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História da mineração brasileira | Iran F. Machado e Sílvia Figueirôa
Mapa de Vila Rica (atual Ouro Preto), centro da mineração no Brasil no século XVIII, feito em 1779 por José Joaquim da Rocha | Imagem: Biblioteca Nacional/Revista Pesquisa
A História da mineração brasileira é percorrida por Iran Machado e Silvia Figueirôa em densas 732 páginas, repletas de informações e análises sobre essa história até hoje bem pouco conhecida e valorizada, mesmo no país. O livro traz detalhes de episódios cruciais dessa trajetória – “as pedras no meio do caminho” de Drummond –, mencionados e não esquecidos pelos autores.
Resultado de suas práticas e pesquisas sobre a geologia brasileira que levaram Iran e Silvia para o Instituto de Geociências da Unicamp, de onde surgiu essa parceria, entre outras, o livro traz mais de 80 páginas de referências bibliográficas, apontando aspectos dos caminhos trilhados, para aqueles que quiserem saber por onde conduzir novos trabalhos. É impossível dar conta de comentar aqui a riqueza das 154 figuras, das 49 tabelas, dos 35 quadros ou dos diversos boxes, que longe de meras ilustrações facilitam a compreensão das situações políticas, econômicas, sociais, técnicas, que abrangem desde os famosos bandeirantes caçadores de escravos indígenas (Machado, Figueirôa, 2020, figura 19) até os maiores desastres ambientais causados pela mineração (quadro 32) ou a imagem da busca de sobreviventes em Brumadinho (figura 133). Tampouco é possível chamar a atenção para todos os detalhes e análises dessa história “lúcida e atraente” como Rogério Cerqueira Leite adianta no prefácio que abre os cinco capítulos em que se organiza a publicação. Leia Mais
Educação não escolar: Religiosidade e modos de fazer de uma curadora | Márcio Barradas Sousa e Maria betânia B. Albuquerque
A obra é resultado da dissertação de mestrado defendida em 2015 no Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade do Estado do Pará (UEPA). No livro, Márcio Barradas Sousa e Maria Betânia B. Albuquerque analisam os saberes e as práticas educativas cotidianas presentes no atendimento de pessoas submetidas às orações e tratamento de cura realizada por Odinéia dos Santos Barbosa, na comunidade quilombola de Abacatal, em Ananindeua, no Pará. Dona Dionéia, como costumava ser chamada, era conhecida como benzedeira que tratava os males espirituais provocados pelos seres habitantes das matas. Como aporte teórico metodológico os autores buscaram alicerçar-se nos pressupostos da história cultural, cuja abordagem historiográfica volta-se para a vida cotidiana, objetos e temas ligados à vida social dos homens e mulheres no tempo. Além disso, utilizaram-se do método da história oral e da técnica da entrevista semiestruturada, bem como características da pesquisa etnográfica.
Nesse movimento analítico os autores demonstraram o protagonismo de dona Dionéia e conferiram-lhe o status de exímia educadora ao revelar que esta, ao mudar de religião, criou uma metodologia própria de prática de cura ressignificando os processos educativos que utilizava no enfrentamento de doenças espirituais das pessoas que a procuravam. Nesse aspecto, tratava-se de processos educativos de natureza não escolar identificado pelos autores nas tessituras cotidianas das práticas de dona Dionéia e seus educandos, cuja relação era perpassada pelo processo de ensino e aprendizagem, na qual era mediadora de múltiplos saberes, disseminados pelo método da oração e da terapia de cura. Leia Mais
Educação e sociedade na ditadura civil-militar: adesões, acomodações e resistência | Nadia Gaiafatto Gonçalves e Suzete de Paula Bornatto
O historiador Rodrigo Patto Sá Motta, ao investigar sobre as culturas políticas durante a ditadura civil-militar no Brasil (1964-1985), levanta reflexões sobre a existência de adesões, acomodações e resistências que permite compreendermos com maior densidade sobre esse período histórico e identificar novas configurações e rupturas ao longo do tempo. Como destaca Motta (2018, p. 132), “[…] mesmo que sejam estruturalmente arraigadas, as culturas políticas podem mudar”.
Nesse sentido, o livro Educação e sociedade na ditadura civil-militar: adesões, acomodações e resistência, organizado por Nadia Gaiafatto Gonçalves, professora do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Paraná e Suzete de Paula Bornatto, docente da mesma instituição, reúne textos que exploram diferentes debates no campo do ensino e suas relações com as culturas políticas da época (Gonçalves & Bornatto, 2019). Dividido em doze capítulos, os trabalhos reunidos são resultados de investigações levantadas em teses e dissertações e permitem preencher diferentes lacunas na história da educação. Leia Mais
Doenças e cativeiro: um estudo sobre mortalidade e sociabilidades escravas no Rio de Janeiro, 1809-1831 | Keith Valéria de Oliveira Barbosa
Keith Barbosa | Foto: ufam.edu.br/notícias
O livro de Keith Valéria de Oliveira Barbosa, pesquisadora e professora da Universidade Federal do Amazonas, é fruto de sua pesquisa desenvolvida no seu mestrado na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro.
A obra é dividia em quatro capítulos, no primeiro, “Escravidão e doenças: historiografia, fontes e métodos”, a autora buscou analisar como a mortalidade escrava não estava ligada apenas ao contato entre pessoas de diferentes continentes e, portanto, que o tráfico atlântico em si não dá conta de explicar a mortalidade escrava. Em outras palavras, embora o contato entre indivíduos de espaços geográficos distantes inevitavelmente tenha colocado patógenos em condições de causar doenças que eram desconhecidas para os africanos, a questão não pode ser analisada apenas por esse prisma.
As condições de vida da população cativa propiciavam “ambientes” para que enfermidades matassem muito. A falta de alimentos, os maus tratos, a insalubridade do trabalho, as condições higiênicas inadequadas das senzalas, entre outros aspectos, faziam com que a vida de escravo fosse abreviada muitas vezes pela morte. Leia Mais
Erotismo no cinema brasileiro: a pornochanchada em perspectiva histórica | Jairo Carvalho Nascimento
Acima, Vera Fischer em “Super fêmea boca do lixo (1972). Abaixo, Jairo Carvalho do Nascimento | Fotos: Veja – Reprodução / Uneb
Resultado parcial da tese de doutorado defendida no Programa de História Social da UFBA, em 2015, o livro Erotismo no cinema brasileiro: a pornochanchada em perspectiva histórica investiga as “origens”, a “consolidação” e “decadência” do gênero pornochanchada no contexto da história do cinema brasileiro. No decorrer do livro, Jairo Carvalho Nascimento indaga uma ampla variedade de evidências históricas, tais como revistas, matérias de jornais, entrevistas, pareceres de censura, dados estatísticos, filmes, vídeos, documentários, programas de televisão, releases e roteiros de filmes. Além disso, ampara-se em extensa bibliografia – sobretudo estrangeira nos dois primeiros capítulos. O resultado é uma sólida contribuição para compreender a trajetória histórica da pornochanchada, um importante, mas pouco valorizado momento da história do cinema brasileiro. Nascimento arquiteta seu livro em torno de quatro capítulos onde aborda: 1) o erotismo no cinema; 2) a formação e expansão da comédia erótica na Itália e sua repercussão em outros países; 3) as origens, características e consolidação da pornochanchada; e, por fim, 4) a decadência da pornochanchada e a transição para os filmes de sexo explícito, entre fins da década de 1970 e início da seguinte.
No capítulo 1, ao fazer um panorama do erotismo no cinema, o autor observa que o “erotismo acompanhou a trajetória da história do cinema, desde as primeiras décadas” (p. 20). Ao dialogar com Foucault e Giddens, Nascimento observa que a sexualidade se apresenta como “um dos principais aspectos do comportamento humano que mudou no século XX, com novas formas de prazer” (p.13-14). E expõe o “debate teórico” sobre “erotismo versus pornografia” (p.15). Curiosa e provocativa é a definição elaborada em entrevista de 1982 por Ody Fraga, diretor e roteirista da Boca do Lixo: “[…] a pornografia é o sexo sem vergonha de si. Já o erotismo é complexado, exige véus” (p. 14). Nascimento observa que os “limites de definição entre o que é erótico e o que é pornográfico não são tão precisos” (p. 16). Por fim, observa que a noção de moral é construída historicamente: “as concepções morais mudam com o tempo.” (p. 19). Leia Mais
As narrativas dos mestres e uma história social da capoeira em Teresina/PI: do pé do berimbau aos espaços escolares | Robson Carlos da Silva
Se você é leigo nos estudos da capoeira e está buscando aprimorar seus estudos sobre esse esporte considerado “genuinamente nacional”, você deve antes de tudo entender que a capoeira não é simplesmente baiana em sua constituição. A capoeira institucionalizada com Mestre Bimba e Mestre Pastinha na Bahia nos anos de 1920, era só uma parcela da prática que já havia sido registrada em outros estados, principalmente no Rio de Janeiro, como as pesquisas de (SOARES, 1999; 2002) nos mostram.
Entretanto desde o início do século XXI, inúmeras pesquisas surgiram e ampliaram nossos encontros com a história da capoeira em outros estados. Foram ampliados os estudos de capoeira na Bahia com a dissertação de (OLIVEIRA, 2004) e a historiografia da capoeira passa a construir uma lógica de prática regional, consolidada sobretudo nos estudos do século XX, presente nos trabalhos de (LEAL,2002) com a história da capoeira no Pará republicano, recentemente com a história da capoeira no Maranhão por (PEREIRA, 2019) e com as dissertações de (CUNHA, 2012) e (AMADO, 2019) traçando a prática da capoeira no estado de São Paulo, desde a monarquia até a república. E ainda pouco divulgado temos a história da capoeira no Piauí, escrita pelo Mestre Bobby2 e objeto de reflexões dessa resenha. Leia Mais
Samba, caneta e pandeiro: cultura e cidadania no sul do Brasil | Karla Rascke Leandro
Construída enquanto ilha turística de Santa Catarina, um pedacinho da Europa e lar de uma açoraneidade, Florianópolis, é desvelada historicamente em Samba, caneta e pandeiro: cultura e cidadania no sul do Brasil através de fragmentos e marcas da presença de africanos e seus descentes. Suas experiências cotidianas, formações associativas, projetos de cidadania e manutenção cultural, são apreendidas frente a uma sociedade racializada e marcada pelos estigmas da escravidão, findada com o regime republicano, pautado nos ideais de progresso e civilização.
Em uma narrativa a contrapelo, menos do ponto de vista dos vencedores e mais pelo lócus das lutas, embates e disputas em torno de um cotidiano citadino, a historiadora Karla Leandro Rascke empreendeu esforços notórios numa pesquisa sobre agremiações organizadas por afrodescendentes na capital catarinente, entre os anos 1920 e 1950. O livro é oriundo da sua tese de doutorado que buscou investigar como diferentes associações de origem africana (clubes recreativos; blocos, cordões, ranchos e escolas de samba; grupos de cacumbi; irmandades religiosas; clubes de futebol; comunidades negras) empreenderam ações e articulações de solidariedade e sociabilidades. Leia Mais
Maria Graham: Uma inglesa na independência do Brasil | Denise Porto
Fazer uma resenha é um ato de amor. De crença, de prazer.
É ler um trabalho ou um livro e jogar seus sonhos para um monte de sentimentos, de imagens, boas e ruins.
É imaginar-se em um outro local.
E essa crença me acompanha no trabalho de Denise G. Porto quando nele descreve a inglesa que aqui viveu na cidade colonial, observando e sentindo as ruas com o cotidiano da cidade, conhecendo ricos e pobres, vivendo na floresta ou vivendo no palácio da Quinta da Boa Vista. Um prazer também quando tomamos conhecimento quanto aos documentos oficiais sobre a Guerra da independência no Nordeste, principalmente na Bahia e Maranhão. Leia Mais
Ensaios de História Medieval: temas que se renovam | Renata Cristina de Souza Nascimento
O livro Ensaios de História Medieval: temas que se renovam é um exemplo, junto a outros publicados nos últimos anos1, da consolidação dos estudos universitários brasileiros sobre a Idade Média. Desde meados da década de 1990 o medievalismo no Brasil vem crescendo influenciado por diversos fatores2. A fundação da ABREM (Associação Brasileira de Estudos Medievais), em 1996, foi um marco desse sucesso. Nesse processo, grupos de estudos, periódicos especializados e eventos regulares na área também se estabeleceram nas regiões Nordeste, Centro-Oeste, Sudeste e Sul. Em Goiânia, por exemplo, nas dependências da Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC Goiás), Área II, foi realizado nos dias 20 e 21 de maio de 2019 o Colóquio de Estudos Medievais & Curso de Atualização: “Ensaios de História Medieval: temas que se renovam”. Nesse evento, foi lançado a obra aqui resenhada, organizada pelos professores doutores Renata Cristina de Sousa Nascimento (UEG/ UFG/PUC-GO) e Paulo Duarte Silva (UFRJ). Leia Mais
Sociabilidades e territorialidade: A construção de sociedades de afrodescendentes no sul de Santa Catarina (1903/1950) | Júlio César da Rosa
O passado de Santa Catarina, cunhado nos discursos oficiais e acadêmicos do século XX, foi atrelado a uma memória, pautada, exclusivamente no imigrante europeu. Memórias formuladas e manuseadas, através de coordenadas ideológicas hegemônicas da sociedade moderna ao longo do tempo, fixaram a imagem de uma Santa Catarina branca e civilizada, incipiente ou quase inexistente da presença outros sujeitos, experiências e culturas que enfrentavam o quotidiano das cidades e das zonas rurais, marcadamente por diversos modos de vida.
Ocorre que, apesar dos territórios da região sul do Brasil e em vários países da América, receberem um contingente significativo de africanos, suas memórias e dinâmicas sociais angariadas no mundo diaspórico, não foram levadas em conta nas narrativas das fundações e desenvolvimento de cidades catarinense, relegando-as uma invisibilidade histórica. Leia Mais
O pêndulo de Epicuro: Ensaio sobre o sujeito e a lógica de uma história sem finalidade – Kant, Freud e Darwin – BOCCA; PEREZ (RFMC)
BOCCA, Francisco Verardi; PEREZ, Daniel Omar. O pêndulo de Epicuro: Ensaio sobre o sujeito e a lógica de uma história sem finalidade – Kant, Freud e Darwin. Curitiba: CRV,2019. Resenha de: ARMILIATO, Vinícius. Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, p. 449-455, n.1, abr, 2020.
Nos confins da história da noção de história
O Pêndulo de Epicuro trata-se de mais uma publicação da parceria entre Francisco Verardi Bocca e Daniel Omar Perez. Se em publicação anterior, Ontologia sem espelhos (PEREZ;BOCCA;BOCCHI, 2014), que contou também com a parceria de Josiane Bocchi e no último ano ganhou uma tradução para o francês1, os autores fazem uma história da noção de realidade desde Descartes até Freud, na obra presente fazem a história da ideia de história que figura de modo subjacente às elaborações de Kant, FreudeDarwin. E analisando detalhadamente cada autor, apresentam como visualizam na história um rumo, um percurso ou mesmo uma tendência, de modo que ora se aproxima do legado de Epicuro, ora se afasta desta. Perguntam-se: Seria curso da história ascendente, regressivo, assintótico, cíclico ou mesmo, sem qualquer rumo? Caso não houvessem rumos possíveis, se os acontecimentos ao longo na história nada mais fossem do que o resultado da pura aleatoriedade dos acontecimentos humanos, poderíamos dizer que seu curso nada mais seria do que o efeito da seleção de acontecimentos dada pelo viés teórico do autor que diz algo sobre a história? Ainda, é possível conceber um modelo de análise da história que ofereça visualidade para a contingência e aleatoriedade dos acontecimentos da vida? São essas as questões que figuram como objeto central de O pêndulo de Epicuro. Trata-se de um trabalho minucioso e necessário. Minucioso, pela precisão e verticalidade com que abordam os autores. Nesse caso, textos marginais são evocados em paralelo aos mais célebres, além de revelarem movimentos internos e pendulares a cada autor (por exemplo, os diferentes pesos que Darwin confere à variação e à seleção ao longo de suas publicações). Necessário, enquanto trabalho que permite encarar os modos como a história é concebida e, consequentemente, observar os efeitos de tais visadas. Assim, seja uma história que marcha para um futuro promissor, seja uma história que declina ou mesmo uma história que não tem rumo, em cada uma dessas posições tem-se o fundamento ou a justificativa para a forma como a sociedade se relaciona com seu presente: devemos voltar ao passado? é no futuro que encontramos tempos melhores? O presente é o passado corrompido, degenerado? O presente é um futuro inacabado que deve ver no porvir um modelo a se alcançar? Tais questões, também abordadas na obra, não deixam de ser importantes para o mais contemporâneo dos debates sobre os rumos da civilização, da governança e da ética.
O livro conta com uma apresentação assinada por Eládio C. P. Craia, a qual leva às últimas consequências os argumentos da obra. O pêndulo de Epicuro propõe três principais capítulos, ou ensaios, dedicados a Kant, Freud e Darwin. Além disso, em sua Introdução, apresenta uma revisão objetiva e cuidadosa das leituras que visualizaram tendências na história das civilizações, como o fez Herbert Butterfield, Michel Meyer, Arnold Toynbee e Oswald Spengler, e também autores contemporâneos, tais como François Hartog.
Já nas primeiras linhas da apresentação do livro, intitulada A irrupção dos acontecimentos, encontramos o anúncio da falência na busca por uma ordem finalista da história: “Todos reconhecem que a natureza, assim como as sociedades humanas, nos seus devires, manifestam a cada instante emergências que julgávamos impossível. Sempre nos desconcertam, contudo, não desistimos de buscar suas lógicas, seu sentido histórico” (BOCCA; PEREZ, 2019, p. 23). Nesse sentido, a reflexão filosófica encontrou entendimentos da organização do tempo que só com Darwin é que se pôde enfraquecer “uma perspectiva de história universal e finalista, indissociável do futuro e do progresso” (BOCCA; PEREZ,2019,p. 23). Darwin teria retomado o modelo epicurista onde o presente, a aleatoriedade e a contingência seriam justamente os fatores que organizam a vida e seu percurso. O interesse por esse fato, da ausência de finalidade presente em Epicuro resgatada pela biologia evolutiva da segunda metade do século XIX” permite compreender os fatos naturais e históricos prescindindo, entre outras coisas, do futurismo assim como do passadismo, mas sobretudo, das ilusões da modernidade” (BOCCA; PEREZ, 2019, p. 24). Por conta disso é que no primeiro capítulo Kant é explorado, dado que tal autor procurou, conforme a o trabalho de Bocca e Perez mostra, desqualificar a perspectiva epicurista. Toda a ocorrência, todo o acontecimento, sedaria enquanto efeito de uma tendência mecânica causal. Em Kant “os elementos não são determinados contingentemente, mas recebem, por uma mecânica cega, determinação segundo leis gerais concebidas por uma sabedoria suprema” (BOCCA; PEREZ, 2019, p. 58). Kant viria então a substituir a contingência e o acaso por um programa de leis e tendências que orientaria o desenvolvimento da natureza. As predisposições para o progresso aparecem em vários trabalhos de Kant, como por exemplo em Ideia de uma história de um ponto de vista cosmopolita (1784), quando o autor apresenta o fio condutor da história humana que “ordena o desenvolvimento das disposições naturais do ser humano para o que chamou de cosmopolitismo” (BOCCA;PEREZ,2019,p. 62). Os autores mostram tais acepções em trabalhos posteriores, até em 1798 em O conflito das faculdades onde, novamente, a partir da Revolução Francesa, Kant apresenta “um tipo de acontecimento exemplar na experiência da humanidade que indica a aptidão humana para o progresso” (BOCCA; PEREZ, 2019, p. 86). Nesse sentido, articulando o passado, o presente e o futuro a partir dos acontecimentos em solo francês, vê-se o filósofo autorizar-se a “um tipo de predição acerca do futuro das sociedades humanas, de modo a fazer da ideia de República algo mais que uma quimera” (BOCCA; PEREZ, 2019, p. 87). Trata-se então, de uma tendência de aprimoramento da espécie reconhecida nos seres humanos, mesmo que seja, como ressaltam os autores, em uma curva assintótica em relação aos seus objetivos.
