Histórias do rio São Francisco: sujeitos, territórios e temporalidades /Crítica Histórica/2022

O dossiê Histórias do rio São Francisco: sujeitos, territórios e temporalidades tem como proposta conferir visibilidade a trabalhos que privilegiam como objeto de estudo pesquisas centradas e/ou associadas ao rio São Francisco, enquanto uma unidade geográfica, econômica, social, cultural e histórica. Os estudos selecionados, portanto, estabelecem um fio condutor para compreensão da diversidade de temporalidades históricas, teia de sociabilidades, multiplicidades de usos dos espaços e dinâmica das instituições associadas ao processo de conquista, ocupação e povoamento do referido território – de sua nascente a sua foz ou, dito de outra forma, do sertão das Minas Gerais, Bahia, Pernambuco, Alagoas e Sergipe ao litoral de Alagoas e de Sergipe. Dessa forma, são abordados estudos que enlaçam o fazer-se de homens e de mulheres através dos tempos em torno das nascentes, afluentes, margens, barragens, hidrelétricas e foz do Velho Chico. Leia Mais

Ensino de História: etnicidade e relações raciais | Crítica Histórica | 2022

Sem Titulo Maria Lidia Magliani Foto reproducaoNonada
Sem Título, Maria Lídia Magliani | Foto: reprodução/Nonada

O dossiê intitulado Ensino de História: etnicidade e relações raciais apresenta um conjunto de textos que problematizam as práticas pedagógicas fomentadas pelas Leis 10.639/2003 e 11.645/2008. O ensino de história e cultura africana e afro-brasileira, bem como aquele sobre história indígena já demarcavam o artigo 26 A da Lei de Diretrizes e Bases da Educação de 1996 (LDB). Mas o Brasil, bem indígena, afro e afro-indígena, ainda sofre com as mazelas geradas pelo eurocentrismo, racismo e pela mentalidade colonial. Esse conjunto de leis orientou o estudo da história e da cultura afrobrasileira e indígena em salas de aula em todo o país, assim como movimentou os currículos dos cursos de História. As pesquisas realizadas, antes das referidas legislações, apontaram que grande parte dos cursos, de base eurocêntrica, “não ofertavam aos futuros professores componentes curriculares relativos à história africana e indígena” (Guimarães, 2022, p. 10).

Em outras palavras, acreditamos que está na hora de realizarmos mudanças políticas substanciais na eleição dos sujeitos da narrativa histórica, mostrando as contribuições dos povos africanos e suas diásporas, bem como as contribuições dos povos indígenas para a história geral. Como responder às grandes questões sociais do mundo contemporâneo sem entender a história da África e da Ásia? Por outro lado, acreditamos também na atuação política dos professores que deveriam se dedicar mais ao mapeamento e criação de práticas educativas antirracistas, do que permanecer denunciando o racismo e afirmando a inexistência de materiais didáticos. Assim, a nossa intenção de discutir práticas pedagógicas antirracistas ainda se faz necessária, e urgente, em um país fortemente marcado por desigualdades sociais e defensor do mito da democracia racial brasileira. Leia Mais

África: saberes, pesquisas e aprendizagens | Crítica Histórica | 2021

African roots. Dahomey amazonen
African roots. Dahomey amazonen | Imagem: DW

É com muita alegria que apresentamos aos leitores o presente Dossiê dedicado às Histórias das Áfricas, inspiradas na desconstrução de narrativas pautadas no que a escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie definiu como o “perigo de uma história única”. As pesquisas históricas sobre o continente africano vêm crescendo de forma significativa nas últimas décadas. Muitas dessas novas abordagens derivam de novas propostas metodológicas, da formação de professores especialistas e da implementação da Lei 10.639/03, que tornou obrigatório o ensino das Histórias africanas. Acreditamos que compreender a pluralidade do continente africano e suas representações seja fundamental para entendermos os processos de formação de nossas identidades e que essas análises podem contribuir na construção de uma educação antirracista. Leia Mais

Escravidão e Pós-Abolição no Brasil | Crítica Histórica | 2021

Em um momento de transformações e muitas reflexões acerca do mundo pandêmico em que vivemos, pensar e produzir ciência no Brasil tem sido cada vez mais desafiador. Além da covid-19 e suas variantes, vivemos em meio aos ataques que sofrem cientistas, pesquisadores, professores e todo sistema de ensino. Em vista disso, fazer ciência e produzir conhecimento têm sido uma tarefa que serve para mostrar nossa capacidade de sermos resilientes e resistentes. Ao idealizarmos a proposta deste dossiê temático, que agora será visto concretizado nas páginas que seguem, pensávamos em trazer novos detalhes de um processo que começou com a escravização de homens e mulheres e que reverbera até hoje em nosso Brasil. Um país racista, apesar de muitos não conseguirem reconhecer e/ou enxergar tal assertiva, que tem uma sociedade marcada por divisões socais que muitas vezes remontam às práticas de um Antigo Regime.

Em vista disso, lembramos que existem ao menos três décadas que a academia brasileira vem produzindo de modo sistemático pesquisas sobre o processo de escravidão e do pós-abolição, mostrando uma preocupação com o papel dos escravizados e de seus descendentes. Vários autores e autoras têm mostrado a partir da ampliação das fontes, dos métodos e das temáticas centradas nos indivíduos, grupos e sociabilidades como o processo de escravização e o pós-13 de maio são marcados por contradições e nuances que sofrem variações dependendo do local e época de abordagem. Tais estudos têm identificado que sempre existiram muitas lutas por autonomia e afirmação da liberdade. Leia Mais

Masculinos & Masculinidades: performances, invenções e práticas / Crítica Histórica / 2020

Inicialmente, gostaríamos de registrar que este dossiê é publicado em um momento crítico da nossa história recente: a pandemia da covid-19, que alterou hábitos e práticas cotidianas, deslocou nossa maneira de ser e estar no mundo, inclusive no âmbito acadêmico, acelerando e forçando uma urgente adaptação a outros modos de vida – mais recluso e individualizado – e rotinas de escrita, de interação social e de trabalho mediadas pelas tecnologias digitais. Ao longo desse processo, no qual ainda estamos imersos, destacamos também que a chamada para este dossiê foi aprovada antes desse cenário de crise sanitária, mas em um momento em que já experimentávamos uma profunda crise política e social, acentuada pela desigualdade de gênero e as violências contra as populações mais vulneráveis.

Nossa proposta inicial foi acolher reflexões e análises diversas acerca das narrativas, das práticas, dos ritos e das produções discursivas contemporâneas sobre os modos de produção e subjetivação masculina, bem como os itinerários sobre ou em torno das experiências das masculinidades. Assim, reconhecemos a relevância e destaque que assume a intersecção dos estudos feministas, das relações de gênero e das sexualidades, como condição de possibilidades para a emergência dessas análises que ora serão apresentadas no dossiê.

Logo, não poderíamos deixar de agradecer a cada autor e autora que se empenhou em escrever e submeter seus manuscritos sob condições atípicas de existência, assim como o trabalho dos pareceristas e dos editores da Revista Crítica Histórica, persistindo e resistindo em tempos de insidiosos ataques ao conhecimento e à universidade pública brasileira.

No Brasil, desde os anos 1990 (MATOS, 2002; SOUZA, 2009; SILVA, 2015, 2018; OLIVEIRA, 2015), os estudos sobre as masculinidades têm se constituído num amplo e complexo campo de análise e investigação sobre os modos de construção dos homens, dos masculinos e das masculinidades. Desta forma, antropólogos / as, sociólogos / as e historiadores / as têm matizado o debate em torno de temas como: violências (CECCHETTO, 2004), sexualidades (SEFFNER, 2003), saúde masculina (GOMES, 2008), corporalidades e indumentária (SIMILI; BONADIO, 2017), “crise” das masculinidades (SIQUEIRA, 2006), transmasculinidades (ÁVILA, 2014), relações de amizade (NASCIMENTO, 2011; SANTOS, 2016), masculinidades e relações raciais (MISKOLCI, 2012; VIGOYA, 2007, 2018; RESTIER; SOUZA, 2019), entre tantos outros. A maioria desses estudos é produzida a partir de uma perspectiva relacional do gênero (MATOS, 2002; GROSSI, 2004; GIFFIN, 2005; PEDRO, 2011), mostrando que, se as mulheres não foram sempre as mesmas ao longo da história, os homens (AMBRA, 2015), muito menos.

De acordo com o historiador Durval Muniz Albuquerque Júnior, fazer uma história dos homens é pensá-los “não mais como indivíduos ou partícipes de feitos coletivos, mas como gênero, não a história de homens como agentes do processo histórico, mas como produtos deste mesmo processo” isto é, “a história de homens construindo-se como tal, a história da produção de subjetividades masculinas, em suas várias formas, a história da multiplicidade de ser homem” (2013, p. 23).

A partir dessa premissa, atenderam ao nosso convite mais de 20 pesquisadores e pesquisadoras que, individual ou coletivamente, colaboraram na reflexão, análise e compreensão das múltiplas maneiras de ser e de se fazer homem no Brasil e fora dele (KIMMEL, 1998, 2005, 2016; WELZER-LANG, 2001, 2004; CONNELL, MESSERSCHMIDT, 2013). Nos campos historiográfico, sociológico e antropológico, mas também na educação, na psicologia, entre outros, são muitas as contribuições que permitem mapearmos a produção das subjetividades masculinas e assim aguçar a reflexão que, ao tensionar esses campos disciplinares, evidenciam o potencial do gênero enquanto categoria de análise histórica (SCOTT, 1994).

Todavia, antes de situarmos cada texto, gostaríamos de destacar também a imagem que integra a capa deste Dossiê na Revista Crítica Histórica. Sob o olhar e foco atento das lentes do fotógrafo brasileiro Leonardo Barros Medeiros, temos a fotografia Guardarropa, protagonizada por um modelo espanhol e que faz parte da série ACasa|OCorpo. A partir de uma articulação entre as imagens, as palavras e as coisas, conforme sugere Didi-Huberman (2012), entendemos que a imagem produz um corte na realidade, mobiliza sentidos, expressa momentos e nos permite observá-la como um sintoma de possíveis mudanças e transformações no espectro das masculinidades. Além disso, a articulação / interposição entre imagem e a palavra, nos possibilita vislumbrar a dimensão poética imanente das narrativas históricas (HUSSAK, 2020). Sendo assim, apresentamos, a seguir, uma breve síntese dos treze textos selecionados para compor este Dossiê, Masculinos & Masculinidades: performances, invenções e práticas.

No artigo que abre o dossiê, Fernando Botton promove um encontro teórico refinado entre Raewyn Connell e Judith Butler. Em Considerações críticas acerca das teorias de Raewyn Connell e Judith Butler para o estudo das masculinidades, Botton apresenta um balanço crítico entre a sociologia connelliana das masculinidades e a teoria butleriana das relações de gênero, focalizando as tensões entre distintas teorizações e concepções de gênero a partir de uma relação assimétrica entre as epistemologias do Sul e do Norte Global. Mediador crítico desse encontro entre a socióloga australiana e a filósofa estadunidense, Botton destaca e evidencia apropriações, aproximações políticas entre a perspectiva queer, tal qual forjada por Judith Butler, e as masculinidades hegemônicas, signatárias dos escritos de Connell.

Kathleen Kate Dominguez Aguirre elabora uma profícua articulação das proposições de autores como María Lugones, Ochy Curiel e Raewyn Connell, em Masculinidades colonizadas e feminicídio na América Latina. Considerando essa abordagem interseccional das categorias gênero, masculinidades e raça, a autora engendra uma teorização sobre a permanência de um “continnum de violência patriarcal moderno-colonial”, denunciando a persistente e histórica violência contra as mulheres (cis e trans) na América Latina.

A partir das críticas feministas, em Intervenções com homens para a equidade de gênero: crítica às abordagens individualizantes, Vanessa do Nascimento Fonseca analisa o predomínio de práticas individualizantes nas políticas de intervenção entre homens, no Brasil, desde os anos 1970, em torno da equidade de gênero. Argumenta-se que os homens são importantes aliados no enfrentamento dos efeitos danosos das relações de gênero, todavia, a autora defende ser necessário que os homens se engajem no enfrentamento e na luta interseccional contra um sistema que articula múltiplos pontos de opressão, indo além de mudanças focalizadas apenas no aspecto da conduta dos indivíduos mas recorrendo ao âmbito coletivo.

Tendo como fonte de análise um artefato audiovisual, em “Não é uma fantasia, este sou eu”: Discussões sobre a representação e performance da masculinidade negra na série Sex Education (2019), Andrey da Cruz e João Paulo Baliscei apresentam Eric Effiong, um jovem negro gay que é o melhor amigo do protagonista da série britânica Sex Education (2019). A partir da desconstrução da personagem, os autores conseguem mapear a intersecção entre gênero e raça na constituição de uma masculinidade afeminada juvenil. Com destaque em três cenas da série, eles pontuam a desestabilização causada por Eric Effiong no sistema hegemônica da masculinidade, bem como a cobrança que o sistema faz sobre ele, com a concreta homofobia. A masculinidade negra e afeminada performada na série não é uma fantasia, há muitos Erics na sociedade britânica e também na brasileira.

Neste provocativo e instigante ensaio, O negro-lugar do homem preto brasileiro – episódios de racismo cotidiano em AmarElo (2019), Milton Ribeiro posiciona-se do lugar de homem negro paraense e dedica sua análise à obra de Emicida, AmarElo. O corpo é lido e percebido a partir do “negro-lugar” que ocupa na sociedade brasileira, enfrentando o racismo multifacetado. Em uma análise cuidadosa e problematizadora das letras das músicas que compõem o álbum, Ribeiro destaca as resistências e o ritmo da música também embala a leitura do texto. Ao final, ou mesmo antes disso, será impossível não buscar o álbum para ouvir cada música e atentar às palavras problematizadas no texto.

Salientando as dinâmicas específicas das relações de gênero no espaço escolar, no artigo Espaços de meninos: reflexões sobre a construção das masculinidades por adolescente de uma escola pública do município do Rio de Janeiro, Aline Carvalho apresenta uma importante iniciativa desenvolvida em uma escola pública no Rio de Janeiro, em que os meninos foram convidados a refletir e falar sobre si mesmos. Amparada na literatura sobre as masculinidades hegemônicas, Carvalho oferece aos leitores e leitoras uma instigante reflexão sobre como a educação escolar formal pode contribuir para a promoção da igualdade de gênero a partir da intervenção dialógica com meninos na fase da adolescência.

Ainda no campo educacional, mas agora focalizando outra personagem de destaque, em Professores homens nos anos iniciais: relações de gênero e formação docente, Thomaz Fonseca e Anderson Ferrari problematizam a, por vezes incômoda, presença de professores homens nos anos iniciais do Ensino Fundamental na rede pública municipal de Juiz de Fora, MG. A pesquisa demonstra o que comumente é percebido sem muita dificuldade: a rara presença de homens cisgêneros na docência dos anos iniciais; mas vai além disso, ao acompanhar os percursos trilhados por esses docentes, destacando suas estratégias e desafios enfrentados, particularmente ao terem que responder às interpelações de gênero que lhes foram colocadas ao longo de suas carreiras.

Tomando como ponto de partidas as mudanças históricas nas relações de trabalho e familiares, após os anos 1990, que possibilitaram o aumento de mulheres na condição de provedora do lar, em O declínio do homem provedor chefe de família: entre privilégios e ressentimentos, Caíque Diogo de Oliveira argumenta como as mudanças gestadas no capitalismo em sua dimensão neoliberal, tem feito com que muitos homens assumam uma posição ressentida diante das novas dinâmicas das relações de gênero e, por isso, acabam buscando num passado idílico um lugar de segurança e de mando masculino.

O que querem os homens pais? Qual o sentido da paternidade? Pode um filho ou filha fazer um homem gozar da paternidade? Há uma paternidade gestante? Essas são algumas das perguntas suscitadas pelo cuidadoso artigo de Camila Rebouças Fernandes Masculinidades e paternidades: novos olhares. Com um trabalho de campo realizado em um serviço de pré-natal na cidade do Rio de Janeiro, Fernandes aborda as expectativas de mudanças experienciadas por 10 homens-pais que acompanhavam as mulheres-gestantes e oferece algumas pistas valiosas para pensarmos sobre as paternidades na contemporaneidade.

Em “Contra as investidas leoninas de uma indomável fera humana”: masculinidades e família, Lucas Kosinski problematiza como determinada concepção de masculinidade hegemônica foi produzida e volatizada pelo discurso jurídico de Iraty, região interiorana do sudeste do Paraná, entre os anos de 1912 e 1920. Na ocasião, o autor argumenta como um ideal de branquitude da população brasileira também foi agenciado nos discursos e práticas jurídicas e políticas no intuito de normatizar as relações de gênero através de uma judicialização das condutas, dos corpos e dos desejos.

Atenta ao carnaval em Porto Alegre / RS no final do século 19, em Masculinidades e carnaval na Porto Alegre do último quartel do século XIX, Caroline Leal dedica sua análise à emergência de duas importantes sociedades carnavalescas: Esmeralda e Os venezianos. Para realizar esse estudo histórico, Leal recorre à imprensa do período e percebe como masculinos e masculinidades foram gestados na reconfiguração da festa de rua e nos bailes fechados. Nesse exercício analítico, a autora também percebe a constituição de hierarquias produzidas a partir da classe social e destaca como esse “novo carnaval” fez parte de um jogo político mais amplo, que pretendia refletir e representar a modernização do país.

Daniel Welzer-Lang (2001) escreve sobre alguns espaços esportivos que são historicamente constituídos como masculinos, como os estádios de futebol. Sendo assim, no artigo Reflexões sobre os abalos da masculinidade hegemônica no futebol: das torcidas gays na década de 1970 aos campeonatos homossexuais da atualidade, Leonardo Martinelli reconhece essa realidade, mas é desafiado por torcedores de futebol da década de 1970 que criam as primeiras “torcidas gays”. Martinelli percorre as publicações que noticiaram essa emergência no Sul e Sudeste do Brasil, problematiza os preconceitos sofridos por esses torcedores autodeclarados como homossexuais e chega até os dias atuais com a criação de campeonatos nacionais que congregam jogadores homossexuais. Da arquibancada ao campo de futebol, Martinelli encontra sujeitos que nessas últimas décadas provocaram a masculinidade hegemônica no futebol. Atento às estratégias mobilizadas por esses sujeitos, o autor também evidencia que a homofobia é como um zagueiro de marcação cerrada, mas que não impede os bons dribles e a invenção criativa de modos de ser homem no futebol.

