Crônica/memória e história: formação historiográfica dos sertões da Bahia | Erivaldo Fagundes Neves

O livro Crônica, memória e história: formação historiográfica dos sertões da Bahia1 do professor da Universidade Estadual de Feira de Santana Erivaldo Fagundes Neves, a principal referência para pesquisa em história dos sertões da Bahia, é um livro esperado para aqueles que acompanham a produção do autor. Erivaldo Neves já havia abordado o tema de teoria e metodologia da história regional2, que complementava e desenvolvia argumentos apresentados em texto sobre corografia e historia regional3. Crônica, memória e história abrange estes estudos e contempla as incursões do autor aos temas da escravidão4, ocupação territorial5, caminhos coloniais6, história regional e local7, cultura8, sertão9, história da família, pecuária10 e historiografia11 desde o período colonial, passando pelo império e república, até a produção contemporânea. Além de um exaustivo levantamento bibliográfico, o trabalho é um comentário desenvolvido para o longo percurso de textos históricos apresentados.

A obra tem um prefácio do professor Paulo Santos Silva da UNEB, uma introdução, considerações finais e se divide em três partes, i) leituras sobre a colonização dos sertões baianos, ii) as crônicas, memórias e histórias sobre os mesmos no império e primeira república e iii) as perspectivas historiográficas posteriores a 1930, todas subdivididas em seções. Crônica, memória e história se justificaria por várias razões, mas julgamos duas de vulto: a tipologia apresentada para um extensivo levantamento de textos sobre os sertões baianos que abrange cinco séculos e a história do pensamento histórico sobre um tema que se desenvolve desde crônicas e memórias até uma historiografia técnica e disciplinar produzida em programas de pós-graduação em história de universidades. A polissemia do livro revela a paciência com a qual o mesmo foi gestado: o livro é resultado de um projeto de 25 anos que se desdobrou em outros trabalhos do autor, cuja obra é referência para uma geração de historiadores dos sertões baianos que lhe seguiram e que retornaram ao livro como exemplares de novas perspectivas historiográficas. Leia Mais

Crónicas de la marginalidad. Bandidos, huachos y gañanes en la literatura chilena del siglo XX | Gloria Favi Cortés

Crónicas de la Marginalidad (bandidos, huachos y gañanes en la literatura chilena del siglo XX) revisa crítica y contextualmente algunos cuentos, poemas, cartas y crónicas del siglo XX para establecer su decisiva importancia en la construcción de identidades marginalizadas por la institucionalidad chilena en los inicios del siglo XX.

El texto está constituido por una serie de ensayos divididos en tres capítulos. El Capítulo I, ”Bandidos Chilenos”, incluye una lectura semiótica de textos periodísticos que, entre los años 1960-1963, reconstruyeron la vida y muerte de José del Carmen Valenzuela Toro, alias “El Chacal de Nahueltoro”; luego, la vida de tres parias sociales referida por la Revista Sucesos (1902) construyen el contrapunto con la ficción que despliegan los cuentos de Oscar Castro y Mariano Latorre para representar a dos bandidos rurales: el Negro Chávez y el Picoteado. Leia Mais

A construção da identidade nacional nas crônicas da Revista do Brasil – CAMPOS (B-RED)

CAMPOS, Maria Inês Batista. A construção da identidade nacional nas crônicas da Revista do Brasil. São Paulo: Olho d’Água/FAPESP, 2010, 274 p. Resenha de: TREVISAN, Ana Lúcia. A construção da identidade nacional nas crônicas da Revista do Brasil. Bakhtiniana – Revista de Estudos do Discurso v.7 n.1 São Paulo Jan./June 2012.

A obra de Maria Inês Batista Campos, A construção da identidade nacional nas crônicas da Revista do Brasil, propõe um estudo crítico da formulação discursiva implícita às crônicas veiculadas na Revista do Brasil no período de 1922 a 1925. A pesquisa é fruto da tese de doutorado defendida pela autora na PUC-SP e, transformada em livro, consolida-se em um texto de leitura prazerosa e envolvente, que instiga a reflexão sobre a efervescência das vozes representativas da cultura nacional no início do século XX. Além disso, constrói uma sólida análise de um gênero híbrido e inesgotável: a crônica.

