Nosso amplo presente – o tempo e a cultura contemporânea | Hans Gumbrecht

Formado em Literatura, Hans Ulrich Gumbrecht vem, nos últimos anos, sendo cada vez mais estudado por pesquisadores interessados pelas linguagens e, especificamente na história, pela estética e pela história do tempo presente. Autor de inúmeros textos e obras, possui traduzidos e publicados no Brasil algumas grandes obras, entre estas Elogio da Beleza Atlética [1], Produção de Presença – o que o sentido não consegue transmitir [2] e Depois de 1945 [3]. No tocando a suas obras, a problemática da presença foi corriqueiramente debatido, sendo a obra do Elogio da Beleza Atlética o primeiro ensaio publicado no país onde o autor exprime algumas reflexões a respeito do conceito.

De acordo com o autor, esta presença, poderia ser pensada em uma dimensão especial, e não temporal. Na obra Produção de Presença – o que o sentido não consegue transmitir (2010), Gumbrecht busca conceituar presença enquanto algo que só é possível de se percebida através dos sentidos. Nas palavras do próprio – “por “presença” pretendi dizer – e ainda pretendo- que as coisas estão a uma distancia de ou em proximidade aos nossos corpos; quer nos “toquem” diretamente ou não, têm uma substância”[4] . Leia Mais

Peabiru: um caminho, muitas trilhas – ZAMBONI et al (RL)

ZAMBONI, E.; DIAS, M. F. S.; FINOCCHIO, S. (orgs.). Peabiru: um caminho, muitas trilhas. Florianópolis: Letras Contemporâneas, 2014, 200p. Resenha de: PACIEVITCH, Caroline; OLIVEIRA, Amanda Gabriela Rocha. Pelos caminhos do Ensino de História: Revista do LHISTE, Porto Alegre, v.2, n.2, p.161-166, jan./jun., 2015.

O livro Peabiru: um caminho, muitas trilhas (Letras contemporâneas, 2014, 200 p.), organizado pelas professoras Ernesta Zamboni, Maria de Fátima Sabino Dias e Silvia Finocchio, surgiu com o objetivo de “compartilhar os resultados de uma pesquisa coletiva desenvolvida por pesquisadores de diferentes universidades” (p. 7), no âmbito do “Projeto Peabiru: Ensino de História e Cultura Contemporânea”. O principal destaque da obra é a discussão crítica e inovadora dos referenciais teórico-metodológicos que acompanharam as pesquisas. Assim, na Apresentação do livro, é possível perceber que o Projeto Peabiru passa por dois elementos importantes para a pesquisa em ensino de História: o trabalho coletivo entre pesquisadores do Brasil e da América Latina e a dedicação em tornar os estudantes e professores da escola básica sujeitos privilegiados para a produção de conhecimento sobre ensinar e aprender história.

O texto Saberes escolares históricos en movimiento (p. 16-32), de Silvia Finocchio, cumpre o papel de contextualizar os demais capítulos. A autora discorre sobre as mudanças nos saberes históricos escolares e nas políticas públicas educacionais de Brasil, Venezuela, Chile, Bolívia, Argentina e Uruguai. É importante e necessária uma abordagem comparada na pesquisa em ensino de História na América Latina, embora a comparação não seja seguida explicitamente nos demais capítulos. Finocchio analisa três formas de representação cultural contemporâneas que influenciam novas relações e contextos vividos pelos saberes históricos escolares: o multiculturalismo e o pós-colonialismo, a cultura digital e a cultura compasional. Analisa também o papel das novas esquerdas latino-americanas em relação às políticas educacionais em seus respectivos países e oferece quatro conclusões: 1) a necessidade de aprofundar a produção e a circulação da análise de saberes históricos em movimento num contexto de transição cultural e com termos propriamente latino-americanos; 2) a crítica a que a escola ecoe tendências que reforçam uma visão de desalento em relação ao ensino; 3) a dispersão de tendências regionais que expressem culturalmente suas singularidades; 4) a hibridez teórica e política que marca os governos de uma esquerda pragmática na América do Sul e suas políticas curriculares. Infere-se que a relação entre o texto de Finocchio e o Projeto Peabiru reside na contextualização do projeto, que se interessa por elementos da formação de professores e da sala de aula de História, mas que não podem ser compreendidas sem as devidas relações com as políticas públicas sociais e educacionais vigentes nos últimos anos na América Latina, notadamente aquelas dirigidas por governos populares.

