Entretien sur la mécanologie – SIMONDON (SS)

SIMONDON, Gilbert.  Entretien sur la mécanologie. Revue de Synthèse, 6a. série, 130, 2, p. 103-32, 2009. Resenha de: CRUZ, Cristiano Cordeiro. Avanço técnico e humanização em Gilbert Simondon. Scientiæ Studia, São Paulo, v.13, n. 2, p. 431-38, 2015.

Simondon, ainda que não conhecido do público não especializado, é um autor bastante importante, cujas ideias, ainda atuais, influenciaram o pensamento de estudiosos do fenômeno técnico como Jacques Ellul (2012 [1977]) e Andrew Feenberg (2015). Sua análise sobre a técnica tem como intenção principal declarada ajudar as pessoas a superarem um conhecimento limitado e/ou equivocado a respeito dela, de sorte a tornarem-se capazes de construir uma vida individual e coletiva melhor para si e para os demais. Os principais problemas sociais de nosso tempo, em sua opinião, não advêm de uma excessiva tecnificação da vida, mas, ao contrário, de um atraso da cultura com respeito às possibilidades do desenvolvimento técnico. É por isso, então, que ele se opõe aos humanistas de sua época, para os quais estaria na máquina o mal a ser combatido, e não o remédio a ser procurado e desenvolvido. Tais ponderações estão presentes, como se verá, nestas entrevistas de 1968.

Outro ponto importante do pensamento de Simondon, e que o opôs à cibernética de Norbert Wiener (1948; 1968), é a natureza e o papel da informação. Ainda que, para o francês, a informação de realimentação, necessária para o feedback promotor da homeostase, seja um caso particular daquilo que mais amplamente seria a informação, ela tanto pode dar-se de maneira rústica, estranha à moderna cibernética de Wiener, quanto é insuficiente ou apenas parcial, no que tange efetivamente à informação, por duas principais razões. Por um lado, em termos biológicos, a informação não tem por fim apenas o equilíbrio do organismo, mas está na base dos processos de individuação pelos quais ele passa (cf. Barthélémy, 2014, p. 146-7). Por outro lado, em termos sociais, as informações providas pelos mais diversos mecanismos artificiais de controle ou mensuração só são úteis para a ação reguladora, se for provido ou considerado também o panorama total de fundo, em relação ao qual essa informação poderá ser interpretada e fazer sentido (cf. Barthélémy, 2014, p. 147-8; Simondon, 1989 [1958], p. 284-5). Assim, uma teoria da informação deveria estar ocupada com a gênese da informação, nas trocas mútuas entre os indivíduos e deles com seus meios associados (cf. Barthélémy, 2014, p. 149), muito mais do que com o ruído, o canal de transmissão ou perdas, a predição e a reconstituição da mensagem enviada.

Não obstante tais diferenças entre os dois autores, as entrevistas farão referência apenas ao possível caráter rústico da homeostase. Juntamente com isso, elas aludirão a outro ponto de divergência entre eles, o caráter marcadamente subversivo ou ampliador que uma invenção técnica autêntica potencialmente tem em face ao estabelecido culturalmente. Com isso, o grande valor da informação estaria, para Simondon, em ela ser principalmente potencializadora da individuação e da invenção, e não em seu papel de asseguradora da ordem estabelecida, através da regulação ou da conformação homeostática (cf. Barthélémy, 2014, p. 150-3).

Isso posto, procederemos agora à apresentação das entrevistas de Simondon, que será seguida de uma breve problematização de alguns pontos de sua teoria.

Entretien sur la mécanologie é a transcrição de duas entrevistas concedidas por Simondon em 1968 ao jornalista canadense Jean Le Moyne. O entrevistador estava em vias de elaborar três filmes sobre a técnica, um para cada um dos três modos técnicos de existência apresentados por Simondon em Du mode d’existence des objets techniques (1958), as quais Le Moyne chama de estático, dinâmico e reticular. Nas 56 duplas de perguntas e respostas que compõem esse documento, Simondon passará por diversos dos pontos-chave de sua reflexão sobre a técnica, aprofundando e esclarecendo certos aspectos de sua obra de 1958.