A alimentação tem gênero? Ou melhor, os nossos hábitos de alimentação também podem ser generificados? A pergunta que mobiliza dois campos aparentemente distantes está presente na análise atenta produzida por Marina Pedersen no artigo Heteronormatividade e homofobia na propaganda de uma hamburgueria. No texto, a autora parte de uma propaganda de hambúrguer publicada no Facebook e desconstrói os símbolos e sentidos das masculinidades que são agenciados na tentativa de incentivar o consumo do hambúrguer; para tanto, demonstra como a carne é colocada como um alimento que além de masculino, serve para confirmar a heterossexualidade compulsória a ser assumida pelo “homem de verdade”. Assim, o prato perfeito da heteronormatividade é composto pelo o consumo de carne, a homofobia e a heterossexualidade masculina.

Por fim, e a partir dos textos citados, enfatizamos a potência que o olhar amplo e multifacetado sobre as masculinidades pode nos proporcionar, complexificando e interrogando as narrativas hegemônicas, e denunciando criticamente as hierarquias sociais pautadas na naturalização da condição do homem, dos masculinos e das masculinidades, apontando outros e novos (des)caminhos na produção histórica, social, política e subjetiva das masculinidades, inclusive nesse tempo pandêmico.

Referências

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Rafael França Gonçalves dos Santos – Doutor em História pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). Membro do LabQueer – Laboratório de estudos das relações de gênero, masculinidades e transgêneros / UFRRJ. E-mail: rafael.fgs@hotmail.com


Natanael de Freitas Silva – Doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em História (PPHR / UFRRJ / CAPES). Membro do LabQueer – Laboratório de estudos das relações de gênero, masculinidades e transgêneros / UFRRJ e do Laboratório de Educação em Direitos Humanos, da UFABC. E-mail: natanaelfreitass@gmail.com


SANTOS, Rafael França Gonçalves dos; SILVA, Natanael de Freitas. Apresentação. Crítica Histórica, Maceió, v. 11, n. 22, dezembro, 2020. Acessar publicação original [DR]

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Anarquismos: história e historiografia em perspectivas multidisciplinares e interseccionais / Crítica Histórica / 2020

O anarquismo acabou. Viva o anarquismo!

Hoje engendra amanhã.

O presente projeta sua sombra

muito longe no futuro.

Emma Goldman, 1923.

O século XXI emerge com a efervescência de “novos” movimentos sociais: os movimentos antiglobalização, anticapitalista, Occupy Wall Street, a “primavera árabe”, as ocupações das praças e escolas por jovens estudantes, movimentos pela mobilidade urbana e, no Brasil, as “jornadas de junho” em 2013. São movimentos sociais ressignificados, horizontalizados, de ação direta, com agenda clara e específica ligadas a direitos sociais fundamentais: educação, saúde, transporte. Desses eventos, ressurgem elementos do tradicional pensamento anarquista, ressurgem movimentos que lembram o anarquismo histórico, seja lá o que isso signifique.

Concomitantemente, novas pesquisas, novas reflexões, novas abordagens, novos temas, novos recortes, novos sujeitos e outros tantos nem tão novos assim, começaram a elaborar aproximações entre o pensamento e a prática anarquista ao longo da história com demandas atuais, como as questões de gênero, especismo, questões ambientais e aquecimento global, discussões pós e decoloniais, raciais e étnicas. Há pesquisas e estudos que sistematizam a contribuição anarquista histórica para essas questões e vice- versa, que articulam a contribuição atual dessas questões ao pensamento anarquista. Em uma outra seara, porém não isolada, há pesquisas sobre as experiências de autogestão e formas horizontais e autônomas de gestão, como as fábricas recuperadas na Argentina e em movimentos e movimentações sociais nesse século. Há ainda o desafio do pensamento e do movimento anarquista diante do levante conservador recente, com destaque para apropriação do discurso libertário pelos ultraliberais, com o chamado anarco-capitalismo, por exemplo. Aqui, pesquisadores enfrentam o desafio entre a crítica à conciliação de classes proposta pelas esquerdas que foram vitoriosas recentemente (se expondo à traição) e à cooptação do discurso anarquista pela ultra direita e pelos neoliberais.

Ainda que o dossiê Anarquismos: história e historiografia em perspectivas multidisciplinares e interseccionais não tenha contemplado esse horizonte de expectativas, tal qual se apresentou na chamada de artigos, o resultado aqui apresentado diz muito sobre o estado da arte da pesquisa sobre o anarquismo na historiografia nacional e em como, algumas outras áreas das ciências humanas, têm se aproximado do debate e das aproximações teórico-metodológicas sobre o anarquismo.

Entre os artigos aqui organizados, abrem o dossiê dois textos de caráter teórico que, como recomenda a boa historiografia, intervêm diretamente na pesquisa empírica. O primeiro deles, “Anarquismo italiano, transnacionalismo e emigração ao Brasil: Contribuições ao debate teórico”, do historiador e professor Carlo Romani (UNIRIO), demonstra como, no entre séculos (XIX-XX), a formação de redes transnacionais entre os ativistas anarquistas, apesar de já bastante conhecida da historiografia, transforma-se em regra. Nesse sentido, Romani indica como a vinda de imigrantes anarquistas para o Brasil é parte constitutiva dessa história transatlântica e como, especialmente em São Paulo, esse encontro de anarquistas italianos permitiu a criação de grupos organizados em rede que foram determinantes para a difusão do anarquismo no Brasil no início do século XX.

O segundo, “A bandeira negra entre outras: (trans) nacionalismo e internacionalismo na construção do anarquismo no Brasil (1890-1930)”, do historiador Kauan Willian dos Santos (doutorando em História Social / USP), articula a conexão entre anarquismo, internacionalismo e transnacionalismo, a qual se organiza pela imigração, pelas redes de ativistas e pela circulação de ideias e experiências, durante a chamada Primeira República. Nesse sentido, traz à tona a visão de nação, nacionalismo, patriotismo e, aqui é importante ressaltar, a visão de raça de seus agentes, naquilo que orienta conceitos e práticas de classe, no interior do debate entre trabalhadores nacionais e estrangeiros. Sugere, então, a divisão em três momentos diferentes da história do anarquismo.

Em um segundo bloco, estão integrados os artigos que dizem respeito a desdobramentos e especificidades da história do anarquismo, no início do século XX, no Brasil. “Nos bastidores de um jornal anarquista: as particularidades do processo de produção de um jornal libertário na Primeira República Brasileira (1900-1935)”, do doutorando em História (UNESP / Assis-SP), Lucas Thiago Rodarte Alvarenga, apresenta as minúcias da produção de alguns jornais de propaganda anarquista, no início do século XX. Assim, demonstra como ativistas organizaram seus periódicos libertários da escolha temática à impressão, da tipografia à distribuição. Já Luciano de Moura Guimarães, também doutorando em História Social (PUC-Rio) e professor do Colégio Pedro II, apresenta uma instigante perspectiva sobre o movimento anarquista fora do eixo Rio-São Paulo, tradicionalmente espaços de excelência da historiografia sobre o tema. O artigo, “Anarquia na Bahia (1920-1922) – militância, repressão e circulação geográfica na trajetória de Eustáquio Marinho”, refaz os passos do anarquista Eustáquio Marinho na circulação de ideias e de como sua presença em Salvador- BA, após voltar de um período no Rio de Janeiro onde atuou nas greves de 1918 e da “Insurreição Anarquista” no mesmo ano, será importante para a organização do movimento operário soteropolitano. Participando ativamente da organização dos trabalhadores da construção civil e da transformação das estratégias de luta operária, no que podemos chamar de anarcossindicalismo de caráter revolucionário, foi protagonista da emergência do anarquismo na Bahia. Ao mesmo tempo em que acompanha a trajetória do ativista anarquista, o autor empreende uma análise bastante perspicaz da repressão policial que se seguia a cada ação dos trabalhadores na luta por direitos, através da grande imprensa.

Retomando a história da “Insurreição Anarquista”, ocorrida no Rio de Janeiro, em 1918, Hamilton Moraes Theodoro dos Santos, doutorando em História Comparada (UFRJ), aprofunda as análises o sindicalismo revolucionário de inspiração anarquista e que teve papel central na organização do movimento operário brasileiro na Primeira República. Percorrendo os mecanismos de resistência direta ao capitalismo, o autor traça elementos de influência da Revolução Russa na articulação de novas perspectivas de organização e de ação do movimento operário. O artigo seguinte, “Educação, sindicalismo revolucionário e anarquismo nos Congressos Operários Brasileiros (1903-1921)”, do historiador (UFF) e mestre em Educação (UNIRIO), Antonio Felipe da Costa Monteiro Machado, retoma a organização dos três grandes Congressos Operários Brasileiros (1906, 1913 e 1920), a partir das propostas educacionais voltadas para os trabalhadores e seus filhos.

Fechando esse bloco, o artigo “A condição social da mulher e o debate sobre gênero e patriarcado: contribuições de Maria Lacerda de Moura”, das autoras Tatiana Ranzani Maurano (psicóloga e doutoranda em Educação / UNESP) e Glaucia Uliana Pinto (psicóloga e doutora em Educação / Unimep) apresentam aproximações entre a obra da anarquista brasileira Maria Lacerda de Moura e o debate sobre a condição feminina. Ancorando suas análises no materialismo histórico dialético, focam no livro Renovação, no qual Lacerda de Moura explicita como a mulher trabalhadora tem seu corpo subjugado e, por conta disso, seu lugar social é o da procriação e cuidado dos filhos. Único artigo escrito por mulheres sobre uma mulher anarquista, demonstra como ainda é preciso abrir fronteiras e derrubar muros para pensar na historiografia da desigualdade de gêneros e do papel das trabalhadoras na luta operária.

Os dois artigos seguintes empreendem análises sobre as influências teóricas no movimento anarquista da virada do século XIX para o XX. No artigo “Apropriação e produção de teorias evolucionistas nos periódicos anarquistas brasileiros (1900-1930)”, Gilson Leandro Queluz, mestre em História (UFPR) e doutor em Comunicação e Semiótica (PUC-SP), analisa a apropriação e produção de teorias evolucionistas presentes nos periódicos anarquistas brasileiros nas primeiras décadas do século XX. Segundo o autor, essa apropriação pelos movimentos anarquistas passou também pela crítica ao colonialismo autoritário, racista e hierárquico. Pensando a partir da ideia de hibridismo, o artigo nos brinda com um feliz encontro de ideias, as quais forneceram elementos para a produção de uma teoria crítica libertária a respeito da ciência.

Hugo Quinta, mestre em Estudos Latino-Americanos (UNILA) e doutorando em História (UNESP, campus de Assis), no artigo “Os estudos do crime sob a ótica de um anarquista: Pietro Gori e a revista Criminalogía Moderna”, examina os estudos do crime sob a ótica de Pietro Gori (1865-1911), personagem múltiplo, um anarquista-poetadramaturgo-advogado italiano que, entre 1898 e 1902, reside em Buenos Aires e ali funda a Criminalogía Moderna, primeira revista de criminologia da América Latina. O autor propõe uma análise “radiográfica” do trabalho de Gori sobre criminologia, ciência recentemente criada e ainda, naquele momento, em fase de consolidação. O artigo levanta indícios de como o anarquismo e a criminologia conviveram, às vezes não sem contradições, em um personagem tão múltiplo.

Fechando o dossiê, estão três artigos que articulam o (trans)nacionalismo no movimento anarquista em outros países e períodos. Abrindo este último bloco, o artigo “Repassando a chama – sindicalismo e anarquismo na Alemanha, do período imperial até a segunda guerra mundial”, do doutorando em História Moderna (JGU Mainz-Alemanha), Moritz Peter Herrmann, propõe-se a uma tarefa difícil, porém realizada com brilhantismo. O artigo parte da ideia de que pensar anarquia e anarquismo na Alemanha é sempre tomado por certo obscurantismo, como ele afirma, “tanto pelo suposto caráter nacional, como pelo fato de que a história da classe operária alemã ser dominada pela social-democracia, um movimento centralizador e estatista, defendendo o socialismo científico de Marx e Engels.” Nesse sentido, faz um esforço bastante interessante de mapear, entre fins do século XIX e início do XX, os projetos radicais rechaçados pela hegemonia da social-democracia, assim como os ativistas que se recusaram ao dirigismo e que, mesmo como minoria, tiveram papel importante nas lutas operárias e na formação do anarcossindicalismo alemão. Ao final, ainda, ganhamos de brinde a presença das mulheres no anarquismo alemão e como o debate já se colocava em termos de uma percepção da existência de uma dupla opressão para as mulheres trabalhadoras e anarquistas. Essa é uma pesquisa que precisamos fazer com urgência.

Viajando pela Europa e chegando no período entreguerras, encontramos o poeta anarquista espanhol, Léon Felipe. “La Insignia e o Anarquismo: a experiência da guerra civil espanhola na poética de Léon Felipe”, artigo escrito pelo mestre em Literatura (UFES), que além de professor da área é também advogado criminalista, Felipe Vieira Paradizzo, aborda a Guerra Civil Espanhola e a produção poética de Felipe e demonstra as relações estreitas entre o ativismo anarquista e a criação.

Fechando o bloco das experiências (trans)nacionais, no artigo “A prática de luta armada da Organización Popular Revolucionária – 33 Orientales no Uruguai (1968-1972)”, Rafael Viana da Silva, doutor em História (UFRRJ), busca analisar a formação e ação do “braço armado” da Federación Anarquista Uruguaya, em um período de endurecimento do regime constitucional. Pensando nas influências da Revolução Cubana na América Latina, o artigo busca suas interconexões com a prática guerrilheira uruguaia.

Aproveito a deixa e recomendo a resenha, que se encontra no final do dossiê, elaborada pelo mestrando em História (UFAL), Igor Ribeiro, da coletânea de artigos História do anarquismo e do sindicalismo de intenção revolucionária no Brasil: novas perspectivas (Curitiba: Editora Prismas, 2018), organizada por dois dos autores deste dossiê, Kauan Willian dos Santos e Rafael Viana da Silva.

Por fim, encerro esta apresentação com o artigo de Flávio José de Moraes Junior, mestre em História (UFRJ), “Manifestações de rua como laboratório político – 2013 e suas emergentes formas”. Analisando os mecanismos de comunicação entre diferentes grupos sociais nas manifestações de rua no Rio de Janeiro, entre 2013 e 2014, a partir de um contexto mais geral e inseridos nos movimentos “antiglobalização”, o artigo aponta para características de organização que tem como fundamentos na ação política, a horizontalidade. Ao mesmo tempo, tenta entender o surgimento da tática black bloc em meio à brutal repressão policial e a relação deles com “velhos” movimentos sociais e partidos políticos de esquerda.

Não à toa, a criminalização dos movimentos sociais ocorrida durante as “jornadas de junho” serviu também para disseminar “velhas” ideias de que o anarquismo é inimigo da sociedade e do estado. Mas o que fica é a certeza de que é da experiência de luta dos trabalhadores, daquele longínquo final do século XIX e início do século XX e que se segue, por onde encaramos o presente e miramos o futuro.

Ana Paula Palamartchuk

Julho / 2020


PALAMARTCHUK, Ana Paula. Apresentação. Crítica Histórica, Maceió, v. 11, n. 21, julho, 2020. Acessar publicação original [DR]

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Mídia e Poder em Perspectiva Histórica / Crítica Histórica / 2019

A motivação para a organização do dossiê Mídia e Poder em perspectiva histórica partiu da observação de que, nos últimos anos, se intensificou o debate, em diferentes setores da sociedade, tanto no Brasil como no mundo em geral, a respeito do papel das mídias, ou meios de comunicação, tradicionais e novos. Tem sido enfrentadas questões do tipo se tais meios têm atuado como um elemento que atua no sentido do fortalecimento ou do enfraquecimento da democracia, como mecanismos de legitimação da ordem ou de incitação de agitações político-sociais, como ferramentas para articulação de demandas e estabelecimento de novos vínculos coletivos, ou como u catalisador de desagregações sociais, atomização e pulverização de condutas e ações. Tendo em vista a complexidade do cenário contemporâneo, pois, a proposta do dossiê foi compor um quadro variado de pesquisas que abordassem questões relevantes relativas aos meios de comunicação especialmente sob o ponto de vista de historiadores e historiadoras.

O objetivo, agora alcançado, é permitir um olhar mais amplo no tempo e no espaço que enfoque as transformações conjunturais ou as de mais longo prazo a respeito dos meios de comunicação, sua história, sua importância e suas relações com variadas concepções de história e configurações de poder. O resultado final, aqui materializado e trazido à público, expressa os anseios iniciais dos organizadores e sublinha este campo frutífero de pesquisas que se têm desenvolvido no país.

A problemática política e as relações de poder que perpassam os sujeitos políticos, as organizações de classe e partidárias, o imaginário social, a cultura, a religião e o mercado de consumo na contemporaneidade se destacaram no conjunto dos textos. Os artigos selecionados são exemplares tanto para os pesquisadores da área, como para uma leitura menos profissionalmente comprometida, mas interessada nas relações entre a política, partidária ou não, e a chamada grande mídia durante todo o século XX. Se a imprensa é parte inerente do jogo democrático, como ferramenta ela serve a diferentes interesses, disputados, por vezes, violentamente, podendo se transformar tanto em um agente catalisador e incentivador do fortalecimento das leis, instituições e grupos sociais os mais diversos em formação ou transformação, bem como se constituir em um agente perturbador para o aprofundamento de modos de vida livres, solidários e plurais.

Como elemento explicativo para o foco temporal das pesquisas aqui presentes, é importante destacar a facilidade cada vez maior para o acesso aos acervos e hemerotecas dos grandes jornais brasileiros, muitos agora disponíveis on-line, facilitando uma consulta mais ágil a series maiores de antigas edições de jornais e revistas. Os historiadores têm se aproveitado muito bem dessa nova oportunidade e, apesar de contínuos desafios técnicos e estruturais dos acervos, encontram-se devidamente equipados com um já sólido instrumental teórico-metodológico próprio de nossa disciplina para dar conta dessa tarefa exploratória.