Após a ampla contextualização oferecida por Finocchio, os capítulos dedicam-se a detalhar pesquisas individuais ou coletivas que colaboram para os objetivos do Projeto Peabiru, na tentativa de conectar as demandas dos jovens com as responsabilidades e desafios da formação de professores de História.

O artigo Transformaciones en las fuentes de creación del conocimiento histórico: entre los nuevos livros de texto y los materiales digitales (p. 33-60), de Marisa Massone, analisa livros didáticos de História e o uso de materiais digitais relacionados ao ensino de História. A autora compara os livros didáticos de história do século XX e a mudança que sofrem a partir das décadas de 1980 e 1990 na Argentina, classificando os atuais livros didáticos de história como portadores de hipertextos: imagens e boxes de textos convivendo no mesmo espaço do texto escrito e podendo ser explorados. Massone também trata sobre a utilização de imagens e de filmes no ensino de história e sobre os livros didáticos passarem a conter sugestões de pesquisa na Internet. Essas mudanças propõem reflexões sobre a influência e o uso dos materiais digitais nas aulas de história, tema, como visto, central para o Projeto Peabiru. Nesse sentido, ela apresenta programas de criação de linhas do tempo e de criação de vídeos que podem contribuir na aula de história. O capítulo de Massone demonstra as proximidades entre as tendências para livros didáticos no Brasil e na Argentina, principalmente por trazer novas mídias para o livro, tanto na forma quanto no conteúdo (BUENO; GUIMARÃES; PINTO, 2012).

Utilizando outra ferramenta metodológica – uma série de questionários –, Magda Madalena Tuma aborda (p. 61-90) a questão da infância e sua relação com a mídia. O capítulo menciona que foram aplicados questionários aos alunos de 9 a 13 anos de duas escolas rurais e uma urbana (Londrina, Paraná), aos pais e aos professores dessas escolas. Embora não seja possível acessar explicitamente todas as características dos questionários, nota-se que a autora traça um perfil socioeconômico desses alunos e discorre sobre as escolas que foram estudadas, a fim de compreender também as condições e o contexto do consumo cultural dessas crianças. Tuma constatou que a maioria das crianças atribui maior utilidade à Internet para fazer trabalhos escolares, seguida da opção “comunicação com amigos”, entre outras constatações. O texto evidencia a potencialidade de expansão de uma compreensão mais profunda em relação às crianças, suas preferências sobre a mídia e suas opiniões sobre a escola.

O artigo de Aléxia Pádua Franco (p. 91-113) reflete sobre a relação das redes sociais com a formação da consciência histórica dos alunos da educação básica na contemporaneidade. O conceito de consciência histórica é importante para o projeto Peabiru e tem sido objeto de interesse de diferentes grupos de pesquisadores no Brasil, a partir de diferentes apropriações (BAROM, 2014). Franco opta por submeter a teoria a seus interesses e aos dados obtidos na pesquisa, escapando da armadilha de forçar os dados a se encaixar em seu referencial teórico. Ela apresenta sua metodologia, que se aproxima de uma etnografia virtual sobre os conteúdos encontrados em sites como YouTube e Facebook relacionados com a produção de conhecimento histórico. A autora analisa materiais produzidos por alunos encontrados no YouTube e relacionados com o conteúdo de História, quais temas abordam, de que forma, que narrativa é utilizada, que imagens usam, problematizando, ao mesmo tempo, a presença – mais ou menos desenvolvida, dependendo do caso – de uma consciência histórica. A autora também apresenta o uso do Portal do Professor (MEC) e os produtos que se podem encontrar no site, problematizando a relação dos docentes com essas novas tecnologias, que não é só de consumo, mas também de produção. O capítulo de Aléxia Franco responde a diversos interrogantes que se esperam da pesquisa em didática: constatações baseadas no cotidiano da escola, reflexão crítica e proposições concretas para os docentes em formação (PAGÈS, 2002.).