A ideia de uma curva assintótica que tende a alcançar o progresso de uma sociedade é bastante importante na comparação com o que seria uma filosofia da história em Freud, apresentada no segundo capítulo. Enquanto a tendência ao progresso é visualizada por Kant, a tendência à regressão é patente nas construções freudianas. Freud tratar-se-ia de um autor “declinista”. Tal leitura se ampara na análise de que Freud visualizou nas leis da termodinâmica que a tendência crescente de entropia nos fenômenos da matéria leva a seu desgaste total, à sua morte. Ao afirmar esta tendência ao aniquilamento como nodal na psicanálise freudiana de modo bastante original, os autores, evitando um contra-argumento de um Freud não-declinista, indicam que em sua obra há sim dois movimentos: um emancipatório e ascendente – visto na clínica – e um propriamente declinista – notado na metapsicologia. E é esta última que irão explorar no segundo ensaio, ambicionando entender qual seria a filosofia da história que através desta se decalca da psicanálise. Para eles, a metapsicologia “apresenta um determinismo naturalista composto de um certo ponto de vista evolucionista da Biologia a um ponto de vista entrópico da Física” (BOCCA; PEREZ, 2019, p. 89). Assim, se a clínica porta um papel emancipatório às amarrações psíquicas do paciente, o “jogo” entre o Princípio de Prazer e o Instinto de Morte leva à vitória deste último e, apesar do trabalho clínico e de desenvolvimento psíquico poder postergá-lo, jamais aniquilará seu próprio fim. Nesse âmbito, a especulação metapsicológica freudiana com o material empírico obtido em sua clínica “põe em jogo, o otimismo do esclarecimento e da autonomia do paciente ao finalismo declinista das forças entrópicas que o habitam”(BOCCA; PEREZ, 2019, p. 90). É essa aparente contradição que é investigada ao longo do capítulo e que permite notar a particularidade da ideia de história desde a perspectiva freudiana, cuja vida, a civilização e sua história, se situariam “Entre a abertura para o futuro e o declínio inexorável” (BOCCA; PEREZ, 2019, p. 90). Como lembra Freud em Além do princípio do prazer (1920), a finalidade da vida é atingir a morte. Aqui é preciso ressaltar que os autores resgatam em textos de Freud anteriores a este que acabamos de citar, a mesma perspectiva, declinista, embora ainda não tão explícita. Desse modo, evitam ler as tendências à regressão indicadas na década de 1920 por Freud como uma ruptura com o corpus anterior de sua obra.
Antes disso, estaria coerentemente em continuidade com trabalhos anteriores. Por exemplo, em Moral sexual civilizada e doença nervosa moderna (1908), Freud já havia ressaltado que o processo civilizatório atenta contra si mesmo: a doença nervosa é o dano da civilização. Fazendo analogias com máquinas a vapor, Freud considerou que a sublimação não é capaz de redirecionar toda a força instintual “da mesma forma que em nossas máquinas não é possível todo o calor em energia mecânica” (FREUD, 1908, apud BOCCA; PEREZ, 2019, p. 103). Nas palavras dos autores, nesta obra “Freud articulou o ponto de vista biológico evolucionista a um ponto de vista físico entrópico, atribuindo à natureza, ao homem e à civilização, uma evolução cuja finalidade seria a exaustão e o declínio”(BOCCA;PEREZ,2019, p. 104).
Ora, se uma curva é assintótica em relação ao progresso (Kant) e a outra em algum momento após certa ascensão regride para o estado anterior de repouso (Freud), haveria ainda uma terceira via (Darwin), que não comportaria nenhum direcionamento. No último capítulo, Darwin é aborda do como alternativa que mais se aproxima de Epicuro, ou seja, com o pêndulo retornando a uma perspectiva que permite visualizar uma história sem finalidade.
É então no último capítulo que irão indicar uma leitura alternativa a qual subscrevem na conclusão do livro, como veremos adiante, para um entendimento próprio da história. Para tanto, exploram como a ideia de variação ressaltada por Darwin torna-se fundamental para a compreensão de um curso da história sem finalidade, haja vista o reconhecimento pelo evolucionismo darwiniano de que é a produção aleatória de pequenas variações a cada descendência que, em interação com o meio (o qual também não é estável), conduz modificações à história da espécie (trata-se nada mais que o mecanismo da seleção natural). Quanto à descendência das espécies “Darwin retoma e reafirma o ponto de vista de Epicuro, ao concebê-la como não teleológica, como imprevisível” (BOCCA; PEREZ, 2019, p. 130). As objeções possíveis a tal asserção são debatidas através de comentadores mais recentes (tais como Thierry Hoquet, André Pichot, Vittorio Hosle e Dieter Wandschneider), especialmente quando se viu teleologia em concepções darwinianas, como nas ideias de struggle for life, complexificação e progresso. Quanto a este último, os autores afirmam: “[…] o que quer que tenhamos em mente quanto ao progresso e ao aperfeiçoamento, só pode ser referido, não a uma meta, mas contingencialmente a partir da relação que cada criatura de uma espécie mantém com as condições de sua existência” (BOCCA; PEREZ, 2019, p. 137). Algo que se reforça em trabalhos posteriores a Darwin, como na genética mendeliana redescoberta em 1900 por Hugo de Vries e na síntese moderna (Ernst Mayr e Julian Huxley). Trata-se de um conjunto de trabalhos que trouxeram para o debate “temas e conceitos como mecanismo, evolução cega, acaso, contingência, aleatoriedade, probabilidade, entre outros” (BOCCA; PEREZ, 2019, p. 138). Ainda, o papel da variação para a diversidade da vida segue sendo considerado no cenário pós-Darwin, notadamente a partir da biologia molecular. Os autores utilizam sobretudo os trabalhos de vulgarização dos biólogos ganhadores do Nobel de Medicina de 1965, Jacques Monod, François Jacob e André Lwoff. Tais autores consideram que “a variação por mutação, que impulsiona a evolução, não seria de modo algum um fenômeno de exceção, mas ao contrário, quem sabe, a regra. Residiria no seio da natureza. Monod reafirma o ponto de vista de que a própria conservação da vida seria dependente da novidade” (BOCCA; PEREZ, 2019, p. 150).
Ao final da leitura dos três ensaios principais do livro, torna-se evidente como os autores se posicionam favoravelmente ao entendimento da história enquanto algo que porta um fluxo descontínuo e aberto à singularidade. Mas quando chegamos às considerações finais, vemos o que poderíamos chamar de “quarto ensaio” cujo autor seria Georges Canguilhem.
A conclusão de O pêndulo de Epicuro parece prenunciar o que seria a continuidade do trabalho ora desenvolvido. Isso porque em seu capítulo conclusivo exploram, ainda que sumariamente, mas com bastante precisão, a mirada de Canguilhem sobre o tema, especialmente quanto ao modo como este se apropria da leitura darwinista junto aos desdobramentos da biologia evolutiva da primeira metade do século XX. Referimo-nos à ideia de progresso e de finalidade, atreladas às noções de cópia e de erro utilizadas nos estudos de genética analisados em diferentes textos de Canguilhem. Para tanto, situam a crítica que este faz a leituras da biologia da década de 1960 quanto ao uso que fazem da ideia de erro (erro na cópia, na transcrição gênica), notadamente nos trabalhos dos ganhadores do PrêmioNobelde1965. Canguilhem entende que tais usos são “consequências da ilusão moderna de progresso e finalidade” (BOCCA; PEREZ, 2019, p. 164). Isso porque a variação, elemento fundamental para a produção de novas formas vivas, acaba se tornando um equívoco da natureza quando são entendidas enquanto “erros”: “munido da noção de erro, o geneticista alimenta a expectativa de que a natureza reproduz o padrão que ele próprio julga ter reconhecido nela” (BOCCA; PEREZ, 2019, p. 169). No entanto, a vida pode ser entendida como produção incessante de variação, de diferença e singularidade, e assim, não passível de ser reduzida a um tipo ideal, não havendo possibilidade de entender a diferença enquanto equívoco ou malogro. Tudo dependerá de suas relações com o meio. Tais leituras da biologia “não consideram suficientemente que o que chamam erro seria a própria condição da evolução” (BOCCA; PEREZ, 2019, p. 169). Anunciam então nas últimas páginas do livro que, ao se manter essas categorias não só se abre para o retorno do pêndulo a noções de progresso e de finalidade, mas também para a eugenia, para a “expectativa de correção de seu erro”. Em suma, a sobrevivência de noções como cópia e erro dificulta o abandono da ideia de progresso e finalidade ontológica da natureza e, segundo Bocca e Perez, só o abandono destas “abriria em definitivo as portas para a emergência do possível, onde ser vivo e ambiente seriam partes de um meio biológico sempre a se constituir” (BOCCA; PEREZ, 2019, p. 171). Em suas últimas palavras, são bastante precisos ao lembrar que a crítica de Canguilhem, a qual apresentam na sequência aos três ensaios de história da noção de história propostos ao longo de O pêndulo de Epicuro, sabe a que veio, pois “denuncia a fragilidade da iniciativa histórica de classificação dos seres vivos, especialmente a que sugere e sustenta a presença de um fio condutor de continuidade evolutiva, um poderoso instrumento de apoio para teses e ações racistas e eugênicas que merecem combate por toda parte” (BOCCA; PEREZ, 2019, p. 177). Lembram, por exemplo, a reintrodução do criacionismo via design inteligente, movimento presente na biologia contemporânea. Trata-se, portanto, de se estabelecer um combate contratais leituras cuja estratégia é sugerida nas últimas palavras do livro: “Que não se perca Epicuro de vista” (BOCCA; PEREZ, 2019, p. 177).
Entendemos que O pêndulo de Epicuro é uma ferramenta teórica densa para amparar a defesa da diversidade e singularidade das formas vivas, dado que a leitura do trabalho de Francisco Bocca e Daniel Perez subjaz um ideal, o de que os indivíduos não sejam lidos como mais ou menos próximos a uma finalidade arbitraria, artificial e historicamente constituída.
Em um momento no qual os apelos à finalidade, à refutação da diferença e à religião penetram a ciência e a filosofia, temos, nesta obra, uma reflexão filosófica condizente com nossas demandas atuais.
Nota
1 PEREZ, Daniel; BOCCA, Francisco Verardi; BOCCHI, Josiane Cristina. Ontologie sans mirroirs, essai sur la réalité – Borges, Descartes, Locke, Berkeley, Kant, Freud. Tradução de Isabelle Alcaraz. Paris: L’Harmatan, 2019.
Vinícius Armiliato – Doutor em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR). Atualmente realiza pesquisa de pós-doutorado na mesma instituição, como bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). E-mail: vinicius.arm@gmail.com ORCID: https://orcid.org/0000-0003-2288-3820
Instituto de Menores Artesãos (1861-1865): informação, poder e exclusão no Segundo Reinado | Douglas de Araújo Ramos Braga
Resultado de uma pesquisa de iniciação científica que se tornou tema de trabalho de conclusão de graduação, o livro é fruto da monografia de Douglas de Araújo Ramos Braga- graduado em História pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), mestre em História das Ciências e da Saúde pela Casa de Oswaldo Cruz/Fundação Oswaldo Cruz (COC-FIOCRUZ) e atualmente doutorando em História pela Universidade de Brasília (UNB) 1.
Instituto de Menores Artesãos (1861-1865): informação, poder e exclusão no Segundo Reinado concede centralidade às noções de “criança”, “infância” e “menor”, numa análise que busca entender a experiência institucional do instituto de vida efêmera que exerceu profundo impacto sobre os indivíduos que para ela foram enviados-retirados das ruas ou mandados por familiares que não tinham condições de criá-los. O que eram crianças? O que eram menores? Como e porque eram inseridos junto a outras figuras – homens, mulheres, livres, escravos, imigrantes, africanos livres de diversas idades – nas chamadas “classes perigosas”? O que era ser criança, o que era infância? São algumas das perguntas que norteiam as reflexões do autor, que insere sua problemática no debate maior acerca das políticas públicas de controle e esquadrinhamento social pelo Estado Imperial. Leia Mais
Pedagogia Universitária: aprender a profissão, profissionalizar a docência | G. O. Melo
Geovana Melo, autora da obra Pedagogia Universitária: aprender a profissão, profissionalizar a docência, com 207 páginas, lançado pela editora CRV, em 2018, na cidade de Curitiba, que está com sua primeira edição encerrada e caminha para a segunda, projeta a perspectiva de sua vivência diante de sua pesquisa acerca da formação de professores para o ensino superior mediante sua trajetória. Geovana é pedagoga, mestre, doutora e pós-doutora em Educação, docente na Universidade Federal de Uberlândia, atuando nos cursos de Pedagogia, licenciatura e no Programa de Pós-Graduação em Educação, onde também possui um cargo gestacional, podendo aproximar-se com fidelidade de suas colocações.
Tem experiência na área de Educação, com ênfase em Pedagogia Universitária, Didática, Avaliação da Aprendizagem e atua trabalhando com os seguintes temas: formação de professores para a educação básica e superior, educação escolar, processos de formação, estágio supervisionado e profissionais da educação. Geovana é coordenadora do GEPDEBS – Grupo de Estudos e Pesquisas em Docência na Educação Básica e Superior do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Uberlândia, onde também é diretora da Faculdade de Educação. Leia Mais
Unidos perderemos: a construção do federalismo republicano brasileiro | Cláudia Maria Ribeiro Viscardi
Dizer que “Não há na História do Brasil nada mais velho que a ‘República Velha’” (VISCARDI, 2017, p. 18) é uma feliz escolha para propor a revisitação da política de transição entre a Monarquia e a República e discutir os impactos do federalismo na organização política nacional. Este é um dos enfoques de Cláudia Maria Ribeiro Viscardi, professora titular do Departamento e do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. Autora de Teatro das Oligarquias (VISCARDI, 2001), obra enraizada na historiografia para oferecer uma leitura concisa sobre a participação dos estados-atores na política da primeira fase republicana, Viscardi apresenta uma nova proposta a respeito das consequências do federalismo na conjuntura do início da República e particularmente do governo Campos Sales. Unidos perderemos, como reconhece a autora, é uma continuação de discussões específicas sobre a descentralização política à época dos debates republicano-federativos. Leia Mais
A Introdução dos Estudos Africanos no Brasil (1959 – 1987) | Mariana Schlickmann
SCHLICKMANN Mariana (Aut), A Introdução dos Estudos Africanos no Brasil (1959 – 1987) (T), CRV (E), COSTA Rosivania de Jesus (Res), Fronteiras (Ftr), Estudos Africanos, América – Brasil, Séc. 20
Na obra aqui resenhada, a autora dedica-se a fazer um levantamento da literatura produzida no Brasil, entre 1959 e 1987, a respeito dos estudos africanos. O foco do livro é no modo como o continente africano figura nos trabalhos realizados por pesquisadores brasileiros.
Schlickmann apresenta dados desde o primeiro estudo acadêmico por ela identificado e cujo foco foram os estudos africanos no Brasil, realizado em 1987 por Luís Beltrán, intitulado O Africanismo Brasileiro, até pesquisas mais recentes acerca da temática, como a tese de doutoramento de Márcia Guerra Pereira, datada de 2012, História da África: uma disciplina em construção. Leia Mais
A Introdução dos Estudos Africanos no Brasil (1959 – 1987) | Mariana Schlickmann
Na obra aqui resenhada, a autora dedica-se a fazer um levantamento da literatura produzida no Brasil, entre 1959 e 1987, a respeito dos estudos africanos. O foco do livro é no modo como o continente africano figura nos trabalhos realizados por pesquisadores brasileiros.
Schlickmann apresenta dados desde o primeiro estudo acadêmico por ela identificado e cujo foco foram os estudos africanos no Brasil, realizado em 1987 por Luís Beltrán, intitulado O Africanismo Brasileiro, até pesquisas mais recentes acerca da temática, como a tese de doutoramento de Márcia Guerra Pereira, datada de 2012, História da África: uma disciplina em construção. Leia Mais
Trabalho e educação no Brasil: da formação para o mercado ao mercado da formação – LIMA (TES)
LIMA, Marcelo. Trabalho e educação no Brasil: da formação para o mercado ao mercado da formação. Curitiba: CRV, 2016. 130p. Resenha de: VENTURA, Jaqueline. Mercado e formação: uma análise crítica da mercantilização da educação profissional no Brasil. Revista Trabalho, Educação e Saúde, Riov.17, n.1, Rio de Janeiro, 2019.
Em Trabalho e Educação no Brasil: da formação para o mercado ao mercado da formação, o professor Marcelo Lima, da Universidade Federal do Espírito Santo, faz um convite à reflexão crítica baseado em uma inquietante constatação: a mercantilização da educação e, em particular, da educação profissional.
O trocadilho do título, entre ‘mercado e formação’, traduz o atual movimento de ampliação do caráter privatizante da formação humana. O livro é composto por seis artigos que nos conduzem a refletir sobre como o viés economicista da educação e, em especial, da qualificação profissional, manifesta-se, atualmente, em dois planos simultâneos: a educação como serviço e a educação como mercadoria.
O primeiro capítulo, “Juventude, Trabalho e Educação”, abre o debate com uma reflexão sobre o papel da educação e do trabalho nos dias atuais, relacionando tal debate à situação da juventude no Brasil. O desemprego e a violência no contexto social contemporâneo são discutidos à luz de conceitos como desigualdade, urbanização, ética, educação, invisibilidade e alteridade.
Na sequência, em “A dialética trabalho e educação”, o autor busca no marxismo as referências teórico-metodológicas para discutir o processo de autoprodução humana que fundamenta epistemologicamente a pesquisa tratada no livro. Com o título “A qualificação e as mudanças no mundo do trabalho”, o terceiro capítulo discute como se dá a qualificação atualmente, considerando as mudanças no mundo do trabalho e suas consequências para a educação profissional.
No capítulo “O desenvolvimento histórico do tempo socialmente necessário para a formação profissional do técnico em eletrotécnica na rede federal”, a obra traz um importante e original debate sobre o conceito de ‘tempo socialmente necessário para formação profissional’, um conceito que relaciona os tempos produtivos e os tempos educativos. O autor demonstra que há uma tendência de diminuição desse tempo de formação.
Com base em um estudo empírico sobre o tempo de formação do técnico em eletrotécnica na rede federal do Espírito Santo, o autor conclui que houve uma espécie de ’reconfiguração‘ gradativa dos tempos relativos à formação em diferentes áreas, revelando diferentes concepções pedagógicas para os diversos momentos históricos.
Constata-se que, atualmente, as políticas produzidas na lógica do mercado, como, por exemplo, os cursos do Pronatec – com currículo estreito, imediatista e de baixa carga horária – tendem a esvaziar a base temporal desses currículos para fins de uma formação voltada mais para o trabalho simples do que para o trabalho complexo. Esse movimento restringe a educação às necessidades do campo econômico. Desse modo,
Segundo a perspectiva do discurso hegemônico, um dos meios para superar a suposta carência de formação da força de trabalho brasileira, considerada responsável pela não competitividade do Brasil a nível mundial, é a expansão acelerada da qualificação, bem como o acesso a diferentes níveis de certificação.
Essa diretriz tem criado um lucrativo mercado de transferência de recursos públicos para instituições privadas, ao expandir as vias formativas de caráter precário e aligeirado na rede privada e ampliar as possibilidades de certificação, realizadas, em sua maioria, com negação do direito ao conhecimento. (Ventura, Lessa e Souza, 2018, p. 158)
Na sequência, o capítulo quinto, “Expansão da rede federal: mercantilização e flexibilidade”, analisa as metamorfoses da rede federal de educação profissional, tomando como base empírica o desenvolvimento histórico dos modelos pedagógicos dessa modalidade de ensino ofertada pelo governo federal no estado do Espírito Santo.
Interessante notar que, ao longo da história, foram construídas marcas identitárias distintas para essa instituição educacional. Desde as escolas de aprendizes artífices até os institutos federais de hoje, cada período foi marcado por um tipo de homem que se deseja formar, ou seja, por um projeto educativo que caracterizou o projeto formativo da instituição.