Naquilo que se segue, vamos ater-nos às partes das entrevistas que nos parecem ser as mais relevantes para explicitar essa que Simondon toma para si como sua principal meta, a de ajudar-nos a melhor compreender o fenômeno técnico e a assumi-lo como lugar de uma “revolução cultural” (p. 128). Com isso, partes substanciais do material, que funcionam principalmente como um detalhamento ilustrativo para a elaboração do filme de Le Moyne, serão deixadas de lado.1

Uma primeira característica da técnica é que ela funciona sempre como mediação entre o ser humano e o mundo, ou entre os objetos técnicos (p. 106). Por essa razão, de modo a ser uma realidade material que opera tal mediação, o objeto técnico precisa, antes de tudo, individuar-se, constituir-se como uma unidade, como algo sólido. Essa unidade também pode ser obtida pela integração de subunidades, como nas máquinas. Seja como for, o elemento básico de onde se parte será sempre, em si, uma unidade material (p. 107 [2]). E à medida que o objeto técnico vai tornando-se mais complexo, o papel da informação para que ele subsista aumenta enormemente, porque uma máquina, assim como um ser vivo, precisa ser estável, ou seja, precisa dispor de mecanismos de autorregulação (cf. p. 107 [3]) para alcançar a homeostase. Esse estado de equilíbrio, contudo, já está presente em objetos bastante primitivos, como uma lâmpada a óleo, não sendo uma prerrogativa dos modernos robôs ou outros sistemas automáticos, nos quais existem estruturas específicas de comunicação e controle (cf. p. 123-5 [44]).

Algo que não está presente nas entrevistas, mas que é amplamente trabalhado por Simondon em outras partes (cf. Barthélémy, 2014, p. 37-42), é o constante e infindo vir-a-ser ou devir que caracteriza todo indivíduo, técnico ou vivente, em sua relação com seu meio associado. No caso do objeto técnico, sua evolução caminha em direção à concretude, que se configuraria por uma unidade sinergética interna e uma integração/ adaptação crescente ao meio (cf. p. 121-3 [40-43]). Assim, um objeto concreto seria aquele capaz de manter-se (autorregular-se) e no “qual, organicamente, nenhuma das partes pode ser completamente separada das outras sem perder seu sentido” (p. 122).

Em seu desenvolvimento histórico, todo objeto técnico passaria por três fases ou etapas. Ele surgiria indivisível, estático, uma vez que, como se viu, toda solução técnica, ainda que composta por subunidades, apresenta-se como uma unidade material. Na sequência, viria a fase dinâmica da dicotomização, caracterizada pela adaptação do objeto técnico ao mundo exterior e ao usuário. No primeiro caso, teríamos mais propriamente a evolução técnica, marcada pela crescente concretização e pelo desenvolvimento de funcionalidades. No que tange à adaptação aos usuários, podem intervir valores não técnicos (por exemplo, econômicos), de modo que, para tornar o objeto atraente ou desejável pelo comprador, ele é inserido em uma embalagem que faz com que sua natureza técnica seja dificilmente percebida. É daí que pode surgir, então, o desejo de trocar de carro, por exemplo, por ele estar “fora de moda”, o que é um “erro cultural fundamental” (p. 109), já que “estar na moda” tem muito pouco a ver com a natureza própria da técnica. Por fim, uma vez que o objeto está estabilizado, teríamos a fase de rede, possível unicamente depois da industrialização, quando as diversas partes em que ele foi subdivido estão padronizadas e podem ser facilmente trocadas ou consertadas. O objeto torna-se, com isso, mais barato e mais fácil de ser mantido/conservado (cf. p. 108-10 [7]). Por conta da padronização, ele torna-se também mais versátil, podendo ser facilmente integrado em outras configurações (cf. p. 122-3 [42]). Pagase, não obstante, um preço pela entrada nesta última etapa, uma diminuição na robustez do objeto. Algo semelhante à perda de autonomia do motor elétrico em relação à rede de alimentação, quando comparado com o motor a vapor e aquilo que lhe serve de combustível. De fato, quando o objeto torna-se parte ou dependente de uma rede, o mau funcionamento ou deterioração dessa rede pode torná-lo inoperante. Foi o que aconteceu na Segunda Guerra Mundial, quando as locomotivas elétricas deixaram de funcionar por conta do colapso da rede de alimentação, enquanto o trem a vapor, em sua menor especialização, pôde seguir funcionando, sendo alimentado por lenha, carvão e outros materiais combustíveis à disposição (cf. p. 112-3 [15-20]).