Utilizando como diretriz analítica os estudos do discurso conceituados por M. Bakhtin e seu Círculo, a autora tece um panorama esclarecedor sobre o contexto cultural e histórico da Revista do Brasil. Acompanhando a trajetória editorial da revista, que foi dirigida por Monteiro Lobato de 1918 a 1925, e por Afrânio Peixoto, Paulo Prado e Sérgio Milliet em outros períodos, é possível identificar os caminhos e descaminhos trilhados por escritores e intelectuais que traduziram as muitas faces das identidades nacionais. O estudo dos meandros do tempo e do espaço discursivo anuncia de maneira gradativa a amplitude reflexiva que será posteriormente desenvolvida na análise das 17 crônicas – selecionadas como parte constitutiva do cenário plurívoco da cultura brasileira. Cabe destacar que a forma encontrada para apresentar o corpus, assim como os critérios da seleção cuidadosa, remete à construção dos sentidos dialógicos do discurso, pois, no contexto do mundo da linguagem, vão sendo desvendados os sujeitos históricos por meio de suas citações, marcas de erudição, alusões e ironias, enfim, pela palavra que comunga com as muitas experiências individuais, compondo um quadro discursivo plural da identidade, inserido em um período histórico instigante.

As opiniões políticas e engajamentos culturais dos principais editores da Revista do Brasil são também discutidos no que se refere ao conceito de nacionalismo, que é explorado como diretriz da Revista do Brasil e entendido na sua abrangência significativa, marcada pelos aspectos sociológicos, antropológicos, linguísticos e literários. O projeto nacionalista, personificado na complexidade ideológica dos editores da Revista do Brasil, ganha uma dimensão aprofundada a partir do conceito de dialogismo, uma vez que as muitas vozes referidas e exauridas no interior das crônicas mantêm uma relação ora harmoniosa, ora conflitante com a voz que se distingue como égide dos projetos editoriais incorporados na revista. A análise das crônicas em consonância com a percepção dos muitos nacionalismos brasileiros confere amplitude à obra de Maria Inês Batista Campos. Os leitores encontram a riqueza de um trabalho que entende e demonstra a multiplicidade de tempos, espaços, humores e deslizes de sujeitos distanciados cronologicamente, mas que se tornam vivos em suas posições ideológicas, justamente pela sutileza reveladora da análise discursiva dos muitos interditos.

A comunhão entre as crônicas que compõem o corpus do estudo e o aparato teórico que o sustenta faz dessa obra uma referência valiosa para os estudiosos da cultura brasileira e das relações entre a História e as suas formas de manifestação discursiva. A crônica, entendida como um gênero ambivalente, potencialmente híbrido e plurissignificativo, é apresentada como espaço discursivo privilegiado, propício para o exercício analítico que possui a ideia do cronotopo como força centrípeta.

A obra constrói uma análise a partir da leitura do discurso veemente e perspicaz dos cronistas, que revelaram em seus textos recortes do debate sobre a identidade nacional. Na leitura contemporânea do passado, realizada pela autora, o tempo das crônicas estudadas se revitaliza, pois ressurge em diálogo com o olhar do século XXI. Nesse sentido, temas como identidade, nacionalismo, cultura letrada, universalismo são presente e passado, são motivos e consequências, são origem e também arcaísmos. Paulatinamente, o discurso acadêmico da autora também incorpora alguns dos sentidos mais intrínsecos a uma boa crônica de cultura ou crônica de arte. Afinal, como mergulhar em um gênero e não se contaminar de seus contornos e acentos? Os leitores ganham com essa inserção em terreno híbrido, realizam um mergulho nos diferentes tempos atualizados pelas análises e seguem as trilhas de um Cronos moderno que permite a intersecção das pertinentes luzes teóricas com as tonalidades difusas de uma época inclinada a coroar grandes verdades.

No debate sobre a identidade feito nas crônicas da Revista do Brasil, seja nas discussões sobre a cultura ou sobre o nacionalismo, nada melhor que o estudo do discurso para desestabilizar verdades e reler os diálogos implícitos além dos travessões ou das aspas que abrem as citações em língua estrangeira. A obra percorre o tortuoso debate cultural do começo do século XX pelas tangentes, pelas entrelinhas, revivendo as vozes que se ocultam nos parênteses e nas referências indiretas. O estudo do discurso contempla as muitas imagens que marcam o “tempo” da crônica e que são uma porta de entrada para avaliar a ambivalência do passado, surgido nas descrições aparentemente despretensiosas das cidades, das exposições de arte, das notícias e impressões sobre países estrangeiros. A reflexão disseminada nas crônicas está ancorada no intervalo de quase um século, o cotidiano está datado, porém, quando a análise explora a interrelação cultural, o diálogo com o presente é profícuo. Ao perceber a dinâmica das vozes nacionais e estrangeiras que permeiam os textos, entende-se que existe um elo permanente no debate sobre a formação da identidade brasileira. Trata-se do diálogo entre o particular e o universal, tema candente no começo do século que pode ser revisitado nos debates da atualidade, ainda que reapareça com novas roupagens ou, até mesmo, seja silenciado.