No atual momento histórico, os Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia, em um movimento de ampliação e expansão de seu foco, abrangem de cursos de formação inicial e continuada (FIC) até a Pós-Graduação Stricto Sensu. Assim, a flexibilidade e a diversificação de oferta de cursos marcam a sua identidade hoje.
Esse movimento “pseudocria” o direito à educação (expande a rede federal, mas subsidia o setor privado), escondendo seu principal objetivo que é: resolver problema de formação para o mercado pela via da criação do mercado da formação. A criação desse híbrido, anfíbio e IFLEX permite a construção de uma identidade movente e fluída, elástica e adaptável às demandas do mercado. Combinar políticas neodesenvolvimentistas com políticas neoliberais coloca o governo e sua política numa encruzilhada que expressa uma ambiguidade ideológica, mas no fundo se alicerça na complementaridade de ações concretas que se estruturam na flexibilização e na heterogeneização dos tipos de oferta (e de ofertantes) da educação profissional, com o fito de resolver o (pseudo) problema de formar para o mercado pela via do fomento do mercado da formação . ( Lima, 2016 , p. 105, grifo nosso)
Encerra o livro o capítulo “Centros Públicos de Qualificação Profissional”, com a defesa de se reafirmar o caráter público da formação dos trabalhadores. Esse capítulo retoma a proposta de centros públicos de educação, defendida pelo grupo de trabalho nº 09 – Trabalho e Educação, da Associação de Pesquisa e Pós-Graduação em Educação – Anped, em meados da década de 1990 e reafirma a atualidade desta proposta contra-hegemônica.
O capítulo chama a atenção para o fato de que a educação profissional básica, relacionada ao ensino fundamental, voltada para a formação em ocupações subtécnicas, seja oriunda do sistema S ou das políticas do Ministério do Trabalho e Emprego, como o o Programa Nacional de Inclusão de Jovens (Projovem), o Programa Nacional de Integração da Educação Profissional com a Educação Básica na Modalidade de Educação de Jovens e Adultos, cursos de formação inicial e continuada (Proeja-FIC) ou o Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego (Pronatec), apresenta, de modo geral, currículos restritos, com conteúdo de menor complexidade e com uma leitura superficial da ciência e o domínio prático das atividades de produção.
Em suma, um currículo que reproduz as posições subalternas dos trabalhadores manuais. Além disso, o “processo de minimização da intervenção do estado nas áreas sociais também tende a diminuir a qualidade e quantidade da oferta escolar tipicamente estatal” ( Lima, 2016 , p. 124).
Em perspectiva contrária à oferta privada de educação profissional, o autor apresenta a proposta do centro público de educação profissional. Essa proposta alternativa, o projeto do Centro de Referência do Trabalho, a ’Fábrica do Trabalho‘, executado pela Secretaria de Trabalho e Geração de Renda da prefeitura de Vitória, em 2006, decorreu da crítica à lógica mercantil e significou uma alternativa pública, proposta pelo campo crítico.
A materialização do projeto ’Fábrica do Trabalho‘ não ocorreu. Embora a obra das instalações físicas tenha sido construída, disputas políticas internas fizeram com que o projeto político-pedagógico original não chegasse a ser efetivado.
Na conclusão, o autor chama atenção para o seguinte: a concepção privatista da formação profissional associada “à mediocridade política vigente, que se alicerça no personalismo e no marketing eleitoral, num momento de perda de hegemonia do governo do qual emergiu esse projeto” ( Lima, 2016 , p. 125, grifo do autor) inviabilizou a construção desse centro público de educação profissional.
A obra em exame, Trabalho e Educação no Brasil: da formação para o mercado ao mercado da formação , é fruto de um estudo apurado e crítico. É um livro produzido por quem está preocupado em elucidar e transformar a realidade social e, por isso, é uma valiosa contribuição ao nosso pensar e fazer transformador também.
Ela nos oferece uma boa reflexão sobre as relações entre mercado e formação. E, principalmente, nos três últimos capítulos, oferece-nos uma análise crítica sobre a mercantilização da educação profissional no Brasil.
Referências
LIMA , Marcelo . Trabalho e educação no Brasil: da formação para o mercado ao mercado da formação . Curitiba : CRV , 2016 , 130 p. [ Links ]
VENTURA , Jaqueline P. ; LESSA , Ludmila L. ; SOUZA , Samantha C. V. Pronatec: ampliação das ações fragmentárias e intensificação da privatização da formação do trabalhador . Revista Trabalho Necessário , ano 16 , n. 30 , 2018 . [ Links ]
Jaqueline Ventura – Universidade Federal Fluminense, Faculdade de Educação , Niterói , RJ , Brasil. E-mail: jaqventura@uol.com.br
[MLPDB]Unidos perderemos: a construção do federalismo republicano brasileiro – VISCARDI (VH)
VISCARDI, Cláudia Maria Ribeiro. Unidos perderemos: a construção do federalismo republicano brasileiro. Curitiba: CRV, 2017. 207 p. PINTO, Surama Conde Sá. Arquitetura do novo regime: O Federalismo brasileiro na Primeira República. Varia História. Belo Horizonte, v. 34, no. 65, Mai./ Ago. 2018.
Nas últimas décadas, a historiografia relativa à Primeira República tem sido enriquecida com diversas contribuições. A vitalidade dessa produção tem provocado importantes deslocamentos de interpretação, sobretudo no âmbito da política, permitindo melhor compreensão do federalismo brasileiro. Há três eixos de renovação. Um deles relaciona-se à revisão do papel das chamadas oligarquias dominantes – São Paulo e Minas Gerais. Foram questionadas as ideias de que a hegemonia dessas oligarquias sustentavase na preeminência da economia exportadora cafeeira e a de que a política do café com leite ditaria a orientação do governo federal. O segundo eixo destaca as dinâmicas específicas de diferentes unidades da federação e suas estratégias para ampliarem os seus espaços políticos no contexto de federalismo desigual, através de tentativas de estruturação de eixos alternativos de poder. O terceiro eixo enfatiza questões de representação, competição política, partidos e voto, desenhando um quadro mais complexo da política na Primeira República, diferente da caricatura de um sistema político marcado pela fraude, violência, clientelismo, ausência de direitos e eternização de oligarquias no poder (Ferreira; Pinto, 2017, p.429-437).
Cláudia Viscardi, professora titular da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), é figura presente nesse debate. Autora de textos sobre a história política e social da Primeira República, no livro O Teatro das Oligarquias, defendeu que a estabilidade do modelo político da Primeira República foi garantida pela ausência de alianças monolíticas permanentes, fato que impediu, a um só tempo, que a hegemonia de uns fosse perpetuada e a exclusão de outros fosse definitiva (Viscardi, 2001, p.22).
Unidos Perderemos: a construção do federalismo republicano brasileiro, seu novo livro, é mais uma contribuição da historiadora mineira que acrescenta novas perspectivas sobre o período. Trata-se de uma adaptação da tese elaborada para a cadeira de titular da Universidade Federal de Juiz de Fora.
Voltado para especialistas e estudantes de graduação, nele Viscardi retoma o tema do federalismo oligárquico para estudar a montagem do regime republicano, no período entre a propaganda republicana e o governo Campos Sales. Sua análise privilegia o âmbito da macropolítica, priorizando atores políticos envolvidos nesse processo, interesses, identidades, pensamentos e atuação. A proposta apresentada articula a perspectiva que compreende o federalismo a partir da lógica de interesses dos estados-atores com a História Intelectual do Político.
O curioso título guarda relação direta com o tema tratado: a construção do projeto republicano na sua principal dimensão: o federalismo. Segundo a autora, esse projeto representava uma ruptura com o passado monárquico, caracterizado por um Estado centralizado em torno do Imperador, e preconizava a descentralização, a autonomia das antigas províncias, optando pelo conflito no lugar do consenso (Viscardi, 2017, p.22).
O conceito de cultura política (Berstein, 1992; Cefai, 2001) é um dos principais referenciais de análise. Ao instrumentalizá-lo, Viscardi prioriza a dimensão do discurso, não enfatizando seus demais componentes, para compreender as mudanças ocorridas no país na virada do século XIX para o XX, quando, segundo a autora, teria se consolidado uma cultura política republicana.
Dividido em cinco capítulos, o livro aborda o movimento republicano em uma de suas dimensões (a dos manifestos da propaganda); a normatização constitucional do novo regime (através da análise comparativa das Constituições estaduais e federal); limites da participação política e da cidadania, tema explorado superficialmente pela autora com base em literatura bastante conhecida; as concepções políticas e a ação de Campos Sales, objeto de análise dos dois últimos capítulos, nos quais figura sua maior contribuição.
São três os principais argumentos defendidos pela autora. O primeiro é o de que a normatização do novo regime articulou os compromissos do movimento republicano com os valores compartilhados por seus autores, que incluíam a desvalorização do povo, uma democracia pouco inclusiva, o falseamento da representação, pela construção de um federalismo desigual, e uma cidadania limitada a poucos homens letrados. O segundo é o de que o federalismo brasileiro foi fundamentado em relação direta com os estados, viabilizando a representação dos interesses privados via intermediação dos chefes locais. O último é o de que a chamada política dos estados de Campos Sales limitou-se a resolver os problemas de sua gestão. Na fórmula adotada no período, que implicou em meios de conviver com as dissidências sem colocar em risco a governabilidade, foram menos importantes as reformas regimentais relativas à última fase de depuração das candidaturas ao Parlamento. Os instrumentos mais efetivos foram a redução dos atores políticos através do voto literário, as limitações impostas à monopolização do poder e o desenho de um mercado político com algum grau de competição (Viscardi, 2017, p.190-191).
Baseada em fontes variadas (manifestos republicanos, as Cartas estaduais e federal, o discurso de campanha eleitoral de Campos Sales e a autobiografia do ex-presidente) e em diferentes metodologias (a prosopografia – superficialmente realizada-, a análise de discursos políticos – amparada em instrumentais da vertente britânica da História dos Conceitos – e o método comparativo), os dados apresentados aproximam-se de muitas das análises de Hilda Sábato sobre a construção da cidadania em países hispano-americanos no século XIX (Sábato, 2001, p.1293, 1297).
A despeito da bibliografia utilizada, o livro apresenta ausências importantes (Holanda, 2009), sobretudo relativas ao movimento republicano, às Constituições estaduais (Ferreira, 1989; 1994), à política no Distrito Federal e às eleições (Pinto, 2011; Souza, 2013). Isso faz com que algumas afirmações feitas já tenham sido objeto de questionamentos, como a ideia de que o prefeito do Distrito Federal possuía poderes discricionários na política carioca (Pinto, 2011). A obra prescinde também de maior sistematização dos dados apresentados.
Da mesma forma, a História Intelectual do Político proposta poderia ter sido enriquecida com a incorporação dos léxicos empregados pela imprensa e por pensadores políticos, pois há evidente defasagem entre as definições de conceitos encontrados nos dicionários (fonte priorizada pela autora) e a dinâmica dos conceitos no embate político. Esses elementos, contudo, não comprometem a iniciativa.
No momento em a República brasileira está prestes a completar 130 anos, Unidos perderemos convida os leitores a repensar os primórdios do regime e a superar esquematismos de longa data difundidos em livros didáticos. Seu mérito é acrescentar novos itens na agenda de estudos sobre a Primeira República.
Referências
BERSTEIN, Serge. L’Historien et la culture politique. Vingtième Siècle. Revue d’Histoire, n. 35, juil/sep. 1992. [ Links ]
CEFAI, Daniel. Cultures Politiques. Paris: Presses Universitaires de France, 2001. [ Links ]
FERREIRA, Marieta de Moraes (coord.). A República na Velha Província. Rio de Janeiro: Ed. Rio Fundo, 1989. [ Links ]
FERREIRA, Marieta de Moraes. Em Busca da Idade do Ouro: As elites políticas fluminenses na Primeira República. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, 1994. [ Links ]
FERREIRA, Marieta de Moraes e PINTO, Surama Conde Sá. Estados e oligarquias na Primeira República: um balanço das principais tendências historiográficas. Revista Tempo, Niterói, vol. 23, n. 3, set./dez., 2017. [ Links ]
HOLANDA, Cristina Buarque de. Modos de Representação Política. O experimento da Primeira República. Rio de Janeiro: IUPERJ, 2009. [ Links ]
SÁBATO, Hilda. On political citizenship in the Nineteenth-century Latin América. The American Historical Review, vol. 106, n. 4, oct., 2001. [ Links ]
SOUZA, Wlaumir Doniset de. Democracia Bandeirante: Distritos eleitorais e eleições no Império e na Primeira República. Jundiaí: Paco Editorial, 2013. [ Links ]
PINTO, Surama Conde Sá. Só para Iniciados: O jogo político na antiga Capital Federal. 1ª. ed. Rio de Janeiro: Mauad X/ FAPERJ, 2011. [ Links ]
VISCARDI, Cláudia Maria Ribeiro. O Teatro das Oligarquias: Uma revisão da política do café com leite. Belo Horizonte: C/Arte, 2001. [ Links ]
Surama Conde Sá Pinto – Instituto Multidisciplinar, Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. Av. Governador Roberto Silveira, s/n. Nova Iguaçu, Rio de Janeiro, 26.020-740, Brasil. suramaconde@uol.com.br
O socialismo de Oswald de Andrade: cultura, política e tensões na modernidade de São Paulo na década de 1930 – CARRERI (RHH)
CARRERI, Marcio Luiz. O socialismo de Oswald de Andrade: cultura, política e tensões na modernidade de São Paulo na década de 1930. Curitiba: CRV, 2017. 164p. Resenha de: SOTANA, Edvaldo. Política e literatura: um estudo sobre Oswald de Andrade. Revista História Hoje, v. 7, nº 13, p. 248-252 – 2018.
O livro intitulado O socialismo de Oswald de Andrade é fruto da tese de doutorado desenvolvida por Marcio Carreri no Programa de Pós-graduação em História da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Algumas indagações motivaram a pesquisa do professor do curso de história da Universidade Estadual do Norte do Paraná (Uenp). Dentre elas, destacam-se: “Que contribuição um homem da cultura pode dar para as ideias políticas?” e “É possível situar Oswald de Andrade como um socialista, primeiramente como escritor e também como homem de ação e, fundamentalmente, reconhecer sua contribuição para o pensamento social brasileiro?” (Carreri, 2017, p.16). Leia Mais
Vozes em defesas da ordem: o debate entre o público e o privado na educação (1945-1968) – GOMES (RBHE)
GOMES, M. A. O. Vozes em defesas da ordem: o debate entre o público e o privado na educação (1945-1968). Curitiba: Editora CRV, 2018. Resenha de: BARBOZA, Marcos Ayres; TOLEDO, Cézar de Alencar Arnaut. O público e o privado na educação brasileira. Revista Brasileira de História da Educação, 18, 2018.
As políticas de privatização da educação não são recentes no Brasil. Elas possuem uma historicidade. Essa proposta adquiriu ao longo dos anos significados diversos, buscando legitimar demandas diferentes dos grupos hegemônicos. Diante desse contexto, os estudiosos da história da educação não podem ignorar, em sua formação, os movimentos em defesa da privatização da educação, tendo em vista sua decisiva influência nas políticas para o setor, especialmente na atualidade.
Os grupos hegemônicos exercem pressão sobre as políticas públicas educacionais para que o investimento estatal seja direcionado para o setor privado. A compreensão desse movimento histórico é essencial no debate em defesa da escola pública e universal. O autor, em sua obra, analisa o debate sobre os anos de 1945 e 1968, entre a escola pública e privada, visando analisar as estratégias utilizadas pelos diferentes grupos sociais hegemônicos para a privatização da educação.
O autor, Marcos Antônio de Oliveira Gomes, atualmente é professor adjunto da Universidade Estadual de Maringá (UEM), lotado no Departamento de Fundamentos da Educação e membro do corpo docente do Programa de Pós-graduação em Educação, na linha da pesquisa História e Historiografia da Educação. Participa do Grupo de Pesquisas em Fundamentos Histórico-Filosóficos da Educação – UFSC/CNPq – e do Grupo de Pesquisa sobre Política, Religião e Educação na Modernidade (UEM).
Para alcançar seus objetivos, organizou o livro em sete capítulos. No capítulo 1, ‘A Igreja diante do Estado Republicano: o repúdio ao liberalismo e ao laicismo’, o autor discute as origens do projeto de restauração católica. Segundo ele, o processo de secularização e de laicização, promovido no Estado brasileiro com a Proclamação da República (1889) e a consequente defesa do ensino laico, ascendeu ao estabelecimento de um amplo debate no interior da igreja, que visava o projeto de reforma e modernização do catolicismo no Brasil.
A tarefa seria a redefinição do papel da igreja na sociedade brasileira. Esse projeto de restauração foi reiniciado com a chegada das diversas congregações religiosas para atuarem em projetos assistenciais e educacionais. Essas atividades buscavam o fortalecimento da Igreja Católica na sociedade brasileira.
A Carta Pastoral, elaborada por D. Sebastião Leme, em 1916, como arcebispo de Recife e Olinda, marcou esse período de reforma religiosa no Brasil. Na Carta, D. Leme defendia que a reforma católica deve levar os cristãos a ter consciência de seus deveres religiosos e sociais. Para tanto, foi criada uma rede de instâncias apropriada ao debate e divulgação do pensamento católico, em especial por meio da revista A Ordem (1921) e do ‘Centro D. Vital’, criado em 1922 por Jackson de Figueiredo.
Essas instituições buscaram representar o pensamento católico por meio de um núcleo de intelectuais leigos que se apresentavam como os porta-vozes orgânicos dos interesses do catolicismo; dentre eles, destacou o trabalho intelectual de Jackson de Figueiredo e de Alceu Amoroso Lima, ligado ao ministro Gustavo Capanema, na época ministro da Educação e Saúde (1934-1945). Defendiam, entre outras coisas, a restauração dos valores morais e culturais. Era importante combater o liberalismo fundamentado em ideias pluralísticas e agnósticas, principais princípios de degeneração da ordem cristã, e, segundo a igreja, esse projeto, no campo educacional, defendia a implantação do ensino religioso para a recuperação moral dos indivíduos e da sociedade.
No capítulo 2, ‘O Epílogo de uma época: a crise dos anos 20 e a ruptura reformista’, o autor mostra que a Revolução de 1930 no Brasil possibilitou quebrar as estruturas arcaicas e esgotadas da República Velha. A crise externa pela qual passou o sistema capitalista mundial, decorrente da quebra da Bolsa de Valores de Nova Iorque, trouxe consequências negativas para a economia brasileira.
Segundo ele, foi necessário quebrar a hegemonia da oligarquia cafeeira. O golpe de 1930 significou uma rearticulação do poder dos setores dominantes com a finalidade de rever a estrutura econômica do país, pelo questionamento da ordem liberal e agravamento dos conflitos sociais.
Três movimentos sociais marcaram o período: o movimento tenentista; a Semana de Arte Moderna; e a revolução espiritual desencadeada pelo Centro D. Vital. Além deles, houve o crescimento da insatisfação das classes médias e da classe operária. Ainda não havialegislações de proteção dos trabalhadores e de assistência social. As eleições do primeiro período da Primeira República eram marcadas por fraudes.
Nesse cenário, surgiu o movimento da Escola Nova, em defesa de uma escola laica, voltada para o desenvolvimento da ciência e para atender às demandas da indústria, como uma maneira de democratizar as relações sociais. Esse discurso, no entanto, colaborava para a ocultação das desigualdades sociais. A igreja, por sua vez, também buscou a democratização e via o espaço educacional como um instrumento de poder. Os intelectuais ligados a ela propuseram uma formação moral para educar a sociedade. Num ponto, os escolanovistas e os católicos convergiam: defendiam, no debate educacional, a educação como um direito do cidadão, que competiam ao Estado a sua garantia e destinação de fundos orçamentários destinados ao seu funcionamento, inclusive a rede privada.
No capítulo 3, ‘O Mundo pós-guerra: o idioma desenvolvimentista’, o autor esclarece que a Segunda Guerra Mundial pôs em discussão o nacionalismo, o desenvolvimentismo, a reconstrução da paz, a democracia, a questão social, entre outros temas. Muitas dessas questões tomaram parte da política da Organização das Nações Unidas (ONU), e também pela ação de sua representante na América Latina, a denominada Comissão Econômica para a América Latina (CEPAL), criada em 1948, após a Segunda Guerra Mundial.