Seja como for, o fato é que, segundo Simondon, existe um grande desconhecimento acerca da técnica pelas pessoas. Isso acontece porque a analisamos com uma razão que não lhe é contemporânea, mas que está atrasada em relação ao estágio de seu desenvolvimento. Para que pudéssemos superar essa defasagem, compreendendo adequadamente o objeto técnico, precisaríamos “saber como ele é constituído em sua essência e ter assistido sua gênese, seja diretamente, quando possível, seja pelo ensino” (p. 110). Isso, entretanto, está quase que absolutamente ausente em nossas sociedades, nas quais não dispomos de um adequado ensino de história das técnicas (cf. p. 108-11 [7-8]).

A técnica, contudo, não é algo alheio ao ser humano (cf. p. 129 [56]). Ao contrário, ela é proveniente da realidade humana, tem origem na incompatibilidade que buscamos superar entre aquilo que desejamos poder realizar (a ordem do antecipado) e aquilo que conseguimos (ordem do real) (cf. Simondon, 2008, p. 140). A bem da verdade, a técnica é não apenas o mediador entre nós e o mundo, ela (também) assegura nossa harmonização com ele. Com efeito, é a técnica que pode tornar a natureza um lugar mais seguro e propício para a vida humana, ao mesmo tempo em que, ao racionalizar nossa atuação sobre o mundo, reduz nossos danos e impactos ilógicos sobre ele (cf. p. 129 [56]). É nesse sentido, então, que o mundo carece de poetas técnicos (cf. p. 111-2 [14]), de pessoas capazes de desenvolver a conaturalidade entre a “rede humana” e a “geografia natural da região”, entre as pessoas, enquanto grupos e sociedades, e o mundo no qual elas habitam. Tais técnicos seriam poetas, uma vez que suas invenções representariam encontros de significações; não uma violência ou uma submissão da natureza, mas um auspicioso desenvolvimento humano em harmonia com ela.

E esse devir da técnica, do mesmo modo daquele que se observa no desenvolvimento dos seres viventes, não acontece segundo linhagens unilineares, mas múltiplas, porque, diante de realidades ambientais distintas, as mediações entre o ser humano e o mundo tendem a ser diferentes. De fato, “não se faz uma ferramenta com o que quer que seja” (p. 121), de modo que o desenvolvimento técnico acaba por relacionar-se com as razões técnicas de utilidade (aquilo que se busca resolver), de inteligência (o arsenal de conhecimentos e habilidades de que o grupo dispõe) e com a natureza ambiente (o habitat em que vive o grupo e aquilo que ele oferece como base material possível para a construção do objeto) (cf. p. 120-1 [39]).

Mas quais são as consequências, agora para a cultura, do desconhecimento de tudo isso que Simondon apresenta como característico da técnica? A consequência principal ou mais insidiosa é que acabamos por privar-nos daquilo que poderia ser uma das formas de superar várias de nossas mazelas sociais. Com efeito, a possibilidade de superação da tecnocracia, da degradação ambiental e de diversos dos males do modo como vivemos em sociedade, e que é muitas vezes imputado à técnica, passa justamente por tomá-la em sua essência, libertando-a da condição de escravidão a que a submetemos, em nossa busca por poder e controle sobre a natureza e sobre as outras pessoas (cf. Simondon, 1989 [1958], p. 126-8; 1989, p. 287-90). O elemento de humanização da técnica encontra-se no fato de que ela, em seu desenvolvimento autêntico, subtrai-se das ordenações finalistas que frequentemente caracterizam e submetem a ordem social: “o homem liberta-se pela técnica da restrição (contrainte) social; pela tecnologia da informação, ele torna-se criador dessa organização de solidariedade que uma vez o aprisionou” (Simondon, 1989 [1958], p. 104). Com isso, a técnica oferece a possibilidade de libertação das naturalizações de certas estruturações culturais, permitindo-nos também a nós, individual e coletivamente, devir. Entretanto, por conta da nossa ignorância a respeito de sua real natureza, o que acaba por suceder é o contrário disso, ao invés de fazermos a cultura adiantar-se, alargar-se para entrar em fase com o desenvolvimento técnico e as novas possibilidades de encontros de significações que ele nos traz, tendemos a submetê-lo àquilo que ele era vinte anos antes (cf. p. 109).

