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Modelagem de conhecimento no ensino e na aprendizagem do pensamento crítico
Criticar | Imagem: Maringá Manchete
I. APRESENTAÇÃO
Nas aulas 09, 10, 11 e 12, refletimos sobre formas de identificação, valoração e estratégias de ensino em História da África, dos africanos, dos afro-brasileiros e dos povos indígenas.
Nessas aulas 13 e 14, encerramos o nosso curso discutindo subsídios para explorar o pensamento crítico e o pensamento criativo em sala de aula, junto aos estudantes do Ensino Médio (EM), empregando como conteúdo substantivo a matéria prescrita no Currículo de Sergipe (CS) para o ensino das Ciências Humanas Sociais e Aplicadas (CHSA).
Sejam bem-vindos, novamente!
II. OBJETIVOS
- Dar a conhecer definições de pensamento crítico.
- Justificar o ensino do pensamento crítico nas CHSA.
- Conhecer padrões do pensamento crítico.
- Exemplificar atividades básicas para o ensino do pensamento crítico.
III. ENCONTRANDO PISTAS
Giovana Maimoni (2021) | Imagem: GM
Qual o sentido empregado por Giovana Maimoni na declaração “As pessoas vão te criticar”?
Quantas vezes você usou a expressão nos últimos três dias? O que há de correto e incorreto nesse sentido empregado pela esteticista, quando aplicado a situações de ensino-aprendizagem na escolarização básica?
Escreva um texto argumentativo de até 10 linhas e partilhe conosco a sua reflexão.
IV. EMBARCANDO – CONTEÚDOS PRINCIPAIS
1. Pensamento crítico e Pensamento criativo no Currículo de Sergipe
As expressões “pensamento crítico” e “pensamento criativo”, bem como as variações nos mesmos campos semânticos (criticidade e criatividade) estão presentes em várias situações do CS.
Nos Cadernos e no Currículo, pensamento crítico é algo que se mobiliza, que se promove pelos professores e, ainda, que se aplica socialmente pelos alunos.
Contudo, no dispositivo local, não há definição para a expressão, razão pela qual ela aparece de modo repetitivo: pensamento crítico + argumentação e pensamento crítico + pensamento reflexivo. Ela também aparece como como um valor (junto à “autoestima”, ao “protagonismo” e à “autonomia”) e como uma habilidade, predominantemente, associada à “criatividade”.
Com a expressão “pensamento criativo” o emprego é semelhante. Ele é algo que se desenvolve, algo que se introjeta na mente do aluno, apresentado na forma de princípio, habilidade (junto à imaginação, raciocínio) e valor (junto à autoestima, empatia, responsabilidade e autonomia). Também aqui, dominantemente, criatividade faz par com criticidade, embora essa criticidade não esteja definida nos dispositivos locais.
Há, porém, uma diferença de emprego no CS, no que diz respeito ao papel das duas categorias na arquitetura do currículo. Enquanto o pensamento crítico/criticidade atravessa os documentos indiscriminadamente, o pensamento criativo/criatividade assume o papel de um Eixo Estruturante (EE) das “Atividades Integradoras (AI), na forma genérica de “processos criativos” e na forma detalhada de “habilidades relacionadas ao pensar e fazer criativo” (Santos; Soares, 2022, p.35). Mais uma vez, tiramos proveito dessa ausência de definição para sugerir a definição que melhor atende à nossa demanda.
2. Definições de Pensamento crítico
Literal e etimologicamente, pensamento crítico (PC) significa raciocínio separador (do certo e errado, do verdadeiro e falso, do bom e do ruim).
De modo bem geral e bastante especulativo, em períodos nos quais percebemos vicejar o descrédito moral, epistêmico ou ético – as fake News são um sintoma –, a expressão (em semântica do grego antigo) é revigorada e a literatura especializada emerge mais uma vez.
No Brasil e nos seus modelos científicos e econômicos, a Europa e os EUA, os livros sobre o pensar criticamente abundam nas prateleiras e nos portais, veiculando um sentido bem diferente daquele apresentado no vídeo com o qual abrimos esta aula (falar mal).
Nos livros de abordagem genérica e introdutória, os significados para PC são divergentes em seus elementos concretos, embora convirjam quando organizamos as semelhanças em tipos-ideais. Assim, para Ciuni Canale e Frigerio Tuzet (2022, p.23), PC é conjunto de habilidades (reconhecer, avaliar e elaborar bons argumentos).