O progresso econômico ocorreu em maiores proporções no governo de Juscelino Kubitschek de Oliveira (1956-1960), em particular com o favorecimento para a entrada de capital estrangeiro. Com o crescimento econômico, veio também a ampliação das disparidades regionais e desigualdades sociais. A ideologia do desenvolvimento nacional, preconizada pela CEPAL, foi defendida por intelectuais vinculados ao Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB), criado no governo de Café Filho, em 14 de julho de 1955.
Com a expansão da indústria veio uma forte reação operária em defesa de seus direitos. E, como o ‘fantasma da revolução comunista’ rondava o cenário nacional, setores empresariais, militares e setores da Igreja Católica organizaram-se contra os avanços dos movimentos sociais associados, na visão deles, ao comunismo. O movimento estava em defesa da ‘ordem’, das ‘tradições cristãs’ e da ‘propriedade privada’ e contribuiu para o estabelecimento do governo militar em 1º de abril de 1964.
No capítulo 4, ‘O diálogo com a república: a ação política da Igreja e a convergência com o Estado autoritário’, o autor afirma que o governo Vargas abriu espaço para a influência da igreja na área educacional. A igreja buscou ampliar os seus espaços para manter a supremacia espiritual. Muitas das reivindicações da igreja foram incorporadas à nova Constituição de 1934, por influência do pensamento de D. Leme e de Alceu Amoroso Lima, vinculados à Liga Eleitoral Católica (LEC).
O surgimento de novas correntes de pensamento no catolicismo, na década de 1950, significou um movimento de reestruturação do catolicismo no Brasil por meio da Juventude Universitária Católica (JUC), Juventude Operária Católica (JOC) e Juventude Estudantil Católica (JEC).
A criação da Conferência Nacional dos Bispos Brasileiros (CNBB), em 1952, possibilitou a elaboração de novos planos pastorais pela igreja e a fez se distanciar da política tradicionalista. Entendiam os bispos que o desenvolvimento econômico seria o caminho mais eficaz para combater o comunismo. Apesar das mudanças, na medida em que os movimentos sociais ganharam força, houve um despertar nos setores da igreja para a adoção de medidas conservadoras no combate à desordem social e ao comunismo, como a ‘Marcha da Família, com Deus e pela Liberdade’, que impulsionou o golpe de Estado em 1964. Segundo o autor, esse discurso ideológico escondia as faces do autoritarismo, expresso com maior vigor pela ditadura.
No capítulo 5, ‘O golpe militar de 1964 e a estratégica de privatização da educação’, o autor defende que o Golpe de Estado de 1964 favoreceu o processo de internacionalização da economia brasileira. Em nome dos interesses do povo, a configuração autoritária do Estado possibilitou a criação indiscriminada de cursos superiores privados.
Na visão dos representantes do MEC, ligados aos grupos privatizantes, foi necessário direcionar recursos da educação pública para a expansão da rede privada de ensino. Concomitante ao avanço das políticas privatizantes, no ensino público superior se verificaram a demissão de reitores e a extinção de programas educacionais, professores e estudantes foram expulsos de suas respectivas instituições. Até as campanhas de alfabetização foram consideradas subversivas, em clara referência ao trabalho desenvolvimento por Paulo Freire.
Pelo acordo MEC-USAID (United States Agency for International Development), a organização da educação superior no Brasil objetivava formar mão de obra para atender às necessidades do mercado por meio de uma formação generalista. A proposta de educação idealizada estava subordinada aos interesses do capital, e, para consolidar essa visão, o regime militar contou com o apoio de intelectuais e de parte da imprensa.
No capítulo 6, ‘Fé e política: uma nova perspectiva dentro do catolicismo’, de acordo com o autor, a crescente disparidade entre ricos e pobres, a discriminação dos mais pobres e a violência contra os movimentos populares fizeram com que alguns intelectuais da igreja, como D. Hélder Câmara e Alceu Amoroso Lima, buscassem demonstrar as ações reacionárias e autoritárias do governo militar.
Diversos segmentos ligados à Ação Católica Brasileira elaboraram críticas ao modelo econômico da ditadura. A concepção liberal do Estado militar reduzia os direitos sociais. Na visão dos movimentos universitários vinculados àigreja era necessária a transformação das estruturas econômicas vigentes. A CNBB elaborou um documento em 1968 em que questionava as ações autoritárias da Doutrina de Segurança Nacional. Os setores progressistas da igreja questionavam as ações do Estado autoritário. Tal posicionamento significou perseguições e pesadas críticas dos militares e de seus aliados aos religiosos ligados aos movimentos estudantis.
No capítulo 7, ‘A escola como espaço estratégico para a consolidação dos projetos em disputa: a conciliação de interesses’, para o autor, na compreensão do debate entre o público e o privado na educação, que precedeu a primeira LDB n. 4.024 de 1961, os grupos em jogo entendiam a educação como instrumento necessário para provocar mudanças sobre os homens e a esfera social.
As orientações em defesa da escola privada reuniam a Igreja Católica e os proprietários das escolas privadas. Segundo esses dois grupos, os pais tinham o direito de escolher a melhor escola para o seu filho. No grupo em defesa da escola pública, havia três correntes: os liberais-idealistas, os liberais-pragmáticos e o grupo liderado por Florestan Fernandes.
A igreja lutava para que os pais tivessem a liberdade de escolha para os seus filhos entre o ensino laico ou religioso. Em vários artigos veiculados na Revista de Cultura Vozes (RCV) havia o discurso ideológico de que o público e o privado eram espaço de convergência. Dentro da perspectiva católica, o financiamento público da escola privada seria em função de uma delegação recebida das famílias e de uma missão recebida de Deus.
O Estado deveria oferecer às condições às escolas católicas, uma vez que o fim delas era a promoção do bem comum. “Ainda que a escola católica se caracterizasse como uma instituição nitidamente privada, o discurso a associava como ‘escola do povo’” (Gomes, 2018, p. 134, grifo do autor).
Nesse sentido, segundo o autor, a caracterização da ampliação da rede privada como um processo de democratização do ensino era um engodo, visto que não levava em consideração as condições de vida das populações pobres. Essa visão demonstra, com maior clareza, o caráter desigual da educação escolar no Brasil, ela não altera as relações estruturais excludentes, nem se pode compreendê-la como equitativa.
A concessão de recursos às escolas privadas era vista como uma ação de caráter democrático, pois estava em consonância com a política internacional. Para o autor, era incompatível uma educação democrática vinculada à manutenção de escolas privadas pelos cofres públicos. A democratização do acesso, em seu entendimento, ocorreu pela manutenção da escola pública pelo Estado. Nesse cenário, o investimento estatal de instituições escolares privadas se caracterizava, e ainda se caracteriza, como um retrocesso.
Nas ‘Considerações finais’ o autor afirma que vivemos em um contexto de hegemonia do discurso neoliberal, no qual se questiona o papel do Estado nos mais diferentes segmentos da sociedade. A educação aparece nesse discurso como um importante papel na redefinição da economia do país. Nesse cenário, a privatização da educação é veiculada nos meios de comunicação como um caminho possível de democratização da educação escolar. O debate sobre o público e o privado na educação brasileira, nos anos de 1950 e 1960, do século XX, ainda é um tema atual em nosso contexto histórico, uma vez que, no debate educacional, tem prevalecido o discurso liberal e privatizante. Para o autor, esse posicionamento mascara as mazelas e desigualdades sociais, tornando a educação ainda mais excludente e para poucos. É necessário, segundo ele, lutar em defesa da escola pública, garantindo o Estado como provedor dessa educação. Ela não pode se caracterizar como um serviço prestado, mas como um direito assegurado constitucionalmente. Para isso, o autor acredita na necessidade do fortalecimento dos trabalhadores da educação, bem como na participação da sociedade, buscando todos, em conjunto, denunciar os privilégios presentes em nossa sociedade e a defesa constante da educação pública e de qualidade, para todos.
A obra de Gomes é um importante estudo sobre o debate educacional entre o público e o privado na educação brasileira. Trata-se de uma obra de referência para os estudiosos da área de educação e afins que anseiam pela compreensão das estratégias utilizadas pelos grupos hegemônicos e sua luta para a privatização da educação brasileira, entre os anos de 1945 e 1968, sob a influência das teses liberais. A obra sinaliza para a importância do estudo dessas questões, em defesa da educação pública e para todos, já que o modelo de educação privatizada impõe a exclusão de significativos segmentos da população do direito à educação. A discussão é fundamental para a compreensão da história da educação no Brasil. Estudá-la é tarefa essencial aos trabalhadores da educação, uma vez que as teses neoliberais de privatização da educação adquirem significados diferentes de acordo com os grupos hegemônicos, principalmente no que se refere às pressões exercidas sobre o Estado para legitimar o direcionamento de investimento financeiro estatal da educação pública para o setor privado.
Marcos Ayres Barboza – mestre em Educação pela Universidade Estadual de Maringá (2007). Aluno do Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Estadual de Maringá, (PPE-UEM). Psicólogo no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Paraná, câmpus de Paranavaí. Membro do Grupo de Pesquisa sobre Política, Religião e Educação na Modernidade. E-mail: ayresbarbosa@hotmail.com
Cézar de Alencar Arnaut de Toledo – possui Doutorado em Educação pela Universidade Estadual de Campinas (1996). Atualmente é professor associado no Departamento de Fundamentos da Educação e no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Estadual de Maringá. Tem experiência na área de Educação, com ênfase em História da Educação, atuando principalmente nos seguintes temas: Religião, Filosofia, Educação, Educação Brasileira, século XVI, século XVII, século XVIII, Fundamentos da Educação, Jesuítas e Franciscanos. Líder do Grupo de Pesquisa sobre Política, Religião e Educação na Modernidade. E-mail: caatoledo@uem.br
As faces de John Dube: memória, história e nação na África do Sul / Antonio E. A. Barros
A reconstituição progressiva das diferentes estratégias, tramas de competição política e batalhas pela memória da nação sul-africana contemporânea constituídas em torno do legado e da biografia de uma de suas figuras centrais, John Langalibalele Mafukuzela Dube (1871-1946), constituem o objeto principal do mais recente livro do historiador maranhense Antônio Evaldo Almeida Barros. Resultante de sua tese de doutorado, defendida junto ao Programa de Pós-Graduação em Estudos Étnicos e Africanos da Universidade Federal da Bahia, em 2012, sob orientação de Lívio Sansone, o livro constitui um convite etnográfico, interdisciplinar e bem documentado para acompanhar o autor na aventura da exploração das artimanhas da nação e da memória no contexto sul-africano, explorando o contínuo, complexo e multifacetado processo de reconstrução biográfica d’As Faces de John Dube.
Por oportuno, tendo em vista o próprio objeto analisado na obra, talvez fosse interessante tecer algumas breves considerações sobre o autor, assim se tornará mais compreensível o esforço intelectual realizado e algumas de suas bases epistemológicas. Podemos começar então pelo denso investimento realizado anteriormente por Antonio Evaldo para a reconstituição de uma história social da cultura popular maranhense na contemporaneidade, cujos resultados só parcialmente começam a ser divulgados2. Desde esse momento, parece-me, os meandros da nação, cultura, memória e identidade constituem eixos centrais de discussão que se prolongam no trabalho ora resenhado. Da mesma forma, do ponto de vista metodológico, percebe-se n’As Faces de John Dube a mesma paixão pela imersão no campo arquivístico, porém, com uma exposição muito mais arguta e envolvente a respeito do processo de construção da pesquisa, com um enredo que nos convida a acompanhar a construção da obra em processo e, paralelamente, do próprio Dube em movimento. Para um observador próximo, torna-se claro também a inscrição dessa pesquisa em um programa de investigação promovido por jovens pesquisadores do Maranhão, que tem como meta incorporar o continente africano em uma pauta de investigações comparativas, constituída em torno de afinidades temáticas e problemas conceituais, e radicada nas redes de discussão epistemológica do eixo sul-sul3.
Com efeito, recorrendo a textos e narrativas desse intelectual sul-africano reconhecido, passando por biografias, artigos, ensaios e livros de natureza diversa sobre Mafukuzela distribuídos por diversos arquivos, e atravessando diferentes configurações temporais, Antônio Evaldo nos convida, então, a uma densa e multissituada exploração das modalidades de gestão coletiva, enquadramento institucional e lutas de memória em torno de Dube. E aqui se encontra, para o parecerista, o aspecto mais interessante da obra, posto que o que se coloca sob análise não é propriamente o sujeito empírico, mas o problema das formas de autoinscrição simbólica e política dessa figura central da narrativa sul-africana em diferentes configurações. São, portanto, as modalidades de patrimonialização da cultura e suas distintas concepções de história, desenvolvimento, raça e cultura que entram em pauta.
Evidentemente, a escolha temática e a pluralidade de fontes e materiais de caráter crítico ou laudatório sobre John Dube têm como suporte a pluralidade de papéis e cargos por ele exercidos e as sucessivas tomadas de posição que adotou no espaço público. Assim, como bem demonstra o autor, em que pese a variedade de visões construídas por biógrafos, documentaristas e comentadores, há relativo consenso de que não se trata de um indivíduo ordinário ou socialmente insignificante, o que ajuda a compreender a profusão de dispositivos empregados para produzir, atualizar ou questionar o legado desse personagem4. Porém, se essas realizações são bem conhecidas por aqueles que têm se interessado por sua vida e obra, é também significativo observar que os discursos e práticas atribuídos a Dube não costumam ser trazidos à tona de modo despropositado; a eles são destinadas ênfases e interpretações de natureza política, acadêmica ou artística, situadas no contexto social e histórico de seus produtores, numa cadeia de interpretações que envolve, além de Dube, homens e mulheres que com ele conviveram ou que, posteriormente, o tomaram como objeto de suas narrativas.
Para recobrar o processo complexo de utilização de Mafukuzela como objeto de diferentes estratégias e tramas de competição política e batalhas pela memória da nação, Antônio Evaldo tenta reconstituir esse trabalho de muitas mãos em três recortes. No primeiro capítulo, intilulado John Dube no seu próprio tempo, o autor narra alguns momentos da vida de John Dube explorando os seus discursos distribuídos por ensaios, livros e outras formas de intervenção social escrita. Neste caso, interessa ao autor descrever simultaneamente o contexto sócio-político e o itinerário de vida de John Dube, ao passo em que são exploradas as suas interpretações sobre a realidade e as narrativas e imagens que projetou sobre si. A hipótese de fundo é que a extraordinariedade do seu trajeto, situado nas fronteiras entre a sua cultura de origem e as fontes da cultura dominante, e o seu esforço por encontrar um sentido e posição no mundo dentro do conjunto de injunções contraditórias aos quais foi submetido delimitam e influem sobre as operações posteriores de revisão do seu legado.
A partir de então a análise descola-se propriamente do indivíduo para nos situar nas grandes tendências interpretativas que, desde o final do século XIX até o início do século XXI, tomam John Dube como objeto ou sujeito de interesse. É assim que, em Dube rememorado em tempos e espaços da África dos Sul segregada (capítulo 2), o autor passa a explorar aqueles que tendem a identificar Mafukuzela como colaborador direto ou indireto do processo de implementação do regime segregacionista sul-africano. A despeito de que essa representação da vida de Dube posa ser encontrada em diferentes momentos e contextos da história da África do Sul contemporânea, fato é que ela se torna claramente dominante nos anos do Apartheid, particularmente entre as décadas de 1940 e 1970. A tônica das publicações diversas que analisou – e com maior detalhe, dois ensaios biográficos e uma biografia – é aquela na qual Dube pode ser visto como fantoche dos brancos, incentivador da solidariedade racial, numa expressão, promotor do apartheid. Em suma, John Dube seria o retrato de como ser fraco e ambíguo diante das forças sociais, políticas e econômicas da história sul-africana, e da luta contra a opressão social e racial.
De outro lado, há aqueles que posicionam John Dube como personagem central das lutas históricas contra a segregação racial, inscrevendo-o, como ocorre atualmente, como uma espécie de herói sul-africano. Também neste caso podem-se observar registros desta tendência em diferentes décadas e situações, como nas representações sobre Dube produzidas por sua família e grupo social nos anos 1970 no âmbito dos izibongos5 que lhe foram dedicados, analisados no final do segundo capítulo. Mas este padrão interpretativo tornar-se-ia claramente dominante na África do Sul pós-Apartheid, particularmente no contexto de invenção da África do Sul como Rainbown Nation.
São justamente esses usos e abusos de John Dube que o autor analisa no terceiro capítulo: John Dube em tempos e espaços da nação arco-íris. Porém, antes de destacarmos o foco do capítulo, interessa enfatizar a digressão feita pelo autor no início dessa última parte do livro, quando somos surpreendidos com uma nova e bem-humorada exploração de sua experiência etnográfica, destacando não apenas as suas percepções subjetivas a respeito das diferenças entre África e Brasil, como também o complexo jogo de permanências e mudanças no jogo de classificações e etiquetagens naquele espaço simbólico. É que o tópico permite ver com clareza que o foco principal da obra não se situa exatamente nas situações e experiências múltiplas, desiguais e diferentes dos sujeitos concretos, mas nas condições sociais de formatação, enquadramento e reconhecimento público de determinadas narrativas e categorias de classificação da realidade.
Em museus e monumentos, nos meios acadêmicos, celebrações e homenagens, na imprensa ou em meios digitais, o autor vai explorando como vai sendo esculpida simbolicamente e objetivado o discurso da Rainbow Nation ao passo em que Dube é reabilitado como sujeito absolutamente envolvido nas lutas pela liberdade, opositor inteligente de ações e movimentos que visavam instituir o Apartheid. Conectada à instalação dessa ruptura, a vida de Mafukuzela passa a ser tomada como exemplo de que nas origens da nação sul-africana moderna haveria formas claras de relações raciais harmônicas entre brancos e negros. John Dube seria, portanto, o retrato de como ser forte diante das forças sociais, políticas e econômicas da história e na luta contra a opressão social e racial; um exemplo heróico para ser seguido numa África do Sul que se pretende como nação caracterizada pela diversidade cultural e étnica.
A guisa de conclusão, gostaria de destacar um último aspecto da obra que retoma os argumentos da conclusão apresentada pelo autor. Ele diz respeito ao valor pedagógico de uma abordagem que tem clareza com relação ao foco principal do trabalho. Sem prender-se a uma visão encantada e celebratória a respeito da construção da Rainbow Nation, e mobilizando uma pluralidade de fontes com precauções teóricas, o livro consegue, antes de qualquer coisa, demonstrar as múltiplas tensões, simbólicas e sociais, por meio das quais a nação é fabricada e representada na contemporaneidade. Porém, a apreensão desse processo de produção da realidade oficial e pública, objeto do trabalho, não faz com que o autor deixe de ponderar o fato de que os processos de visibilização e consagração de determinados patrimônios e atores sociais, como John Dube, recobrem diferentes formas de silenciamento e, por vezes, fazem esquecer realidades não ditas e percebidas nessas narrativas, o que pode se desdobrar ainda em um novo e instigante programa de investigações.
Notas
- Consultar, por exemplo: BARROS, Antonio Evaldo A. Invocando deuses no templo ateniense: (re)inventando tradições e identidades no Maranhão. Outros Tempos, São Luís, v.3, p. 156-182, 2006. Id. O pantheon encantado: culturas e heranças étnicas na formação da identidade maranhense. 2007. 319 p. Dissertação (Mestrado em Estudos Étnicos e Africanos) – IFCH, PÓS-AFRO, CEAO, Salvador: UFBA, 2007.
- Desse ângulo, inclusive, este livro pode ser lido como um dos mais belos e pedagógicos exemplares de uma agenda de pesquisas coletivas levada a cabo no bojo do Núcleo de Estudos África e Sul Global (NeÁfrica) – grupo vinculado à Universidade Federal do Maranhão e Universidade Estadual do Maranhão (UEMA) – o qual tem se traduzido em diferentes publicações, eventos e irrigado diversos projetos de investigação.