Na leitura da cultura brasileira, a autora utiliza o olhar estrangeiro para dividir e somar impressões sobre o nacional. Assim, ao analisar as crônicas escritas por João Ribeiro, Sergio Milliet e Rodrigo Andrade, destaca o diálogo com a cultura francesa. Por outro lado, a presença brasileira se concretiza na esfera dos cronistas Martim Francisco, Gastão Cruls, Câmara Cascudo, Frederico Villar e Orlando Machado. Nessa subdivisão dos olhares em contraponto, há um lugar especial reservado ao estudo das crônicas de Mario de Andrade, que remete a um anexo com seis crônicas do escritor paulista. No capítulo que realiza a detalhada análise do corpus, os leitores experimentam o contato direto com as particularidades e minúcias dos textos; ao ler as crônicas pelo olhar crítico da autora, podem desvendar os sentidos das paródias, das imitações, da mistura de gêneros utilizados pelos cronistas e conseguem, assim, perceber como a memória nacional se constrói pelos ecos das palavras. A memória resgatada pela palavra aprofunda a ideia de que, no ato de transitar pelos sentidos da linguagem, recupera-se a possibilidade de entendimento do genuinamente humano.

O panorama estético da época, o perfil intelectual dos cronistas, os muitos projetos de nacionalismo, enfim, o mergulho no caudal das informações que podem ser apreensíveis por meio da análise do discurso, compõem os temas dos capítulos articulados de forma harmônica, que fazem do estudo crítico de Maria Inês Batista Campos uma bela oportunidade de ingresso na ordem da história e da cultura brasileira por meio de um texto envolvente e lúcido.

Ana Lúcia Trevisan – Professora da Universidade Presbiteriana Mackenzie – UPM, São Paulo, São Paulo, Brasil; ana.trevisan@mackenzie.com.br.

Crônica, memória e história: formação historiográfica dos sertões da Bahia – NEVES (RHR)

NEVES, Erivaldo Fagundes. Crônica, memória e história: formação historiográfica dos sertões da Bahia. Feira de Santana: UEFS Editora, 2016. Resenha de: MARTINS, Flavio Dantas. Revista de História Regional, v.24, n.1, p.213-221, 2019.

O livro Crônica, memória e história: formação historiográfica dos sertões da Bahia1, do professor da Universidade Estadual de Feira de Santana Erivaldo Fagundes Neves, a principal referência para pesquisa em história dos sertões da Bahia, é um livro esperado para aqueles que acompanham a produção do autor. Erivaldo Neves já havia abordado o tema de teoria e metodologia da história regional2, que complementava e desenvolvia argumentos apresentados em texto sobre corografia e historia regional.3 Crônica, memória e história abrange estes estudos e contempla as incursões do autor aos temas da escravidão4, história regional e local7 desde o período colonial, passando pelo império e república, até a produção contemporânea. Além de um exaustivo levantamento bibliográfico, o trabalho é um comentário desenvolvido para o longo percurso de textos históricos apresentados.

A obra tem um prefácio do professor Paulo Santos Silva da UNEB, uma introdução, considerações finais e se divide em três partes, i) leituras sobre a colonização dos sertões baianos, ii) as crônicas, memórias e histórias sobre os mesmos no império e primeira república e iii) as perspectivas historiográficas posteriores a 1930, todas subdivididas em seções. Crônica, memória e história se justificaria por várias razões, mas julgamos duas de vulto: a tipologia apresentada para um extensivo levantamento de textos sobre os sertões baianos que abrange cinco séculos e a história do pensamento histórico sobre um tema que se desenvolve desde crônicas e memórias até uma historiografia técnica e disciplinar produzida em programas de pós-graduação em história de universidades. A polissemia do livro revela a paciência com a qual o mesmo foi gestado: o livro é resultado de um projeto de 25 anos que se desdobrou em outros trabalhos do autor, cuja obra é referência para uma geração de historiadores dos sertões baianos que lhe seguiram e que retornaram ao livro como exemplares de novas perspectivas historiográficas.