Vamos aos textos! Optamos por apresentar os artigos em ordem cronológica, a partir dos temas que abordam, sem intenções de engessar as temporalidades, mas indicando um processo amplo, que percorre os contextos políticos e econômicos do Brasil republicano, durante o último século.

Abre o Dossiê o artigo de Gabriel José Brandão de Souza, intitulado “Entre disputas e negociações: a construção histórica da região cacaueira a partir do jornal Gazeta de Ilhéos (1901- 1904)”. Nele, o autor analisa “o processo de construção da narrativa histórica da região cacaueira, a partir das disputas políticas e ideológicas entre os grupos de elites na cidade de Ilhéus-BA no início do século XX”. Para isso, utiliza a Gazeta de Ilhéos como fonte principal. Segundo Souza, importa “perceber como esses grupos passaram a utilizar-se da imprensa não apenas como uma difusora de ideias e ideais, mas como um importante partido político de oposição, compondo assim, uma outra estratégia do jogo político para além da violência, voltada para a veiculação das suas opiniões e da disputa de espaços de poder.”

Na trilha da reflexão sobre os usos políticos da imprensa, Douglas de Souza Angeli, em “Deixar de votar é votar no inimigo”: Igreja e imprensa católica na construção do eleitor no Rio Grande do Sul (1945-1950)”, aborda o tema “propondo compreender a mobilização visando à construção do eleitor no período inicial da experiência democrática, ou seja, a construção de um interesse pelo ato de votar no momento de retorno das eleições, de criação de partidos políticos nacionais e de ampliação significativa do eleitorado inscrito”. Para Angeli, para isso foi fundamental “a atuação de agentes específicos […]: a Igreja Católica, a Liga Eleitoral Católica e a imprensa católica”. Utilizando-se dos jornais Correio Rio-Grandense, Jornal do Dia e o Unitas – boletim da província eclesiástica do Rio Grande do Sul, o autor, afirma que “a construção do eleitor católico” foi, naquele momento ,“impelida com base em um discurso marcadamente anticomunista, articulado às estratégias de posicionamento da Igreja perante o Estado e às práticas de mobilização do clero e da Liga Eleitoral Católica visando ao alistamento e ao voto”.

O artigo seguinte, trabalha o mesmo espaço geográfico e temporal, alterando o foco para a análise de discursos voltados não à política, mas à construção de um imaginário social sobre a cidade de Porto Alegre e as “classes perigosas”. Em “Uma cidade nas sombras”: O mundo dos bas-fonds (Porto Alegre – meados de 1950)”, Marluce Dias Fagundes estuda como o centro de Porto Alegre teve sua paisagem transformada naquele período. Para a autora, é perceptível nas fontes “um contraste de luz e de sombras. Na medida em que a “modernidade” avança pelas ruas da capital sul-rio-grandense, a “decadência social e moral” invade esses mesmos logradouros. Uma região que até a contemporaneidade está presente no imaginário social da cidade é a Rua Voluntários da Pátria – parte dela reconhecida como uma “zona de meretrício”. Para compreender esse “mundo dos bas-fonds”, Fagundes recorre “à análise da imprensa local, sobretudo o Jornal Diário de Notícias, entre os anos de 1954 e 1960, destacando também “alguns casos de crimes sexuais de sedução que chegaram até à Polícia e à Justiça”.

Saindo do Rio Grande do Sul, vamos ao Rio de Janeiro, ainda nos anos 1950. Letícia Sabina Wermeier Krilow, no artigo, “Favela representada: disputas em torno de nomeações e significações nas páginas de jornais cariocas (1951-1954)” analisa como parte da “grande imprensa carioca” – Correio da Manhã, Jornal do Brasil e Última Hora -representou as áreas habitacionais chamadas favelas durante o Segundo Governo Vargas (1951-1954)”. Segundo Krilow, a relevância do trabalho dá-se “ao considerarmos que, no pós 1945, o Brasil passou por um acelerado processo de industrialização e urbanização, entretanto, tais processos não ocorreram espontaneamente, bem como geraram diversas consequências, nem todas positivas, o que causou sérios questionamentos”. Nesse sentido, a autora considera que “um dos fenômenos mais impactantes foi o grande aumento das áreas habitacionais chamadas de favelas”, e, por isso, “se torna relevante analisar a forma como este espaço urbano foi representado nos jornais”. Para ela, “levando-se em consideração o grande poder de legitimação / deslegitimação de ideias que os meios de comunicação possuem, notamos que a forma pela qual a favela é representada pode interferir ou legitimar tomadas de decisões políticas – políticas públicas –, o que possibilita vislumbrar que projetos de sociedade estão sendo difundidas, estando tais representações inscritas no que Bourdieu chama de luta simbólica, evidenciando também disputas entre os referidos jornais”.

Na sequência, Marcelo Marcon discute em “O Globo e as disputas em cena: Brizola e a criação e uma sigla emblemática, o Partido Democrático Trabalhista”, “a forma como o jornal Globo elaborou seu discurso no processo de disputa pelo domínio da sigla PTB (Partido Trabalhista Brasileiro) entre Leonel Brizola e Ivete Vargas, e a consequente criação do PDT (Partido Democrático Trabalhista)”. Segundo Marcon, “isso ocorreu no processo de abertura política do regime militar brasileiro e reorganização partidária” e, através da análise das fontes e da historiografia, entende “que O Globo apoiou Ivete Vargas e investiu na desqualificação política de Leonel Brizola, uma vez que o jornal e o político gaúcho possuíam diferentes visões acerca do rumo da política brasileira”.

Avançamos no período da ditadura militar com o artigo de Pricila Niches Müller, “Negócio da China: a relação entre mídia e poder na diplomacia do Governo Geisel (1974-1979)”. Nele, a autora estuda as “relações entre imprensa e política externa no Brasil, com foco na análise do posicionamento de órgãos da imprensa a respeito da política externa do governo Geisel (1974-1979), a qual buscou a diversificação de parcerias com o emprego de uma política dita “pragmática, responsável e ecumênica””. A ênfase de tal política, segundo Müller, deu-se “no estabelecimento inicial da parceria estratégica com a República Popular da China, inclusive em nível de Embaixadas entre ambos os países”. Objetivando “investigar de que maneira a formação de parceria entre Brasil e China está retratada na grande imprensa brasileira no contexto dos anos que compreendem o Governo Geisel”, o artigo aborda, especificamente, “a representação feita pela imprensa acerca da posse do General Ernesto Geisel e a política externa do governo, bem como uma análise da questão que envolve a imprensa e a “opinião pública”.

Já Luciana Rossato, em “Juventude e publicidade nas páginas das revistas semanais Veja e IstoÉ (década de 1980)”, estuda as relações entre mercado consumidor, juventude e imprensa. O instigante artigo elucida “como ideias sobre a juventude foram veiculadas pela mídia impressa através de peças publicitárias na década de 1980 no Brasil, período marcado pela abertura política e pela ampliação do mercado consumidor”. Rossato utiliza uma documentação “composta por 30 peças publicitárias publicadas nas revistas Veja e IstoÉ no decorrer dessa década”. A análise recorre “aos conceitos de juventude de Margulis e Urresti (1996) e Abramo (1997), aos conceitos de consumo de Feathersone (1995) e aos meios e mediações de Martin-Barbero (2008)”. Nas peças publicitárias a historiadora constata “que as revistas selecionadas eram voltadas a um grupo específico de jovens, pertencente a uma determinada classe social, e difundiam uma concepção de juventude e ser jovem ligada à liberdade e a uma vida marcada por múltiplas possibilidades de escolha”.

Fechando o Dossiê, Thaíse Ferreira da Luz, com o texto “O Bom, o Mau e o Feio: as representações do jornal O Estado de São Paulo sobre os três principais candidatos à Presidência da República nas eleições de 1989”, realiza uma análise “sobre a representação de figuras políticas na mídia impressa”. A intenção de Luz é “verificar como a construção da imagem dos três principais candidatos ao pleito presidencial de 1989, Fernando Collor de Mello, Leonel Brizola e Luiz Inácio Lula da Silva, foi feita pelo jornal O Estado de São Paulo e, de que maneira essas representações elaboram uma construção simbólica desses candidatos”. Para tal, a autora observou “o uso das imagens nas páginas de O Estado de São Paulo e a construção discursiva do periódico, em uma mesma edição”.

Um Dossiê como este não se propõe a esgotar um conjunto de temas ou proposições de pesquisa, mas compor uma amostra, por pequena que seja, que pode auxiliar em desdobramentos posteriores, especialmente, apontando soluções teórico-metodológicas e novos temas e problemas de pesquisa. Tal diversidade e os encontros e desencontros eventuais demonstram que a riqueza da produção historiográfica brasileira está consolidada e extremamente viva e ativa.

Por fim, encerrando essa apresentação, nos parece ser importante nos situarmos como historiadores comprometidos com os problemas de nosso tempo. Por isso, foi inspiradora a imagem de capa selecionada para esta edição: Che lendo o jornal La Nación.

Ernesto Guevara de La Serna, o Che, foi um revolucionário argentino, combatente da Revolução Cubana de 1959, executado com auxílio de agentes da CIA na Bolívia em 9 de outubro de 1967. Che teve sua imagem veiculada mundialmente na grande mídia, impressa e televisiva, em estampas de camisetas, pôsteres e diferentes acessórios de moda, transformada inclusive em uma mercadoria, vinculada ao sistema político e econômico que passou a vida inteira combatendo e tendo sido por conta disso morto. Assim, não buscamos aqui a inspiração na “imagem” de Che, mas no agente teórico e prático que foi. A coerência entre pensamento e ação foi característica de sua trajetória, bem como a sua capacidade de agir no mundo visando transformá-lo de acordo com sua visão de como deveria ele ser.

Como profissionais de história, educadores e pesquisadores, que estão imersos em uma época marcada pelo ressurgimento de formas mais ou menos escancaradas de fascismo, nossa resposta ativa, nossa práxis, deve ser à altura. Desde nosso lugar, de nossa trincheira que são as universidades públicas, agora sob severo ataque, acreditamos que é um dever marcar a solidariedade e a ação que vá ao encontro dos interesses e necessidades dos povos pretos e periféricos, dos indígenas, das mulheres, dos LGBTs, da classe trabalhadora, enfim, daqueles cujas existências mesmas estão em vários sentidos ameaçadas.

E a universidade deve ser um espaço seu de direito! Falava Che aos estudantes cubanos em 1959:

Y, ¿qué tengo que decirle a la Universidad como artículo primero, como función esencial de su vida en esta Cuba nueva? Le tengo que decir que se pinte de negro, que se pinte de mulato, no sólo entre los alumnos, sino también entre los profesores; que se pinte de obrero y de campesino, que se pinte de pueblo, porque la Universidad no es el patrimonio de nadie y pertenece al pueblo de Cuba, y […] la Universidad debe ser flexible, pintarse de negro, de mulato, de obrero, de campesino, o quedarse sin puertas, y el pueblo la romperá y él pintará la Universidad con los colores que le parezca[1].

Que a luta antifascista em toda América Latina e no mundo seja vencedora!

Nota

1. Discurso en el auditorium de la Universidad Central de las Villas (al recibir el doctorado honoris causa) 28 de diciembre de 1959 In Ernesto Guevara. Obras Escogidas. CEME – Centro de Estudios Miguel Enriquez, Archivo Chile, p. 148.

Irinéia Franco

Luiz Alberto Grijó

Dezembro / 2019


FRANCO, Irinéia; GRIJÓ, Luiz Alberto. Apresentação. Crítica Histórica, Maceió, v. 10, n. 20, dezembro, 2019. Acessar publicação original [DR]

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História das Mulheres e das Relações de Gênero: diálogos e desafios contemporâneos / Crítica Histórica / 2019

Local: País das ideias.

Época: 2019.

Personagens: Seis mulheres, de diferentes países / cidades e gerações. Três delas, renomadas historiadoras conversam entre si, enquanto são escutadas (e interpeladas) por três jovens estudantes do curso de história. Um estudante do mesmo curso, escuta com atenção.

MICHELLE PERROT: As mulheres têm uma história?

JOAN SCOTT: Sim! Você foi uma das primeiras a nos ensinar que as mulheres têm uma história, Michelle. Esta historiografia, que se constituiu em um novo domínio de Clio, se expandiu e se diversificou – não sem conflitos e disputas – desde aquele seu curso inaugural, realizado em Paris, em 1973, com Pauline Schmitt e Fabienne Bock.

JOANA MARIA PEDRO: Joan, se Michelle foi importante para questionar a exclusão das mulheres da historiografia, não podemos nos esquecer do seu papel na discussão do gênero como categoria de análise histórica. No Brasil, suas reflexões foram fundamentais para a emergência da pesquisa das Relações de Gênero. Minha amiga Raquel Soihet, que não pôde comparecer ao nosso encontro de hoje, certamente concordaria comigo.

ADRÍCIA BONFIM: Professoras, qual o lugar das experiências das mulheres negras nessa historiografia?

JULLY ANA: E as mulheres lésbicas, também já têm uma história? ELOÍSA COSTA: Bem, a história das mulheres trans ainda está por ser feita. PAÚLO ARAÚJO: [Escuta com atenção].

MICHELLE PERROT: Minhas amigas Joan e Joana, estimadas Adrícia, Jully, Eloísa, Paulo… “A historia das mulheres mudou. Em seus objetos, em seus pontos de vista. Partiu de uma história do corpo e dos papéis desempenhados na vida privada para chegar a uma história das mulheres no espaço público da cidade, do trabalho, da política, da guerra, da criação. Partiu de uma história das mulheres vítimas para chegar a uma história das mulheres ativas, nas múltiplas interações que provocam a mudança. Partiu de uma história das mulheres para tornar-se mais especificamente uma história do gênero, que insiste nas relações entre os sexos e integra a masculinidade. Alargou suas perspectivas espaciais, religiosas e culturais”.1 Contudo, ainda temos muito a fazer.

O diálogo imaginário acima foi inspirado no diálogo, também imaginário, criado por Natalie Zemon Davis no prólogo do livro “Nas margens”.2 Nesta obra, uma história das mulheres à maneira de Davis, a autora analisa a trajetória de três mulheres do século XVII, Glikl bas Judah Leib, uma judia negociante de Hamburgo, Marie de l’Incarnation, mística que se torna ursulina em Tours e Maria Sibylla Merian, pintora e entomologista protestante de Frankfurt que viaja para trabalhar na América do Sul, para problematizar as margens sociais, religiosas e geográficas que marcavam as experiências das mulheres seiscentistas. Nas páginas de Davis estas mulheres se encontram com o que têm de semelhança e de diferença entre si. Se, parafraseamos a inventividade narrativa de Davis, colocando em diálogo contemporâneo, renomadas historiadoras do campo da História das Mulheres e das Relações de Gênero com jovens alunas / o3 do curso de História da Universidade Federal de Alagoas (UFAL), é para revelar que, assim como no livro “Nas margens”, as experiências históricas das mulheres estão no centro da análise historiográfica da tradução, artigos e resenhas reunidos no atual dossiê da “Crítica Histórica”.

Os textos que o / a leitor / a encontrará nas próximas páginas estão atravessados pela tradição e (re) invenção que o encontro entre as historiadoras (mestras e aprendizes) simboliza. A pergunta feita por Michelle Perrot (“As mulheres têm uma história?”), que deu nome ao curso ministrado pela historiadora, em parceria com Pauline Schmitt e Fabienne Bock, no início da década de 1970, continua ecoando hoje e atravessa as páginas dos textos que compõem este dossiê.

Em “A desobediência epistêmica e as mulheres como sujeitos historiográficos”, Stella Ferreira Gontijo problematiza a relação entre desobediência epistêmica e os estudos que consideram o gênero como uma categoria de análise histórica, destacando como a Teoria Descolonial e o Feminismo Latino-Americano têm transformado a História das Mulheres e das Relações de Gênero.

Regina Trindade, por sua vez, em “Gênero, trabalho e raça: um tripé insidioso de uma precarização histórica” discute a presença e a singularidade das mulheres no processo de produção e reprodução do capital, chamando a atenção, a partir de uma abordagem interseccional, para o caráter cíclico, sexista e racista do capitalismo.

No artigo “Emília Soares do Patrocínio e as pretas minas do mercado do Rio de Janeiro, século XIX”, Juliana Barreto Farias toma a trajetória de Emília Soares do Patrocínio, para discutir como africanas / os da Costa da Mina, conhecidos como pretas / os minas, se inseriam e se organizavam no principal centro de abastecimento de gênero alimentícios do Império brasileiro no século XIX.

Caroline Pereira Leal, no texto “O positivismo e as mulheres no carnaval de Porto Alegre nas primeiras décadas do século XX”, historiciza as transformações no carnaval de Porto Alegre, no início do século XX, a partir da perspectiva de gênero. De acordo com a autora, a participação das mulheres nos festejo mominos está relacionada à influência do positivismo entre a elite da cidade.

O artigo “Prostitutas e Bebuns: o espaço urbano e os modelos de gênero presentes na Folha do Norte do Paraná (1965-1973)”, de Gessica Aline Silva aborda a constituição das feminilidades e masculinidades transgressoras, a partir dos discursos presentes na coluna policial da Folha do Norte do Paraná entre os anos de 1965 a 1973. A historiadora mostra que prostitutas e bebuns, considerados indesejados, foram os principais alvos dos discursos moralizadores e normatizadores da imprensa.

Cecilia M. B. Sardenberg, em “Mulheres em movimentos de bairro, conscientização feminista e feminismo popular em Salvador, Bahia – anos 1980 e 1990” questiona a dupla invisibilidade (ausência das mulheres e da região Nordeste), que caracteriza a historiografia sobre os movimentos sociais, chamando a atenção em seu texto para a atuação das mulheres do Subúrbio de Plataforma nos movimentos de bairro e de mulheres em Salvador nos anos 1980 e 1990.