- Neste caso, valeria muito à pena atentar para a sugestão de um programa de pesquisas realizada por Livio Sansone no prefácio do livro, quando assinala que “Dube não é somente importante, mas é também exemplar para o estudo das biografias dos pais da pátria que foram a expressão de vários outros países africanos” (p. 15).
- Izibongo refere-se a louvores entoados em honra de uma pessoa, trata-se de um gênero de louvor poético, de poesia oral, comum entre os zulus, uma espécie de poesia ou louvor com características metafóricas, laudatórias, elogiosas e no qual se narram feitos históricos de uma pessoa que já morreu, sobretudo reis e aqueles que são heroificados. Imbongi é a pessoa especializada em proferir o izibongo.
Wheriston Silva Neris – Doutor em Sociologia. Professor do Campus III -UFMA e docente permanente do PPGHIST/UEMA. E-mail: wheristoneris@yahoo.com.br.
BARROS, Antonio Evaldo Almeida. As faces de John Dube: memória, história e nação na África do Sul. Curitiba, PR: CRV, 2016. Resenha de: NERIS, Wheriston Silva. As tramas da patrimonialização da cultura: histórias, memórias e narrativas de/sobre John Dube na Rainbow Nation. Outros Tempos, São Luís, v.15, n.25, p.192-196, 2018. Acessar publicação original. [IF].
Mulheres em trânsito: intercâmbios, formação docente, circulação de saberes e práticas pedagógicas – SILVA et al (RHHE)
SILVA, Alexandra lima da; ORLANDO, Evelyn de Almeida; DANTAS, Maria José. Mulheres em trânsito: intercâmbios, formação docente, circulação de saberes e práticas pedagógicas. Curitiba: CRV, 2015. Resenha de: VARELLA, Jacqueline de Albuquerque. Mulheres viajantes: olhares femininos sobre a educação. Revista de História e Historiografia da Educação, Curitiba, Brasil, v. 1, n. 2, p. 304-311, maio/agosto de 2017.
O livro organizado por Alexandra Lima da Silva, Evelyn de Almeida Orlando e Maria José Dantas tem como objetivo lançar novos olhares sobre a temática das mulheres viajantes e a historiografia da educação. São questões que problematizam a trajetória dessas mulheres: “Como viajavam? Para quê? Quais os desdobramentos das viagens nas trajetórias dessas mulheres? Qual a dimensão educativa presente nas mulheres em trânsito?” (p. 9).
Estão reunidos trabalhos de pesquisadores brasileiros e de outras nacionalidades sobre a atuação de mulheres que romperam barreiras geográficas, legitimando a ação feminina em diferentes aspectos da sociedade. Os autores trazem novas pistas sobre as experiências educativas dessas mulheres através de suas viagens. Ao contrário dos homens, quase sempre precisavam de justificativas e apoio para a realização destes deslocamentos. O livro “Mulheres em trânsito” apresenta investigações a respeito das especificidades que envolviam o universo das mulheres viajantes de acordo com os capítulos descritos a seguir.
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“Viajeras y educación femenina en el siglo XIX”, de Sara Beatriz Guardia, aborda a luta pelo direito feminino à educação no Peru, pelas trajetórias das intelectuais Mercedes Cabello de Carbonera e Clorinda Matto de Turner. A autora mergulha no contexto político e social perua-no do século XIX, período onde novos discursos e análises sociais davam, gradativamente, maior visibilidade à mulher.
A intelectualidade peruana, num processo de mudança de mentalidade, teve homens de letras como Manoel Gonzales Prada, que denunciava a abusiva autoridade da Igreja Católica. Prada discursa em favor da educação laica como uma ferramenta, um caminho, para emancipação feminina no Peru. Eram mulheres dominadas pelos dogmas católicos e pelo cerceamento da Igreja.
Pode-se mencionar algumas revistas que foram fundadas por mulheres (ou que as tinham como colaboradoras), como El Album, por Jua-na Manoela Corriti e Carolina Freire de Jaimes, e a Revista Semanal pa-ra el Bello Sexo (1874-1875), com a colaboração de Juana Manuela Lazo de Elespuru, Mercedes Cabello de Carbonera, entre outras escritoras. Guardia destaca a viagem realizada por Clorida Matto à Europa, que também viajou ao Brasil e fala sobre suas impressões do Rio de Janeiro e de sua visita á Coelho Netto.
“Mujeres en misión: la participación femenina en las misiones protestantes de América del Sur”, que tem Paula Seiguer na sua autoria, aborda a temática das viajantes desde uma perspectiva religiosa. Caracterizam-se por mulheres que viajam em missão religiosa no contexto protestante. Essas mulheres viajavam acompanhadas de figuras masculinas, seus maridos, que em alguns casos faziam parte da conjuntura da Igreja ao qual pertenciam. O intuito dessas viagens era de expandir o movimento protestante, evangelizar através da assistência aos mais necessitados, na tentativa de alcançar, em especial, a população indígena.
Este grupo de mulheres possuía uma justificativa para essas viagens que se inscrevia desde uma lógica patriarcal, encaixando-se no modelo feminino burguês do século XIX. O texto traz os aspectos das viagens de mulheres como Mary Bridges e Alice Wood.
“Encuentros con un mundo rural: história de una maestra errante”, de Blanca Susana Veja, põe em foco a biografia da professora mexicana Petra Hernandez Martínez, professora viajante e atuante na zona rural de San Luiz Potosí, no México. A partir da história de vida de Petra Martínez, surgem questões sobre viagens pedagógicas, educação rural (as demandas e especificidades geográficas, culturais e pedagógicas) e formação de professores no contexto histórico rural mexicano de meados do século XX. Fotografias, documento de identificação, documento profissional da professora e relatos de viagens são algumas das fontes utilizadas para a pesquisa, que abarcam a infância e as experiências da maestra dentro e fora do espaço escolar.
Ana Maria Magaldi e Maria João Mogarro, por sua vez, analisam os estudos biográficos na história da educação em “Mulheres de letras e educação feminina no espaço luso-brasileiro: ligações em torno da infância nos escritos de Júlia Lopes de Almeida e Emília de Souza Costa”. As autoras abordam as redes de sociabilidade e a ligação entre as duas intelectuais, assim como as similaridades de ideais entre elas, levando em consideração o contexto político-social português e brasileiro no início do século xx.
A viagem realizada por Emilia de Souza Costa ao Brasil, para conferência no Instituto Nacional de Música do Rio de Janeiro, é destacada no texto. A conferência intitulada “Mulher” destinava-se às mães e possuía a temática da educação infantil na sua centralidade. O texto destaca ainda a ação excepcional das duas mulheres num contexto social onde a figura masculina predominava no campo literário. Destaca-se a ascensão destas mulheres na produção de uma literatura voltada ao público feminino, escritas por mulheres e destinada a mulheres, tendo foco a educação feminina, a relação mãe e filho, e a educação infantil e higienista.
“Itinerários de uma professora em fins do século XIX”, de Carla Chamon, analisa a trajetória da professora Maria Guilhermina Loureiro de Andrade e sua viagem feita aos Estados Unidos. Nascida em Minas Gerais, mas atuante no norte fluminense quando se muda ainda menina, Maria Guilhermina possuía uma característica diferenciada em relação às mulheres criadas no século XIX, no Brasil. Incentivada pela família, segue ainda jovem os passos de sua mãe, fundadora do Colégio de Instrução Feminina, em Vassouras, Rio de Janeiro. Guilhermina não se casou, nem teve filhos, mas foi “professora, tradutora, escritora, conferencista, parecerista de congressos e diretora de escolas” (p. 61). Participou da fundação do Colégio Andrade, no Rio de Janeiro.
A autora traça a trajetória da educadora a partir de suas viagens e dos vestígios de seu trabalho pedagógico em jornais do período. Destaca a viagem feita aos Estados Unidos, o abandono da religião católica e sua relação com os missionários e educadores presbiterianos. As viagens da professora e seus itinerários caracterizam sua busca por novos métodos educacionais e sua tentativa de fundar, no Brasil, um jardim de infância. Tem como modelo o método intuitivo e, posteriormente, os modelos da Educação Nova.
“Literatura de viajante: Chiara Lubich, uma professora italiana no Brasil”, de Maria José Dantas, analisar a biografia da supracitada professora, utilizando-se de diferentes fontes, como diários, livros e cartas, desde a perspectiva da história da educação. Num primeiro momento, Maria José Dantas contextualiza aspectos da vida de Chiara no cenário político e social da Itália do fim da primeira metade do século XX. Destaca a trajetória escolar da professora, seus estudos numa escola católica, a dificuldade financeira da família e sua formação como professora, na cidade de Trento.
Segundo a autora, “a educação na Itália, neste período, era caracterizada pela reforma do ministro Giovanni Gentile e pelas propostas metodológicas de Maria Montessori, que sublimou a experiência sensório motora das crianças e Maria Bochetti Alberti, responsável por instituir a escola serena” (p. 128). O texto aborda ainda as mudanças vividas por Chiara por conta dos bombardeios à sua cidade, durante a Segunda Guerra Mundial. A atuação junto aos frades Capuchinhos marca a trajetória social e religiosa da professora, com a fundação do movimento chamado Falcolano, que se difundiu no mundo todo, incluindo o Brasil. Chiara viajou ao Brasil por duas vezes, sendo uma vez em Recife e outra, já no fim de sua vida, em São Paulo, promovendo o movimento Falcolano no Brasil e a educação católica.
Em “As viagens da advogada e professora Maria Rita Soares de Andrade (1904-1998): vivências formativas em busca da emancipação feminina”, Anamaria Freitas lança seu olhar para as correspondências trocadas entre a advogada, professora e feminista Maria Rita Soares de Andrade, Bertha Lutz, Carmem Portinho e Maria Luiza Bittencourt. Destaca a luta feminista pela emancipação feminina no Brasil, o preconceito e a repercussão em jornais sergipanos e cariocas sobre as discussões feministas.
Sergipana, Maria Rita de Andrade formou-se em Direito, tendo uma trajetória marcadas por lutas e emancipação, diferente da maioria das mulheres sergipanas no início do século XX. “Andava pelos cafés, espaços predominantemente masculinos, em Aracajú, nas décadas de 1920 e 1930. Costumava viajar sozinha” (p. 144). As cartas, organizadas cuidadosamente pela autora, traz à luz as redes de sociabilidade entre essas mulheres, evidenciando seus trabalhos, conferências, discursos e estratégias de luta, como a reivindicação do direito feminino ao voto, na década de 1930.
“Um olhar feminino sobre Mato Grosso (1897-1899)”, de Carolina Lima, interpreta a trajetória da escritora viajante Maria de Carmo de Melo Rego, em viagem realizada à Cuiabá. A partir da rota traçada em viagem de navio pelo Rio da Prata, Maria de Carmo Rego deixou registros do seu olhar em cada lugar que passou, e descreve sua relação com a cultura mato-grossense e indígena naquela região. Foi casada com o presidente da província o Coronel Francisco Rafael de Mello Rego.
Através de um mapa ilustrativo da viagem, organizado pela autora e mostrando as cidades visitadas por Maria do Carmo e seu marido, podemos analisar o itinerário com início no Rio de Janeiro, seguindo por São Paulo, Rio Grande do Sul, Uruguai, algumas cidades da Argentina, Paraguai, Bolívia, e Mato Grosso. A escritora fez apontamentos em suas cartas durante a viagem ao Mato Grosso, descrevendo as casas e suas arquiteturas, a cidade de Cuiabá, o contato com as mulheres indígenas e as mulheres escravizadas.
Em “Quase tudo: educação entre música e emoções nas viagens da pianista Magdalena Tagliaferro”, Ednardo Monti apresenta as viagens da pianista a partir dos estudos sobre a escrita biográfica, autobiográfica e escritas de viagens. O autor apresenta um panorama da vida de Magdalena Tagliaferro, pondo em foco a influência que ela recebeu de seus pais franceses para a música, assim como sua formação ao longo da vida adulta. Uma trajetória de constantes viagens e amor pela música, pelo Brasil e suas memórias afetivas sobre a França. Ednardo mergulha nas memórias da pianista, suas redes de sociabilidades, os estudos no conservatório Nacional de Música de Paris e a contribuição musical e pedagógica da pianista para o ensino de música no Brasil.
“Montserrat Sanuy: la introducción de la aplicación del método Orff en escuelas de España en los años 60”, de Maria de Rosário Rodri-guez, tem como foco a trajetória da musicista desta professora catalã. Destaca a educação recebida por Monserrrat, seu contato desde criança com a música, as viagens realizadas à Espanha, França e Alemanha. Na Alemanha, a professora estudou no Institut Orff, que se apresentou como um divisor de águas na sua vida profissional e nas suas contribuições pedagógicas e metodológicas para o ensino de música nas escolas da Espanha.
Junto ao reconhecido músico e professor Carl Orff, a musicista insere uma metodologia que vê “la música como algo natural, que todos los niños pueden hacer con facilidad porque lo llevan dentro, y que se aprovecha para desarrollar un laboro educativo integral, centrada en el leguaje, em la creación colectiva y en la felicidad” (p. 203). Monserrat obteve destaque no rádio e na televisão, apresentando uma nova perspectiva de ensino de música na Espanha.
O texto de Evelyn Orlando, “Quando o mundo cabe na bagagem às experiências de formação e distinção de Maria Junqueira Schimidt no cenário educacional brasileiro”, apresenta a trajetória intelectual e profissional da educadora supracitada, com foco nas suas diversas atuações no campo educacional. Ao longo de sua vida, a educadora fez diversas viagens, realizando seus estudos no Instituto Santa Úrsula, na Suíça francesa. De família católica, Schimidt destacou-se, inicialmente, como professora no Colégio Jacobina, no Rio de Janeiro, e como professora e diretora do Colégio Amaro Cavalcanti, considerando-se que em 1933 poucas eram as educadoras que conseguiam ocupar um cargo de gestão em espaços escolares.
Schmidt também foi orientadora escolar e participou como membro da Comissão Nacional do Livro Didático. Ao longo de sua vida, realizou parcerias com Anísio Teixeira, Afrânio Peixoto e Aracy Freire. Parcerias essas que resultaram em diversas viagens pedagógicas aos Estados Unidos, em meados dos anos 1930.
Em “Histórias cruzadas? Mulheres viajantes e o ensino da educação”, Alexandra Lima da Silva problematiza histórias de mulheres viajantes que foram silenciadas, trazendo novos olhares e perspectivas para as temáticas sobre viagens e viajantes no âmbito da história da educação. Destaca as histórias de três viajantes: Amanda Berry Smith, negra e lavadeira, que saiu dos Estados Unidos como missionária para os continentes africano, europeu e asiático; Ina Von Binzer, alemã que viajou ao Brasil para dar aulas e ser preceptora de crianças da elite brasileira durante o período Imperial; e Leonowens, uma mulher indiana, naturalizada inglesa, que viajou à Ásia, tornando-se professora dos filhos do rei no Sião.
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O livro “Mulheres em trânsito: intercâmbios, formação docente, circulação de saberes e práticas pedagógicas” contribui de forma significativa para a historiografia da educação, trazendo em sua composição pesquisas de qualidade que privilegiaram diferentes e amplas fontes. Os autores reunidos nesse livro lançam seus olhares sobre diários de viagens, escritas biográficas, escritas (auto)biográficas e sobre periódicos, além de outras fontes citadas ao longo da resenha. O livro contribui para dar visibilidade a trajetórias muitas vezes esquecidas, ou mesmo silenciadas.
Mais que recomendada a sua leitura, o livro “Mulheres em trânsito” reúne trabalhos consolidados de pesquisadores do Brasil, do México, da Espanha, do Peru e da Argentina que tratam sobre a atuação feminina em contextos geográficos, sociais e históricos distintos. No entanto, quando reunidos e lidos no seu conjunto, ressignificam a identidade e a atuação destas mulheres que, por diferentes motivos, podem ser consideradas pioneiras em suas respectivas práticas pedagógicas viajantes.
Jacqueline de Albuquerque Varella – Mestranda em Educação na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Brasil). E-mail: jacquevarella@gmail.com.
O socialismo de Oswald de Andrade: cultura/ política e tensões na modernidade de São Paulo na década de 1930 | Marcio Luiz Carreri
Obra originária de pesquisa para obtenção do título de doutor em história-social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP no ano de 2017. O livro “O socialismo de Oswald de Andrade: cultura, política e tensões na modernidade de São Paulo na década de 1930”, partindo da capa e seus contraste em preto e branco em que o autor destaca seus personagens principais que compõe sua narrativa histórica, como a Pagú, Mario de Andrade e sobretudo o Oswald tendo por base a foice e o martelo em vermelho, e acima de todos a figura emblemática de Marx.
Trata-se de escrita leve e fluente, sem o peso do academicismo que se exige para uma tese de doutorado em história, porém com o rigor metodológico dela. Marcio em seu trabalho consegue perfeitamente trafegar entre duas linhas tênues e belas que é a da confluência entre literatura e história, com o mérito de trafegar por essa zona quente sem se esquecer do metier, do construto da história. Dessa forma a literatura entra como pano de fundo para o fazer historiográfico de uma época de “tensões na modernidade de São Paulo” como diz o título. Leia Mais
Entre textos e contextos: caminhos do ensino de História – MOLINA; FERREIRA (RHH)
O campo de estudos e pesquisas sobre Ensino de História vive um momento singular. Por vias tortas, encontra-se no bojo das discussões sobre os rumos da disciplina na Educação Básica e no Ensino Superior. As polêmicas em torno da proposição de um currículo comum para a Educação Básica e as propostas de reformulação do Ensino Médio suscitaram uma discussão sobre a História Ensinada, por meio do debate acerca da história que a Escola vai contar.
As vias, então, não são aquelas projetadas pelo campo. As discussões sobre o Ensino de História envolvem muito mais que a definição de conteúdos ou sua tradução para a Educação Básica. Os horizontes do campo vão além das reflexões sobre estratégias didáticas ou o potencial de recursos para o ensino da História e não se confundem técnicas destinadas à operacionalização do saber histórico em situação escolar. Leia Mais
Piquiri o vale esquecido: História e memória da luta pelas terras do “grilo Santa Cruz” na colonização de Nova Aurora, oeste do Paraná | Maurilio Rompatto
Obra originária de pesquisa para obtenção do título de mestre em história-social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo PUC/SP, o livro “Piquiri o vale esquecido: História e memória da luta pelas terras do “grilo Santa Cruz” na colonização de Nova Aurora, oeste do Paraná, tem temática que vira em torno das histórias da violência que ocorreram durante as décadas de 1950 até 1970 e conta as histórias de vidas de pessoas camponesas na luta pela posse das suas terras conquistadas como pioneiros na região do vale do Piquiri e mais especificamente em Nova Aurora/PR. O que Rompatto faz em sua pesquisa é dar voz a trinta trabalhadores do campo, captando as narrativas com grande sensibilidade e rigor metodológico que exige a postura da história oral.
Assim, história e memória vão se entrecruzando na trama dos acontecimentos fazendo emergir um tipo de história vista de baixo como pede a historiografia renovada, à lá Annales. Assim como dialoga diretamente com E.P. Thompson para ali encontrar os conceitos de economia moral, cultura camponesa, valores camponeses e classe camponesa. Este último conceito muito bem apropriado e operacionalizado na obra, na qual o leitor irá se deparar com essa categoria, por vezes, muito bem organizada na luta por seus direitos. Pode-se aferir que Rompatto chega a sugerir certa ideia de classe em si para os camponeses aqui narrado. Fazendo, dessa forma, implodir o sentido de trabalho e os valores dados à terra por esses camponeses pioneiros que vão travar uma epopeia agrária nos confins do oeste paranaense contra os grileiros sendo eles o Estado, a União e também empresas privadas como a Colonizadora Norte do Paraná S.A do paulista Oscar Martines.