Vamos às partes. A primeira delas recua para crônicas, registros históricos e memórias coloniais sobre os sertões baianos. Aqui a produção textual que versa sobre o tema se confunde com a escrita da história no período colonial e são comentados Gabriel Soares de Souza, frei Martinho de Nantes, André Antonio Antonil, Miguel Pereira da Costa, Joaquim Quaresma Delgado, Sebastião da Rocha Pita, Luiz dos Santos Vilhena, entre outros. Além da exegese dos trabalhos destes autores no tocante ao que escreveram sobre os sertões baianos, Erivaldo Neves embasa seus comentários na historiografia contemporânea que investiga temas correlatos.

A segunda seção aborda os trabalhos escritos no Império sobre a colonização, se detém especialmente em estudo das memórias históricas e políticas da Província da Bahia de Ignácio Accioli de Cerqueira da Silva. Para Erivaldo Neves, faltam obras abrangentes com a pretensão do trabalho de Ignácio Accioli e a já datada e importante reedição comentada de Braz do Amaral demandaria uma nova edição crítica desse texto fundamental para a história da Bahia e dos seus sertões, bem como de sua importância como empreendimento historiográfico.

A seguir, Neves trata das obras históricas sobre a colonização dos sertões produzidas na primeira república. É uma seção que inicia com a análise da obra de João Capistrano de Abreu, e Basílio de Magalhães. O autor destaca a importância do discurso histórico do bandeirante teve na historiografia sobre os sertões baianos devido a centralidade paulista na primeira república. O historiador Pedro Calmon é abordado como alguém que dialogará com o pensamento histórico paulista, sobretudo a partir dos anos 1920, no tema do bandeirantismo, entre outros de sua vasta obra. Neves também analisa a obra de Urbino Viana. É desse período, destaca o autor, que começa uma repetição de “informações sem origem conhecida” retiradas das obras de Francisco Borges de Barros12.

Na seção posterior Erivaldo Neves apresenta as leituras históricas sobre a colonização entre as décadas de 1930 e 1960, levando em conta o contexto de produção, a recepção que fazem dos trabalhos que lhes precederam, sua inovação, sobretudo conceitual e metodológica e dialogando com a bibliografia contemporânea sobre o tema. Nesse período surge um gênero novo de escrita, chamada pelo autor de memória histórico-descritiva de municípios baianos. São analisadas mais detidamente as obras de Pedro Celestino da Silva sobre Caetité, Lycurgo de Castro Santos Filho sobre a fazenda Campo Seco em Rio de Contas. Nesse período, em decorrência da profusão, Erivaldo Neves analisa com mais atenção obras que representaram inovação teórica e metodológica, caso do estudo de Santos Filho que é uma história do cotidiano de uma fazenda no sertão riquíssima em dados empíricos graças à excepcionalidade dos registros particulares que teve acesso. É desse período em que pautas como a questão Nordeste e a questão hidráulica de aproveitamento do rio São Francisco ganham importância, e o pensamento histórico regional floresce.

São testemunhos dessa época de busca por definições regionais, embora sejam produções às vezes demasiado frágeis em termos metodológicos e empíricos, alguns estudos apresentados no Congresso de História da Bahia13 ou dos trechos sobre história dos municípios nos verbetes da Enciclopédia dos Municípios Brasileiros do IBGE14

No última seção da primeira parte, Erivaldo Neves trata das elaborações historiográficas sobre a colonização posteriores a 1970. Nesse período marcado pela profissionalização da historiografia, pelo aumento quantitativo da produção, pelas modificações dos enfoques temáticos que deixam de lado a prioridade sobre a nação, a região e o município, surgem novas abordagens teóricas e metodológicas e uma profícua historiografia sobre os sertões baianos do período colonial, embora ainda relativamente limitada se comparados com outros períodos. Nesse capítulo, Erivaldo Neves resenha uma profusão de dissertações e teses que revelam os enfoque plurais que as inovações da pesquisa historiográfica permitiram no tratamento do passado colonial dos sertões.