A seção de artigos do dossiê é encerrada com o texto “‘A aparência que dá o tom’: gênero, corpo e beleza nas cenas dos filmes Shrek”, de Renata Santos Maia. Nele, Renata Maia investiga algumas temáticas presentes nos filmes Shrek, que abordam as polaridades criadas nos roteiros dos contos de fadas, por exemplo, feiura versus beleza, personagens maus em contraposição aos personagens bons, revelando sua associação às concepções normativas sobre o corpo e a beleza.

Além dos artigos e, como veremos a seguir, da tradução do texto “Outras Reflexões sobre Gênero e Política”, de Joan Scott, este dossiê é composto ainda por duas resenhas de obras historiográficas que discutem, a partir de uma perspectiva de gênero, as experiências travestis em Fortaleza (CE) e a participação de freiras na resistência à ditadura civil-militar. Na resenha de “Travestis: carne, tinta e papel”, de Elias Ferreira Veras, Augusta da Silveira de Oliveira aponta como o historiador problematiza as condições de emergência do sujeito travesti na capital do Ceará, como indício e efeito de um processo subjetivo-temporal, denominado pelo autor, de tempo das perucas e tempo dos hormônios-farmacopornográficos. Por sua vez, na resenha do livro “Do hábito à resistência: freiras em tempos de ditadura militar no Brasil”, da historiadora Carolina Jaques Cubas, José Edson da Silva Santos Junior mostra que não foram poucas as ações de resistência das freiras na ditadura: esconder procurados pela polícia, guardar material considerado subversivo, facilitar fugas de perseguidos, transportar bilhetes e cartas de opositores a dar assistência psicanalítica aos militantes, curar feridos de ações revolucionárias foram algumas delas, investigadas por Cubas e lembradas por Santos Júnior.

Esses trabalhos traduzem os debates4 entre a História das Mulheres e das Relações de Gênero, suas aproximações, distanciamentos, solidariedades e conflitos. Como lembra Joan Scott, se a categoria “mulheres” deve ser objeto de investigação, então o gênero, ou seja, os múltiplos e contraditórios significados atribuídos à diferença sexual pode ser um instrumento útil de análise histórica.5 A presença das categorias “gênero” e “mulheres” nos títulos e abordagens dos textos reunidos no presente dossiê revela que, apesar das tensões, a emergência da História das Mulheres no Brasil está intimamente ligada ao estudo das relações de gênero.6

A leitora e o leitor das páginas seguintes, contudo, não encontrarão somente um conjunto de pesquisas historiográficas recentes, que problematizam as experiências de gênero a partir de temas, abordagens, recortes históricos e geográficos plurais, mas, a tradução de um texto de Joan Scott, publicado originalmente em inglês, em 1999, uma década depois da publicação (em inglês) de “Gênero: uma categoria de análise histórica”.7 Em “Outras Reflexões sobre Gênero e Política”, a historiadora faz uma “reavaliação crítica, ou, ao menos uma revisão e reconceitualização, dos termos que têm sido mais utilizados em nossas análises”, questionando a dicotomia sexo-gênero. Agradecemos à autora pela autorização da tradução neste dossiê, assim como também à Paula Granato, pelo trabalho de tradução. Somos grato / a, especialmente, à revisão técnica realizada por Joana Maria Pedro, que ao ter como horizonte a compreensão do pensamento de Scott por alunas / os da graduação, tornou-o mais próximo de todas / os nós.

Como lembra Joana Maria Pedro, no diálogo imaginário que inaugura esta Apresentação, Michele Perrot e Joan Scott foram (e continuam sendo) importantes para que historiadoras / es questionassem / questionem a exclusão das mulheres da escrita da história e incorporassem / incorporem o gênero como categoria de análise.

Ora, ainda que a História das Mulheres tenha mudado, em seus objetos, em seus pontos de vista. Ainda que tenha se tornado mais especificamente uma história do gênero, que insiste nas relações entre os sexos e integra a masculinidade, como lembra Michelle Perrot,8 tal alargamento permanece marcado por limites temáticos. A interpelação das estudantes Adrícia Bonfim, Jully Ana e Eloisa Costa, respectivamente, sobre as experiências das mulheres negras, lésbicas e trans (travestis e transexuais) simboliza, justamente, tal limite, presente, inclusive, no presente dossiê. A atenção e o silêncio de Paulo Araújo, por sua vez, pretendem significar os desafios – ainda não suficientemente explorados pela historiografia brasileira – da escrita de uma história das masculinidades e do novo (?) lugar dos homens, especialmente, dos historiadores diante da interpelação da universalização e do privilégio do masculino pela História das Mulheres e os estudos de gênero.

O dossiê “História das Mulheres e das Relações de Gênero”, portanto, está atravessado por diálogos e desafios contemporâneos sobre a (re) escrita historiográfica, o (re) dimensionamento do entendimento da mulher como sujeito, a (re) conceitualização do gênero como relação de poder que atravessa a política, a economia, a cultura e o lugar da historiografia como instrumento de justiça e emancipação.

Dona Deise Nunes, mulher negra, professora, militante que, gentilmente, cedeu sua imagem9 participando da marcha #elenão, realizada na capital alagoana em 26 de setembro de 2018 para estampar a capa do nosso dossiê, não teria muito a dialogar com as mestras e as aprendizes de Clio? Questionaria sobre a histórica relação entre História das Mulheres e das Relações de Gênero e os feminismos? Perguntaria sobre como essas pesquisas históricas, desenvolvidas no entremuros das universidades, afeta a vida das mulheres “comuns”? Convocarias as historiadoras para marcharem juntas, de modo que o diálogo se daria não em uma possível sala de aula, palestra ou curso, mas na rua?

As historiadoras, as estudantes, Dona Deise Nunes, as autoras dos textos deste dossiê não nos deixam esquecer de que a crítica feminista, cuja emergência dos estudos sobre as mulheres e o gênero é herdeira, além de contribuir para a reescrita da historiografia, também pretende redistribuir os espaços de justiça de gênero no presente, imaginando outros futuros. Tarefa urgente, particularmente no atual contexto brasileiro, marcado pelo avanço do ultraconservadorismo político-religioso, pela ascensão do modelo mulher “mulher bela, recata e do lar” e “princesa” que veste rosa, pelo reforço de discursos e práticas machistas, racistas e LGBTfóbicas, pela demonização da militância (feminista, negra, LGBT) e da Universidade, especialmente dos cursos de ciências humanas, como a História. Tarefa necessária, que esperamos, os encontros promovidos neste dossiê possam, de algum modo inspirar e fortalecer.

Por fim, não podemos deixar de agradecer às professoras Irinéia Franco e Michelle Reis, editoras da “Crítica Histórica”. O trabalho delas possibilitou que você, leitora / leitor tenha em mãos os diálogos e desafios contemporâneos da História das Mulheres e das Relações de Gênero no Brasil.

Boa leitura!

Notas

1. PERROT, Michele. Minha história das mulheres. São Paulo: Contexto, 2019, pp. 13-14.

2. DAVIS, Natalie Zemon. Nas margens: três mulheres do século XVII São Paulo: Companhia das Letras, 1997.

3. As / o estudantes citadas / o no diálogo integram a graduação dos cursos de História (Licenciatura e Bacharelado) da Universidade Federal de Alagoas (UFAL), fazendo parte também do Grupo de Estudos e Pesquisas em História, Gênero e Sexualidade (GEPHGS), da mesma instituição. Suas pesquisas de conclusão de curso, atualmente em andamento, analisam o movimento feminista, as experiências lésbicas, travestis e transexuais e as relações entre (homo) sexualidade e classe, a partir de uma perspectiva interseccional (gênero, sexualidade, raça e classe).

4. Referência ao artigo: PEDRO, Joana Maria. Traduzindo o debate: o uso da categoria gênero na pesquisa histórica. História, 2005, vol.24, n.1, pp.77-98.

5. Para uma abordagem da História das Mulheres e da categoria gênero como possibilidades de transformação da historiografia, ver da autora: SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria de análise histórica. Educação e Realidade, Porto Alegre, v.16, n.2, jul / dez., 1990, pp.5-22; SCOTT, Joan. História das mulheres. In: BURKE, Peter. (org.) A escrita da história: novas perspectivas. São Paulo, Unesp, 1992, pp.64-65.

6. Para uma análise da emergência da pesquisa da História das Mulheres e das Relações de Gênero no Brasil e das apropriações das categorias “mulher”, “mulheres”, “gênero” e “sexo”, conferir: SOIHET, Rachel; PEDRO, Joana M. A emergência da pesquisa da história das mulheres e das relações de gênero. In: Revista Brasileira de História, n.54, v. 27. 2007; PEDRO, Joana Maria. Traduzindo o debate… Op. Cit.

7. SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria de análise histórica… Op. Cit.

8. PERROT, Michele. Minha história das mulheres… Op. Cit., pp. 13-14.

9. Não conseguimos identificar o / a autor / a da foto até a publicação do dossiê. Qualquer informação sobre a mesma, escrever para o e-mail da revista: revista.criticahistorica@gmail.com

Maceió, 04 de agosto de 2019.

Elias Ferreira Veras – Departamento de História – Universidade Federal de Alagoas (UFAL)

Raquel de Fátima Parmegiani – Departamento de História – Universidade Federal de Alagoas (UFAL)


VERAS, Elias Ferreira; PARMEGIANI, Raquel de Fátima. Apresentação. Crítica Histórica, Maceió, v. 10, n. 19, julho, 2019. Acessar publicação original [DR]

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Abertura política e redemocratização: igrejas, movimentos sociais e partidos políticos / Crítica Histórica / 2018

A proposta deste dossiê partiu da constatação de que, na produção acadêmica, sobressaem trabalhos dedicados à efervescência política do final dos anos 1950 e início dos anos 1960, aos acontecimentos que antecederam o Golpe de 1964 e ao período ditatorial que se estabeleceu no Brasil por mais de 20 anos. Entretanto, no que se refere particularmente a esse último período, priorizam-se a primeira década do Regime e, sobretudo, os seus contornos mais repressivos. Pouca atenção tem sido dada mais especificamente ao lento, controlado e controvertido processo de abertura implementado a partir de 1974, sob a presidência do General Ernesto Geisel, e, mais adiante, à redemocratização parcial e ao retorno à legalidade dos partidos.

Estes mais de 10 anos que se seguem à repressão mais intensa não devem, no entanto, ser deixados de lado. São marcados por uma importante mobilização e por um retorno à ação de muitos sujeitos e instituições, entre os quais igrejas, partidos e movimentos sociais. Todos eles são favorecidos por um contexto de maior abertura e procuram se reinserir nele e estabelecer suas práticas e estratégias.

Além disto, este interesse ainda incipiente tem se concentrado, principalmente, nas questões jurídicas e legais e nas mudanças políticas e institucionais ocorridas a partir de então. Fazem-se, inclusive, numa perspectiva mais panorâmica, apenas menções e breves referências a episódios marcantes, sem a devida análise e o aprofundamento necessário para entender a complexidade e a trama que envolvem todo o momento. É o caso, por exemplo, de alusões superficiais e insuficientes a respeito das tratativas que levaram à revogação do AI-5, da campanha pela Anistia, do retorno ao pluripartidarismo ou ainda da campanha pelas Diretas Já. Perscruta-se muito pouco a atuação dos atores os mais diversos possíveis neste cenário tão complexo que levou arduamente ao desmantelamento dos aparelhos de repressão e de censura e ao lento restabelecimento do sistema democrático.

Mais recentemente, algum esforço notório de produção historiográfica tem sido empreendido no sentido de preencher ou ao menos dirimir esta lacuna. As práticas e trajetórias dos atores sociais, neste contexto de abertura progressiva, têm sido reconstruídas e analisadas a fim de compreender os meandros da sua atuação e da sua subjetividade. Como puderam se reinserir neste novo cenário e nos debates travados então? Quais problemas enfrentaram? Quais estratégias puseram em prática? Quais as memórias e narrativas produzem a este respeito? Eis alguns dos inúmeros e importantes questionamentos que podem ser levantados para dinamizar os estudos e as pesquisas nesta direção. Pesquisas que revisitam temas clássicos da historiografia nacional, dando-lhes um enfoque muito mais direcionado ao período pós-1974 e, sobretudo, pós-1979.

Neste quesito, inúmeras são as fontes a serem mobilizadas sob este recorte temporal e sob este olhar, para além do contexto mais abrangente e ressaltando o papel dos sujeitos individuais e coletivos. Entre elas, pode-se destacar a imensa contribuição trazida pela metodologia da História Oral e toda a reflexão teórica que a acompanha a fim de compreender a complexa relação entre a história, a memória e a construção de narrativas referentes aos acontecimentos vivenciados, aos dilemas enfrentados e aos traumas sofridos. Cabe aqui ainda o recurso à memória herdada ou compartilhada, referente àqueles que estiveram bem próximos aos episódios e aos seus atores e que produzem igualmente narrativas sobre eles. Além disto, destacam-se também documentos escritos, como cartas, relatórios, atas de assembleias, reuniões, encontros, documentação produzida por organizações, partidos e movimentos sociais, sem contar os jornais, tradicionalmente mais recorrentes neste tipo de análise.

No bojo deste esforço mais recente, propõe-se, portanto, este dossiê com a finalidade de enriquecer o debate e a produção acadêmica em torno de temas nevrálgicos para a compreensão da história nacional. Destes resultaram, em grande medida, os contornos que assumiram posteriormente o sistema político e o regime democrático em construção. Destes ainda resultaram inúmeras e inestimáveis trajetórias e narrativas produzidas por sujeitos que vivenciaram e vivenciam estes acontecimentos passados, relembrando e tecendo memórias a seu respeito. Abordagens específicas podem, inclusive, ser propostas a fim de se fugir do olhar mais genérico e pautado exclusivamente na esfera política mais ampla, nas grandes manobras palacianas, legislativas e da magistratura ou ainda no grande clamor da sociedade por mudanças. É preciso, neste ponto, descer à escala do micro e perceber a complexidade e a subjetividade que gira em torno dela. Nesta perspectiva, a apreensão da historicidade do momento deve suplantar o olhar meramente macro-político e de cunho institucional. Deve voltar-se às bases regionais e locais a fim de perceber como nelas atuam partidos, organizações, associações, grupos, igrejas, mulheres, negros, indígenas, LGBTs, quilombolas, trabalhadores urbanos e rurais e os mais diversos sujeitos individuais ou coletivos.

Com base nestas reflexões iniciais, foram propostos artigos que procuram preencher essa lacuna historiográfica e fazer uma discussão mais direcionada sobre temas específicos deste momento histórico. Para a constituição do dossiê, optou-se então por fazer uma organização temática dos trabalhos selecionados.

Dos seis artigos que o compõem, os dois primeiros abordam a questão política e institucional e situam-na entre o início da transição democrática, em 1974, e a Constituinte de 1987 e 1988. “A Contrarrevolução Democrática: a transição pelo alto e a institucionalização das instituições (1974-1979)”, de Pedro Cardoso, analisa o governo do General Ernesto Geisel e o processo de abertura por meio do papel desempenhado pela Comissão Trilateral e pelo seu membro Samuel Huntington, cientista político estadunidense, na formulação do projeto de distensão. “Conflito intrapartidário e Reforma Agrária: o PMDB na Constituinte”, de Pedro Vicente Medeiros, ressalta o conflito existente no PMDB quanto à definição da Reforma Agrária na Constituinte entre 1987 e 1988. Aprofunda o debate e as divergências internas entre parlamentares do partido que compunham a Subcomissão de Política Agrícola e Fundiária. Embora estes dois primeiros artigos se somem a uma abordagem mais clássica da política institucional do período, ambos o fazem de forma mais aprofundada e levantando problemáticas específicas e centradas em alguns sujeitos e organizações.

O quatro artigos seguintes dedicam-se unicamente à Igreja Católica e a sua atuação ao longo da Ditadura e, sobretudo, a partir da segunda metade dos anos 1970. Como parte da instituição teve um engajamento político e social notório desde os anos 1960, a maior parte dos autores optou por remontar a esta década, enveredando em seguida nos anos 1970 e 1980, quando se fortaleceu a atuação católica nos conflitos e debates. “O caminho percorrido pela diocese de Propriá- SE até a redemocratização do país (1964-1985)”, de Osnar Gomes dos Santos, concentra-se na mudança de posição ocorrida na diocese sergipana de Propriá em meados da década de 1970. Sob a autoridade de Dom José Brandão de Castro, a mesma passou do apoio declarado aos militares ao engajamento em favor da luta pela terra e da organização de sindicatos rurais. A sua atuação foi desde então destacável e chegou, inclusive, a entrar em atrito com as elites da região, que pressionaram para a sua aposentadoria precoce. “Relações de trabalho, Igreja Católica e direitos na Zona Canavieira de Pernambuco: organização e mobilização de trabalhadores rurais no Regime Militar”, de Cristhiane Laysa Andrade Teixeira Raposo, também opta por uma abordagem mais abrangente da atuação da Igreja, desta vez em relação aos trabalhadores rurais e a sua luta por direitos na Zona Canavieira de Pernambuco. Ainda que de maneira breve, a autora destaca o período da abertura e o papel nele exercido pela instituição católica, quando se intensificam a sua oposição ao Regime e o seu pleito em favor do retorno à democracia. “A Ação Católica Rural: mudanças e desafios políticos de 1978 a 1985”, de Maria do Socorro de Abreu e Lima, analisa as práticas desempenhadas pela Animação dos Cristãos no Meio Rural-ACR no trabalho de conscientização dos trabalhadores rurais e o seu posicionamento diante do cenário e dos debates travados. Esse movimento católico passou a abordar cada vez mais questões não só religiosas, mas, sobretudo, políticas. “‘Comunistas na Igreja’: a atuação dos católicos progressistas no incentivo à participação popular na Região Sisaleira da Bahia nos anos finais do século XX”, de Cristian Barreto de Miranda, encerra o dossiê abordando o papel de católicos da cidade de Conceição do Coité, na Região Sisaleira da Bahia, no fomento à participação popular no período que se seguiu ao fim da Ditadura. Mais uma vez, ressaltam-se as práticas adotas pela Igreja em favor das camadas mais pobres e dos trabalhadores.