É possível afirmar o mesmo para o texto La historia como disciplina escolar: una mirada desde el sitio Web Yahoo! Respuestas (p. 114-130), em que Gabriela Carnevale analisa o site como um espaço de construção do conhecimento histórico relacionado com o mundo escolar, para entender a confiabilidade, os modos e as formas desse conhecimento. A autora apresenta o site Yahoo! Respuestas, seu funcionamento, sistema, regras, gratificações, interações para compreender como se dá a construção do saber nesse recurso. Em seguida, Carnevale analisa tipos de questões e de respostas relacionadas à temática História como disciplina escolar elaboradas e postadas pelos usuários no espaço denominado Educación. Por fim, a autora problematiza as questões relacionadas ao site com a construção do conhecimento histórico no mesmo e na sala de aula e analisa as mudanças nessa construção do saber.

O capítulo de Juliana Pirola da Conceição e Maria de Fátima Sabino Dias (p. 131-155) se diferencia dos demais por abordar o desenvolvimento e as repercussões da disciplina de Estudos Latino-americanos (ELA) no Colégio de Aplicação (CA) da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), isto é, as autoras analisam, também do ponto de vista do conceito de consciência histórica, uma proposta inovadora de disciplina escolar. Criada em 2003 por iniciativa dos professores do CA, a disciplina (até então inédita no Brasil) foi investigada em 2009 para que fosse possível entender sua influência no que as autoras chamam de “consciência histórica latino-americana” e a contribuição da disciplina no currículo escolar para a formação histórica desses jovens. Conceição e Dias constataram que a história latino-americana foi abordada de variadas formas na escola no Brasil desde meados do século XIX até os dias atuais, concluindo que pouco se estuda o continente no país, dando preferência à história europeia e à história nacional, por mais que nos últimos tempos livros didáticos tenham elaborado algumas propostas de trabalho com temáticas latino-americanas. As autoras apresentam o estudo feito através de questionários, seis anos após a implementação da disciplina. Conceição e Dias evidenciam a importância e o diferencial da disciplina de Estudos Latino-americanos na formação dos alunos do CA e como propostas criativas e que oferecem visões não eurocêntricas da história são escassas no Brasil.

O texto Materiales multimediales para la enseñanza de la historia (p. 156-180), de Gisela Andrade, analisa as mudanças nas práticas docentes, as possibilidades e os usos feitos das tecnologias da informação e da comunicação (TIC) no ensino de história na Argentina, principalmente com a implementação dos programas 1 a 1 (um computador para cada aluno) pelo programa Conectar Igualdad.com.ar em 2010. A partir disso, a autora nos apresenta suas fontes: as Carpetas Docentes de Historia produzidas pela Universidad Nacional de La Plata, que seriam como pastas/apostilas produzidas pela universidade para os professores do secundário disponíveis no site da instituição; e a Múltiples Voces para el Bicentenario, ferramenta elaborada pelo programa Conectar Igualdad do Ministerio de Educación de la Nación Argentina, disponível no portal Educ.ar. Seu principal objetivo é, através da análise desses materiais, delinear critérios para a seleção e criação de materiais multimídia para a formação inicial e continuada de professores de História. A autora analisa as três linguagens principais encontradas nos materiais anteriormente citados: cinema, entrevistas e imagens. Por fim, Andrade faz um balanço das características e possíveis usos desses materiais e das TIC nas aulas de História, levando os professores a utilizar as TIC como veículo para aprofundar os estudos e conhecimentos, e não somente como um recurso da sala de aula.