Assim, porquanto o futuro técnico seja cada vez mais o das redes, estudá-las é fundamental. A dificuldade que podemos ter para entendê-las advém do fato de que, tomada nesse nível, a técnica está tanto relacionada a coisas muito grandes quanto representa a mediação entre o ser humano em sociedade e a natureza (cf. p. 126). Seja como for, pensar as redes, assumir conscientemente o seu desenvolvimento e a articulação delas em redes de redes, é o desafio daqueles que não querem apenas construir a história (do passado), mas incidir na transformação cultural do presente e do futuro. A superação do atraso cultural e de tantos de nossos problemas pode vir exatamente disso (cf. p. 127-8 [50-51]). Conhecer verdadeiramente a técnica e permitir seu desenvolvimento autêntico é, então, a porta para uma verdadeira revolução cultural (cf. p. 127-8).

Esse é, pois, o itinerário seguido por Simondon nessas duas entrevistas publicadas pela Revue de Sinthèse. Nelas, como se viu, a importância da reflexão cuidadosa sobre o fenômeno técnico ocorre com vistas a que possamos construir conscientemente o futuro que queremos para nós. Futuro da maximização das nossas possibilidades de ser, da harmonização com a natureza e da amizade com o objeto técnico (que nos impediria de reduzi-lo a meio para a dominação e o controle). A técnica, porém, é incapaz de desenvolver-se a si própria. Uma invenção só pode ter lugar na mente humana, como mediação possível entre aquilo que desejamos (ou antecipamos) e aquilo que já existe (cf. Simondon, 2008, p. 186-7). É por essa razão que Simondon idealiza a figura dos técnicos-poetas, capazes da construção de novos sentidos e harmonizações entre nós e o mundo. Disso resultaria a subsequente pressão sobre a cultura para que ela se amplie, que é a condição de possibilidade de seu próprio devir e do das pessoas.

A teoria de Simondon, entretanto, enfrenta um problema de difícil superação, que é a sua compreensão de que o desenvolvimento técnico pode ocorrer à margem e independente dos valores sociais. Em sua concepção, haveria uma força interna que, por si só, governaria o processo de aumento de concretude dos objetos já existentes e de surgimento de novas mediações entre o ser humano e a natureza. Contudo, tal entendimento, além de ser de difícil constatação empírica, parece desconsiderar o fato de que o técnico inventor, aquele que percebe a tensão entre a ordem do real e a do antecipado, buscando soluções técnicas para compatibilizar as duas, é um ser humano, membro de uma comunidade e de uma cultura, além de ser um técnico. Assim, parece forçoso admitir que boa parte daquilo que lhe chamará a atenção no mundo, ou seja, os problemas ou desejos que lhe seduzirão, será aquilo que, de alguma forma, é significativo, caro ou (aparentemente) urgente/ necessário para o grupo ao qual ele pertence. Desse modo, a técnica encerraria em si também valores e buscas sociais, de sorte que o seu desenvolvimento seria campo também para disputas políticas. É o que sustenta Feenberg (cf. 1995, 1999, 2002, 2003). Com respeito à análise da incorporação de valores sociais ao fenômeno técnico, poderíamos citar ainda diversos outros autores. É o caso, por exemplo, de Mumford (cf. 1964) e Winner (cf. 1979; 1986). Cada qual, entretanto, adotará uma abordagem distinta, seja pelo tipo de leitura que faz – de cunho mais histórico, político ou filosófico –, seja pelo entendimento que constrói e aquilo que propõe a partir dele.