Outro grande mérito da pesquisa é fazer da chamada história regional, do Norte do Paraná, Vale do Piquiri, uma história total, em que para explicar o micro cosmo de uma região “esquecida” nos dizeres do autor, este recorte a história estrutural para ali buscar o entendimento da questão agrária no Brasil, voltando á época do Brasil Imperial ao ano de 1850, quando é publicada a primeira lei agrária brasileira, a Lei de terras que passa a dar valor imobiliário a esse bem, que até então a terra era distribuída pela União via sesmarias. Depois a pesquisa ainda explica que com a Proclamação da República a terra passa a ter outros valores, bem como os Estados que agora substituem as províncias imperiais passam a ter a posse e o direito às terras e ao seu comércio. Por fim, Rompatto ainda nos revela outro aspecto da história do Brasil relacionada à questão agrária e seus complicadores em relação à posse dessa durante a fase politica do Estado Novo ditatorial implantado no Brasil pelo Presidente Getúlio Vargas que durou de 1939 até 1945. Este regime faz com que as terras de fronteiras sejam devolvidos para a União em razão da ideia de proteção das fronteiras. Vale dizer que o objeto de estudo aqui narrado é interdisciplinar num diálogo muito profícuo entre a história e geografia, a geo-história. Nesse quesito a obra é rica em mapas detalhados acerca da região do Vale do Piquiri, sua riqueza hidrográfica, com rios e fluentes que margeiam o Rio Piquiri. São num total de treze mapas, todos eles bem inseridos ao longo da narrativa e com caráter e função de melhor explicar o acontecimento dentro de uma regionalidade, assim como levar o leitor a viazualizar o lugar da história. Cabe também, nesse contexto do uso de imagens, ressaltar a sensibilidade do autor ao estampar fotos de algumas famílias pioneiras mostrando parte do seu cotidiano rural, perfazendo um total de quinze fotos de pessoas e residências. Dentre elas, a contra capa estampada a família Ballico cercada pelo arame farpado em delimitação das suas terras por empresa particular grileira.
Entender a história das lutas camponeses no Brasil é um processo muito complexo e angustiante em que o próprio historiador se depara com momentos de injustiça. Complexa porque as próprias fontes são escamoteadas ou se encontram em lugares de difícil acesso, e angustiante uma vez que os depoimentos trazem á toma memorias e relatos de camponeses sendo injustiçados, quer pelo poder público, quer pelas empresas privadas que tem interesse nas terras ditas devolutas que são também conceitos vazios meramente politico, haja vista que nunca houve terra devoluta, pois a princípio estas eram dos índios ou dos quilombolas que nela habitavam e produziam.
Como disse Peter Burke “ a função da história é lembrar a sociedade daquilo que ela quer esquecer”. Rompatto cumpre nessa sensível e competente obra essa função de historiador profissional e comprometido com a história política e social vista de baixo. Dando voz aos camponeses para eles expressarem suas experiências e vivências. Numa trajetória de história local dialogando com a história total para o construto de uma narrativa coerente e explicativa. Temos aqui um livro de história do Brasil do período varguista e seus desdobramentos da politica nacionalista nos confins do oeste paranaense, um livro onde o local e o total se permeiam, dialogando com a escrita da história.
Depois de tudo que foi analisado acima cabe ainda uma última referência a outra imagem; a da capa que foi escolhida com grande sensibilidade e rigor teórico-metodológico ao se optar pela foto do Rio Piquiri, margeando o Vale e passando a impressão de calmaria e tranquilidade o que não se encontrará ao abrir o livro, longe disso, a narrativa que se lerá está muito mais próxima de uma história de faroeste, no sentido mesmo de velho oeste, o velho Oeste paranaense e suas disputas desleais entre homens grileiros fortemente armados contra camponeses com suas famílias ali estabelecidas há tempos.
Por fim o livro é recomendado a todos os amantes de uma boa narrativa e trama histórica, mas sobretudo para dois públicos específicos os historiadores e aos moradores do Vale do Piquiri em especial da cidade de Nova Aurora/PR.
Eduardo Martins – Doutor em História pela UNESP/ Assis e Docente do Curso de História do Campus de Nova Andradina, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS).
ROMPATTO, Maurilio. Piquiri o vale esquecido: História e memória da luta pelas terras do “grilo Santa Cruz” na colonização de Nova Aurora, oeste do Paraná. Curitiba: CRV, 2016. Resenha de: MARTINS, Eduardo. Albuquerque – Revista de História. Campo Grande, v. 9, n. 17, p. 286-288, jan./jul., 2017.
O socialismo de Oswald de Andrade: cultura/ política e tensões na modernidade de São Paulo na década de 1930 | Marcio Luiz Carreri
Obra originária de pesquisa para obtenção do título de doutor em história-social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP no ano de 2017. O livro “O socialismo de Oswald de Andrade: cultura, política e tensões na modernidade de São Paulo na década de 1930”, partindo da capa e seus contraste em preto e branco em que o autor destaca seus personagens principais que compõe sua narrativa histórica, como a Pagú, Mario de Andrade e sobretudo o Oswald tendo por base a foice e o martelo em vermelho, e acima de todos a figura emblemática de Marx.
Trata-se de escrita leve e fluente, sem o peso do academicismo que se exige para uma tese de doutorado em história, porém com o rigor metodológico dela. Marcio em seu trabalho consegue perfeitamente trafegar entre duas linhas tênues e belas que é a da confluência entre literatura e história, com o mérito de trafegar por essa zona quente sem se esquecer do metier, do construto da história. Dessa forma a literatura entra como pano de fundo para o fazer historiográfico de uma época de “tensões na modernidade de São Paulo” como diz o título. Leia Mais
Alceu Amoroso Lima e a renovação da pedagogia católica no Brasil (1928-1945): uma proposta de espírito católico e corpo secular – SKALINSKI JUNIOR (RBHE)
SKALINSKI JUNIOR , O. (2015). Alceu Amoroso Lima e a renovação da pedagogia católica no Brasil (1928-1945): uma proposta de espírito católico e corpo secular. Curitiba: CRV, 2015. Resenha de: FIGUEIRA, Felipe Luiz Gomes; BARBOZA, Marcos Ayres. A influência de Alceu Amoroso Lima na pedagogia católica no contexto brasileiro início do século XX . Revista Brasileira de História da Educação, Maringá, v. 16, n. 2 (41), p. 379-385, abr./jun. 2016.
O fim do Padroado no Brasil, que coincidiu com a proclamação da República em 1889, imprimiu no interior da Igreja Católica a necessidade de recomposição de seus quadros institucionais. Embora a Igreja conseguisse algumas concessões do Estado, a Constituição Federal de 1891, fundamentada em princípios liberais, não se mostrou favorável à influência da Igreja, já que determinou a proibição do ensino religioso nas escolas públicas, a laicização dos cemitérios, o fim a subvenção estatal a qualquer culto religioso, entre outras medidas.
Em seu projeto de reconstrução institucional, a Igreja Católica defendeu a inclusão da catequese, da pregação, de ações educativas e da imprensa nos meios sociais. Para defender seus interesses, investia na educação, reclamando o direito de fundar e organizar escolas, cuja finalidade seria formar e educar crianças e jovens conforme os valões cristãos.
Na defesa de seus interesses entre os diferentes segmentos da sociedade civil e política, congregou diferentes intelectuais. Entre os que a apoiaram e defenderam, grande destaque teve Alceu Amoroso Lima (1893-1983), mais conhecido pelo pseudônimo ‘Tristão de Athayde’. Ele se destacou como um dos principais representantes do pensamento católico nos meios culturais e educacionais do início do século XX.
A obra resenhada foi escrita por Oriomar Skalinski Junior, professor do Departamento de Educação da Universidade Estadual de Ponta Grossa, como resultado de sua tese de doutoramento em Educação pela Universidade Estadual de Maringá, defendida em 2014. Intitulada Alceu Amoroso Lima e a renovação da pedagogia católica no Brasil (1928-1945): uma proposta de espírito católico e corpo secular, a tese teve como finalidade analisar a contribuição desse intelectual católico para a renovação dos interesses políticos católicos, entre 1928 e 1945, com base em suas relações com o Estado e sua produção teórica. Sua versão em livro está organizada em três capítulos.
No primeiro, ‘O Brasil na aurora do século XX: intelectuais, hegemonia e educação’, o autor destaca o papel exercido pela Igreja Católica na educação. O fim do Padroado trouxe grandes desafios e novas demandas de ordem social, organizacionais e políticas. Para ampliar a base de sua ação pastoral, da qual uma das grandes preocupações era a situação da classe operária em face das demandas do liberalismo econômico, a Sé Católica contou com o apoio de um grande contingente de padres e freiras da Europa.
A Igreja não criticava os aspectos econômicos e políticos das ações liberais, mas centrava-se no afrouxamento da moral em uma sociedade laicizada. Nesse contexto, a educação caracterizou-se como área estratégica para a construção da hegemonia do catolicismo. Foi preciso adaptar a população às demandas típicas da sociedade de mercado: as práticas comerciais e industriais, sofisticadas pelo avanço dos instrumentos de produção, exigiam uma mão-de-obra qualificada, mas a maioria da população em idade escolar ainda era analfabeta.
A disseminação de novos padrões culturais se faria por meio do desenvolvimento da leitura, da escrita e da aritmética, tendo em vista as habilidades intelectuais requisitadas para o desenvolvimento do capitalismo industrial brasileiro, o qual demandava a mobilização da sociedade como um todo. Assim, atribuía-se à educação um papel importante na organização desse novo projeto societário: “Tratava-se de modernizar as práticas pedagógicas a partir da ideia básica de que os avanços científicos e tecnológicos da época demandavam uma contrapartida educacional” (p. 40).
O sentimento nacionalista em defesa da educação ia além da simples alfabetização da população; “pretendia-se que a escola […] passasse por uma transformação em seus objetivos, seus conteúdos e em sua função social, tornando-se uma instituição capaz de formar o ‘caráter nacional’ e alavancar o progresso brasileiro” (p. 44). A partir de 1928, nesse processo de renovação da educação no Brasil e de defesa da formação moral e intelectual, o pensamento de Alceu Amoroso Silva ganhou proeminência como liderança intelectual à frente do Centro D. Vital.
No segundo capítulo, ‘A direção intelectual de Alceu Amoroso Lima como elemento renovador da pedagogia católica no Brasil (1928-1945)’, o autor discute a influência de Alceu Amoroso Lima junto às instituições católicas na ordenação da sociedade civil. A partir de 1920, a hierarquia da Igreja Católica vinha estimulando a participação de seus intelectuais nos diferentes segmentos institucionais da sociedade para garantir que o Estado fosse organizado com base em princípios cristãos.
Alceu Amoroso Lima, ao aceitar a direção do Centro Dom Vital em 1928, propôs à instituição o desenvolvimento de uma cultura católica superior. A organização de cursos e conferências temáticas ligadas à filosofia, à sociologia e à religião tinha como objetivo o fortalecimento da intelectualidade católica. Além disso, a criação de organizações e associações leigas vinculadas ao Centro Dom Vital influenciaria os diferentes segmentos da sociedade civil.
O movimento católico teve destaque a partir de 1930, particularmente após o golpe, quando os intelectuais católicos deram suporte e legitimidade ao Governo Provisório. Em 1931, como resultado dessa aliança, ocorreu o retorno do ensino religioso, em caráter facultativo, nos cursos primário, secundário e normal das escolas públicas. Os intelectuais liberais, na IV Conferência Nacional de Educação organizada pela Associação Brasileira de Educação em 1930, apresentaram uma nova proposta política de educação para o país. Entre os idealizadores desse movimento, destacaram-se Lourenço Filho, Fernando de Azevedo e Anísio Teixeira. O conflito acirrou-se com a publicação do Manifesto dos pioneiros da educação nova, em 19 de março de 1932, nas principais capitais do Brasil. “No texto os reformadores da educação adotavam princípios marcadamente liberais e defendiam a escola pública, laica, gratuita e obrigatória” (p. 68). Os pioneiros argumentavam que a educação no país estava desarticulada e fragmentada, o que, do ponto de vista deles, era um obstáculo ao desenvolvimento econômico brasileiro. A nova política nacional de educação defendida pelos liberais era apoiada na adoção de métodos ativos “[…] baseada nos avanços dos campos da sociologia, da biologia e da psicologia” (p. 69).
Para consolidar os interesses da Igreja Católica em contraposição aos liberais reformadores da educação, foi criada a Liga Eleitoral Católica (LEC), da qual Alceu Amoroso Lima era secretário. A ideia era captar apoio político em defesa dos interesses da Igreja Católica, congregando importantes intelectuais socialmente representativos e segmentos da classe média. O movimento conseguiu a inclusão de importantes conquistas na Constituição de 1934: apoio financeiro do Estado à Igreja; proibição do divórcio, reconhecimento do casamento religioso, ensino religioso nas escolas públicas e subsídios estatais para instituições escolares católicas. Essas medidas, entre outras, contribuíram para criação de um estabelecimento de ensino superior católico na capital do país.
O primeiro passo foi a criação da Ação Universitária Católica (AUC) em 1929, a qual segundo Alceu Amoroso Lima destinava-se a complementar a formação e a educação religiosa de seus participantes e prepará-los para a vida pública. Em 1946, nascia a Universidade Católica do Rio de Janeiro, resultado dos esforços empreendidos desde a fundação do Centro D. Vital, passando pela Ação Universitária Católica, pela Juventude Universitária Católica e pelo Instituto Social do Rio de Janeiro. Em 1947, a Santa Sé conferiu à instituição as prerrogativas de pontifícia, o que a igualava às demais universidades católicas do mundo.
O pensamento progressista de Alceu Amoroso Lima, fundamentado nos princípios da democracia cristã defendida por Jacques Maritain, fez com que a relação entre ele e o recém empossado Dom Jaime de Barros Câmara (1894-1971) como arcebispo da arquidiocese de São Sebastião do Rio de Janeiro, em 1943, após a morte de Dom Sebastião Leme, fosse abalada. Dom Jaime Câmara defendia um posicionamento mais tradicionalista em relação aos simpatizantes das ideias socialistas. A ideia era combater o comunismo. “Nesse cenário Alceu Amoroso Lima concretizou sua opção pela defesa da liberdade como valor basilar para qualquer organização social, condenou o Estado Novo e convocou os intelectuais católicos para a defesa da democracia” (p. 89), posicionamento defendido em suas principais obras: Debates pedagógicos (1931) e Humanismo pedagógico (1944).
No terceiro capítulo, ‘Alceu Amoroso Lima e a renovação da pedagogia católica em Debates Pedagógicos (1931) e em Humanismo Pedagógico (1944)’, o autor analisa a primeira obra do pensador católico: Debates pedagógicos (1931). Trata-se de uma coleção de artigos sobre educação, em particular sobre o retorno do ensino religioso às escolas públicas, nos quais ele se contrapôs às ideias liberais do laicismo no sistema pedagógico republicano. Na visão de Amoroso Lima, essas ideias provocaram uma cisão entre instrução e educação, comprometendo a formação dos alunos. Era preciso, segundo Skalinski Junior, investir em uma pedagogia católica. Alceu Amoroso Lima defendia a renovação dos métodos pedagógicos em favor de uma pedagogia integral, visando o desenvolvimento dos diferentes aspectos da potencialidade humana e a elevação espiritual da personalidade.
Amoroso Lima, em seu projeto de ação pedagógica católica, tinha a universidade como destaque. A pedagogia liberal havia, em seu entender, exaltado as ciências experimentais ou sociais em detrimento das ciências filosóficas e religiosas. Por meio da cooperação com a Igreja, restaurar-se-ia a unidade filosófica da universidade e se recuperaria a universalidade cultural e a espiritualidade cristã em face da confusão mental típica do ‘modernismo’ liberal.
As ideias liberais dominantes no campo da educação, segundo Amoroso Lima, contribuíam para que o aluno ficasse órfão da educação moral e religiosa, tão importantes para a formação do corpo e do caráter. A volta do ensino religioso nas escolas públicas seria, portanto, fundamental para a superação da ‘atmosfera de indiferentismo moral e religioso’ decorrente das práticas educacionais liberais, alicerçadas no que o autor chamava de naturalismo pedagógico e de sociologismo pedagógico. Segundo Amoroso Lima, tais abordagens arrastavam a inteligência ao estado de desordem e ao enfraquecimento geral. Era preciso “[…] corrigir os desvios derivados do laicismo republicano, efetivamente, um primeiro passo para a restauração intelectual e moral dos espíritos afetados pelo naturalismo, pelo materialismo e pelo agnosticismo” (p. 108).
Na parte da análise dedicada à obra Humanismo pedagógico: estudos de filosofia da educação (1944), Skalinski Junior discute seus desdobramentos para a educação e a prática pedagógica. Segundo Amoroso Lima, o trabalho pedagógico ocorreria com base em princípios de ordem geral e especiais. A centralidade do processo educativo seria o próprio indivíduo, isto é, “[…] o desenvolvimento pleno de sua humanidade, ou seja, o seu desenvolvimento como pessoa” (p. 112).
Para Amoroso Lima, a prática educativa defendida pelo liberalismo republicano tinha uma tendência negativa: a mutilação da educação e da formação humana. Além disso, ele se posicionava contra o comunismo: essa visão de mundo contribuiria para a descristianização da escola. A retomada do ensino religioso nas escolas públicas possibilitaria o desenvolvimento integral do indivíduo: físico, intelectual e espiritual. Nesse sentido, a educação moral e religiosa cristã como parte da preparação pedagógica da população ajudaria na edificação das qualidades da razão, da vontade e do temperamento.
O papel civilizador da universidade, de acordo com Amoroso Lima, seria a integração entre a vida cultural e a vida prática. Nesse contexto, o professor teria papel de destaque: mais que um transmissor de conhecimentos, ele seria um formador de personalidades. A família também teria uma missão importante. Para ele, “[…] a escola deveria ser o prolongamento da família, bem como o laço que a ligaria ao Estado, no que diz respeito às questões formativas” (p. 118).
Os fundamentos da educação cristã eram defendidos por Amoroso Lima como caminho para a superação do liberalismo, do laicismo e do materialismo produzidos pela sociedade burguesa. Esses fundamentos fortaleceriam a vida espiritual e o papel da família, especialmente no que diz respeito ao desenvolvimento integral da pessoa, em seus aspectos físico, intelectual e espiritual. Desse modo, visando restaurar a ordem moral de forma a garantir a unidade social, na prática humanista pedagógica proposta, Amoroso Lima enfatizava os fundamentos espirituais e religiosos do catolicismo, a defesa da liberdade em detrimento da autoridade, contrapondo-se ao “[…] esfacelamento das tradicionais instituições e a desorientação das consciências […]” (p. 131).
Na ‘Conclusão’, Skalinski Junior afirma que as proposições pedagógicas de Alceu Amoroso Lima correspondiam ao objetivo de impulsionar as potencialidades humanas com base em uma ação educacional integral. Para tanto, eram necessárias a retomada e a recomposição dos valores cristãos na formação do caráter da pessoa, do ‘caráter nacional’. “Suas ações em favor da cultura católica, em diferentes âmbitos das sociedades política e civil, contribuíram para a difusão e para o fortalecimento de um conjunto de valores que entremearam as ações da militância católica para os fins educacionais” (p. 143).
Escrita em uma linguagem clara, direta e objetiva, fundamentada em Antonio Gramsci (1891-1937), abordando o início do século XX, a obra é uma referência importante para os estudos no campo da historiografia da educação brasileira. Mais ainda, interessa aos pesquisadores de diferentes áreas do conhecimento porque analisa um dos mais prestigiados e influentes pensadores católicos desse período que, dialogando, com diferentes segmentos da sociedade civil, visava atualizar o discurso e a ação pastoral da Igreja na sociedade globalizada.
Felipe Luiz Gomes Figueira – Professor de História no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Paraná – Câmpus Paranavaí. Mestre em Educação (UEL, 2012) e Doutor em Educação (UNESP-Marília, 2015). Líder do Grupo de Pesquisa Bildung. E-mail: felipe.figueira@ifpr.edu.br
Marcos Ayres Barboza – Psicólogo no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Paraná – Câmpus Paranavaí. Mestre em Educação (2007) pelo Programa de Pós-Graduação em Educação, da Universidade Estadual de Maringá/UEM-PR Estudante do Grupo de Pesquisa sobre Política, Religião e Educação na Modernidade. E-mail: ayresbarbosa@hotmail.com
Fronteira e fronteiriços: a construção das relações socioculturais entre brasileiros e paraguaios (1954-2014) – BALLER (HO)
BALLER, Leandro. Fronteira e fronteiriços: a construção das relações socioculturais entre brasileiros e paraguaios (1954-2014). Curitiba: CRV, 2014. 280 p. Resenha de: PAGLIARINI JÚNIOR, Jorge. História Oral, v. 18, n. 1, p. 247-251, jan./jun. 2015.