O capítulo que encerra a obra, As lentes captam o que o coração sente: investigando e aprendendo sobre o patrimônio histórico da cidade de Londrina (p. 181-198), de autoria das pesquisadoras Sandra Regina Ferreira de Oliveira e Silvana Muniz Guedes, aborda a questão do ensino de História e da educação patrimonial através do estudo e da investigação acerca da rua de pedestre (também chamada de Calçadão) de Londrina. As ações e as pesqui sas realizadas por professores e alunos da Universidade Estadual de Londrina e os participantes do PIBID pretendiam construir um material didático para ser usado no ensino de História dos anos iniciais do Ensino Fundamental, podendo trabalhar questões de história e memória com as crianças a partir do calçadão da cidade, o qual, devido a uma obra, deixou exposto o antigo calçadão. As autoras expõem a história de como, em que contexto e onde surgiram as primeiras ruas de pedestre no Brasil e, em seguida, sobre o contexto da criação da rua de pedestre mais famosa de Londrina e seu histórico de mudanças. O aspecto de maior interesse para o ensino de História, isto é, a potencialidade e a argumentação sobre o uso desse patrimônio na aula de História com as crianças, é problematizado no final do capítulo, no qual também se ressalta a importância de produzir materiais didáticos de forma coletiva.

As pesquisas desenvolvidas no Projeto Peabiru demonstram a centralidade da cultura contemporânea para a formação de professores de História e propõem, direta ou indiretamente, algumas questões: se os recursos digitais são valorizados pelos jovens, a solução para os problemas do ensino de História residiria em sua introdução massiva na sala de aula? Caberia, portanto, à formação de professores desenvolver métodos e técnicas para o uso desses recursos na escola? As pesquisas apresentadas no livro, à luz do contexto oferecido no primeiro capítulo, demonstram que as problemáticas podem ser outras: entendemos os papeis dos artefatos culturais contemporâneos na vida dos jovens? Compreendemos as construções e constantes modificações do mundo virtual e das tecnologias? Respondemos às demandas sociais e de formação cidadã que ainda são de responsabilidade da escola? O cuidado das pesquisadoras do Projeto Peabiru com o refinamento teórico-metodológico e com a atenção a professores e estudantes da escola básica, bem como com a contextualização e a articulação de seus trabalhos, oferece uma valiosa contribuição para essas reflexões.

Referências Bibliográficas

BAROM, Wilian Carlos Cipriani. Os micro campos da didática da História: A teoria da História de Jörn Rüsen, pesquisas acadêmicas e o ensino da história. Revista de Teoria da História. Universidade Federal de Goiás, volume 11, nº2, 2014. Disponível em: http://revistas.jatai.ufg.br/index.php/teoria/article/view/33419 (acesso em: ago/2015).

BUENO, João Batista Gonçalves; GUIMARÃES, Maria de Fátima; PINTO, Arnaldo Junior. Imagens visuais nos livros didáticos de história: formas de controle e avaliação desde 1990 até a atualidade. Revista NUPEM. Campo Mourão, volume 4, nº 7, ago/dez, 2012. Disponível em: http://www.fecilcam.br/revista/index.php/nupem/article/viewFile/205/187 (acesso em: ago/2015).

DIAS, Maria de Fátima Sabino; FINOCCHIO, Silvia; ZAMBONI, Ernesta. Peabiru, um caminho, muitas trilhas. Florianópolis: Letras Contemporâneas, 2014.

PAGÈS, Joan. Aprender a enseñar historia y ciencias sociales: el currículo y la didáctica de las ciencias sociales. Pensamiento Educativo. Volume 30, jul/2002. Disponível em: http://pensamientoeducativo.uc.cl/files/journals/2/articles/222/public/222-523-1-PB.pdf (acesso em: ago/2015).