Em consequência, pensar criticamente é raciocinar com critérios para evitar erros (limitações cognitivas e contextuais-emoções/vieses psicológicos) e detectar falácias que interferem (provocam erro/irracionalidade) nos atos de fazer escolhas, tomar decisões, adotar estratégias e perseguir metas (p.37).
Jonathan Haber segue a mesma linha, declarando que o PC, idealmente, é o raciocínio provido por um conjunto conhecimentos, habilidades, hábitos e predisposições. Mas não há consenso no meio educacional, onde os autores mobilizam diferentes fundamentos disciplinares.
3. Fundamentos e padrões do pensamento crítico
Em geral, especialistas na matéria se dividem entre os conceitos e habilidades típicas da Lógica (causalidade/evidências), da Retórica e da Psicologia (das Decisões e Cognitiva) para fundamentar o emprego do PC.
Tais variações, contudo, pouco interferem nas estratégias de como desenvolver o PC ou como ensinar a PC entre escolares e universitários. Importa que os alunos desenvolvam essas habilidades e que nós professores nos tornemos também pensadores críticos.
Quadro 1. Duas perspectivas não divergentes para o ensino do pensamento crítico
Perspectiva de Jonathan Haber (2020) |
Damiano Canale e outros (2022) |
Desenvolver habilidades lógicasUsar ferramentas e habilidades da LógicaCompreender os preconceitos que afetam nosso raciocínioFormar o hábito de refletir e de controlar esses preconceitos |
Conhecer os tipos e as causas dos erros de raciocínioConhecer a estrutura, os tipos e as funções de um argumentoConhecer as estratégias para identificar um argumento ruim (a invalidade e a fraqueza)Conhecer as estratégias para identificar e construir um bom (contra) argumento (o teor de verdade ou a plausibilidade)Combater argumentos ruins (denunciar falácias, raciocínio circular, fornecer contraexemplos etc.)Dominar estratégias de construção de bons argumentos dedutivos, indutivos e abdutivos |
Produzido pelo autor a partir de: Haber (2020) e Canale et al (2022).
Quanto aos padrões do PC, a convergência é ainda maior. A expressão escrita ou imagética de um PC seria considerada qualitativamente aceitável se o argumento principal contemplasse alguns dos requisitos na figura 1.
No texto em anexo, vocês encontram uma definição e um questionário adequado a cada uma dessas qualidades que podem servir à preparação das atividades e à eleição de critérios de avaliação do trabalho dos estudantes.
No ensino das CHSA, orientados pelo CS, temos um largo espectro de possibilidades de aplicação dessas estratégias, a fim de cumprir as metas prescritas do EM. Eles podem nos ajudar a oferecer à sociedade (as instituições epistêmicas das quais tratamos na aula 3) cidadãos capazes de discernir fato de opinião, correção e erro, verdade epistêmica e falsidade, as habilidades do pensamento crítico.
Assim, é importante lembrar q o pensamento crítico não apenas deve atravessar nas sequências didáticas que exploram a compreensão de conceitos, fatos e princípios, a resolução de problemas da vida prática (ver aulas 6, 7 e 8). Na verdade, eles estruturam os próprios esquemas de validação partilhados pela Matemática, Filosofia, História entre outras disciplinas que compõem o currículo do EM.
O PC desenvolve no estudante o hábito de raciocinar como cientista (com método), de reconhecer, avaliar e elaborar bons argumentos e, principalmente, de compreender os argumentos e crenças dos outros e defender seus pontos de vista racional e democraticamente (Haber, 2020, p.36; Canale, 2022, p.22, 34). Assim, nós professores devemos fazer os estudantes compreenderem que:
- a maioria das afirmações e negações que comunicamos na esfera pública recebem o nome de argumento;
- um argumento é composto por duas ou mais premissas;
- premissas são compostas por sentenças que fornecem uma conclusão e as evidências da conclusão;
- as sentenças devem comunicar declarações verdadeiras, falsas ou abertas.
Reforma do Ensino Médio | Imagem: CaduManhães.
É necessário convencê-los também de que o pensamento crítico não frequenta a maior parte do nosso cotidiano. Ele difere da paródia que nos diverte, como expressa no vídeo acima.
Ele é reivindicado para comunicar descobertas, reivindicar direitos, denunciar violações de direitos e tomar decisões bem-informadas em situações nas quais o exercício da democracia representativa é requerida e, principalmente, filtrar informações que circulam na grande mídia e nas redes sociais.
4. Estratégias básicas para o desenvolvimento do pensamento crítico
Vejamos algumas estratégias de desenvolvimento do pensamento crítico apresentadas por Canale, aproveitáveis em sequências didáticas de caráter multi e interdisciplinar para o ensino das CHSA.
