impossibilidade em continuá-la como desejavam, transferiu à fase seguinte, à chamada distensão, todos os seus problemas, todas as suas mazelas, à carga de suas características de atraso. […] Não, por acaso, tornou normal e usual o que o nazi-fascismo estabelecera de mais torpe, com o exílio, o banimento, a prisão, a tortura, a privação dos direitos elementares, a insegurança do indivíduo, a destruição cultural e, para culminar, o assassínio estabelecido como processo comum e o seqüestro e desaparecimento dos adversários como norma costumeira. A ditadura foi o crime erigido em lei. Muitas das suas torpezas foram herdadas pelo que veio depois e por isso continuamos a nos debater com os mesmo problemas de trinta anos atrás. Isso prova que só o emprego da força da violência, sob todas as suas formas, pode impedir a sociedade brasileira de alcançar a vitória daquelas reformas estruturais de que o nosso povo tanto necessita. E merece”[1]. 40 anos depois, a tragédia brasileira parece continuar…

Nota

1. SODRÉ. Nelson Werneck. “1964: A Ditadura Anunciada”. In: Golpe de 64. Porto Alegre: Universidade Estadual de Porto Alegre, 1994, p. 10.

Antonio Pedro Tota

Antonio Rago Filho

Editores científicos

Dezembro de 2004


TOTA, Antonio Pedro; FILHO RAGO, Antonio. Apresentação. Projeto História, São Paulo, v.29, n.2, 2004.  Acessar publicação original [DR]

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Cultura e resistência – Dez anos sem E. P. Thompson / Esboços / 2004

Como o capitalismo (ou seja, o “mercado”) recriou a

natureza humana e as necessidades humanas, a

economia política e seu antagonista revolucionário

passaram a supor que esse homem econômico fosse

eterno. Vivemos o fim de um século em que essa

idéia precisa ser posta em dúvida.

P. Thompson.

Entre os dias 22 e 25 de setembro de 2003 realizou-se no Centro de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Santa Catarina o seminário Politica e Paixão: dez anos sem E. P. Thompson.

A conferência de abertura, na noite do dia 22, proferida pelo professor Ciro Flamarion Cardoso, “Conceito de cultura: um pomo de discórdia” foi seguida, nos demais dias, pelas comunicações coordenadas. No dia 23, apresentaram-se as professoras Célia Regina Vendramini, “Experiência humana e coletividade em Thompson”; Regina Linhares Hostins, “Modo de fazer pesquisa de um historiador” e, por fim, o professor Henrique Espada Lima, “A relação entre E. P. Thompson e a micro-história italiana”. Na noite do dia 24 apresentaram-se, na seqüência, os professores Mário Duayer, “Observações a partir da Carta-aberta a Kolakowski” e o professor Ricardo Gaspar Müller, “Exterminismo e liberdade política”. Por fim, na noite do dia 25 apresentaram-se o professor Sidnei J. Munhoz, “Thompson, marxismo e protesto popular” e Sérgio Silva, “História e teoria social: a contribuição de Thompson para as ciências sociais”.

Com exceção dos textos dos professores Ciro Cardoso e Sérgio Silva, todos os demais compõem o Dossiê ora apresentado pela Revista Esboços. No caso específico do professor Ciro Cardoso, o texto apresentado no seminário foi substituído por outro, cujo título é “The Group e os estudos culturais britânicos: Edward P. Thompson em contexto”.

A organização do Seminário foi uma tarefa coletiva e esteve a cargo, sobretudo, dos professores Célia R. Vendramini, do Departamento de Estudos Especializados em Educação; Adriano Duarte, do Departamento de História e Ricardo G. Müller, do Departamento de Sociologia e Ciência Política. Contou também com a colaboração dos Programas de Pós-Graduação de Educação, História e Sociologia Política, do Gabinete da Vice-Reitoria, do CCOM/CED, da PRAC, da Central de Apoio a Eventos da UFSC, e o apoio e estimulo dos estudantes do Centro Acadêmico Livre do curso de História.

Nosso objetivo era, por um lado, registrar os dez anos do desaparecimento do historiador britânico marxista Edward Palmer Thompson e, ao mesmo tempo, comemorar os 40 anos de lançamento da primeira edição de seu mais famoso estudo, “A Formação da Classe Operária Inglesa” e os 25 anos da publicação de “A Miséria da Teoria”. Por outro, a partir de sua memória, discutir alguns temas relevantes nas ciências sociais e tão caros a suas pesquisas e, ao mesmo tempo, celebrar sua obra do modo o mais adequado à sua tradição: promovendo o debate, a polêmica e o e diálogo, não apenas sobre o fazer da história, mas sobre o fazer da política e suas relações e implicações.

Daí o nome do Seminário, a nosso juízo, muito adequado: Política e Paixão. Adequado porque sua realização nos remete, mais uma vez, ao centro do legado teórico e político dessa rica tradição; reafirma nosso compromisso com o materialismo histórico, como orientação teórica indispensável para a compreensão da história real e nosso engajamento, político e teórico com uma “história a partir de baixo”. As discussões travadas promoveram a defesa da centralidade dos conceitos de “classe” e “consciência de classe” como categorias históricas fundamentais, especialmente em uma época que muitas tendências teóricas procuram negar seu significado e (esvaziar) sua importância, e o resgate de E. P. Thompson como um historiador que “aliou paixão e intelecto, os dons do poeta, do narrador, do analista” e sempre tentou conciliar razão e utopia.

Aproveitamos a oportunidade para agradecer mais uma vez a todos os que estiveram direta ou indiretamente envolvidos na organização e realização do Seminário que dá origem ao presente Dossiê, como também na edição desse número da revista Esboços.

Adriano Luiz Duarte

Ricardo Gaspar Müller

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Cultura e modernidade / Clio – Revista de Pesquisa Histórica / 2003

REZENDE, Antônio Paulo de Morais; GUILLEN, Isabel Cristina Martins. Apresentação. CLIO – Revista de pesquisa histórica, Recife, v.21, n.1, jan / dez, 2003. Acesso apenas pelo link original [DR]

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Cultura e cidades / Revista Brasileira de História / 1984-1985

DECCA, Edgar Salvadori de; ARRUDA, José Jobson de Andrade. Editorial. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.5, n.8-9, set. 1984 / abr., 1985. Acesso apenas pelo link original [DR]

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