Caroline Pacievitch –  Professora da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Doutora em Educação pela Universidade Estadual de Campinas. Contato: caroline.pacievitch@ufrgs.br.

Amanda Gabriela Rocha Oliveira–  Graduanda em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Contato: amandag.rocha@hotmail.com.

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O corpo incerto: corporeidade, tecnologias médicas e cultura contemporânea – ORTEGA (TES)

ORTEGA, Francisco. O corpo incerto: corporeidade, tecnologias médicas e cultura contemporânea. Rio de Janeiro: Garamond, 2008, 256 p. Resenha de: ZORZANELLI, Rafaela Teixeira. Revista Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro, v.9, n.2, jul./out. 2011.

Participamos de um processo de redescrição dos limites de nossos corpos impulsionado pelas tecnologias biomédicas: ultrassonografias, tomografias, ressonâncias magnéticas, técnicas video-laparoscópicas… Quem de nós já não fez uso de algum método disponível no manancial biotecnológico na atualidade? Além disso, somos bombardeados por imagens de células, transplantes, cirurgias e cérebros nas revistas semanais e em programas televisivos que nos atualizam sobre o nível de conhecimento adquirido acerca do mundo abaixo da pele. As novidades biotecnológicas não param de surgir, oferecendo novos limites para os corpos: as células-tronco prometem curas para doenças devastadoras, o transplante de face recupera funções perdidas, o congelamento de óvulos oferece novos limites à gestação. Parte do vocabulário médico passa a ser partilhada também pelo homem comum, interessado em obter aquilo que a ciência médica parece oferecer. Se a medicina ocidental transformou-se em um dos mais importantes ‘guias de leitura’ do corpo na contemporaneidade é porque tem oferecido respostas convincentes aos anseios colocados pelo tempo em que vivemos, tais como o esforço para diminuir o impacto de doenças, melhorar a qualidade de vida e adiar a morte. É sobre esse rico contexto que se debruça o livro de Francisco Ortega.

Os dois primeiros capítulos da obra podem ser considerados uma filosofia do presente; neles se debate o lugar do corpo na biopolítica e sua relação com a formação de práticas bio-identitárias, tomando como foco o tema das modificações corporais na cultura contemporânea. Uma ideia recorrente é a de que o corpo está sendo colonizado por diferentes formas de inscrição: por um lado, por tatuagens, piercings, plásticas, práticas de restrição alimentar, bodybuilding; por outro, pelas técnicas de visualização que pretendem revelar os segredos de nossa visceralidade.

No que tange às modificações corporais, a ideia para a qual o autor nos remete é que, a princípio entendidas como singularização e estilização da existência, essas práticas podem revelar um menosprezo pelo corpo, na medida em que revelam uma vontade de recusar sua materialidade orgânica e o que nele há de abjeto: seus resíduos, imperfeições, sobras e excessos. Já no caso das tecnologias de visualização do interior corporal, o autor ressalta o fato de que, muito além do sentido de exploração da visceralidade, em prol de melhores diagnósticos e terapias, há nessa ‘vontade de ver’ uma tentativa de transformar o estranho e incerto de nossa corporeidade aquilo que nos escapa ao olhar e ao controle em algo familiar e previsível.

O terceiro capítulo dedica-se a um trabalho histórico que compreende, ao modo de uma história cultural, um panorama da visualização médica do corpo dos desenhos vesalianos até as ressonâncias magnéticas, passando por diferentes manifestações no cinema e nas artes plásticas. Ortega realiza uma genealogia de diferentes tecnologias médicas de visualização do corpo humano, dedicando-se ao episódio histórico da dissecação de cadáveres e à consequente construção do ideal de um conhecimento objetivo, baseado no modelo do corpo-máquina. Como bem cabe ao tema da visualização médica do corpo, o leitor é presenteado com belas ilustrações da história médica, como extratos do De humani corporis fabrica, de Vesalius, e obras de artes plásticas realizadas com base em imagens cerebrais.