“A culpa é do Tite que não deixou Neymar bater o pênalti” (2022) | Imagem: Os donos da bola
A situação comunicativa vai ditar a natureza do exemplo, ou seja, vocês podem empregar fatos do cotidiano político ou esportivo nacional (como no vídeo acima) ou questões prescritas nos currículos estadual e nacional.
Em ambos os casos, uma boa meta imediata é combater o habito de fazer declarações incompletas e encerrar um debate que poderia ser profícuo, como nesse diálogo abaixo:
Estudante A – “Eu sou contrário à prática do aborto.”
Estudante B – “Por que você é contra?”
Estudante A – “Ora, porque eu sou contra, e pronto!”
Esse tipo de comportamento pode ser modificado com a aprendizagem sobre a estrutura e função dos argumentos, identificação de falácias e atribuição de valor dos argumentos.
4.1. Identificar e exemplificar um argumento
Inicialmente, vocês podem auxiliar os estudantes a identificar a estrutura básica de um argumento (conclusão/evidência), destacando os operadores argumentativos, como exposto no quadro 2.
Quadro 2. Exemplos de argumento e de análise de argumento
Falar de feudalismo é evocar, em primeiro lugar, o sistema econômico tradicional de um mundo dominado pela economia rural. A população rural constituía 85% dos franceses em 1 789, e a conjuntura econômica mantinha-se sob a dependência opressiva do ritmo da escassez e das crises de subsistência. (Vovelle, 2012, p.6).Conclusão – “Falar de feudalismo é evocar, em primeiro lugar, o sistema econômico tradicional de um mundo dominado pela economia rural.”Evidência 1 – “A população rural constituía 85% dos franceses em 1 789…”.Evidência 2 – “a conjuntura econômica mantinha-se sob a dependência opressiva do ritmo da escassez e das crises de subsistência.” |
4.2. Identificar falácias
Em um segundo momento, vocês podem auxiliar os alunos a identificarem falácias. Etimologicamente, falácia significa: “Engano, trapaça, manha”. Nos dicionários de sinônimos é concebida como “afirmação inverídica”, “inverdade” e “falsidade” (Houaiss, sd.).
Nos manuais de epistemologia, contudo, falácias são definidas como erro de raciocínio por relevância e erro de raciocínio por evidência insuficiente.
Há quase duas dezenas de tipos de falácias. Seguem dois exemplos no quadro 3.
Quadro 3. Exemplos de falácias de relevância e falácia de evidência insuficiente
Falácia de relevância· Argumento – Sérgio Camargo está capacitado para assumir a Fundação Palmares. Ele tem pele negra.· Conclusão – Sérgio Camargo está capacitado para assumir a Fundação Palmares.· Evidência irrelevante – Ele tem pele negra.Falácia de evidência insuficiente· Argumento – O simples fato de ter participado do governo Jair Bolsonaro já desqualifica qualquer declaração de Sérgio Camargo sobre cotas raciais.· Conclusão – Declarações de Sérgio Camargo sobre cotas raciais não merecem crédito.· Evidência insuficiente – Sérgio Camargo participou do governo Jair Bolsonaro. |
4.3. Avaliar argumentos representando as premissas e conclusões na forma de paráfrase
Regis Tadeu x Tati Quebra-Barraco em 3 momentos (2013) | Imagem: Canal AntiFunk
Por fim, vocês podem ampliar o pensamento crítico dos alunos, ensinando-os a avaliar argumentos, partindo de uma tipologia de falácias aplicada a textos escritos e textos falados (como praticado no vídeo acima).
Os passos são simples: 1. selecionar o parágrafo ou o conjunto de parágrafos que contém o argumento a ser analisado; 2. grifar (ou circular) as premissas e as enumerar; 3. reescrever declaração de conclusão e declaração de evidência com suas próprias palavras; 4. Atribuir valor (criticar) a relação lógica entre a declaração de conclusão e a declaração de evidência, como demonstrado no quadro 4.