A segunda parte do livro do livro trata da produção de pensamento histórico sobre o império e a primeira república. Erivaldo Neves inicia com uma seção sobre as crônicas e memórias históricas produzidas durante o período. Aborda autores como Tranquilino Leovigildo Torres, Gonçalo de Athayde Pereira, João Paulo da Silva Carneiro, Francisco Borges de Barros e mesmo a inusitada memória de Anísio Teixeira sobre o sertão. A análise de Francisco Borges de Barros é importante porque Erivaldo Neves identifique nele a fonte para vários autores posteriores que tomaram suas metáforas como fatos – por exemplo, Antonio Guedes de Brito ter sido o regente do São Francisco – ou mesmo reproduzirem suas afirmações sem embasamento documental. O autor desenvolve uma discussão sobre os desenvolvimentos teóricos e metodológicos da ciência histórica no império e na primeira república, o desenvolvimento institucional e as influências dos autores que trabalharam nesse período sobre o sertão baiano, destacando o IHGB e o IGHB.

Na seção seguinte, Neves trabalha com as crônicas e memórias produzidas após 1930 sobre os sertões baianos do período imperial e da primeira república. Ele destaca a influência da retórica euclidiana nas construções narrativas. Aí são analisados Wilson Lins, Marieta Lobão Gumes,

Flávio Neves, Helena Lima Santos, Mozart Tanajura e Pedro Pereira e seus escritos sobre o médio São Francisco, Caetité, Brumado e Livramento. Depois, Neves trata da historiografia posterior a 1930 e destaca a importância inicial, de Caio Prado Júnior. São analisados os trabalhos de Walfrido de Moraes, Américo Chagas, Fernando Machado Leal, todos sobre a Chapada Diamantina, e destaca o estudo de Eul-Soo Pang sobre o coronelismo baiano15. A seguir, uma profusão de artigos, teses e dissertações é comentada pelo autor – a seção tem o total de 76 páginas – agrupando-as em textos sobre coronelismo e poder local, economia, ocupação, desenvolvimento de comunidades rurais e municípios, conflitos sociais, entre outros temas. A novidade é o desenvolvimento de programas de pós-graduação em história, inicialmente em Salvador, mas não só já que muitos trabalhos foram desenvolvidos em outras universidades, e posteriormente nos programas de pós-graduação nas universidades estaduais sediadas em Feira de Santana e Santo Antônio de Jesus, além de cursos universitários de história em Vitória da Conquista, Alagoinhas, Itabuna, Conceição do Coité, Jacobina, Eunapólis, alguns deles com mestrados interdisciplinares que abrangem pesquisa histórica ou mestrado em história. Neves destaca a importância da interiorização do ensino universitário para a pesquisa histórica.

A terceira parte do livro trata das perspectivas historiográficas posteriores a 1930 sobre os sertões da Bahia. A primeira seção aborda as crônicas, memórias históricas sobre o período posterior a 1930 e inicia com algumas páginas sobre da questão do rio São Francisco a partir das memórias de Manoel Novaes, recuperando outros estudos sobre o rio desde o século XIX – como Orvile Derby, Teodoro Sampaio – passando pelos contemporâneos de Novaes como Geraldo Rocha e Wilson Lins. Em outra seção, Neves analisa os estudos técnicos sobre o período posterior a 1930 com destaque para pesquisadores oriundos dos Estados Unidos, como Rollie Poppino, Charles Wagley, Donald Pierson em colaboração com pesquisadores brasileiros como Thales de Azevedo, Eduardo Galvão e Luiz Antônio da Costa Pinto. Também são abordados estudos técnicos da Comissão de Planejamento Econômico da Bahia e pesquisas acadêmicas sobre o período.

As duas últimas seções abordam os fundamentos historiográficos entre o período 1930 e 1970 e as perspectivas historiográficas desde 1970, destacando a profissionalização da pesquisa histórica, o desenvolvimento de programas de pós-graduação e a diversificação e sofisticação conceitual e metodológica ocorridas no campo. Mais uma vez, Neves analisa livros, artigos, dissertações, teses e outros tipos de trabalho, especialmente as crônicas e memórias que não cessam de aparecer, mas se desenvolvem em paralelo à pesquisa acadêmica, sobre temas diversos como independência, escravidão, ocupação, modernização, família escrava, negros no pós-abolição, redes familiares, religião, cotidiano, vida material, relações de gênero, poder local, secas, mineração, identidades nos sertões baianos, entre outros temas.