Além disso, parece que Simondon concebe que toda nova funcionalidade encerraria sempre e necessariamente apenas o potencial de fazer o bem ao ser humano, à sociedade e ao meio ambiente. Os efeitos colaterais dela e seus riscos potenciais, como bem o analisam, por exemplo, Ellul (cf. 2008 [1954], 2012 [1977], 1990, 1962), não são jamais por ele considerados. Porém, se os riscos e os efeitos colaterais fazem parte da técnica, tanto quanto sua capacidade de nos prover mediações com o mundo natural, e se os valores que possuímos enquanto seres humanos fazem-nos enxergar o mundo, suas possibilidades e seus aspectos intocáveis de maneira singular, então múltiplas soluções técnicas para um mesmo problema são teoricamente possíveis (cada qual tributária do local existencial e valorativo de que se parte) e uma ou algumas delas serão mais legítimas para quem as avalia do que as outras. É o que defende Hugh Lacey (2011). A luta por fazer prevalecerem as soluções técnicas mais de acordo com os valores que os grupos têm para si, em detrimento daquelas que lhes são menos legítimas, seria a base da democratização da tecnologia proposta por Feenberg.

Em suma, então, se é certo, por um lado, que a teoria de Simondon, tratada em alguns dos seus pontos principais nestas duas entrevistas por ele concedidas em 1968, oferece-nos elementos bastante interessantes e atuais para a reflexão sobre a técnica, por outro, ela parece poder ou requerer ser enriquecida, alargada ou transformada, de modo a dar conta de aspectos do fenômeno técnico que originalmente parece deixar descobertos.

Notas

1 Para facilitar a localização do texto na Revue de Synthèse, várias das referências a ele constarão da numeração da página, seguida por um número entre colchetes, que corresponde à dupla pergunta-resposta em que elas aparecem, numeradas sequencialmente.

Referências

BARTHÉLÉMY, J. H. Simondon. Clamecy: Les Belles Lettres, 2014.

ELLUL, J. The technological order. Technology and Culture, 3, 4, p. 394-421, 1962.

_____. The technological bluff. Translation G. W. Bromiley. Grand Rapids: Eerdmans, 1990.

_____. La technique ou l’enjeu du siècle. Paris: Économica, 2008 [1954].

_____. Le systhème technicien. Paris: Cherche Midi, 2012 [1977].

FEENBERG, A. Alternative modernity: the technical turn in philosophy and social theory. Berkeley: University of California Press, 1995.

_____. Questioning technology. New York: Routledge, 1999.

_____. Transforming technology: a critical theory revisited. New York: Oxford University Press, 2002.

_____. Between reason and experience: essays in technology and modernity. Massachusetts: The MIT Press, 2003.

_____. Simondon e o construtivismo: uma contribuição recursiva à teoria da concretização. Scientiae Studia, 13, 2, p. 263-81, 2015.

LACEY, H. A imparcialidade da ciência e as responsabilidades dos cientistas. Scientiae Studia, 9, 3, p. 487500, 2011.

MUMFORD, L. Authoritarian and democratic technics. Technology and Culture, 5, 1, p. 1-8, 1964.

SIMONDON, G. Du mode d’existence des objets techinques. Paris: Aubier, 1989 [1958].

_____. L’individuation psychique et collective – à la lumière des notions de forme, information, potential et métastabilité. Paris : Editions Aubier, 1989.

_____. Imagination et invention, 1965-1966. Paris: La Transparence, 2008.

WIENER, N. Cybernetics: or control and communication in the animal and the machine. New York: The Technology Press, 1948.

_____. Cibernética e sociedade: o uso humano de seres humanos. Tradução J. P. Paes. São Paulo: Cultrix, 1968.

WINNER, L. Tecnología autónoma: la técnica incontrolada como objeto del pensamiento político. Barcelona: Gustavo Gili, 1979.

_____. Do artifacts have politics? In: _____. The whale and the reactor: a search for limits in an age of high technology. Chicago: University of Chicago Press, 1986. p. 19-39.

Cristiano Cordeiro Cruz – Departamento de Filosofia. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, Brasil. Bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), processo 2013 / 18757-0.  E-mail: cristianoccruz@yahoo.com.br

Acessar publicação original

[DR]

 

Filosofia da tecnologia: um convite – CUPANI (SS)

CUPANI, Alberto. Filosofia da tecnologia: um convite. Florianópolis: Editora da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), 2011. Resenha de: CRUZ, Cristiano Cordeiro. Desbravando a tecnologia. Scientiæ Studia, São Paulo, v.12, n. 3, p. 601-5, 2014.