Desta maneira, espera-se estar contribuindo para o aprofundamento das discussões referentes à abertura política e à redemocratização situadas a partir de 1974 e estendendo-se até o final dos anos 1980, com os trabalhos da Constituinte de 1987 e 1988. Pelos importantes episódios vivenciados nesses mais de 10 anos e pela sua influência na configuração que assume posteriormente a democracia em construção, tal momento tem valor inestimável e merece, inclusive, que outros pesquisadores se interessem cada vez mais por ele e por leituras mais direcionadas e diversificadas a seu respeito.

Por fim, os textos do fluxo contínuo deste número trazem discussões importantes que circulam da história política, à história social do crime e história do catolicismo. O artigo “Classes populares, cultura política e Constituinte (1984-1988)” de Charleston José de Sousa Assis propõe-se a estudar a cultura política brasileira, com foco nos anos da transição democrática e “a partir das sugestões da população à Assembleia Nacional Constituinte, encaminhadas por carta ao Congresso Nacional”. Em seguida em “Instruir-se para instruir”: a Ação Católica Brasileira e a formação da Juventude Estudantil Católica no Brasil (1935-1966), Carolina Maria Abreu Maciel analisa a Ação Católica Brasileira a partir da experiência da JEC, suas influências teóricas para formação de quadros para a instituição religiosa. Já Patrícia Marciano de Assis no texto Reflexões sobre Chefatura de Polícia do Ceará enquanto instituição policial do Império historiciza o papel da chefatura tendo como perspectiva sua ação no controle da população pobre, como forma de manutenção das estruturas de poder. O artigo “O paraíso dos criminosos”: imprensa, política e crimes na cidade do Rio de Janeiro durante as eleições do início do século XX de Ana Vasconcelos Ottoni procura abordar como a imprensa retratava as “supostas relações entre política e as ocorrências de crimes na cidade do Rio de Janeiro durante as eleições do início do século XX”. Encerra o número a resenha intitulada “O símbolo histórico de um movimento pela terra: A desapropriação da Fazenda Annoni no Rio Grande do Sul” que apresenta a obra de Simone Lopes Dickel, Terras da Annoni: entre a propriedade e a função social, publicado em 2017, e defendida como dissertação de mestrado em 2016, no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade de Passo Fundo- RS. Nela Caroline da Silva aponta como a autora estabelece um diálogo entre a História e o Direito, apontando a questão fundiária e social da terra em uma construção histórica de luta no período 1972-1993.

Boa Leitura!

Samuel Carvalheira de Maupeou – Professor Adjunto da Universidade Estadual do Ceará-UECE.

Equipe Editorial Revista Crítica Histórica


MAUPEOU, Samuel Carvalheira de. Apresentação. Crítica Histórica, Maceió, v. 9, n. 18, dezembro, 2018. Acessar publicação original [DR]

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História Social do Crime / Crítica Histórica / 2018

É com muita satisfação que apresentamos aos leitores o Dossiê ‘História Social do Crime’. Sabemos que o conceito de violência proporciona significados heterogêneos e, ao mesmo tempo, necessariamente polissêmico nas análises contextuais. Daí a grande dificuldade de uma metodologia para a interpretação do fenômeno. Ademais, como as variantes temporais determinam a manifestação diferenciada das formas de violência para cada sociedade, é importante precisar as formas e tipos que assumem para cada contexto histórico, bem como sua tolerância social e os limites do que seja legal e ilegal. Certamente, as análises sobre o fenômeno da violência e da criminalidade tem buscado cada vez mais uma interpretação em longa duração para o entendimento do fenômeno percebendo a interligação cultural, para além dos aspectos econômicos e políticos. Isto proporciona verificar a permanência da aceitabilidade do fenômeno para uma dada sociedade, independente do viés da legalidade do uso da violência.

Assim, a proposta deste dossiê é divulgar os trabalhos dos pesquisadores que percebem a violência e a criminalidade em seu contexto histórico diferenciado, contribuindo para fomentar estudos na temática, além de proporcionar maior visibilidade ao grupo de pesquisa História Social do Crime e seus membros, bem como de outros estudiosos sobre a temática da criminalidade. A contribuição do dossiê ‘História Social do Crime’ para a historiografia criminal está na proposta de trabalhos que ofereçam a problematização da criminalidade e da violência num diálogo interdisciplinar e atual, buscando nas vertentes teóricas da Teoria da Privação, quanto da Escola de Chicago ou da vertente da história cultural a ampliação da discussão do nosso objeto de pesquisa.

A História Social do Crime, uma vertente da Historiografia Inglesa orientada para as pesquisas sobre a temática da criminalidade, a formação dos bandidos e dos motins na Inglaterra iria contribuir para uma profusão de trabalhos sobre o tema, e que ainda são registros para as análises de quaisquer trabalhos. Um dos argumentos centrais nesta perspectiva de análise demandou estudos exaustivos sustentados pela relação pobreza-crime. A criminalidade seria analisada a partir do processo de exclusão social, pauperização e desigualdades econômicas, que inevitavelmente incidiam sobre as classes operárias e o ‘lumpem’ proletariado. A proposta foi apurada pela Tese da Privação Relativa [1] e Absoluta [2], ainda vigentes para o entendimento da criminalidade nas sociedades modernas.

Já, no início dos anos 90, as análises da violência interpessoal e do crime concentraram-se num diálogo com a vertente francesa da Escola dos Annales, buscando desta forma contribuir com elementos diferenciados para o tema. A importância da cultura e dos aspectos rituais seriam valorizados, frente a dinâmica do conflito de classes. Metodologicamente a violência seguiria uma proposta a partir de dois modelos interpretativos e interdependentes: a violência instrumental (racional) que se traduz enquanto abordagem quantitativa. Ou seja, consideram-se apenas os índices de homicídios como indicação do grau de violência nas sociedades passadas. Um aumento ou declínio da proporção de homicídios nas dadas culturas traduz-se em resultados variáveis nos níveis de violência. A outra abordagem qualitativa, por sua vez, situa-se no estudo da violência impulsiva e suas variáveis culturais. A ênfase da pesquisa qualitativa situa-se no campo do comportamento moral e ritual dos indivíduos; assim como o significado contemporâneo atribuído aos atos violentos.

Segundo Spierenburg [3], a obra de Natalie Davis foi pioneira neste tipo de estudo. Ao analisar a violência enquanto ato simbólico para a purificação da comunidade francesa no século XVI, Davis buscou não apenas constatar um fato histórico, mas problematizar a manifestação da violência inserida dentro de um código moral religioso. Os estudiosos dessa linha têm proclamado que, até meados do século XVIII, a vida social dos indivíduos, suas atitudes e comportamentos eram moldados de acordo com as normas de conduta e as regras morais que caracterizavam o Antigo Regime, cujo teor valorativo se evidenciava tanto nos laços amorosos, quanto nas relações de ódio.

A partir daí elementos culturais passaram a ocupar as análises da violência cotidiana nas sociedades europeias pré-industriais, relacionando-a aos conceitos de honra, infâmia, os insultos e até as celebrações festivas vigentes em sua época. Também, as análises de Pieter Spierenburg, Ted Gurr, Juian Pitt-Rivers, Robert Muchembled, Gregory Hanlon, Paul McLean, Jon Elster, Alan Hamlin, e outros têm possibilitado uma nova interpretação sobre a manifestação da violência interpessoal e da criminalidade no século XVIII, cujos resultados demonstram uma relação íntima entre a agressividade humana, o conflito e a exigência em se manter um espaço de aparências sustentado pela honra e pela virilidade masculina. A conduta violenta dos indivíduos objetivava não apenas a manutenção de uma posição de destaque frente aos demais. Buscava-se, antes de tudo, a distinção pessoal.

A importância do contexto histórico deve-se à capacidade em se perceber os elementos valorativos e as formas culturais que contribuem para a manifestação ou perpetuação das formas da violência. A descoberta dessas noções valorativas possibilita um novo entendimento das formas mais corriqueiras do viver em sociedade e a conjugação destas com a manifestação da violência, constatando-se não apenas os fatos históricos cruéis e sangrentos, mas uma trama histórica intimamente relacionada com as necessidades do homem. Essa violência ritual manifestava-se tanto nos crimes passionais tidos como racionais, já que o assassino elaborava um cálculo racional para cometer tal ato (mormente cometidos contra as mulheres infiéis em dias significativos, como o de Santa Maria Madalena), quanto em duelos e rixas familiares. Tais crimes eram classificados como atos impulsivos, cujo objetivo era o de lavar com sangue a honra dos envolvidos. Com feito, tanto a violência racional, que possui uma orientação estratégica de meios e fins, quanto à violência impulsiva podem, de acordo o com contexto histórico, orientar-se, cada qual, por um código ritual e moral das comunidades.

Elementos culturais como moral, ética, rituais, elementos simbólicos, as noções do lícito e o ilícito podem (e devem) ser utilizados na análise dos incidentes violentos de uma determinada sociedade, como defende Pieter Spierenburg (1994). Porém, para este pesquisador, a tendência atual é a de uma marginalização crescente dos aspectos rituais da violência e uma ênfase progressiva no caráter instrumental da ação violenta, já que a produção recente tem elaborado análises superficiais e meramente estatísticas, que não respondem à complexidade de tal fenômeno. Pois, a análise da violência exclusivamente abordada em seu caráter quantitativo, através de indícios documentais judiciais, apresenta inúmeros problemas: veracidade das fontes, poucos indícios, mudanças nas atitudes públicas de repressão e nos padrões dos crimes cometidos, aumento da população, sem mencionar as variações da economia, que influenciam as atitudes de sobrevivência dos agrupamentos humanos.

A História Social do Crime considerava importante as análises sobre as classes excluídas, demandando não apenas uma outra metodologia mais quantitativa, como também identificando as rupturas sociais nas mudanças da criminalidade. O historiador inglês, Lawrence Stone [4], a este exemplo, ao analisar a violência interpessoal na Inglaterra entre os anos de 1300 a 1980, constatou tanto uma mudança na atitude pública perante o crime, quanto a publicação de novas leis e uma maior sensibilização da população, influindo negativamente nos índices da agressão. O autor concluiu que a introdução de uma força policial no século XIX na Inglaterra foi responsável pelo declínio da violência e da agressão [5]. Autores que se inserem nessa perspectiva são sustentados pela tese de Norbert Elias (1994) sobre o processo civilizador e reiteram, através de evidências documentais, um acentuado declínio dos homicídios a partir do século XVII e que se estende até o Oitocentos. O que só foi possível pela implementação de políticas públicas de ordenação do tecido social e aumento da força policial. Notadamente, a monopolização da violência se fez pela atuação crescente do Estado, acompanhada pela organização de uma força policial e por um processo sócio psicológico de pacificação do instinto agressivo.

O dossiê pretende abranger os estudos sobre a violência e a criminalidade, apresentando trabalhos inéditos tanto relacionados ao contexto histórico do país, quanto análises pertinentes para outras realidades exteriores que possam contribuir para o entendimento do fenômeno criminal.

Neste sentido, os trabalhos apresentados suprem de maneira brilhante o nosso objetivo. A temática busca a compreensão do crime nas suas várias manifestações através dos diferentes contextos históricos apresentados. Assim, a dimensão do estudo da criminalidade está abordada em várias regiões do país e em diferentes contextos históricos, desde o século XVIII ao século XX. O rigor metodológico e teórico é identificado em cada trabalho, bem como o cuidado com as fontes documentais e bibliografia atualizada. A percepção historiográfica dos trabalhos apresentados conta com as abordagens culturalistas e da história social. Contamos neste número com pesquisas de vários estados brasileiros, possibilitando o diálogo entre os membros do Grupo.

Optamos por uma organização cronológica dos trabalhos selecionados para esta coletânea. Assim temos: “O Preciso e a retórica dos revolucionários de 1817” de Flávio José Gomes Cabral, onde o autor analisa o discurso revolucionário pela divulgação do panfleto ‘Preciso’, que aludia a justificativa revolucionária da época. A seguir: “Punição, regeneração e autonomia: aspectos do trabalho prisional vistos a partir da fuga do ‘preto Thomaz’ (Recife, 1868)” de Aurélio de Moura Britto. O texto faz uma análise sobre o sistema prisional da época, seus regulamentos e prescrições da vida na Casa de Detenção de Recife a partir de um estudo de caso. O artigo a seguir: “Salve-se quem puder”: as faces da criminalidade no Recife na década de 1870” de Jeffrey Aislan de Souza Silva analisa a criminalidade na cidade de Recife como um problema político para as elites locais. Também, ‘“Grandes desejos”, realidades distintas: roubos e furtos no Recôncavo Baiano – Cachoeira, década de 1880” do autor Eliseu Santos Ferreira Silva busca analisar as práticas de furtos e roubos no Recôncavo Baiano durante a década de 1880 compreendendo essa prática ilegal e o meio social em grande transformação, bem como as formas de combate da infração na época por parte das elites políticas locais. A seguir: “Os jornais cariocas e as notícias de homicídios na primeira década do século XX”, de Thiago Torres Medeiros da Silva. A abordagem busca perceber a divulgação dos homicídios em jornais da época, analisando suas formas de narrativas e linguagens jornalísticas para o fenômeno. Também, o texto: “As aparências enganam: mulheres e o uso da imagem para prática de crimes contra a propriedade no Rio de Janeiro da Primeira República” de Aline Carneiro do Nascimento versa sobre a análise de crimes cometidos por mulheres brancas, bem como a forma de narrativa destes crimes e suas as reportagens nos jornais da época. Outro artigo: “O Batman tinha uma arma: influências sócio-políticas da construção da moral do arquétipo na década de 1930”, de Sávio Queiroz Lima, busca analisar a construção de uma conduta moral a partir de personagens ficcionais de histórias em quadrinhos da época. Assim, a representação de Batman é emblemática para se perceber a efetivação de uma política norte-americana de combate às armas e ao crime organizado, estendendo-se aos países de sua influência hegemônica no período. A seguir, o artigo: “Piratas do Rio: roubos, furtos e outros crimes a bordo e nas margens da Região de Manaus”, de Leno José Barata Souza. O autor analisa a prática da criminalidade na Região de Manaus durante o século XX a partir de jornais da época. Manaus, conhecida como a ‘cidade dos piratas’ foi palco, durante o período, de uma das formas mais emblemáticas de criminalidade: a pirataria contemporânea. O autor analisa este fato levando-se em conta a grande transformação da economia do lugar, bem como as questões sociais que influenciaram o fenômeno na região.

Notas

1. MERTON, Robert. Estrutura Social e Anomia. In.: Sociologia: teoria e estrutura. São Paulo: Mestre Jou, 1968. APUD: BEATO, Cláudio. Crime e Cidades. Belo Horizonte: UFMG, 2012. pp.: 144-145.

2. MESSNER, S. “Income Inequality and Murder Rates: Some Cross-sectional Findings”. In.: Comparative Social Research, 1980. APUD: BEATO, Cláudio. Crime e Cidades. Belo Horizonte: UFMG, 2012. pp.: 144-145.

3. SPIERENBURG, Pieter. Faces of Violence: Homicide trends and Cultural meanings: Amsterdam, 1431-1816. Journal of Social History. 1994, pp. 701-716.

4. STONE, Lawrence. Interpesonal Violence in English Society: 1300-1980”. Past & Present. 1983. Pp. 22-33.

5. Jean-Claude Chesnais, ao contrário, irá perceber a manifestação da violência como uma ação invariavelmente objetivada sobre as famílias. Sem se preocupar com estes modelos explicativos de aumento ou diminuição na incidência de crimes, Chesnais apenas constata a permanência da violência nas sociedades ocidentais e suas múltiplas formas de manifestação em cada momento histórico. Com efeito, as famílias, estes pequenos núcleos humanos, sempre foram afetados em sua constituição íntima pelo ódio humano em todas as épocas históricas. A desestruturação dos lares se dá seguramente pela violência incontrolável que os margeia, justificada tanto pela fome quanto pela idolatrada honra nos séculos passados. Cf.: CHESNAIS, Jean-Claude. Historie de la violence. Seiul. Paris, 1998. Beattie, por sua vez, defende um aumento na proporção dos crimes durante o século XVIII na Inglaterra graças a criação da ‘Reformation of Nauners’, cujo objetivo era ajudar a conter os crimes e demais desordens e violências. Porém, o resultado foi outro. Pois, a extensão da pena de morte para os homicídios contra a propriedade e outros atos violentos considerados insignificantes no período posterior, levou a um aumento gradual tanto dos registros das prisões, quanto dos julgamentos nos tribunais. Cf.: BEATTIE, F. M. The pattern of crime in England. 1660-1800. Past and Present. 62. Pp. 45-95.

Célia Nonata da Silva – Professora Doutora (UFAL)

Francisco Linhares Fonteles Neto – Professor Doutor (UERN)

Organizadores do dossiê História Social do Crime


SILVA, Célia Nonata da; FONTELES NETO, Francisco Linhares. Apresentação. Crítica Histórica, Maceió, v. 9, n. 17, junho, 2018. Acessar publicação original [DR]

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Poderes, Instituições e Redes Políticas na América Portuguesa / Crítica Histórica / 2017

Para alguns indivíduos, o período colonial ficou no passado, momento em que D. João VI retornava ao reino lusitano e possibilitava que seu rebento, D. Pedro I, aliado com as elites fluminenses, concretizava a emancipação política em 1822. De lá para cá o Brasil vivenciou duas monarquias, algumas ditaduras, curtos momentos de democracia, tentativas e concretudes de golpes políticos e experiências presidencialistas catastróficas. E o passado? Sempre assombrando o presente… seja para relembrar que nada mudou ou para rememorar aquilo que não se concretizou. Alguns exemplos…

Segundo Bárbara Libório e Tai Nalon, os estabelecimentos que em pleno século XXI ainda usam o trabalho escravo são perenes. De acordo com os jornalistas, no ano de 2015, houve uma investigação em 257 empresas através de 143 ações policiais de fiscalização contra o trabalho escravo, culminando em uma identificação de 1.010 indivíduos que poderiam ser enquadrados nas características desse tipo de utilização de mão de obra1. Para combater tal condição, a PEC 438 trazia uma perseguição rígida àqueles que ainda usavam deste tipo de prática, culminando, inclusive, na expropriação das terras que seriam destinadas a programas sociais.