Percebemos algumas questões importantes que podem ser levantadas pelo livro de Erivaldo Neves. Primeiro, a problemática do sertão, investigada não só pelos historiadores, mas também pela literatura e antropologia. Percebemos no exaustivo levantamento do autor, considerado “introdutório” pelo mesmo16 a crescente mudança que há entre o sertão pelo olhar estrangeiro, especialmente na colonização e no império, quando os produtores de textos são estranhos aos espaços objeto do discurso, e o sertão que fala de si, sobretudo no século XX, com destaque para a crescente lavra feita por historiadores oriundos dos sertões, caso do próprio Erivaldo Neves. Embora seja um dos temas fundamentais do pensamento nacional e há muita gente que ainda o aborda numa perspectiva exógena, inclusive autores que nasceram nas áreas consideradas sertanejas, a pesquisa de Erivaldo Neves parece indicar uma transição de uma identidade atribuída para uma identidade reivindicada. Quando a identificação de sertão e sertanejo é exógena, os sertanejos são simplórios, violentos, incivilizados – incivilizáveis para alguns autores -, exóticos, folclorizados e romantizados. Com a proliferação dessa identidade reivindicada, a fala de dentro do sertão aos poucos vai abandonando os estereótipos herdados dessa literatura anterior, sobretudo os euclidianos, e vai ganhando complexidade, sofisticação, contradição e conflito. O final da linha é o desaparecimento do sertão e a multiplicação dos sertões cada vez menos sertanejos e mais barranqueiros, catingueiros, brejeiros, alto-sertanejos, geraizeiros, quilombolas, serranos, chapadenses entre outros. O trabalho particular, sobre o pensamento histórico acerca dos sertões baianos, permite uma formulação de uma hipótese geral, a transição entre a identidade atribuída ao outro pelo olhar estrangeiro para uma identidade reivindicada – que reconstrói-se numa diversidade de formas a partir das atualizações dos conflitos – pelos olhares de dentro do sertão.

Essa transição ocorre, na hipótese aqui levantada a partir da análise de Crônica, memória e história de Erivaldo Fagundes Neves, pela apropriação por parte dos sujeitos internos aos sertões, inicialmente das classes médias e abastadas, posteriormente das classes subalternas, daquilo que Johann Michel chama de tecnologias discursivas de si17.

A partir de uma síntese das contribuições de Michel Foucault e Paul Ricoeur, Michel define a tecnologia discursiva de si como a capacidade de formulação de uma identidade narrativa individual ou coletiva a partir de uma configuração poética que inova ao mesmo tempo em que se utiliza do acervo cultural disponível para o autor enquanto leitor e agente do mundo. Daí a importância decrescente de Euclides da Cunha para as identidades narrativas reivindicadas que em algum momento, em alguns textos e autores, reproduzem estereótipos, mas devido a influências externas, terminam por criticá-los e expurgá-los das definições de sertão. Erivaldo Neves destaca que as primeiras elaborações do século XX eram influenciadas pela retórica euclidiana, mas ela perde relevo à medida em que as novas produções, sobretudo as acadêmica, se ancoram em conceitos, teorias e metodologias produzidas na disciplina da história e em outros campos do conhecimento, o que contribui para a complexificação e sofisticação dos sertões como objeto de estudo histórico. Com isso não pretendemos que a produção historiográfica seja apenas entendida como uma expressão identitária. Ao contrário, é a história que é demandada pela identidade narrativa de modo que aquela lhe fundamente, isso ocorre tanto no sentido de demandar um modo de escrita, quanto na própria interpretação realizada na leitura da obra. Quando poucos podiam escrever e dispunham de poder de representar os outros que não podiam ser representados, aí tínhamos uma identidade atribuída no sentido de estabelecimento de características homogêneas a grande grupo humano. Com o desenvolvimentismo da historiografia e com a democratização da escrita, as novas produções historiográficas implodiram a identidade do sertão e do sertanejo. No lugar do idêntico, estabeleceram o diverso e substituíram o local pelo universal, o singular pela pluralidade. Ao mesmo tempo, negar a existência de vínculos entre essa produção historiográfica interna dos sertões e processos de luta e resistência que passam pela reivindicação de identidades e busca por reconhecimento – não mais representadas por outros, mas capazes de se representar – seria ocultar uma das forças motrizes da demanda por novas histórias que são as transformações do presente que exigem novas narrativas.