Quadro 3. Exemplos de avaliação de argumento mediante paráfrase
Vejam que absurdo o que diz este anúncio na Internet: “a Oficina de Inverno foi criada em Teresina para acompanhar os mamutes viajantes em suas aventuras em destinos de viagem durante a estação mais gelada (e amada!). Com a loja física da Oficina de Inverno na capital piauiense, você pode comprar roupas de frio em Teresina-PI de maneira bastante cômoda e com muita variedade.” Essa é a propaganda mais mentirosa que eu já vi. Será um meme? Frio em Teresina? Meu Deus! Todos sabem o Nordeste inteiro é um lugar quente e que o estado do Piauí é talvez o que registra as temperaturas mais altas o ano inteiro.Conclusão por paráfrase – O anúncio é fake News. Roupas de frio não tem comércio no Piauí.Evidência (1) por paráfrase – O Nordeste é quente.Evidência (2) por paráfrase – O Piauí é quente.Avaliação – Argumento que apresenta erro de raciocínio por insuficiência de evidência sobre a impossibilidade de comercializar roupas de frio em Teresina/PI. |
As sugestões em termos de identificação e avaliação de argumentos apresentadas nesta aula são detalhadas em anexo, onde vocês encontrarão quatro planos de aula-modelo que podem ser reprogramados livremente em várias situações requeridas pelo ensino das CHSA, em companhia do ensino de Matemática e Língua Portuguesa, por exemplo.
V. TRAÇANDO PONTES – SISTEMATIZAÇÃO
Nesta aula 13, tentamos convencê-los de que o pensamento crítico é uma habilidade transversal e básica a todos os componentes curriculares das CHSA. Ele ajuda a criar hábitos de tomar decisões racionais e de conviver democraticamente em sociedade.
Com essa função, o pensamento crítico é uma ferramenta intelectual para os estudantes compreenderem as declarações do outro, avaliarem essas declarações, criarem declarações lógicas com evidências fortes e relevantes para viabilizar o aprendizado disciplinar e tomar decisões na vida prática.
VI. DANDO AS MÃOS – ATIVIDADE DE INTERAÇÃO
Dando as mãos
Encerrando as nossas atividades de hoje, convido vocês identificarem argumentos falaciosos nos livros didáticos ou em outros recursos empregados rotineiramente no seu domínio profissional. Listem as falácias, partilhem entre os colegas, construindo um “inventário de erros a não serem reproduzidos”, empregáveis por todos a partir de agora.
Partilhem as falácias aqui no fórum.
Para ampliar o conhecimento
Como anunciamos no curso desta aula, você pode ampliar seu conhecimento sobre o assunto consultando os textos em anexo.
VII. IMERGINDO – ATIVIDADE REFLEXIVA E AVALIATIVA
No início desta aula, provocamos vocês a refletirem sobre os usos da palavra crítica, partindo da seguinte declaração: “As pessoas vão te criticar”. Concebendo a crítica como a ação de atribuir valor, fundamentado em um critério, convido vocês a produzirem uma crítica de filme ou série da sua predileção e poste um vídeo aqui.
Você não precisa se demorar tanto quanto o personagem do vídeo acima. Se fizer um texto de até 200 palavras, contendo o nome do filme/série e do diretor, três linhas de sinopse, uma linha sobre o critério da avaliação, três linhas sobre os pontos positivos e mais três linhas sobre pontos negativos, já terão feito um bom script para podcast ou vídeo.
Poste aqui o resultado da sua crítica de arte.
VIII. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BASSHAM, Gregory; IRWIN, William; NARDONE, Henry; WALLACE, James M. Critica thinking – A student’s Introduction. 7ed. New York: 2023.
CANALE, Ciuni; TUZET, Frigerio. Critical thinking – An introduction. Milano: EGEA, 2021.
HABER, Jonathan. Critical thinking. Cambridge: MIT Press, 2020.
NOSICH, Gerald. Critical writing: A guide to writing a paper using the concepts and procsses of critical thinking. Lanham: Rowman & Littlefield, 2022.
SANTOS, Isabela Silva dos; SOARES, Mariana Fátima Muniz (Org.) Caderno Complementar: Estudo Orientado. Aracaju: Secretaria de Estado da Educação do Esporte e da Cultura, sd.
SANTOS, Isabela Silva dos; SOARES, Mariana Fátima Muniz (Org.) Currículo de Sergipe: Integrar e construir – Ensino Médio. Aracaju: Secretaria de Estado da Educação do Esporte e da Cultura, 2022.
VOVELLE, Michel. A Revolução Francesa (1780-1799). São Paulo: Unesp, 2012.
Para citar este texto
FREITAS, Itamar. Modelagem de conhecimento no ensino e na aprendizagem do pensamento crítico: Aula 13 da formação continuada para professores da Secretaria de Estado da Educação de Sergipe, promovida pela Fundação Getúlio Vargas, em 14 de julho de 2023. Resenha Crítica, 14 jul. 2023. Disponível em <https://www.resenhacritica.com.br/a-cursos/modelagem-de-conhecimento-no-ensino-e-na-aprendizagem-do-pensamento-critico/>.