Ainda que tal emenda não saísse do papel, em pleno 2017, o governo do presidente Michel Temer surpreendeu a todos, causando uma espécie de motim nas redes sociais, pois visando agradar a banca ruralista no senado, alterou as regras de fiscalização do trabalho escravo que restringia esta classificação como resultado das limitações de locomoção dos trabalhos e não às práticas de trabalhos extenuantes e sem remuneração adequada. Além disso, impedia a divulgação pública dos estabelecimentos desse tipo de prática e obrigava que a fiscalização só poderia ser feita com a intervenção policial. Diante das críticas e manifestações sociais que eclodiram em diversos espaços virtuais, o governo teve que recuar da medida, acatando o que havia sido determinado em outros expedientes judiciais.

Como se não bastasse, algum tempo depois, a juíza Luislinda Valois, Desembargadora do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro e ex-ministra dos Direitos Humanos do mesmo governo em tela, protocolava um pedido ao governo federal para incorporação da gratificação à sua aposentaria enquanto magistrada dos valores adquiridos como ministra do governo, somando a importância de R$ 62 mil reais mensais, muito além do teto permitido pelo INSS. Como justificativa, comparava as suas condições de trabalho análogas à escravidão, tendo em vista que os já R$ 31 mil reais de aposentadoria que recebia não a permitiam sobreviver com dignidade. Tal postura levou a uma crítica sagaz de todo jornalismo brasileiro e mídias sociais, corroborando com notas de repúdio de várias comunidades do movimento negro brasileiro repudiando a postura da magistrada que além de “afrontar a dignidade da população negra, a posição da ministra é um atestado cabal da falta de compromisso com o combate ao racismo e com verdadeira cidadania de negros e negras” [2].

Esses casos, como tantos outros envolvendo a perseguição à grupos LGBT, intolerância religiosa, restrições à política de aborto, sem falar nos casos envolvendo alianças políticas, formação de redes de poder e perfeita sincronia entre os poderes legislativo, judiciário e executivo, apontam para uma longa duração dos aspectos do mundo colonial na sociedade brasileira contemporânea. As práxis coloniais nunca estiveram tão presentes nas rodas de discussão, conversas de bar, panfletagem nas redes sociais e no cotidiano do brasileiro. Para os alagoanos e pernambucanos, especialmente 2017, viu-se emergir a rememoração dos efeitos e uma análise do que poderia ter sido a insurreição de 1817. O bicentenário do movimento republicano da elite pernambucana de 1817, insatisfeitas com o modelo agrário e excludente do governo português joanino, se para os moradores no atual Estado de Alagoas representou as possibilidades de se emancipar frente à égide do governo da Capitania de Pernambuco [3] e dar existência a um conjunto de identidades em constante metamorfose dicotômica à elite que a dominava; para os pernambucanos era a uma tentativa de protagonismo no cenário político colonial, mas sufocado por uma violenta repressão e novas posturas político-econômicas de D. João VI para as antigas “Capitanias do Norte” [4].

E o mundo colonial mais uma vez vinha à lume no debate social… Emancipação por traição? Os pernambucanos queriam um federalismo para quem? A comarca das Alagoas já tinha condições de autonomia? Os impeditivos impostos à elite da antiga donataria de Duarte Coelho não foram excessivos? Questões que não se esgotam em eventos, documentos e reflexões…

Em contrapartida, entre os historiadores, aqueles que sempre tem o papel de lembrar do passado, segundo muitos teóricos da área e a população em geral, a América Portuguesa, como assim prefiro chamar, nunca saiu de cena. Sempre esteve ali, no dia a dia dos brasileiros a partir das dificuldades sofridas pela população de cor em conquistas de direitos sociais, nas coerções exercidas pelas religiões católicas e protestantes condenando práticas e comportamentos sociais, ou pelas alianças políticas de vereadores, deputados e todas as classes de políticos que sempre buscam vilipendiar a massa populacional. A coroa portuguesa, no sentido coletivo mesmo, só se transferia de lugar ao longo dos modelos políticos, e ganhava vários indivíduos em busca da consolidação do poder e saque dos recursos econômicos produzidos por aqueles que constroem o país.

A historiografia colonial tentou explicar tais fenômenos, essencialmente políticos, Antigo Sistema Colonial [5], Modo de Produção Escravista Colonial [6], Antigo Regime nos Trópicos [7], Monarquia Pluricontinental [8] e, mais recentemente, Um Reino e suas Repúblicas [9]! Vários conceitos para uma só dinâmica. Mas na essência duas questões se sobressaem: de um lado, as tentativas de controle desenfreado pela monarquia portuguesa sobre seus espaços americanos, visando não só a sua consolidação político-econômica no cenário moderno europeu ainda que demonstrasse uma imensa dependência financeira destes mesmos espaços, diferentemente do que ocorreu com suas congêneres monarquias; e por outro lado, as manifestações locais e do cotidiano dos moradores separados por um oceano vastíssimo e que permitia, por conta da inexistência da presença física deste mesmo monarca, em experimentar condições de autonomia, liberalidade e sobrevivências fluídas, complexas, dinâmicas e não encarceradas em um único modelo, mas variáveis nas diferentes espacialidades, temporalidades e das necessidades dos diversos grupos nele cotejados.

Essas duas características foram perfeitamente costuradas por outras duas condições indeléveis e essenciais para a construção do poder: a escravidão e o catolicismo. O modelo religioso imposto pela monarquia portuguesa solidificou costumes e construiu práticas comportamentais que reforçassem o poder régio, não no aspecto centralizador, como muito se pensou, mas em um domínio imaginário, num corpo presente ainda que ausente, condição chamada por Ernst Kantorowicz de corpus mysticum [10]. E, por mais incrível que possa parecer, a escravidão, onipresente em todos os ambientes daquela sociedade, não entrava em choque com tais questões. Como bem frisou Stuart Schwartz, antes de mais nada esta era uma Sociedade Mercantil Escravista [11], tendo em vista a utilização deste tipo de mão de obra ser a grande responsável pelas estratificações sociais, pelo desenvolvimento das condições econômicas, pela classificação de distinções sociais e, acima de tudo, pela demarcação de diferença entre uns e outros.

Dependência econômica, criatividade das gentes, escravidão e catolicismo. Quatro elementos presentes no continuum brasílico do Quinhentos aos tempos atuais… É o mundo colonial no presente ou presente no mundo colonial? Causando-nos uma estranha sensação de nunca termos saído dessa condição… e saímos?

Enfim, o presente dossiê “Poderes, Instituições e Redes Políticas na América Portuguesa” buscou aprofundar este debate, onde o poder, as suas instituições e seus agentes passam a ser compreendidos na imbricada malha escravista, nas necessidades econômicas dos seres, nas determinações eclesiásticas e nas visões de mundo apreendidas pelos homens que cruzaram o Atlântico. Mas do que delegadas pelas composições políticas e institucionais do reino, nas conquistas as especificidades locais e a natureza enraizada dos personagens (colonos e agentes) forjaram peculiaridades de poder, malhas administrativas e estruturas de justiça própria, adaptadas à ordem e aos interesses daqueles que conduziam o cotidiano colonial em prol da manutenção do poder, soberania e autoridade régia. São essas questões que interessam e ajudam a compreender uma outra experiência, mais dinâmica, complexa e permeadas de vicissitudes e particulares.

O dossiê consta de cinco artigos e mais uma análise documental.  Hugo André Flores Fernandes Araújo em O aprimoramento da governabilidade no Estado do Brasil durante a segunda metade do século XVII: regimentos, jurisdições e poderes se debruça na análise sobre o principal centro administrativo e político na América portuguesa até a segunda metade do Século XVIII. Sua compreensão é de um Estado do Brasil marcado por sobreposição de poderes que tinham a necessidade constante de aprimoramento de jurisdição. Com uma conquista ainda em consolidação, o governo lusitano através de seus agentes buscava uma gestão dos espaços muitas vezes marcados pela fragmentação e outros centros interligados. Por fim, o texto também vislumbra as mudanças administrativas implementadas após expulsão dos batavos e a instituição do Conselho Ultramarino, bem como os receios no que tange a criação da Repartição Sul e o provimento de ofícios regulados por agentes monárquicos.

Fabiano Vilaça dos Santos em Governadores e capitães-generais do Estado do Maranhão e Grão-Pará e do Estado do Grão-Pará e Maranhão (1702 a 1780): trajetórias comparadas se envereda por um outro domínio português no Atlântico, o Extremo Norte. Muitas vezes compreendido como autônomo e com suas particularidades, o Estado do Maranhão e Grão Pará constitui-se como uma peça chave na política colonial portuguesa, sendo assim, o autor investiga os perfis sociais e as carreiras dos Governadores encaminhados para representar o monarca em grande parte do século XVIII. Homens solteiros, naturais de Lisboa, alguns familiares do Santo Ofício, formados em Coimbra, militares e com uma vasta relação social com indivíduos entre os mares. O autor percebe a ilha da Madeira como um lugar de passagem anterior destes agentes e uma grande circularidade destes governadores por outros espaços de poder. Na prática, ainda que com perfis parecidos, o autor apresenta as diferenças entre os ministros régios na primeira e na segunda metade do século XVIII.

Mônica da Silva Ribeiro em Trajetórias Administrativas da Capitania do Rio de Janeiro (1710-1763) analisa alguns personagens encaminhados para o Rio de Janeiro antes da instituição do lugar como o novo eixo político econômico da América Portuguesa, ainda que na prática, após as descobertas dos veios de ouro nas Capitanias das Minas, a localidade já havia se tornado a principal praça das conquistas lusitanas. A compreensão do perfil dos ministros do rei em seus domínios americanos auxilia na apreensão do modelo de colonização escolhidos pela monarquia portuguesa, bem como identifica como a estrutura administrativa se moldava às conjunturas e às necessidades dos modos de governar da coroa lusitana.

Nara Maria de Paula Tinoco em Gabriel Fernandes Aleixo: Trajetória e Ascensão nas Minas Gerais (1720-1757) insere-se no debate historiográfico sobre trajetórias administrativas que investiga o caminho percorrido entre São Paulo, Santos e Minas Gerais de um agente régio. Seu personagem, que pleiteou a habilitação da ordem de Cristo, foi escrivão da Ouvidoria de Vila Rica de Ouro Preto, sendo um indivíduo importante na região por gerenciar contratos, dízimos, pagamentos de soldos e controle de terras. As trajetórias administrativas, com verniz de história social, possibilitam um descortinar dos homens que buscavam todos os meios para se solidificar na sociedade colonial.

Anne Karolline Campos Mendonça em As Facetas Jurídicas de um Homem Subalternizado. Alagoas Colonial, 1755 se debruçou sobre a justiça na Comarca das Alagoas em meados no século XVIII. Partindo do conceito de negociação, a autora identifica os limites e as restrições do aparelho judicial moderno, através do caso de Lázaro Coelho de Eça. Tal personagem imbricado em uma rede de relações de força, de ideologia de gratidão, recompensa de serventias e fundamentação dos direitos de conquista, visa através da justiça remediar sua condição. Sua história permite identificar a trajetória de alguns grupos “inferiores” na sociedade colonial e sua relação com a justiça, tendo em vista de remeter aos grupos de índios da aldeia de Urucu (Alagoas do Norte) e abrir o debate sobre o “estatuto de cor” naquela sociedade.

Por fim, Alex Rolim Machado na seção Documentação traz à lume Cinco Documentos para a História das Alagoas – Contribuição para os Estudos Demográficos, Econômicos, Geográficos e Administrativos, 1749-1814 uma análise de alguns conjuntos primários imprescindíveis para se pensar Alagoas enquanto região subordinada à Capitania de Pernambuco. Tais conjuntos são 1) a Informação Geral da Capitania de Pernambuco; 2) a ordem do Governador e Capitão General Luiz Diogo Lobo da Silva em seu último ano de Governo (1756-1763); 3) os ofícios de Justiça e Fazenda de várias Capitanias, Comarcas e Vilas do Brasil Colonial, feito em 1767, a pedido do Marquês de Lavradio, na Bahia; 4) a Ideia da População da Capitania de Pernambuco; e 5) as Notas Corográficas sobre a Comarca das Alagoas em 1814. Os documentos auxiliam no preenchimento de lacunas interpretativas sobre a parte sul da Capitania de Pernambuco, bem como os moradores se relacionaram com sua sede e com o centro administrativo e político português.

Enfim, é um conjunto de artigos e fontes que possibilitam ao historiador – e a qualquer indivíduo – entender mais do que as permanências e rupturas do mundo colonial nos tempos contemporâneos, mas acima de tudo, compreender a complexidade daquelas centúrias bem como as particularidades que marcavam cada uma das conquistas – do Maranhão às Minas Gerais. Os textos são costurados pelo viés da História Política e História Social da Administração que entendem a imbricação das questões econômicas, mentais, sociais e religiosas para compor o mundo político. Quem sabe assim, podemos melhor analisar as condições que vivenciamos na atualidade e buscamos alternativas outras para mudanças de status quo atual. Boa leitura.

Comarca das Alagoas, Massayó, novembro / 2017

Notas

1. LIBÓRIO, Bárbara & NALON, Tai. “Sem Regulação, PEC do Trabalho Escravo está Parada há 2 anos no Senado”, 13 / 05 / 2015. Disponível em Acessado em 28 nov 2017 às 7h04min.

2. Congresso em Foco. “Ministra que Comparou Salário de R$ 31 mil a trabalho escravo não representa os negros, diz movimento”, 04 / 11 / 2017. Disponível em acessado em 28 nov 2017 às 7h40min.

3. COSTA, Craveiro. A Emancipação Política das Alagoas. Maceió: Secretaria de Estado dos Negócios de Educação e Cultura, 1967; BRANDÃO, Moreno. O Centenário da Emancipação de Alagoas. Maceió: Catavento, 2004; CAVALCANTI, Rosiane Rodrigues. Bicentenário em Prosa: 200 anos de Alagoas. Maceió: Imprensa Oficial Graciliano Ramos, 2017.

4. MELLO, Evaldo Cabral de. A Outra Independência – O Federalismo Pernambucano de 1817 a 1824. Rio de Janeiro: Editora 34, 2004; MOURÃO, Gonçalo de Mello. A Revolução de 1817 e a História do Brasil. Belo Horizonte, 1996; BUYERS, Ann Marie. “Em Defesa da Honra: a Emancipação de Alagoas no Imaginário Institucional” In: Crítica Histórica. Maceió: Centro de Pesquisa e Documentação Histórica, Volume 1, Nº 2, jul-dez, 2010.

5. PRADO JÚNIOR, Caio. Formação do Brasil Contemporâneo. São Paulo: Publifolha, 2000; NOVAIS, Fernando. Portugal e Brasil na Crise do Antigo Sistema Colonial (1777-1808). São Paulo: Hucitec, 2005.

6. CARDOSO, Ciro Flamarion. “Sobre los modos de Produción Colonial en America” In: SANTIGO, Théo (Org.) America Colonial: Ensaios. Rio de Janeiro, 1975.

7. BICALHO, Maria Fernanda Baptista; FRAGOSO, João; & GOUVÊA, Maria de Fátima (Orgs.). O Antigo Regime nos Trópicos: a Dinâmica Imperial Portuguesa (Séculos XVI-XVIII). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011.

8. FRAGOSO, João e SAMPAIO, Antonio Carlos Jucá de (Orgs.). Monarquia Pluricontinental e a Governança da Terra no Ultramar Atlântico Luso. Rio de Janeiro: Mauad X, 2012.

9. FRAGOSO, João e MONTEIRO, Nuno Gonçalo (Orgs.) Um Reino e Suas Repúblicas no Atlântico: Comunicações Políticas entre Portugal, Brasil e Angola nos Séculos XVII e XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2017.

10. KANTOROWICZ, Ernst. Os Dois Corpos do Rei – Um Estudo sobre a Teologia Política Medieval. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.

11. SCHWARTZ, Stuart. Segredos Internos – Engenhos e Escravos na Sociedade Colonial. São Paulo: Companhia das Letras, 1988.

Antonio Filipe Pereira Caetano – Professor Associado 1 – Universidade Federal de Alagoas Coordenador Grupo de Estudos América Colonial – GEAC


CAETANO, Antonio Filipe Pereira. Apresentação. Crítica Histórica, Maceió, v. 8, n. 16, dezembro, 2017. Acessar publicação original [DR]

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Ensino de História / Crítica Histórica / 2017

As pesquisas acerca do ensino de história no Brasil têm ganhado significativa relevância nas últimas décadas, adquirindo contornos importantes a partir da constituição de linhas de pesquisas dentro dos programas de pós-graduação em educação ou em história. Igualmente, tem-se a mesma percepção ao nos reportarmos à realização de eventos nacionais das respectivas áreas, como os vários simpósios temáticos que têm ocorrido no contexto dos Encontros promovidos pela ANPUH regional e nacional, o Encontro Nacional dos Pesquisadores em Ensino de História e o Encontro Nacional Perspectivas do Ensino de História.

Notadamente, esta produção e suas interfaces tem permitido a constatação de um campo de estudos em ebulição ao evidenciar produção significativa do ponto de vista teórico-prático face às aproximações e distanciamentos entre o que se produz nos centros de pesquisa em história e / ou em educação e o que se produz nas salas de aulas da educação básica pelos professores e estudantes.

Apesar dessa constatação, a história, dentre as disciplinas escolares, é a que tem sofrido os mais fortes ataques em nosso tempo presente, seja no desenvolvimento de ações daquilo que se reconhece como Escola Sem Partido ou mesmo no contexto das reformas educacionais em curso no Brasil contemporâneo, materializadas na polêmica reforma do ensino médio e nas diferentes versões da Base Nacional Comum Curricular.