É possível, graças à tipologia da pesquisa de Neves, perceber como mesmo os primeiros sertanejos que produzem isso que chamamos de identidade reivindicada, já no século XX, como Geraldo Rocha, Anísio Teixeira ou Wilson Lins, eram oriundos dos grupos dominantes daquilo que em outro estudo Neves chamou de “oligarquia fardada”18

Com o passar dos anos, acessam ao universo da produção escrita da história novos sujeitos, de classe média rural e urbana, mas também das classes populares. A sofisticação e diversificação da escrita sobre o passado dos sertões vem também da mudança dos sujeitos que a escrevem, agora destacando-se mulheres, mas também filhos e netos dos vaqueiros, remeiros, quilombolas, trabalhadores rurais e das pequenas cidades e vilas.

O livro também instiga uma reflexão conceitual importante. Neves define a crônica como “registro de fatos em ordem cronológica”, recurso muito utilizada no período colonial para a produção de conhecimentos sobre os sertões para fins políticos e administrativos da Coroa19

Ao contrário, memória já é um conceito mais problemático. Neves a define como “capacidade intelectual fundamentada em um conhecimento que permite sistematizar informações, através das quais se podem atualizar impressões ou saberes do passado, tanto individuais quanto coletivos”.20

A dificuldade reside em utilizar o termo que define uma faculdade mental para designar um gênero de escrita da história distinto da história ou historiografia – mais técnicas e institucionalizadas, digamos assim – e da crônica. O uso do termo memorialista, para designar um escritor que produz textos que não são nem história, nem crônica, dá uma definição mais precisa que a utilização de memória para o gênero, mas não exclui a problemática de encaixar textos individuais na tipologia. Para textos distanciados no tempo, podemos perceber principalmente um registro escrito do passado a partir de uma memória individual e/ou coletiva, sem esmero técnico ou metodológico com pretensões objetivas para além da verdade do testemunho, mas o mesmo não pode ser dito para textos produzidos mais recentemente. Com o surgimento de um campo disciplinar da história e um mercado editorial de nicho, muitos escritores que preocupam-se em registrar suas histórias municipais a partir de uma memória individual e coletiva terminam por ler de forma assistemática obras históricas e realizarem pesquisas documentais. Se esses textos não podem ser considerados historiografia devido à ausência do crivo dos pares – geralmente os memorialistas lançam obras com edição do autor – por meio de bancas, congressos ou avaliação em periódicos ou por pareceristas anônimos, não é possível dizer que estes alguns desses textos não obedecem a certa “operação historiográfica”, já que há pesquisa de documentos, confronto de testemunhos e uso de metodologias ou conceitos explicativos. Daí, talvez, tratarem-se de memórias híbridas com a história acadêmica, para além de testemunhos ou registros de memórias comunitárias compartilhadas – ainda que selecionadas às conveniências dos interesses e da visão de mundo do autor. Todavia, isso trata-se apenas de um levantamento de hipótese a partir da leitura do livro de Neves e não da identificação de uma lacuna. Apenas pesquisas mais pormenorizadas desse gênero poderiam confirmar essa afirmação. Outra dificuldade adicional é que o termo memória, utilizado para gênero de escrita, tem o problema de não distinguir um registro de testemunho pessoal ou familiar de uma pretensa história municipal.

Memória, crônica e história local de Erivaldo Fagundes Neves é uma contribuição relevante para a história da historiografia e obra que deve se tornar referência para pesquisadores dos mais diversos campos que tenham os sertões baianos – ou fronteiriços – como objeto de estudo.

Notas

2 NEVES, Erivaldo Fagundes. História regional e local: fragmentação e recomposição da história na crise da modernidade. Feira de Santana: UEFS; Salvador: Arcádia, 2002.

3 NEVES, Erivaldo Fagundes. Narrativa e interpretação: da corografia à história regional e local. In ARAÚJO, Delmar Alves de; NEVES, Erivaldo Fagundes; SENNA, Ronaldo de Salles. Bambúrrios e quimeras (olhares sobre Lençóis: narrativa de garimpos e interpretações da cultura. Feira de Santana: UEFS, 2002.

4 NEVES, Erivaldo Fagundes. Escravidão, pecuária e policultura: Alto Sertão da Bahia, século XIX. Feira de Santana: UEFS Editora, 2012 , ocupação territorial5 5 NEVES, Erivaldo Fagundes. Estrutura fundiária e dinâmica mercantil: Alto Sertão da Bahia, séculos XVIII e XIX. Salvador: EDUFBA, 2005. , caminhos coloniais6 6 NEVES, Erivaldo Fagundes; MIGUEL, Antonieta (org.). Caminhos do sertão: ocupação territorial, sistema viário e intercâmbios coloniais nos sertões da Bahia. Salvador: Arcádia, 2007.