David Wallace, romancista norte-americano, inicia um de seus textos com uma passagem provocativa: “dois peixinhos estão nadando juntos e cruzam com um peixe mais velho, nadando em sentido contrário. Ele os cumprimenta e diz:

– Bom dia, meninos. Como está a água?

Os dois peixinhos nadam mais um pouco, até que um deles olha para o outro e pergunta:

– Água? Que diabo é isso?” (Wallace, 2008, p. 105).

Nesse texto, que é um discurso de paraninfo para uma turma de graduandos, Wallace discorre sobre questões existenciais profundas, tão urgentes e presentes ao ser humano, na sua busca por construção de sentido, quanto usualmente por nós negligenciadas.

Não é exatamente desse tipo de questões que Cupani se ocupará em sua obra Filosofia da tecnologia: um convite. Contudo, assim como a água da história de Wallace, a tecnologia, de tão presente em nossas vidas, costuma apresentar-se como se transparente. Com efeito, desde as máquinas que facilitam o nosso dia-a-dia, até as técnicas que tornam a cura de doenças mais eficaz, a tecnologia está por toda parte. Que diabos, no entanto, é de fato a tecnologia? Ela é passível de ser socialmente controlada ou se desenvolve de maneira automática e autônoma? Ela é neutra, estando imune a valores sociais, ou, ao contrário, incorpora-os, alterando-se em função dos valores específicos que a moldam? Se ela incorpora valores, quais questões éticas são ou poderiam ser pertinentemente levantadas com relação ao processo de seu desenvolvimento? Ela impacta a vida humana individual e coletiva? Que nível de controle político, democrático, é lícito requerer em contrapartida? Que tipo de conhecimento fundamenta a atividade técnica?

Dessa forma, no sentido de oferecer ao leitor uma primeira aproximação filosófica ao tema, com algumas alternativas de respostas às questões anteriores, Cupani propõe-nos uma jornada que parte da percepção da complexidade disso que se chama tecnologia, até chegar à análise do que se convencionou chamar “determinismo” ou “autonomia” tecnológica. É assim que, no primeiro capítulo, a tecnologia será descortinada em sua multiplicidade e ambivalência, como um modo de fazer coisas, associado a um saber, diante do qual não apenas cabem, mas urgem serem feitas indagações de ordem ontológica, epistemológica, axiológica e ético-política. Tais questões não são abordadas separadamente nos capítulos que se seguem, à exceção talvez dos três últimos, mas apresentadas de modo transversal ao longo da maior parte do texto, valendo-se, para isso, também de contribuições vindas da história e da sociologia.

Ao iniciar sua análise sobre o fenômeno tecnológico, Cupani apresenta, no segundo capítulo, os estudos clássicos da área, de autores que escreveram antes da criação do ramo de filosofia da tecnologia, que se consolida apenas nos anos 1970. Os três primeiros – Ortega y Gasset, Heidegger e Gehlen – abordaram o fenômeno tecnológico a partir de suas compreensões de mundo mais amplas, buscando apontar, a partir delas, tanto a causa da gênese da tecnologia e sua transformação ao longo do tempo (mormente a transformação trazida com a modernidade), quanto seus impactos benéficos e maléficos sobre o ser humano. O quarto é o francês Gilbert Simondon, que, além de filósofo, também era engenheiro. Sua análise é considerada pioneira na área, esmiuçando a tecnologia a partir de dentro, ou seja, a partir do olhar do engenheiro. Sua compreensão é que desconhecemos a tecnologia, razão que nos leva a julgá-la de maneira inadequada, demonstrando, com isso, mais a tacanhez de nossa cultura do que propriamente consequências de fato negativas do desenvolvimento tecnológico. A tecnicidade, ou seja, a essência da tecnologia, deve ser concebida, segundo o autor, como um modo de relação do homem com o mundo (ao lado do estético, do religioso etc.), que caracteriza a maneira com que fomos aprendendo a lidar com a natureza. Assim, para Simondon, faltar-nos-ia uma educação tecnológica desde a infância que nos ajudasse a nos colocarmos no mundo no mesmo nível que as máquinas, elevando-nos em nossa cultura, segundo as possibilidades oferecidas por elas.