Este contexto aparentemente contraditório: de um lado o fortalecimento do campo do ensino de história, de outro sua desconsideração oriunda das políticas públicas transfiguradas em reformas curriculares em andamento no país, tende a nos aproximar destas produções recentes no sentido de reafirmarmos a sua relevância do ponto de vista social, cultural e político assim como a ressignificação do ensino de história para os estudantes da educação básica enquanto conhecimento histórico que pretende ampliar o campo de possibilidades de formação destes agentes sociais enquanto sujeitos críticos e reflexivos não apenas nos espaços escolares, mas também fora destes! Notadamente, estes discursos já foram fatidicamente anunciados, entretanto, ainda é incipiente a sua materialização nas práticas cotidianas de estudantes e professores no âmbito das salas de aulas da educação básica.

Em face das considerações iniciais deste escrito, eis um dos objetivos deste Dossiê trazido por esta edição da Revista Crítica Histórica sobre o ensino de história e algumas de suas interfaces no Brasil.

Em seu conjunto, os textos aqui apresentados pelos autores percorrem um leque interessante de preocupações. A leitura deste Dossiê permite ter uma noção acerca das reformas curriculares em curso no país por meio de dois de seus artigos, adentrar às especificidades das práticas escolares em outros dois, perguntar-se sobre o ensino de história em espaços não escolares, aproximar-se de questões relativas à aprendizagem de adolescentes, jovens e adultos em relação ao tempo histórico e, por último, num texto instigante, pensar a formação cultural e histórica de crianças num tempo outro.

Adentrando ao Dossiê, deparamo-nos com o artigo de Giovani José da Silva e Marinelma Costa Meireles cujo debate descortina as tensões concernentes à primeira versão da Base Nacional Comum Curricular. Para além das discussões e escolhas que essa versão preliminar da BNCC implicou, o artigo torna-se instigante por ser de autoria de um dos profissionais envolvidos no desenvolver dos debates e, sobretudo, na redação da primeira versão do referido documento que pretendia ser referência sobre o ensino de história na educação básica no país. Por outro viés, o escrito também tem um caráter documental de registro dos processos políticos de elaboração de uma reforma educacional curricular.

Na sequência, o artigo de Geraldo Magela Neto, também sobre a primeira versão da BNCC, faz uma incursão em outra perspectiva. Procura recuperar o debate público que essa versão preliminar propiciou na sociedade, extrapolando os espaços acadêmicos e ganhando ímpeto na imprensa escrita e televisiva. O autor denuncia, ainda, a ausência de um interlocutor importante na constituição do referido documento: o professor que, ao seu ver, teoricamente seria o responsável por sua implementação no currículo nos espaços escolares.

Ao recuperar a sala de aula como lugar de produção do conhecimento histórico, Lídia Baumgarten, trabalhando com o conceito de consciência histórica, discute em seu artigo resultados de uma pesquisa realizada com estudantes do final do Ensino Fundamental e início do Ensino Médio ao desvelar qual a “compreensão sobre o ensino de História, suas relações entre passado e presente, a relação com a vida cotidiana e a formação da consciência histórica de alunos de duas turmas da educação básica do município de Assis”, interior paulista.

Igualmente, na perspectiva de diálogos com jovens e adolescentes que frequentam a escola brasileira, Adriano da Silva “apresenta uma pesquisa sobre o ensino e aprendizagem da história escolar e tem como finalidade investigar o entendimento dos estudantes do ensino médio sobre as noções de tempo e de temporalidades principalmente em relação ao tempo histórico e os usos do passado”.

Alargando as possibilidades de pensar a aprendizagem histórica para além das salas de aula e ampliando a perspectiva de pensar a formação em ambiente escolar, Júlio Cesar Costa discute em seu artigo o ensino de história no contexto de práticas educativas em museus. Além de alterar a perspectiva do ensino de história e focar a formação continuada de professores, o artigo possibilita refletir acerca das imbricações entre história e memória.

Ao finalizar a travessia pelo presente Dossiê, o leitor encontrará no escrito de Andrea Giordanna Araújo da Silva, intitulado “As narrativas radiofônicas de Walter Benjamin: ensino de história cultural e formação política” uma reflexão inicial dos conteúdos pedagógicos manifestos nas narrativas que compõem a obra “A Hora das Crianças: narrativas radiofônicas de Walter Benjamin”. Nota-se neste artigo uma interessante reflexão sobre as possibilidades de se pensar questões como tempo e história, cultura e política com e para as crianças. Um texto que trata dos anos 30 do século XX na Alemanha às portas do totalitarismo, mas possibilita instigantes reflexões sobre o nosso tempo presente, tempo em que a escola foi universalizada e as crianças brasileiras a frequentam em sua maioria. Qual o ensino de história que deve ser destinado a essas infâncias?

Completa o Dossiê duas resenhas sobre importantes livros do campo do ensino de história. A primeira delas, elaborada por Cibele de Camargo Lima e André Luiz Lírio da Cunha, trata do livro Professores de História. Entre Saberes e Práticas, de Ana Maria Monteiro. A segunda, escrita por Júlio César Machado, apresenta de forma instigante o livro intitulado Ensino de História, da Coleção ideias em Ação, obra que tem como uma das organizadoras Kátia Maria Abud.

Enfim, acima uma das possibilidades de leitura que este conjunto de textos possibilita. Certamente os leitores e leitoras é que lhes darão maior sentido e significado. Leituras críticas poderão aprofundar o que aqui buscamos proporcionar, juntos com as autoras e os autores deste Dossiê.

Impossível fechar sem aludir ao tempo presente no qual o quadro político e social no Brasil se esgarça e suas mazelas são publicamente expostas. Conflituoso momento político esse em que vivemos e escrevemos, no entanto, tão propício para que professores- pesquisadores e historiadores se debrucem sobre as tensões históricas e políticas do tempo presente para que exerçam e garantam o seu relevante papel social de não permitir que a memória se apague e que não seja esquecido o quanto árduo foi construir a tênue democracia em que vivemos.

Constitui-se esta, numa outra lição que cabe ao ensino de história e aos seus responsáveis, professores e formadores de professores, não perderem de vista buscando avançar para além do saber de cor no intuito de aprendê-la.

Antônio Alves Bezerra – Professor Doutor (ICHCA / UFAL)

João do Prado Ferraz de Carvalho – Professor Doutor (EFLCH / UNIFESP)

Organizadores do dossiê Ensino de História


BEZERRA, Antônio Alves; CARVALHO, João do Prado Ferraz de. Apresentação. Crítica Histórica, Maceió, v. 8, n. 15, julho, 2017. Acessar publicação original [DR]

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História Social das Religiões / Crítica Histórica / 2016

A pesquisa histórica sobre as diferentes religiões mundiais tem se expandindo consideravelmente no Brasil nas últimas décadas. Muitas vezes dentro de uma perspectiva multidisciplinar, em contato direto com as áreas da sociologia, antropologia, ciências da religião, filosofia, psicologia e teologia. Tais aproximações estimularam, em especial, os debates e a busca por refinamento das análises e explicações históricas, compreendendo que o objeto “religião(ões)” é um dos mais complexos no campo de pesquisa.

Uma das características dos estudos das ciências sociais são os esforços teórico-metodológicos empreendidos no sentido de responder às problemáticas que possam superar os interesses confessionais, privilegiando a busca pelo diálogo interreligioso, com fins à construção de uma sociedade plural, democrática e de respeito.

Nesse sentido, a História Social contribui, especialmente, ao aproximar a temática religiosa dos contextos socioculturais, políticos e econômicos. Ao destacar conflitos, continuidades e mudanças internas e externas às religiões, põe em evidência processos históricos nos quais as instituições religiosas, religiosidades, ideologias religiosas e seus sujeitos (coletivos e individuais) participaram ativamente nos seus locais de origem e atuação, servindo, por vezes, aos interesses de “legitimação” e / ou “subversão” das estruturas de poder.

Neste sentido, o Dossiê História Social das Religiões aqui apresentado pela Revista Crítica Histórica, no seu número 14 de dezembro de 2016, é uma contribuição a esta área de pesquisa. Com temáticas clássicas e novas, temporalidades e abordagens diferenciadas compõe um quadro de referência que abre possibilidades de pesquisa para novos e experimentados pesquisadores. Destaca-se, em especial, a análise de documentações históricas variadas, como também as conexões entre os textos, que expressam as experiências históricas de contato / confluência / conflitos entre as classes populares, as elites e as instituições, na vivência da sua religiosidade afro-brasileira, católica, espírita etc.

O texto que abre o dossiê intitulado “Inquisição e status social: processos de habilitação de Familiares do Santo Ofício que não se enquadravam às normas (Rio de Janeiro, segunda metade do século XVIII)” de Roberta Cristina da Silva Cruz, tem como objetivo examinar a obtenção da carta de Familiar do Santo Ofício por indivíduos que não se enquadravam às normas, dando enfoque a casos em que os habilitandos já tinham laços de parentesco com outros Familiares e conseguiram a patente apesar de apresentarem impedimentos.

Em seguida, o artigo “Rever o passado para estigmatizar um presente incômodo: Montano e outros “heresiarcas” do século II no olhar de Euclides da Cunha sobre Antonio Conselheiro” de Pedro Lima Vasconcellos, trata de como Euclides da Cunha, em Os sertões, aborda líderes cristãos do século II, tomados como heréticos, em vistas a estigmatizar a figura de Antonio Conselheiro. O interessante debate trazido por Vasconcellos, contribui exemplarmente para uma leitura mais atenta e problematizadora da experiência histórica de Belo Monte (Canudos).

O artigo “Centro Espírita Deus, Amor e Caridade: mediunidade e legitimação do espiritismo no Pernambuco do início do século XX” de Rosilene Gomes Farias, por sua vez, estuda os conflitos em torno do espiritismo kardecista, no município de Marial, objeto de investigação policial, em função da suspeita de abrigar sessões de catimbó. A pertinente análise da autora “discute as tensões que permeavam as discussões contemporâneas sobre as religiões mediúnicas e a tentativa de criminalização das suas práticas, ancorada nas interpretações da psiquiatria sobre o fenômeno e na suspeita de que se tratava de curandeirismo”.

Já em “Santos e orixás: sincretismo, estética e arte afro-brasileira na estatuária da Coleção Perseverança” de Anderson Diego da S. Almeida, Maria de Lourdes Lima e Rossana Viana Gaia tem-se uma abordagem nova para o estudo das religiões afro-brasileiras em Alagoas. Ao tratar do “sincretismo cultural presente na Coleção Perseverança” procura demonstrar um “complexo processo de ressignificação de distintas perspectivas de religiosidade se reflete na produção dos artefatos da referida coleção”. Tal texto contribui muito para a valorização da referida Coleção, como também para o entendimento da elaboração cultural e religiosa negra no estado.

Por fim, o artigo A Igreja Popular na cidade de Conceição do Coité (1989-1996) de Cristian Barreto de Miranda, apresenta aspectos da ação pastoral do padre Luiz Rodrigues de Oliveira no semiárido baiano, sob o impacto das inovações do Concílio Vaticano II e das ações da chamada “Igreja Popular” e os conflitos com as oligarquias políticas locais.

Compõem ainda o nosso Dossiê a Resenha deste número, O santo que vive no sol: Padre Cícero, análise muito instigante do professor Ênio José da Costa Brito sobre a tese de doutorado, defendida na PUC-SP em 2015 por Carlos Alberto Tolovi, “Padre Cícero do Juazeiro do Norte: a construção do mito e seu alcance social e religioso”. O debate em cima do texto de Tolovi proporciona reflexões importantes sobre a relação entre mito, política e religião em tema tão conhecido como é o caso do Padre Cícero, no Ceará.

Encerra-se com uma Entrevista / Documentação por Alex Benedito da Silva, a partir da experiência do militante Carlos Lima, da Comissão Pastoral da Terra de Alagoas. Com o título “Um Histórico de Luta: A Juventude Popular Católica e a Comissão Pastoral da Terra em Alagoas na trajetória de Carlos Lima” esta entrevista constitui material de referência para os estudos da relação entre a militância política, a luta pela terra e a fé católica durante os anos 1990.

Na Sessão Fluxo Contínuo o leitor ainda encontra três artigos. “Liberdade e república na retórica do “pré-humanismo” italiano: um estudo sobre as obras do notário Albertano de Brescia (1195-1251) e do dominicano Remígio dei Girolami (1247-1319)” de Felipe Augusto Ribeiro, estuda os conteúdos da retórica praticada pelos italianos entre os séculos XIII e XIV problematizando a maneira como trataram, através dessa arte, as ideias de liberdade e de república. Adalmir Leonidio em “Tendências criminais e punitivas no Estado de São Paulo na segunda metade do século XIX”, busca mostrar que nas condições atrasadas do capitalismo brasileiro da segunda metade do século XIX, o sistema penal cumpria um duplo propósito: disciplinar o trabalho e reduzir os desvios. Em “Nas Trilhas do Saber e Fazer: Intelectualidade e Política Institucional no Piauí”, Pedro Pio Fontineles Filho e Cláudia Cristina da Silva Fontineles discutem a atuação político-institucional de intelectuais, apontando para os aspectos das relações de poder no que se refere às políticas educacionais nacionais e suas ressonâncias na esfera local do estado do Piauí, sobretudo os aspectos ligados ao ensino da chamada “Literatura Piauiense”.

Vale lembrar que a Revista Crítica Histórica se esforça em divulgar uma produção historiográfica atual, democratizando o acesso às pesquisas e informações que possam, assim espera-se, contribuir para o avanço de reflexões críticas sobre a experiência humana e sua concretização histórica em sociedade. Atualmente, sofremos através de um golpe político parlamentar graves atentados aos nossos (poucos) direitos individuais e coletivos, duramente conquistados e / ou em busca ainda de conquista. As resistências existem, mas por vezes nos vemos desarticulados no processo. É preciso, pois, juntar forças, avaliar com vigor a conjuntura, mas não deixar de valorizar as nossas utopias. Nossa esperança, posta hoje nos jovens do movimento secundarista e universitário, não pode ser passiva. Os professores-pesquisadores devem somar às lutas dos estudantes e trabalhadores e agir nos seus espaços. Aos estudantes das ocupações de Alagoas, em especial, dedicamos este dossiê e número. Vamos à luta!

Irinéia Maria Franco dos Santos – Professora da Universidade Federal de Alagoas e organizadora do dossiê nº 14

Maceió, Dezembro de 2016.


SANTOS, Irinéia Maria Franco dos. Apresentação. Crítica Histórica, Maceió, v. 7, n. 14, dezembro, 2016. Acessar publicação original [DR]

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Histórias do Atlântico e Diáspora Africana / Crítica Histórica / 2016

Em 2014, durante o Encontro de História da ANPUH – Seção Bahia, durante a fundação GT Regional História do Atlântico e da Diáspora Africana, fomos provocados pela Professora Ana Paula Palamartchuk, à época editora da Revista Crítica Histórica, para organizarmos o Dossiê que aqui apresentamos. Ele é produto da ação tanto do referido GT, quanto do Grupo de Pesquisa Estudos do Atlântico e da Diáspora Africana, cadastrado no CNPQ e certificado pela Universidade Estadual de Santa Cruz- UESC, em 2005.

O viés que norteou a seleção dos textos é a perspectiva de que uma centralidade da História Marítima, como um fio condutor de pesquisas e do estabelecimento de canais de diálogo entre os estudiosos ainda nos parece algo recente no Brasil. Isso não quer dizer que as pesquisas relativas à história marítima sejam novidade em nosso meio acadêmico. Mas o fato é que as possibilidades de temas, objetos, diálogos e formas de abordagens que se apresentam para uma História Marítima Brasileira são incontáveis. O estudo de diversos processos históricos, quando analisados em perspectiva atlântica, revelam as dinâmicas globais e nuanças que contribuem para um entendimento mais aproximado de suas complexidades.

A ideia de uma “História do Atlântico e da Diáspora Africana” traz consigo alguns significados e conceitos que remetem a sua amplitude temática, geográfica e cronológica. Esses significados e conceitos têm um impacto direto sob a perspectiva pela qual se analisa os fenômenos e processos sociais, sejam eles em suas dimensões sincrônicas ou diacrônicas.

O Atlântico, além de sua conotação geográfica mais imediata – o oceano que interliga as Américas, Europa e África – tem sido pensado e proposto como um espaço de contato e circulação de pessoas procedentes destas três porções de terra e, com elas, suas ideias, memórias, valores, tradições, línguas, literaturas, políticas, economias, culturas. A ideia de Atlântico e a de diáspora africana apresentam-se de modo imbricado e por vezes indissociadas. Com isso não se pretende circunscrever a História Atlântica apenas ao movimento gerado pelo deslocamento de pessoas e ideias, direta ou indiretamente, vinculado ao tráfico de escravos. Ela tem proporções muito maiores, que abarca a circulação de pessoas e culturas materiais e imateriais, das diversas margens do Atlântico. É, sem perder essa perspectiva, que se organizou o Dossiê que aqui se apresenta, cujos objetivos, reafirmamos, são de estimular o debate e a divulgação de pesquisa que discutam a circularidade atlântica de pessoas, ideias, projetos econômicos, políticos, educacionais e culturais, bem como, a presença dos africanos e seus descendentes nas sociedades do Novo Mundo. O amalgama deste dossiê não é um objeto, uma cronologia ou um tema. É um espaço, o Atlântico.

Iniciamos, assim, o Dossiê Histórias do Atlântico e da diáspora Africana, da Revista Crítica Histórica nº 13, com o artigo “A Baía do Pontal – Ilhéus: relações do porto com a cidade – 1911 / 1971”, autoria de Flávio Gonçalves dos Santos, que traz uma breve revisão bibliográfica que situa o leitor para as questões relativas aos estudos atlânticos e portuários. Além disso, o autor analisa as alterações das feições da cidade de Ilhéus, na Bahia, ao longo de 60 anos (1911 / 1971), em virtude da instalação de um porto que pretendia exportar cacau.

Na sequência, apresenta-se o artigo de Cezar Teixeira Honorato, intitulado “Os afrodescendentes e a comunidade portuária”, que discute o perfil da comunidade portuária do Rio de Janeiro no último quartel do século XIX e o primeiro do século XX. Trata-se de um artigo que busca ampliar a compreensão dos modos de organização da comunidade portuária carioca, a partir de formas de associação que os indivíduos cultivavam entre si, formando assim um sentimento de pertença, de reconhecimento recíproco e, enfim, redes de sociabilidades. Sem perder de vista o contexto social e histórico e a multiplicidade de personagens e grupos sociais que ocupava / disputavam o mesmo espaço na região portuária.