7 NEVES, Erivaldo Fagundes. Uma comunidade sertaneja: da sesmaria ao minifúndio (um estudo de história regional e local). 2 ed. Revista e ampliada. Salvador: EDUFBA; Feira de Santana: UEFS Editora, 2008. , cultura8

8 NEVES, Erivaldo Fagundes. O Barroco: substrato cultural da colonização. Politeia: História e sociedade. Vitória da Conquista, 2007, vol. 7, n. 1. , sertão9

9 NEVES, Erivaldo Fagundes. Sertão recôndito, polissêmico e controvertido. KURRY, Lorelai Brilhante (org.). Sertões adentro: viagens nas caatingas séculos XVI a XIX. Rio de Janeiro: Andrea Jakobson, 2012 , história da família, pecuária10

10 NEVES, Erivaldo Fagundes (org.). Sertões da Bahia: formação social, desenvolvimento econômico, evolução política e diversidade cultural. Salvador: Arcádia, 2011. e historiografia11

11 NEVES, Erivaldo Fagundes. Perspectivas historiográficas baianas: esboço preliminar de elaborações recentes e tendências hodiernas de escrita da História da Bahia. In: OLIVEIRA, Ana Maria Carvalho dos Santos (org.); REIS, Isabel Cristina Ferreira dos (org.). História regional e local: discussões e práticas. Salvador: Quarteto, 2010.

12 NEVES, Crônica, memória e história, op. cit. p. 100.

13 IGHB – Instituto Geográfico e Histórico da Bahia. Anais do Primeiro Congresso de História da Bahia. Salvador: Tipografia Manú Editora Ltda, 1955. 5 volumes.

14 IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Enciclopédia dos Municípios Brasileiros. Rio de Janeiro: Edição do IBGE, 1957. 36 volumes.

15 NEVES, op. cit. p. 211.

16 NEVES, op. cit. p. 15,

17 MICHEL, Johann. Sociologie du soi – essais d’herméneutique appliquée. Rennes: Presses Universitaires de Rennes, 2012. p. 60.

18 NEVES, Erivaldo Fagundes. Uma comunidade sertaneja: da sesmaria ao minifúndio (um estudo de história regional e local). op. cit. .

19 NEVES, Crônica, memória e história, op. cit. p. 18 .

20 NEVES, Crônica, memória e história, op. cit. p. 16.

Flavio Dantas Martins – Doutorando em História pela Universidade Federal de Goiás. Professor do Centro das Humanidades da Universidade Federal do Oeste da Bahia. E-mail: flaviusdantas@gmail.com.

Los Indios Medievales de Fray Pedro de Aguado: construcción del idólatra y escritura de la historia en una crónica del siglo XVI | Jaime Humberto Borj Gómez

Por que os indígenas seriam “medievais”? Logo no título de sua obra Borja Gómez introduz a noção de que a descrição do indígena realizada por europeus correspondia a critérios retóricos e a conceitos medievais. Baseando-se na Recopilación Historial do franciscano Pedro de Aguado, o autor critica a “tradição histórica contemporânea” que consolidou o estereótipo da conquista da América inserida na alvorada dos tempos modernos. Para Borja Gómez a idade moderna é uma “convenção” que pertence à experiência medieval: não se pode esquecer o sentido de continuidade que a cultura ocidental tem desde o século XII.

Essa noção de continuidade é ressaltada na análise das crônicas. Os relatos a respeito do Novo Mundo são comparados com expedições de franciscanos e comerciantes à Ásia e África nos séculos XII e XIII: “existe una línea que une las crónicas de las cruzadas, las narraciones de los comerciantes en Ásia y las crónicas de la conquista de América” (p. 5). O fato de Aguado ser um franciscano (Ordem estreitamente ligada aos descobrimentos) indicaria um dos “lugares” de onde o cronista escreve: “por ser franciscano llevaba sobre sí una tradición de tres siglos que relacionaba espiritualidad, viaje y escritura, lo que sitúa la crónica en una línea de continuidad con las narraciones que hicieron los franciscanos que viajaron a Mongolia” (p. 7). Leia Mais