No terceiro capítulo, Cupani apresentará a visão do historiador Lewis Mumford sobre a tecnologia. Este, ao analisar transformações significativas por que passa a Europa no final da Idade Média, compreende a máquina moderna como a conjugação de duas importantes disposições humanas da época: a vontade de dominar o ambiente, aliada à vontade de poder. Dessa associação adviria a ruptura com o passado cultural, a crescente exploração do trabalhador e a poluição ambiental, a que se somarão, posteriormente, a forte colaboração da ciência e o surgimento da figura característica da sociedade industrial, o técnico especializado. Nosso desafio atual seria, então, o de superarmos o mito da máquina, assumindo-nos não como homo faber, mas como homo sapiens, seres que, em sendo capazes de pensar, são capazes de conceber e utilizar ferramentas, além de serem capazes de diversas outras coisas. Desse modo, ao imperativo clássico da técnica – o de que há uma única velocidade eficiente: mais rápido; um único destino atraente: mais longe; uma única medida desejável: maior; uma única meta quantitativa racional: mais – precisamos responder com o desenvolvimento das outras incalculáveis potencialidades de autoatualização e autotranscendência que temos em nós.

Daí em diante, Cupani apresentará as análises e reflexões de diversos filósofos da tecnologia. É assim que o quarto capítulo traz a análise conceitual de Mario Bunge; o quinto mostra a interpretação do significado da experiência humana condicionada pela tecnologia segundo Don Ihde, Hubert Dreyfus e Albert Borgmann (estudos de inspiração fenomenológica e hermenêutica); e o sexto expõe a relação entre tecnologia e o exercício do poder de acordo com Langdon Winner e Andrew Feenberg. Em síntese, Bunge propõe uma tecnologia axiologicamente não neutra, calcada em conhecimento técnico e científico irredutíveis um ao outro, e desenvolvida por tecnólogos eticamente imputáveis pelas consequências do uso dos artefatos por eles projetados. Os fenomenólogos, em seu esforço por descrever pormenorizadamente todos os matizes do fenômeno tecnológico, sublinham aspectos importantes usualmente não percebidos de nosso ser-tecnologicamente-no-mundo, alertando-nos, dentre outras coisas, com respeito à tendência desumanizadora de nos “tecnologizarmos”. Por fim, Winner e Feenberg, ainda que por caminhos e análises distintas, sustentam que a tecnologia também é vetor de valores sociais, de sorte que o controle político e democrático sobre o seu desenvolvimento é não apenas possível, dentro de certos limites, como altamente desejável.

Nos três últimos capítulos, ao expor o entendimento de distintos autores, Cupani aprofunda alguns aspectos epistemológicos (capítulo 7), sociais, políticos e existenciais (capítulo 8), e ontológicos (capítulo 9) da tecnologia, em boa medida já tocados nos capítulos anteriores. Insiste então na existência de um conhecimento técnico irredutível ao científico, ainda que possa existir significativo grau de interdependência entre eles, sendo ambos necessários para o desenvolvimento tecnológico. Além disso, malgrado diversos indícios do forte impacto da tecnologia em nossa vida, que afeta nossa forma de experimentar e significar a existência individual e coletiva, o juízo positivo ou negativo disso está em boa medida relacionado às ideologias às quais se vincula aquele que o emite. O cuidado na análise crítica da tecnologia deve ser, então, o de buscarmos sempre despirmo-nos de nossas preconcepções, de modo a, por exemplo, não tomarmos como certo, geral ou universal – e, por isso, potencialmente terrível –, aquilo que é de origem múltipla, local ou circunstancial. Por fim, no que tange ao argumento da impossibilidade de se controlar o desenvolvimento técnico, a partir do momento em que ele é posto em movimento, tal coisa parece dar-se menos por um poder irresistível e inato da tecnologia, do que por uma progressiva adesão muitas vezes inconsciente de nossos semelhantes ao “projeto tecnológico”. Assim, ainda que pareçam existir aspectos essencialmente inalteráveis na tecnologia, não está dado nela que sejamos obrigados a prestar-lhe culto e/ou a nos adequarmos a todos os seus propósitos (supostamente) despóticos.