Ao falarem dos espaços, os sujeitos falam de si. Numa das suas acepções, o espaço pode ser entendido pelas fronteiras que distanciam, mas que também aproximam sujeitos. No exercício de compreender a relação entre sujeito e espaço, como lembra o geógrafo Rogério Haesbaert (2011), o espaço pensado apenas enquanto resultado dos propósitos dos Estados já não dá conta da compreensão de seus usos e de suas construções. Mas em tempos de mobilização e de discursos – muitos exacerbados – em torno do nacionalismo, é justamente ao discurso nacional que tende a se apegar a leitura da espacialidade. É nessa tensão entre a fronteira política – geograficamente delimitada como resultado de tratados transnacionais – e a fronteira polissêmica que emerge das entrevistas e demais documentos analisados que se desenrola o estudo de Leandro Baller em Fronteira e fronteiriços: a construção das relações socioculturais entre brasileiros e paraguaios (1954-2014).
Trata-se do livro derivado de sua tese de doutoramento, defendida em 2014 no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal da A leitura da referida obra leva, antes de mais, a perguntar como o autor se insere no conjunto de investigações e de produções sobre a fronteira entre o Brasil e o Paraguai. A resposta à questão encontra-se justamente no diálogo que o autor consegue estabelecer com suas fontes – diálogo respaldado pelo fato de ser ele mesmo um sujeito fronteiriço –, com base nas quais constrói um entendimento da fronteira como ambiência.
Os termos fronteira e fronteiriços ou, se quisermos, lugar e sujeitos são tomados como objetos, como categorias historicamente delimitadas numa relação pensada no recorte temporal e espacial do estudo, visando entender a fronteira entre Brasil e Paraguai. O livro trata, mais precisamente, da fronteira entre o leste do Paraguai – na altura dos departamentos de Alto Paraná e Canindeyú – e o oeste do Brasil – estados do Paraná e Mato Grosso do Sul –, marcada pelo reservatório do Lago Internacional de Itaipu, durante os anos de 1954 a 2014 – sem que tenha sido desconsiderada, para tal empreitada, a investigação de outros momentos e acontecimentos.
O trabalho apresenta uma leitura da espacialidade da fronteira cuja demarcação territorial envolve disputas de diferentes ordens e temporalidades, indo dos tratados seculares, da longa duração, até as bases demarcadas nas últimas três décadas pelo agronegócio; a análise passa, assim, por disputas veladas, percebidas nos interstícios do cotidiano, que ganham potencial explicativo graças à postura epistemológica da obra, caracterizada pelo esforço do autor de se deslocar pela fronteira e, assim, tomá-la também “do lado de lá”.
A partir do lugar teórico e espacial acima delimitado, o autor apresenta a leitura de um processo que envolve os termos coexistência, contato, estabelecidos e outsiders. Trata-se de uma postura próxima daquela desenhada por Bhabha (1998) ao defender um “lugar teórico” – lugar que é, antes, um lugar político, de onde falam os entrevistados, neste caso a imprensa paraguaia e os documentos oficiais, todos analisados com base nas contribuições de Foucault e na sua ressignificação de conceitos espaciais.
No primeiro capítulo, Fronteira: ocorrência teórica e historiográfica, Baller discute o olhar historiográfico sobre a fronteira, destacando dessa perspectiva três momentos: 1) o dos tratados e da construção do sentido nacional da fronteira no século XIX, atrelado ao IHGB (Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro); 2) a passagem de uma história técnica e preocupada com as lutas de demarcação para uma história dos tipos sociais frente à conquista das fronteiras, sob influência de Turner até a década de 1970; 3) o dos estudos brasileiros e paraguaios feitos a partir da década de 1980, com um posicionamento epistemológico de denúncia da naturalização da fronteira. O autor segue com a apresentação dos discursos produzidos pela historiografia do oeste do Paraná, dos quais resultou um rico corpus documental que ganharia novas leituras nas décadas seguintes à sua publicação, com a fronteira assumindo corpo conceitual. Nesse ponto a obra se ocupa de problemáticas ambientais, de relações de poder e sociabilidade na tríplice fronteira, de conflitos de terra, da abordagem de movimentos sociais, do impacto de Itaipu e de preocupações de caráter étnico. Da historiografia paraguaia se destacam os diálogos do autor com pesquisadores locais, dos quais se ressalta a crítica do literato paraguaio Roa Bastos de que a produção historiográfica nacional deveria ir além dos limites da “ilha Paraguai”. As análises de Baller se aproximam epistemologicamente das de Foucault, ao proporem a desnaturalização da fronteira sob as perspectivas da genealogia e da heterotopia, que levam o leitor a perceber os meandros da divisa, que é geográfica (marco visível), política (material e institucional) e simbólica (vivida).
Na sequência dessa base historiográfica é apresentado o capítulo A pluralidade histórico-social agrária no Paraguai, no qual a questão agrária serve como pano de fundo para o estudo do fronteiriço; problematiza-se aí o processo de luta pela terra, mas também as lutas pela manutenção de costumes como a moeda e a língua – levando em conta notícias veiculadas pela mídia local e entrevistas com moradores da fronteira (brasileiros, paraguaios e brasiguaios).
A contextualização da migração remete ao governo de Stroessner, marcado pela intensificação da formação de latifúndios, política que facilitou a entrada de brasileiros, freada apenas em 2004, quando temores em torno da construção da lei da faixa de fronteira paraguaia apresentaram novas conjecturas para as práticas de fronteira. O desafio de analisar a transitoriedade dos sujeitos na fronteira leva o autor à problemática do retorno para o Brasil, apresentada nas construções semânticas do termo brasiguaio.
A generalização do termo brasiguaio se dá tanto pela imprensa paraguaia – que o associa a grandes proprietários que se apossam de terras no país desde a década de 1950 – quanto pelos pesquisadores brasileiros – que o atribuem àqueles que, depois de migrarem para o Paraguai nas décadas de 1960 e 1970, retornaram ao Brasil a partir de meados de 1980 e se engajaram em movimentos sociais de luta pela terra. Nas entrevistas examinadas por Baller, percebem-se a desconfiança, a confusão, as resistências e o próprio estigma que marcam esses sujeitos. Essas formas de resistência – pensando nos termos de Bhabha, exemplos da ameaça do híbrido à fronteira tomada pela sua dualidade – se contrapõem ao modelo de identidade nacional construído pela historiografia oficial, seja ela brasileira, seja paraguaia.
No terceiro capítulo, intitulado Coexistência fronteiriça: ações e representações, o autor, ancorado nas noções de representação social e de negociação cultural, aplica atenção ao modus vivendi dos fronteiriços e apresenta uma fronteira que, frente à virtual ausência de um e de outro Estado, é pouco estática.
Assim, no debate com fontes orais e com documentos escritos, possibilita- se a representação de disputas a respeito da aplicabilidade do conceito de coexistência fronteiriça, momento em que o texto problematiza a questão agrária – mais especificamente, as práticas de migração de retorno de brasileiros e descendentes, ocorridas em função da busca por melhores condições de educação para os filhos, de saúde para a família, de direitos sociais buscados no “crime autorizado” da região fronteiriça. O sentimento de pertencimento dos brasiguaios é posto à prova pelos ataques públicos de líderes de movimentos sociais de luta por terra ao modelo agrícola (da soja) dos brasileiros; esses discursos generalizam questões referentes aos resultados de modelos agrários existentes desde 1950, intensificados com Stroessner, em consequência da falta de modernização das técnicas dos campesinos e dos indígenas.
No último capítulo, Fronteiriços construindo fronteiras, chega-se às disputas que marcam a coexistência, não sem que o autor antes apresente dois momentos que estruturam a questão agrária paraguaia: o primeiro, o que se estende da década de 1970 até a de 1980, intrinsecamente relacionado às transformações da estrutura agrária do oeste do Paraná; o segundo, a partir da década de 1990, marcado pela transformação da estrutura da agricultura paraguaia, com intensificação do latifúndio monocultor e agroexportador.
Nesse contexto, demarcam-se as diferenças entre o modelo brasileiro, criticado pelos opositores do sistema de latifúndio, e as práticas dos “campesinos”, para muitos ultrapassadas por concentrarem-se em grande medida numa produção de subsistência. A análise aproxima-se do debate em torno de práticas de integração e dificuldades em estipular quem são os estabelecidos e quem são os outsiders. Afinal, além do tempo de residência, somam-se à análise, o grande número de brasileiros residentes na fronteira e o estigma aplicado sobre aqueles que fracassaram na atividade rural. Dessa maneira contemplam-se vários focos, como os produtos consumidos, a chegada de tecnologias de comunicação, o resultado do cooperativismo etc.
Enfim, o sucesso desse estudo envolve o posicionamento metodológico e epistemológico adotado no tratamento das fontes orais. O recurso à história oral é um dos caminhos para que Leandro Baller abarque as memórias sobre o processo analisado. O trabalho também se baseia em cautelosa investigação de arquivos oficiais e não oficiais, bem como da imprensa paraguaia. Além do equilíbrio entre essas diferentes fontes, destaca-se também o rigor metodológico e a necessária postura ética do autor. Baller trabalha com entrevistas inéditas e com entrevistas publicadas por outros autores, a maioria produzida em meados da década de 1990; entre as inéditas, algumas foram conduzidas pelo próprio autor e outras (produzidas entre 1994 e 2014) advêm da colaboração de outros pesquisadores. Apesar disso, de certa forma, o leitor tem a impressão que se trata de um único corpus documental, o que revela a qualidade do trato do autor com as memórias e com a suas temáticas comuns, quais sejam a situação do fronteiriço e a disputa pela construção de identidades e de memórias.
Referências
BHABHA, Homi K. O local da cultura. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 1998.
HAESBAERT, Rogério. O mito da desterritorialização. 6. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2011.
ALDRIGHI, Clara. Memorias de insurgencia: historias de vida y militância en el MLN-Tupamaros. 1965-1975. Montevideo: Ediciones de la Banda Oriental, 2009. 456p.
Jorge Pagliarini Junior – Professor efetivo do curso de História da Universidade Estadual do Paraná (Unespar), campus de Campo Mourão. E-mail: palhajr@yahoo.com.br.
Geografia Escolar: contextualizando a sala de aula | Sona Vanzella Castellar
A coletânea de textos organizados pela Professora Sonia Maria Vanzella Castellar sobre a Geografia Escolar se destaca em virtude do rigor metodológico que acompanha todos os textos e o compromisso com a educação geográfica. O livro reúne textos com abordagens teóricas sobre o processo de aprendizagem no ensino de Geografia, com tom bastante contemporâneo marcado por reflexões e debates realizados pela comunidade geográfica dedicada à Didática da Geografia.
A professora Sonia Castellar é livre-docente em Metodologia do Ensino de Geografia pela Universidade de São Paulo – USP com trabalho sobre a ‘Didática da Geografia (escolar): possibilidades para o ensino e a aprendizagem significativa no ensino fundamental’. Autora de mais de uma centena de artigos e com mais de vinte livros publicados, possui uma quantidade respeitável de trabalhos e orientações desenvolvidas ao longo da carreira. A professora Sonia Castellar é uma das pesquisadoras mais importantes da Geografia Escolar brasileira na atualidade. Leia Mais
Fronteira e fronteiriços: a construção das relações socioculturais entre brasileiros e paraguaios (1954-2014) | Leandro Baller
De autoria do historiador e professor do Curso de História da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, campus de Nova Andradina. O professor Leandro Baller, traz um conjunto de ideias e explicações acerca da problemática que envolve o convívio entre homens e mulheres que levam suas vidas nos contornos limítrofes entre dois países, no caso desse estudo Brasil e Paraguai, mais propriamente as relações sociais e culturais construídas pelos brasileiros e paraguaios, sem perder de vista questões políticas e econômicas que se produzem nesse contexto e são/foram operacionalizadas tambem pelos Estados.
O livro é resultado das pesquisas desenvolvidas pelo autor ao longo da sua trajetória pessoal, intelectual e acadêmica. A obra resultou de uma tese de doutoramento em História defendida junto ao programa de pós-graduação da Universidade Federal da Grande Dourados, sendo esta tese a primeira de História defendida no âmbito de doutorado pelo referido programa, bem como em uma instituição no Estado de Mato Grosso do Sul. Leia Mais
Fronteira e fronteiriços: a construção das relações socioculturais entre brasileiros e paraguaios (1954-2014) | Leandro Baller
De autoria do historiador e professor do Curso de História da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, campus de Nova Andradina. O professor Leandro Baller, traz um conjunto de ideias e explicações acerca da problemática que envolve o convívio entre homens e mulheres que levam suas vidas nos contornos limítrofes entre dois países, no caso desse estudo Brasil e Paraguai, mais propriamente as relações sociais e culturais construídas pelos brasileiros e paraguaios, sem perder de vista questões políticas e econômicas que se produzem nesse contexto e são/foram operacionalizadas tambem pelos Estados.
O livro é resultado das pesquisas desenvolvidas pelo autor ao longo da sua trajetória pessoal, intelectual e acadêmica. A obra resultou de uma tese de doutoramento em História defendida junto ao programa de pós-graduação da Universidade Federal da Grande Dourados, sendo esta tese a primeira de História defendida no âmbito de doutorado pelo referido programa, bem como em uma instituição no Estado de Mato Grosso do Sul. Leia Mais
Os baluartes da tradição: o conservadorismo católico brasileiro no Concílio Vaticano II – CALDEIRA (H-Unesp)
CALDEIRA, Rodrigo Coppe. Os baluartes da tradição: o conservadorismo católico brasileiro no Concílio Vaticano II. Curitiba: CRV, 2011, 335 p. Resenha de: GONÇALVES, Marcos. História [Unesp] v.31 no.1 Franca Jan./June 2012.
O objetivo de Rodrigo Coppe Caldeira em Os Baluartes da Tradição é apresentar a atuação e as principais ideias dos bispos brasileiros Antonio de Castro Mayer (1904-1991) e Geraldo de Proença Sigaud (1909-1999) durante o Concílio Vaticano II (1962-1965). Os dois prelados, expoentes do catolicismo conservador e antimoderno no Brasil, encabeçaram, junto com Marcel Lefebvre (1905-1991) e com o apoio de alguns bispos italianos e latino-americanos, a Aliança Conservadora minoritária, que lutou pela manutenção, pode-se assim dizer, de uma Igreja do século XIX no século XX. Uma Igreja de matriz institucional ultramontana e cuja perspectiva integrista apresentava-se irredutível às novidades possíveis de ameaçar a autoridade da tradição eclesiástica fortemente sedimentada.
Em tempos de concordata entre o Brasil e o Vaticano – firmada em novembro de 2008 – e levantamento das excomunhões impostas pela Santa Sé à Fraternidade Sacerdotal São Pio X (janeiro de 2009), que contava entre seus membros com o bispo negacionista Richard Williamson, é oportuno trazer à luz questões que atribulavam os bispos antimodernos mergulhados no acontecimento mais importante do século XX para a Igreja romana.
Embora na Europa seja fecunda a literatura especializada sobre o Concílio II, no Brasil continuam escassos os estudos mais específicos e verticalizados que abordem a participação dos prelados brasileiros no evento, além de serem poucas as reflexões da historiografia sobre as ressonâncias das normativas no período pós-Concílio.
Originalmente uma tese de doutoramento defendida pelo autor na Universidade Federal de Juiz de Fora-MG, o texto de Caldeira dialoga com e complementa estudos de envergadura, como o de José Oscar Beozzo (2005), que construiu interessante prosopografia dos bispos brasileiros envolvidos no Concílio.
Disse-o bem Annibale Zambarbieri (1995) que, num Concílio ecumênico, vicejam tensões, estratégias de luta e disputas por classificações e hegemonias discursivas equivalentes a um parlamento: lugar no qual a astúcia política faria sombra à ética religiosa. A noção de “campo de lutas simbólico-normativas”, empregada por Caldeira, em que duas tendências que disputam espaço num determinado cenário social lutam obstinadamente por certa hegemonia, parece responder adequadamente a essa equivalência. Tal campo de lutas acentuou-se no século XIX, quando o Vaticano I (1869-1870) adquiriu claros contornos de enfrentamento entre maiorias e minorias que eram, e são, comuns às assembleias parlamentares modernas ao institucionalizarem os conflitos sociais. Dentro do modelo que interpreta a história conciliar operando analogias às câmaras políticas cabe, por exemplo, assinalar o estudo do eminente historiador francês Philippe Levillain, publicado pela primeira vez em 1975: La mécanique politique de Vatican II. La majorité et l’unanimité dans un Concile.
O estudo de Caldeira sai em busca da constatação dessas tensões, dividindo-se em duas partes, assim constituídas: a Parte I, composta por quatro capítulos que abordam a época anterior da realização do Concílio e a emergência e consolidação de um catolicismo antimoderno; a Parte II, com cinco capítulos, que discute exclusivamente a atuação e as intervenções dos católicos antimodernos brasileiros no Concílio.
O autor recorre a um amplo universo de acervos documentais para demonstrar os papéis assumidos na minoria conciliar pelos bispos brasileiros: arquivos do Istituto per le Scienze Religione di Bologna, Biblioteca da Obra Social Redentorista Pesquisas Religiosas, fontes oficiais do Concílio, diários e crônicas produzidos no calor do momento, como o são as descrições de Frei Boaventura Kloppenburg (1919-2009) e do teólogo dominicano e futuro cardeal Yves Congar (1904-1995). Todavia, a fonte mais original do estudo talvez seja os arquivos pessoais do bispo Sigaud, localizados em Diamantina (Minas Gerais). Nesse grupo de testemunhos, são identificadas as alianças forjadas entre os religiosos que, em graus diversos, comungavam da mesma constelação de valores tradicionalistas. Caldeira também divulga que a base doutrinária de onde partiu a ação dos bispos antimodernos foi a organização Coetus Internationalis Patrum (Grupo de Padres Internacionais), liderada por Lefebvre ao menos nominalmente e com expressivo protagonismo de Geraldo Sigaud, síntese do antimodernismo religioso brasileiro na segunda metade do século XX.
Os bispos organizados na minoria tradicionalista – ligada às formas clássicas situadas entre o Concílio de Trento e o Vaticano I – defendiam a irredutibilidade da tradição apoiada na compreensão de uma igreja marcadamente antimoderna que, por sua vez, segundo Caldeira, atualizava-se com base em três pilares-chave: a especificidade da Virgem Maria na economia salvífica; o anticomunismo, o antijudaísmo (p. 17). É desses elementos que se desdobram os novos problemas que iriam surgir nos chamados “esquemas”, produzidos pelos padres a fim de deliberarem sobre as relações entre uma Igreja tensionada pelas divisões doutrinárias e um mundo social plural e complexo. No polo oposto aos conservadores se reuniram os bispos e teólogos pertencentes à Aliança Centro-Europeia, composta principalmente por eclesiásticos franceses e alemães desejosos de uma abertura da Igreja para o mundo, sem qualquer precedente até então.
Mas o que é ser antimoderno no contexto do catolicismo institucional? Ou, dito de outra forma, como as históricas bases do antimodernismo católico emergem reativamente nesse momento em que a Igreja romana se empenhava na busca de uma acomodação mínima e moderada com a cultura moderna?
Caldeira reconstitui a experiência antimoderna da Igreja desde a disjunção que a reforma protestante engendrou. Esse seria o movimento que iria inaugurar o paradigma moderno, trazendo “transformações substanciais no panorama político-religioso e também nas consciências dos indivíduos [individualização da fé] ao longo dos tempos” (p. 30). Além da reforma, o autor situa o iluminismo como um movimento que minou a cristandade, acelerando o colapso da visão teocêntrica e reconfigurando a ordem mundana sem a presença da religião; e, por fim, a revolução francesa, o “grande satã” do século XVIII, que gerou um dos frutos mais amargos a ser digerido pela Igreja no século seguinte: o liberalismo.