O último capítulo é tomado por um tom filosófico, e a discussão se centra no lugar do corpo nas proposições construtivistas e fenomenológicas. Na verdade, já nos dois capítulos iniciais há um prenúncio das polêmicas que reaparecerão no capítulo final. Uma delas é a análise crítica das posições construtivistas nos debates atuais sobre o corpo, análise que poderíamos resumir, grosso modo, na ideia de que “tudo é discurso” (p. 197), ou seja, que o corpo é efeito de ações e dizeres sobre ele, não restando materialidade biológica como parti pris da experiência corporal. Michel Foucault e Judith Butler são os autores com os quais Ortega debate, situando-os como inspiradores dessa posição construtivista, bastante comum nos estudos culturais e de gênero. Outra polêmica levantada pelo autor diz respeito à sua posição corajosa de não dispensar um legado mínimo de invariantes existenciais-biológicas que moldariam a dimensão material da corporeidade. Para isso, ele se apoia, entre outros, em Edmund Husserl, Maurice Merleau-Ponty, Samuel Todes e Drew Leder. Destacar o status da materialidade corporal em um ambiente intelectual de adesão aos pressupostos construtivistas é uma atitude no mínimo ousada, uma vez que posições teóricas que não aderem integralmente a esses enunciados são frequentemente taxadas de conservadoras e essencialistas no contexto acadêmico brasileiro.

O terceiro ponto polêmico debatido pelo autor é a sua dura crítica à atmosfera de culto à fragmentação do corpo, cujo exemplo emblemático é o elogio ao corpo-sem-órgãos, que Deleuze e Guattari retomam de Artaud, na medida em que o corpo fragmentado tem sido entendido como um antídoto contra o antropomorfismo, a identidade engessada e as ilusões do humanismo, oferecendo, assim, uma alternativa à visão universalizante do corpo como totalidade orgânica. A ideia defendida pelo autor, no entanto, vai em direção contrária: “as posições teóricas que afirmam a construção discursiva do corpo e negam a sua materialidade fornecem o substrato teórico para as novas tecnologias médicas (…), com sua afirmação da construção, virtualização e obsolescência do corpo vivido” (p. 75). O aspecto para o qual Ortega aponta é o fato de que o corpo fragmentado das filosofias pós-modernas não se distanciaria do corpo dilacerado e dessubjetivado das imagens médicas, que constroem doenças sem sujeitos. Todas essas asserções conduzem o autor a defender a ideia de que o discurso construtivista não pode servir como crítica ao discurso das biotecnologias: “não acreditamos que exista alguma forma de resistência no corpo despedaçado” (p. 178). Para o autor, um paradigma da corporeidade que leve em conta a materialidade do corpo é mais adequado do que um paradigma construtivista porque permite o confronto crítico dos discursos dominantes da biomedicina e das biotecnologias.

Esse breve panorama já indica o potencial de debate da obra. Caberia aos leitores, por exemplo, refletir: sendo Foucault um declarado opositor da fenomenologia, por ele considerada um exemplo de teoria fundacionalista sobre o sujeito, sobre como conciliar uma concepção fenomenológica do corpo vivido, sem negá-lo como efeito de práticas e discursos.

Como o livro indica desde seu título, as ‘incertezas’ do corpo são muito bem percorridas nesse trabalho de Francisco Ortega. O corpo é mesmo incerto, porque os sentidos que ele pode adquirir imerso no mundo não estão dados a princípio. São também incertos os processos fisiológicos que o habitam e que, em silêncio, nos fazem viver ou morrer. Algumas das respostas criadas para lidar com tantas incertezas seja no plano do corpo individual, seja no plano social das técnicas médicas são analisadas com criatividade e apuro acadêmico em O corpo incerto de Francisco Ortega.

Rafaela Teixeira Zorzanelli – Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IMS/Uerj), Rio de Janeiro, Brasil. E-mail: rtzorzanelli@hotmail.com

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