Na leitura de Filosofia da tecnologia: um convite, é importante que tenhamos em mente uma advertência expressa de Cupani com relação ao que ele pretendeu com a obra: ser uma iniciação para quem não conhece o tema e não domina outras línguas (de modo que não teria condições de recorrer a outros bons livros introdutórios e à boa parte dos autores por ele aqui tratados, que não contam ainda com traduções para o português). Nesse sentido, o autor realiza bastante bem sua tarefa, apresentando diversos dos aspectos essenciais relacionados à reflexão filosófica sobre a tecnologia de modo usualmente claro, sucinto e provocativo. Trata-se, entretanto, de um livro de filosofia. Dessa forma, o leitor deverá estar ciente de que, para compreendê-lo, não poderá proceder a uma leitura meramente mecânica: ele precisará estar disposto a refletir.

A característica marcante da obra é que ela oferece um amplo panorama sobre o tema, uma coletânea de pontos de vista nem sempre contraditórios, mas muitas vezes potencialmente complementares. A ideia, também explicitamente expressa, do autor não é fechar uma definição e uma compreensão canônicas acerca da tecnologia, até porque tal coisa continua em ampla disputa. Sua intenção é suscitar em nós a inquietação que nos fará buscar aprofundarmos nossa compreensão e nossa análise sobre o assunto. Cupani logra, em diversas partes de seu livro, um feito notável: possibilitar ao leitor não apenas enxergar e ser capaz de analisar de forma crítica a “água” tecnológica em que habita, mas, tão importante quanto isso, questionar suas próprias preconcepções. Com efeito, ainda que apresente o tema majoritariamente a partir da ótica de pensadores críticos, sua abordagem se dá segundo uma perspectiva “desarmada”, que possibilita ou fundamenta um diálogo, muito mais do que mune fundamentalistas de dogmas, verdades ou intransigências. Em um tempo no qual nossa dificuldade de dialogar com o diferente, de escutá-lo, torna-se mais evidente ou mais potencializada pelas redes sociais, tal obra cumpre um papel bastante interessante, mostrando-nos não apenas a característica multifacetada do fenômeno técnico, como as possibilidades de enriquecimento de nossa compreensão dele a partir de uma abordagem plural, que conjuga argumentos tradicionalmente atribuídos às esquerdas e às direitas ideológicas, em um todo menos panfletário do que aquilo que usualmente encontramos. Exatamente por isso, mais afeito à honestidade intelectual.

Seu texto, então, ajuda-nos a compreender melhor o fenômeno tecnológico, abandonando as certezas próprias daqueles que desconhecem; a percebermos possibilidades de afetá-lo, de incidirmos sobre ele, sem demonizá-lo; e a buscarmos aprofundarmo-nos na compreensão da tecnologia, superando preconceitos, naturalizações e fatalismos. Dessa forma, o livro fornece mais consciência acerca da realidade técnica em que estamos inseridos. Ao fazer isso, se não nos lança diretamente nos mesmos tipos de questões existenciais apresentadas por Wallace, nem por isso ajudanos menos na tarefa de construirmos, individual e coletivamente, uma vida que valha realmente a pena ser vivida, sem aprisionamentos ou apequenamentos contingentes, vendidos ou assumidos como inevitáveis ou insuperáveis. Talvez, como afirma Feenberg (2002), a tecnologia não seja destino, mas construção, opção. E se é de fato assim, faz-se mister, antes de tudo, aprofundar-se no assunto.

Referências

CUPANI, A. Filosofia da tecnologia: um convite. Florianópolis: Editora da Universidade Federal de Santa Catarina, 2011.

FEENBERG, A. Transforming technology: a critical theory revisited. New York: Oxford University Press, 2002.

WALLACE, D. F. A liberdade de ver os outros. Revista Piauí, 25, p. 105, 2008. Disponível em: <http:// revistapiaui.estadao.com.br/edicao-25/despedida/a-liberdade-de-ver-os-outros>. Acesso em: 04 fev. 2014

Cristiano Cordeiro Cruz – Programa de Pós-Graduação em Filosofia. Pesquisa de doutorado, financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP). Processo 2013/18757-0. Departamento de Filosofia, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. Universidade de São Paulo, Brasil. E-mail: cristianoccruz@yahoo.com.br

Acessar publicação original

[DR]