A alternativa da Igreja decimonônica frente ao avanço da secularização e da laicidade foi uma centralização, que descambou para o centralismo, ou seja, o excesso dogmático e a obsessão por não abrir vias de comunicação com as igrejas locais, tornando absolutas as decisões da burocracia romana e abrindo um conflito com vários Estados nacionais, que derrogaram o princípio da confessionalidade nas suas constituições.
A formação de um catolicismo antimoderno no Brasil foi possível graças à vitalidade assumida na terceira década do século XX pela Igreja que, ao recuperar a herança dos modelos conservadores do século XIX e início do XX, construiu sólidas alianças com o poder político: “Com as mudanças conjunturais que ocorreram com a tomada de poder por Getúlio Vargas, a Igreja passou a uma nova fase na vida pública do país” (p. 93). O período, chamado de fase de “restauração” católica no país, pareceu estabelecer pontos de contato e fornecer inspiração para o que viria a ser, nas duas décadas após a segunda guerra, uma rede de conservadorismo católico sob a liderança de leigos, como Plínio Correa de Oliveira, líder da TFP, e de religiosos com estreitas relações no plano internacional, como Sigaud e Mayer.
Assim, quando João XXIII foi eleito em 1959 o “papa de transição” e logo anunciou a realização de um concílio, os antimodernos se mobilizaram em torno das principais demandas que os afligiam; como salienta Caldeira:
As matérias que eram caras aos antimodernos e as quais deveriam se empenhar defensivamente contra as ideias introduzidas pela Aliança e seguidas pela maioria eram as seguintes: a liturgia codificada pela tradição, a transmissão imutável da revelação, a inerência das Escrituras, a estrutura hierárquica da Igreja, o primado do catolicismo sobre as outras tradições religiosas, o dever do Estado assumir a moral católica e a moral cristã (p. 131).
Os antimodernos temiam a renovação da Igreja, a promoção da unidade dos cristãos e um aprofundamento das relações da Igreja com o mundo contemporâneo. Essa pauta, reforçada por Paulo VI após o curto papado de João XXIII, seguiu as linhas mestras elaboradas por este último. Neste sentido, o Concílio devia pensar a Igreja em duas direções: ad intra e ad extra (p. 156).
O já mencionado Coetus nasce, segundo Caldeira, entre 1962 e 1964, em razão das expectativas que se transformaram em angústias para os antimodernos. É no interior desse grupo de pressão que também emerge o papel mais visível de Sigaud na condução dos trabalhos, ao ser escolhido – ou se impor – como seu secretário:
[…] os indícios advindos dos arquivos de Sigaud dão a entender que o Grupo de pressão se institucionaliza em outubro de 1964, a partir de algumas iniciativas encabeçadas por Sigaud como a compra de uma impressora rotativa offset, a organização sistemática de reuniões, e a escolha de um porta-voz com o estatus de cardeal, escolha que recaiu sobre o arcebispo de Manila, cardeal Santos (p. 181).A partir do grupo constituído e da conexão com outras redes tradicionalistas, como o ROC (Romana Colloquia), definem-se as bases de sua atuação, bem como o poder de pressão que terá, tanto nos bastidores quanto nos momentos-chave de deliberação dos “esquemas”. A linha assumida pelo Coetus far-se-á de acordo com os seguintes princípios, que seriam defendidos no resultado final dos textos conciliares: 1) defesa do primado papal e recusa de uma gestão colegiada que pudesse colocar em risco, sobretudo, as hierarquias das igrejas locais diante de “novas teologias”, mas, principalmente, diante do avanço das Conferências Nacionais; 2) negação da liberdade religiosa e da igualdade de direitos para todas as religiões, pois somente a religião verdadeira (a católica) teria o direito de ser professada publicamente (tese defendida por Mayer); 3) manutenção da “tradição” de culpabilidade dos judeus pela morte de Jesus; 4) luta contra a renovação litúrgica, notadamente contra a introdução das línguas nacionais na liturgia da missa; 5) condenação explícita do comunismo e das doutrinas que contradiziam a razão e a experiência comum da humanidade e levavam o homem a decair em sua excelência natural.
Para os antimodernos, o Vaticano II parece ter sido visto como a oportunidade de ratificação do Vaticano I. Repensar a política da Igreja diante do mundo era uma alternativa pouco concebível. “Mundo”, nesse contexto, era uma dimensão divorciada de qualquer injunção ou influência frente à Igreja. Este princípio tendia a desfazer o pressuposto inicial de João XXIII, que desejava, ao longo do Concílio, formular uma concepção doutrinária que desse conta de ajustamentos parcimoniosos e sem rupturas, interna e externamente.
Caldeira, tomando as palavras de Paulo VI no encerramento do Concílio, ratifica a tese de que as possíveis novidades foram contidas ou ganharam a sua “justa proporção”, atendendo aos interesses de minoritários e aliancistas. Desse modo, permanece a questão sobre o aggiornamento: não foi ele mais do que um rearranjo acomodatício ou significou uma renovação excessivamente moderada que os anos de conflitos posteriores denunciariam? Talvez um pouco de cada coisa. Caldeira informa que, malgrado os esforços de Paulo VI na criação de comissões posteriores com o objetivo de preparar instruções que indicariam como aplicar, de modo concreto, o resultado dos debates conciliares, o que predominou foi a interpretação particular das correntes que se formaram, pró e contra suas normativas. Uns, denunciando os excessos, outros, desejosos de avançar no sentido de um “cristianismo de libertação” e dialético. Quanto aos antimodernos, como nota Caldeira, houve o afastamento progressivo de Sigaud em relação a Lefebvre e Mayer. O bispo de Diamantina passou a discordar do radicalismo negativo de ambos, o que teria encaminhado as teses tradicionalistas à marginalidade.
Por causa dessa radicalidade, que chegou ao extremo na década de 80 do século XX com as excomunhões de Lefebvre e Mayer, o autor conclui:
Os grupos conservadores tornaram-se, no imediato pós-Concílio, sempre mais marginais na geografia eclesial, principalmente no Brasil, no qual o avanço de um ‘cristianismo de libertação’, ligado claramente às posições marxistas, levou a Igreja brasileira a ser considerada uma das mais progressistas do mundo (p. 249).
O estudo de Caldeira reafirma a persistência de um estado de crise reconhecido pelo atual papa (Bento XVI) ao declarar que tal estado deve-se, em muito, “à hermenêutica que privilegia a noção de ruptura do evento Conciliar” (p. 250). De fato, o catolicismo é um mundo em crise e, apesar de sua pretensão de homogeneidade, o que permanece do Vaticano II parece configurar um duplo dilema: conciliar a antítese tradição-progresso como tema central da história de uma Igreja católica imersa na modernidade; questionar em que medida existe renovação, ou há vontade de renovação, na Igreja, levando-se em conta o risco de uma ruptura.
Marcos Gonçalves – Doutor em História – Professor Adjunto da Universidade Estadual do Paraná – Campus Paranaguá. Rua Comendador Correia Júnior, 117 – CEP 83203-280 – Paranaguá/PR, E-mail: paideia_mg@yahoo.com.br.
A eficácia da cura em psicanálise: Freud – Winnicott – Lacan – PEREZ (RFA)
PEREZ, Daniel O. (Org.). A eficácia da cura em psicanálise: Freud – Winnicott – Lacan. Curitiba: CRV, 2009. Resenha de: OLIVEIRA, Marcelo de; ALVES, Vera Lúcia da Silva. Revista de Filosofia Aurora, Curitiba, v.22, n.30, p.303-308, jan./jun., 2010.
A coletânea de textos reunidas no livro A eficácia da cura em psicanálise é desdobramento de um trabalho anterior1 e se caracteriza como uma resposta à indagação do organizador, de ambos os livros, ainda sobre a questão da cura, agora sob as diferentes perspectivas psicanalíticas – Freud, Winnicott e Lacan. No texto que abre esta coletânea sob o título “A psicanálise e a cura”, Daniel Omar Perez retoma a interrogação freudiana acerca do mal-estar inerente à condição do humano e pontua a problemática do sujeito na contemporaneidade, que é tão pertinente hoje quanto nos fins do século XIX, uma problemática para além de uma “simples” retirada de sintomas. Uma psicanálise é um tratamento que compreende a dimensão do mal-estar sem reduzi-lo a um único aspecto, e que conduz aquele que fala a reconhecer sua parte no que diz, ou seja, uma experiência em que o analisante passa de objeto a sujeito. A proposta dos trabalhos apresentados neste livro é claramente expressa: ao contrário de se fechar em sentenças definitivas, a respeito da eficácia da cura na psicanálise, as variações e as vicissitudes do entendimento sobre a clínica, os conceitos e a cura analítica sustentam e revigoram o campo freudiano.
Francisco Verardi Bocca, em “Cuidado com a cura!!!”, faz uma perspicaz busca, mais lógica do que cronológica, em alguns textos de Freud, das suas diferentes elaborações sobre o ego, porque, segundo ele, Freud vincula a reflexão da eficácia terapêutica com a noção de conflito psíquico: envolvendo o ego, as forças pulsionais e também a posição do analista. O percurso, dado pelo autor, demonstrou expectativas tanto otimistas quanto pessimistas sobre os resultados da análise, que vão da remoção ao amansamento do sintoma. Esclarece que Freud, primeiramente, toma o ego como aliado ou colaborador do analista, em seguida passa a tê-lo como fonte de obstáculos e de resistências para a cura e, por fim, assevera que o método analítico, dentre todos, é o que chega mais longe. Eis o itinerário: 1º – A cura pelo esclarecimento e remoção de sintomas. Entre 1916 e 1917, Freud sustenta que análise promove modificações eficazes e definitivas por meio da transformação do material inconsciente em consciente; 2º – Persiste a aposta no ego. No texto O ego e o id (1923) e, já instrumentalizado com o conceito de neurose de transferência, confere ao ego o poder de conciliar as demandas provindas de todas as fontes. Contudo, em 1926 reconhece um obstáculo: a resistência. Infiltrando-se novos contornos ao ego; 3º – O ego sob suspeita. Começa a relativizar a atuação do ego, principalmente em “Análise terminável e interminável”, em que aponta que suas modificações não são persistentes; 4º – O ego como fogo-amigo. Substitui o fim último da remoção do sintoma por atenuação da exigência pulsional. Freud, reconhecendo o limite da análise e da sua eficácia terapêutica, não a configura como terminável.
No texto seguinte, “A propósito da cura no discurso analítico”, Antonio Godino Cabas, considerando a cura inseparável do dispositivo clínico, interroga: o que é uma psicanálise? O obstáculo a ser contornado é como definir o que ocorre em uma psicanálise, como produzir uma prova de convicção que possibilite demonstrar a sua essência e a eficácia da prática, posto que se trata de uma experiência tão real quanto carnal e diz respeito a um sujeito único, a uma experiência unicamente aplicável ao particular de cada caso, e nisto perfila uma inconsistência do saber analítico: a impossibilidade de se fazer interpretações generalistas. Sublinha a inconsistência do “ser” do psicanalista, não há no inconsciente um significante que dê conta de definir o que é um psicanalista, nada que possa garantir de antemão quem é e quem não é um psicanalista. O caminho que o autor empreende é a perspectiva do saber analisante. É o mesmo percurso realizado por Freud e por Lacan, na construção da doutrina analítica. Em ambos era desde um lugar como analisantes que “experimentavam” a psicanálise. Somente sob esta perspectiva é possível saber algo sobre o inconsciente, a partir de um saber de si-mesmo. Este é o cerne da experiência psicanalítica e de sua cura.
Sobre o conceito de experiência e o estatuto do saber no discurso analítico” é outro texto de Antonio Godino Cabas, no qual aborda a experiência clínica, criticada pela ênfase que traria um caráter demasiadamente empírico à psicanálise, tomada pelo viés de uma situação artificial que se constitui na sessão analítica. Artificial, posto que é pelo tratamento que se dá à demanda do analisante pelo analista que se produz o enquadramento necessário a uma psicanálise. Tal experiência provoca um movimento específico que visa à manifestação do real no campo do saber, como ato. Destarte é um saber, o saber-analisante, que se realiza em ato, que produz ato. Consistindo não em um saber do analisante, mas sim a qualidade, um tipo de saber. Conclui-se que a cura analítica está em estrita relação com a experiênicia e com o saber, pois é, antes de tudo, um saber fazer com o inconsciente.
João Perci Schiavon denuncia em “A cura em psicanálise” que a noção de pulsão é pouco explorada e mutilada como um pedaço de pulsão: pulsão de morte, pulsão sexual e pulsão de vida. Afirma que Freud, ao exercer a escuta flutuante, já estava intuindo a pulsão, chegando ao significante muito antes dos linguistas – mas não antes dos poetas. Afirma que o conceito orienta toda a trama significante e sublinha que Lacan compreendeu a pulsão como a potência do significante. O autor abre, sob domínio clínico e teórico, novos campos de interrogação da pulsão em relação ao saber do inconsciente – lugar da cura – e destaca alguns equívocos frequentes. Um primeiro equívoco: afetos secundários passam por primários. Afirma que dor e luto não decorrem diretamente do corte ou perda do objeto, mas sim do superinvestimento de representação do objeto, e a análise, com rigor ético, deve promover o reencontro do sujeito com esse poder e não exatamente com o objeto – seu norte deve ser a sublimação e não a castração. Quando para apenas no rompimento da unidade narcísica do discurso, reduz o campo pulsional à pulsão de morte, a falta-a-ser. O segundo equívoco: o afeto originário desligado da ideia é um absurdo. Considera-se que o recalque incide apenas sobre uma representação ou um significante e não sobre o afeto, e que este fica à deriva, desligado de sua representação. Sustenta que o afeto ligado a ideias substitutivas leva ao afastamento do saber e a uma queda considerável do exercício pulsional, nos sentidos prático e ético; consequentemente, a vida sofre diminuição. O terceiro equívoco: um saber dissociado do gozo ou um gozo dissociado do saber. A propósito do fim da análise, equivocam-se os que tomam o saber como uma coisa e a pulsão outra, sem que se coincidam. Perci designa a pulsão como saber do gozo que deve passar ao conhecimento. O avanço da análise deve ter modos de conceber e explorar o campo pulsional ou o campo do saber e o fim é a exigência de saber; é nisto que consiste a cura.
“A cura da psicanálise”, título do trabalho de Jorge Sesarino, traz a proposta de pensar a causa do sofrimento e deste ato encetar o efeito do significante no aparelho psíquico, ou seja, a emergência do sujeito, como o eixo fundamental de uma psicanálise: o saber inconsciente. Saber sobre a causa pensável, produzindo uma descontinuidade na existência do sujeito imerso nas exigências da vida cotidiana, que, passando a se ouvir naquilo que diz, modifica profundamente a personalidade deste a partir de sua atitude diante do desvelamento da verdade sobre a causa do que lhe faz sofrer. A psicanálise não busca curar os sintomas, mas saber o que eles têm a dizer. Nisto consiste a ética da psicanálise: dar lugar ao sujeito como autor de sua existência, conduzindo a demanda de amor ao seu lugar de enunciação, lugar de desejo correspondente à falta, movimento de queda do ideal.
No texto “Homenagem a Freud e a psicanálise hoje”, Gilberto Rudeck da Fonseca faz uma rápida retrospectiva da psicanálise: Freud inventa conceitos que dirigem o tratamento, concebe o inconsciente e, com ele, a possibilidade de interpretar o sentido do sintoma que aí se encontra. Em seguida, descobre as palavras e a fundamental importância de dizê-las. Concebe a transferência e se depara com um limite que se centrava no próprio sintoma: uma satisfação silenciosa que não provinha do prazer, que estava fora do sentido e que escapava à linguagem. Este aparente fracasso suscitou dissidências, como apostas nos medicamentos, na psicologia do eu e nas análises da contratransferência. Freud não recuou: escreveu vários novos conceitos e deu um salto subversivo, conduzindo o tratamento para o encontro do sujeito com o seu resto, com a “sua sombra”. Tirou o ser humano de um padrão preconcebido e lhe deu a condição de ser “seu próprio inventor”. Com isso cai a modernidade e a esperança na ciência, e a pós-modernidade é fundada por Freud. A psicanálise nos dirige a esse limite, à castração, ao traço de satisfação aprisionado ao gozo. Gilberto expõe três respostas que são posições e formas de trabalhar com a sombra, esclarecendo com um caso clínico.
Em “A cura na baliza da angústia”, Maria Angélica Carreras, para falar do fim, começa do início, que é quando ao sofrer demais por ignorar o motivo, o sujeito dá ao analista o lugar de suposto saber – o processo é movido pela transferência do sujeito e pelo desejo do analista. O analista, que não responde “à demanda amorosa de reconhecimento”, é aos poucos destituído desse lugar inicial, processo essencial para chegar ao fim. Afirma que a incógnita sobre o saber está ligada ao desejo Outro: que quer de mim? Para Lacan, o neurótico, ao tentar responder esta questão crucial, constrói o seu fantasma, não sem angústia. E a arte da direção da cura está no difícil manejo da angústia. Diferencia culpa (campo da impotência) e angústia (campo do impossível) e, ainda, faz uma breve sinopse da construção do conceito de angústia em Freud e Lacan, que a relaciona com a castração no Outro. Angústia é sinal da posição fantasmática entre o sujeito e o objeto. Comenta: “o que nos faz adoecer é a onipotência do Outro, o que nos salva é descobrir que o Outro é castrado”. O fim de análise é a travessia da angústia, é a descoberta de que o Outro não existe, de que suas dívidas imaginárias não procedem, de que ninguém é responsável pelos seus infortúnios. É o caminho da liberdade. Assim, segundo a autora, há um antes e um depois do fantasma.
“Todo aquele que é feliz tem razão: a questão da cura a partir do pensamento de Winnicott”, por Nadja Nara Barbosa Pinheiro, traz a reflexão segundo a qual é necessário considerar a questão da cura tanto em relação à teoria quanto em relação à prática, ao menos quando esta interrogação se desenrola no campo da psicanálise. Questão complexa, como salienta a autora, posto que ao psicanalista, advertido por sua ética, não é possível ofertar a felicidade plena àquele que o procura. Este posicionamento do psicanalista, segundo Nadja, contrasta com o momento histórico atual, que, oferecendo muitas promessas de satisfação plena, ilusões de felicidade e prazeres fugazes vendidos como propostas de dissolução do mal-estar, simplesmente negam que a falta em questão se trata de um elemento constituinte da estrutura do sujeito desejante e, como tal, inerente à vida anímica.
No texto que encerra a coletânea, “A cura em psicanálise”, Edna Maria Romano Wallbach dá a palavra à Boileau, que diz que a psicanálise é um método de cura pouco mensurável, mas incontestável. Aponta para o instinto de morte como o fator mais poderoso, não só da resistência, mas a causa suprema do conflito. Enfatiza a primeira infância, na qual todas as repressões se efetuam por um ego débil, e que posteriormente não surgem novas repressões, apenas persistem as mesmas. Afirma que a análise deve capacitar o ego, agora mais maduro, a revisar as antigas repressões, para não ceder facilmente à força instintual. Destaca também a dupla formada, analista e analisando, e os afetos que despertam um no outro, colocando como questão fundamental a análise pessoal do analista. Concluiu que Freud trabalhava mais com a teoria das pulsões, enquanto hoje se trabalha com a teoria das relações objetais, e encerra esclarecendo que a função da análise não é demonstrar os mecanismos neuróticos ou psicóticos, mas atentar que está lá “uma pessoa para nascer”. O caminho para a cura, proposto pela autora, se configura demasiadamente idealizado, ao privilegiar o ego em detrimento do inconsciente e/ou do real.
Nota
1 PEREZ, Daniel Omar (Org.). Filósofos e terapeutas em torno da questão da cura. São Paulo: Escuta, 2007.
Marcelo de Oliveira – Mestrando em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR), Curitiba, PR – Brasil. E-mail: marcelodeoliveira75@gmail.com
Vera Lúcia da Silva Alves – Mestranda em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR), Curitiba, PR – Brasil. E-mail: veraalves33@hotmail.com
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