Saindo das análises dos portos e se dedicando ao processo de construção naval, o terceiro artigo, de Halysson Gomes da Fonseca, denominado “O ‘zelo patriotico do scientifico ministro’ Francisco Nunes da Costa e a produção naval baiana (1780-1800)” trás para o centro de sua abordagem a utilização de recursos naturais, no período colonial brasileiro, ao analisar os aspectos da exploração madeireira na região norte da Comarca de Ilhéus – Bahia. Trata também da trajetória e atuação do um funcionário da administração colonial portuguesa no Brasil e, ao fazê-lo revela as preocupações da época em relação ao manejo e conservação das espécies de árvores, cujas madeiras eram de interesse à coroa portuguesa para uso na construção naval. O artigo revela ainda, o fluxo atlântico de ideias científicas e humanistas, sobretudo, a partir do planejamento e racionalização da administração dos assuntos da colônia e do uso dos recursos naturais, como as matas.

Os artigos que seguem apresentam outra feição dos Estudos Atlânticos, daqueles a que se convencionou chamar de Atlântico Negro, por relatarem as experiências relativas à diáspora africana e aos modos de vida, ação, resistência e resiliência de africanos e afro-brasileiros.

Assim, apresentamos, ainda dialogando com os séculos XVIII, Matheus Silveira Guimarães, em seu artigo “A população africana na irmandade de Nossa Senhora do Rosário: a cidade da Parahyba e o Mundo Atlântico” analisa a circulação de ideários religiosos no tempo e no espaço, para discutir a atuação de africanos na organização e manutenção da irmandade de Nossa Senhora do Rosário da cidade da Parahyba do Norte, na Paraíba. O artigo demonstra como os africanos se organizaram em torno de uma irmandade católica, como forma de manter vivas partes de suas tradições funerárias, nas margens brasileiras do Atlântico, mas também como forma de afirmação ou de reconstrução de hierarquias sociais e políticas próprias, no interior da irmandade religiosa.

Tratando, também de experiências de reconstrução do Mundo Atlântico, Mary Ann Mahony, em seu artigo “A vida e os tempos de João Gomes: escravidão, negociação e resistência no Atlântico Negro”, analisa a história de um quilombola que opta por confessar um crime de tentativa de assassinato de seu senhor, sob o argumento de que estava cansado de viver a vida como um quilombola, livre nas matas de Ilhéus-Bahia, por volta de 1875. Ao discutir a trajetória do africano escravizado, a autora recuperando seu lugar de origem, conecta-o às formas de agir e pensar africanos de sua região, para matizar as possíveis opções feitas por ele para justificar seu ato voluntário de confessar um crime. Analisa também, as possíveis motivações tecidas no bojo da escravidão, que motivaria o crime e, posteriormente, a sentença que foi proclamada pelo júri. Assim, neste artigo, se revela como as teias complexas que moldam as opções e comportamentos de um indivíduo, envolvido pela experiência da escravidão, se estendem de uma margem a outra do Atlântico.

Com um salto no tempo, em relação a experiência do africano João Gomes, o artigo de Bas’Ilele Malomalo, intitulado “Mobilização política dos imigrantes africanos no atlântico sul pela conquista de direitos em São Paulo e Ceará (2012-2016)” descortina, fora das relações escravista, outra faceta da diáspora africana para o Brasil. Fora do escravismo, é verdade, mas ainda matizada por um subproduto dele, o racismo e a violência. Neste artigo, se apresenta as ações política de imigrantes africanos que se organizaram em São Paulo e no Ceará, como forma de combate a intolerância, violência e arbitrariedades a que estão susceptíveis imigrantes africanos no Brasil. O artigo relata uma série de ações e mobilizações ocorridas a partir de dois pontos traumáticos de mobilização e avançaram para a formulação de forma de atuação organizada e coletiva em busca da construção de políticas públicas que assegurem seus direitos de cidadania.

Os artigos aqui reunidos dão uma pequena dimensão das possibilidades e variedades de temas, objetos e recortes que podem ser abrigados sob uma História do Atlântico e da Diáspora Africana. Outros tantos que aqui cabem veremos, oxalá, em outros números desta revista.

Além do dossiê, este número da Revista Crítica História trás a publicação de três artigos na seção de fluxo contínuo, com temas diversos. O primeiro deles, intitulado “Nos bastidores do poder: política e relações familiares no Piauí do século XIX”, discute a organização familiar do Piauí no século XIX e de que forma seus membros atuaram nos espaços de poder por meio de uma estreita rede de alianças. Seu autor, Marcelo de Sousa Neto, é Professor Adjunto da Universidade Estadual do Piauí (UESPI) e doutor em História pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).

O segundo, sob a coautoria de Helen Ulhôa Pimentel, Laurindo Mékie Pereira e Bruna Santana Fernandes, chama-se “Cidadania e clientelismo no Brasil oitocentista: uma análise das práticas políticas em Paracatu / MG” e faz uma reflexão sobre as redes clientelísticas estabelecidas na cidade de Paracatu, em Minas Gerais, no século XIX por meio de análise do Livro de Qualificação dos Eleitores desta cidade, de 1876, com o objetivo de traçar o perfil dos cidadãos, as particularidades do sistema eleitoral e as práticas políticas então prevalecentes. Sobre seus autores, Helen Pimentel é doutora pela Universidade de Brasília (UNB) e Professora do Programa de Pós-Graduação em História Social da Universidade Estadual de Montes Claros (Unimontes), Laurindo Pereira é doutor em História pela Universidade de São Paulo (USP) e também Professor do Programa de Pós-Graduação em Historia Social da Universidade Estadual de Montes Claros (Unimontes) e Bruna Fernandes é mestranda em História Social na Universidade de Brasília (UNB).

O último artigo desta seção, chamado “Nas entrelinhas da hierarquia e disciplina: os alicerces da profissão naval”, é de Elizabeth Espindola Halpern, psicóloga, capitão-de-fragata da Marinha do Brasil e doutora em Saúde Mental pelo Instituto de Psiquiatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Apesar de não ser historiadora, Elizabeth faz uma interessante análise sócio-histórica dos conceitos de hierarquia e disciplina a partir da ideia de militar-padrão para compor os exércitos permanentes, especialmente o brasileiro. Portanto, consideramos seu texto interdisciplinar merecedor de publicação em nossa Revista.

Por fim, encerramos o número 13 com a resenha de Ermelinda Liberato sobre o livro Angola-Portugal: Representações de Si e de Outrem ou o Jogo Equívoco das Identidades, de Arlindo Barbeitos. Ermelinda apresenta com clareza a tese do autor angolano, que trata das relações sociopolíticas entre Angola e Portugal durante o período colonial, abordando temas ainda polêmicos, como raça e miscigenação. Sendo assim, sua resenha retoma a temática do dossiê, quando trata de relações estabelecidas no espaço do Atlântico.

Assim sendo, desejamos a todos boa leitura e profícuas reflexões!

Flávio Gonçalves dos Santos – Professor da Universidade Estadual de Santa Cruz e organizador do dossiê nº 13.

Michelle Reis de Macedo – Professora da Universidade Federal de Alagoas e editora-chefe da Revista Crítica Histórica.

Maceió, junho de 2016


SANTOS, Flávio Gonçalves dos; MACEDO, Michelle Reis de. Apresentação. Crítica Histórica, Maceió, v. 7, n. 13, Junho, 2016. Acessar publicação original [DR]

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Renascimento Italiano / Crítica Histórica / 2015

O desejo de organizar um dossiê especial sobre a Renascença surgiu das parcerias e encontros entre Flávia Benevenuto, Professora de Filosofia da Universidade Federal de Alagoas (UFAL) e analista das obras maquiavelianas e Fabrina Magalhães Pinto, Professora de História da Universidade Federal Fluminense (UFF) e especialista em História Moderna. Já há alguns anos fazemos parte do GT de Ética e Filosofia Política no Renascimento, da ANPOF, e, em 2014, participamos do SIMPOFI (Simpósio de Política e Filosofia, realizado na UFF\Campos, em 2014). Deste evento surgiu a ideia de organizarmos um trabalho que reunisse diversos pesquisadores que tivessem um interesse comum: buscar compreender a riqueza e a complexidade que envolve o tema da cultura do Renascimento em algumas das suas diversas faces, seja política, filosófica, retórica, histórica ou literária; bem como as relações entre inícios da Modernidade e a Antiguidade Clássica. Sabemos que vem crescendo no Brasil o número de revistas sobre o assunto e pesquisadores interessados nas diversas temáticas Renascentistas. Contudo, se comparamos com outros objetos de pesquisa, ainda temos um longo caminho a percorrer, e muitos novos pesquisadores a persuadir que sigam esta mesma estrada.

Os textos aqui reunidos tratam de temáticas diversas e são de áreas distintas, fato este que almejamos desde o início: uma perspectiva interdisciplinar das análises. Portanto, contamos com pesquisadores da filosofia (Alberto, Ana Letícia, Danilo Marcondes, Gilmar e Patrícia), da letras (Ana Cláudia e Helvio) e da História (Edmilson). Organizamos em ordem cronológica a nossa breve exposição sobre os textos e a iniciamos tratando de autores como Lorenzo Valla, Maquiavel, Michel de Montaigne, Francesco Patrizzi (Veneza, 1560) e Algernon Sidney (quem recupera os valores maquiavelianos no republicanismo inglês do século XVII). E, logo em seguida, passamos aos textos sobre os impactos do Novo Mundo na sociedade europeia, de Danilo Marcondes, e a transposição da noção europeia de cidade ideal na elaboração da cidade do Rio de Janeiro. Passemos então a eles.

Comecemos com o texto de Ana Letícia Adami, doutoranda em filosofia da USP, cuja pesquisa se detém na análise do diálogo De voluptate (Do Prazer) escrito por Lorenzo Valla, em 1431. Nesta obra o humanista elabora sua defesa epicurista do prazer como um bem, em oposição à doutrina estoica que nega o prazer; cabendo ao sábio estoico o abandono de todos os prazeres para uma vida sadia e perfeita. O prazer na obra valliana é visto como um bem, ou mesmo um verdadeiro bem. Mas Valla vai ainda mais além: elaborando uma associação direta entre os prazeres e a própria devoção cristã. Portanto, se a devoção inspira o amor e todo cristão deve ser tocado por ela, não faria sentido aos cristãos adotarem uma doutrina como o estoicismo. Esta arguta defesa de um “epicurismo cristão” leva Valla, como destaca Ana Letícia, a ser indiciado pelo Índex cristão em 1443.

O artigo escrito pela professora Patrícia Aranovich, professora do departamento de filosofia da UNIFESP, investiga o tema da guerra no pensamento de Maquiavel. Esse tema é, de fato, um tema muito debatido a partir da obra do autor de Florença. A autora, no entanto, supera o lugar comum dos debates em torno do tema que, via de regra, se centram no Príncipe – e, por vezes, na Arte da Guerra – para investigá-lo a partir das Histórias de Florença. Ao tomar essas últimas como referência principal, a autora conferiu originalidade à abordagem do tema, explorando-o atrelado às discórdias civis. Recorrendo aos exemplos de Roma e ao texto de Tito Lívio, mostrou como os assuntos de ordem interna e externa, dentre eles a guerra, se relacionam com as instituições encaminhando sua conclusão para a relação indissociável entre as armas e a forma política, passando pela questão da liberdade.

A proposta do artigo de Helvio Moraes, professor do Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários (PPGEL) da UNEMAT, é analisar três dos DieceDialoghidella Historia (Diálogos da História) de Francesco Patrizi da Cherso, escrito em 1560. Abordando os três primeiros diálogos (Il Gigante, overodell’historia; Il Bidernuccio, overodelladiversitàdell’historia; e Il Contarino, overoche sia l’historia), o autor nos mostra como Patrizi desenvolve tanto uma negação das concepções clássicas da História quanto uma tentativa de alargar ao máximo o campo da investigação histórica. Segundo a análise de Helvio, o tom que permeia os Diálogos é tanto o de insatisfação quanto às investigações e modelos metodológicos de autoridades como Cícero, por exemplo, quanto ao modo como são adotados por seus contemporâneos, sendo repetidas sem reflexão e sem a compreensão das suas limitações. Essa insatisfação moveria Patrizzia redefinir de forma precisa o campo histórico, diferenciando-o do campo filosófico e retórico, e influenciando, posteriormente, intelectuais como Jean Bodin e Vivo.

Ana Cláudia Romano Ribeiro, professora do departamento de Letras da UNIFESP e tradutora de Utopia para a língua portuguesa, apresenta em seu artigo os aspectos distintos identificados por ela em relação às traduções do libellus aureus. A autora conduz sua argumentação no sentido de evidenciar nestas últimas a perda das características próprias da expressão de Thomas Morus. Ela destaca o caráter poético, já anteriormente apontado por Erasmo. Há dois aspectos a serem investigados na Utopia, o uso da língua e o assunto propriamente dito. Ao negligenciar o primeiro, certas traduções tendem a destacar o segundo. Para a autora essa estratégia culmina em um resultado artificial, considerando-se forma e sentido indissociáveis. Nesse sentido o artigo contribui para uma compreensão completa do texto de Thomas Morus.

Gilmar Henrique da Conceição, professor do departamento de filosofia da Unioeste-PR, apresenta um lado pouco conhecido do autor em que se tornou especialista. Expõe-nos Montaigne pela via do amor, da volúpia, do erotismo. Ao aproximar-se do que mundano e sensual mostra-nos a possibilidade do pensamento filosófico também por essas vias. Aproxima a filosofia da intimidade revelando-a em Montaigne pelo conceito de voluptuosidade. Faz-se interessante notar que o autor aprofunda a relações que Montaigne estabelece com os antigos caracterizando-o como um autor renascentista e destacando o olhar dessacralizado sobre o mundo nesta abordagem. Por fim, o autor identifica o tema ao ceticismo, apontado por ele como a identidade filosófica de Montaigne.

Alberto Ribeiro G. de Barros, professor do departamento de filosofia da USP, investiga, no republicanismo inglês, a recuperação do texto de Maquiavel por Algernon Sidney em seus escritos políticos. O autor parte da análise da propagação dos textos de Maquiavel pela Inglaterra, passando pelas maneiras diversas em que o mesmo foi incorporado ao discurso político inglês. De acordo com o autor, ao adaptar a obra de Maquiavel à tradição política inglesa o cerne do pensamento republicano maquiaveliano é comprometido de modo que não se pode afirmar que o pensamento republicano de Maquiavel tenha sido totalmente acolhido. O autor conduz sua argumentação no sentido de evidenciar que a apropriação do republicanismo de Maquiavel menos problemática neste período foi feita por Algernon Sidney em seus escritos políticos.

O artigo de Danilo Marcondes, professor do departamento de filosofia da PUC-Rio e da UFF, trata das questões geradas pelo impacto do descobrimento do Novo Mundo. Segundo ele, são questionados durante os séculos XVI e XVII os fundamentos sobre a natureza humana, e sobretudo a aristotélica. Os descobrimentos produziram um novo tipo de conflito, ou mesmo potencializou o conflito já existente entre teorias da Antiguidade e do Cristianismo. São basicamente três os caminhos de investigação que o autor percorre. O primeiro analisa a base da doutrina da escravidão natural em Aristóteles (Política, I 3-6); o segundo os autores antigos que discutem a distinção entre bárbaros e civilizados; e o terceiro, os autores cristãos de São Paulo a Santo Agostinho, que adotam uma teoria da universalidade da natureza humana, inspirados pela origem comum da criação humana, o mito adâmico. Tem-se então o conflito entre três correntes filosóficas, mas, ainda mais importante: o conflito entre um projeto político colonialista e uma missão evangelizadora, cada qual buscando fundamentar-se em concepções tradicionais de natureza humana desde os filósofos gregos aos pensadores cristãos.

E, por fim, o texto de Edmilson Martins Rodrigues, professor do departamento de História da PUC-Rio e da UERJ, nos apresenta algumas investigações elaboradas ao longo de anos de docência e pesquisa. Possuindo um tom bem mais informal que os demais artigos, pois fora este um texto proferido na abertura do SIMPOFI, o autor levanta algumas hipóteses e aponta os caminhos que o levaram a pensá-las; indicando muitas vezes os textos que o estimularam. Entre as muitas conexões, Edmilson propõe a comparação entre a concepção de cidade no Renascimento, suas formas, seus princípios e modos de agir, suas ambições de cultivo da vida ativa, e a cidade do Rio de Janeiro, considerada por ele uma cidade Renascentista nos Trópicos. Segundo o historiador, na cidade setecentista do Rio de Janeiro aparecem muitos traços das tendências utópicas, sejam articulados pelo erudito francês Villegagnon, seja por Mem de Sá, irmão de Sá de Miranda. Desta forma, analisar a cidade apenas do ponto de vista economicista, como fez tantas vezes a historiografia mais tradicional – como uma feitoria que atende exclusivamente os propósitos comerciais da metrópole portuguesa – não leva a discussão adiante. Contudo, propõe Edmilson, se combinarmos a ideia de utopia e a ideia de República, o Rio de Janeiro se torna o campo privilegiado de combinação de ideias e experiências.

Feitas as devidas apresentações, resta-nos esperar que estes textos ajudem aos leitores e aos interessados nas temáticas Renascentistas a seguirem o caminho e a descobrirem seus próprios objetos de pesquisa neste campo ainda incipiente e vasto de possibilidades em nosso país.

Quanto aos artigos do fluxo contínuo da revista, Mário Maestri, professor da Universidade de Passo Fundo, parte do texto de Kátia de Queirós Mattoso, ‘Ser escravo no Brasil’ que, segundo o autor, apresenta a resistência do escravo brasileiro relacionando-a à incapacidade do mesmo de adaptar-se à sociedade brasileira, mesmo em condições razoáveis de trabalho e comida farta. O texto revisita o clássico e edifica sua crítica. Já Vinicius Bandera, pós-doutor em História Social pela USP e Instrutor da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro na Escola Superior de Polícia Militar e na Academia de Polícia Militar, aborda o desenvolvimento do higienismo na cidade do Rio de Janeiro. Sua análise parte da modernização capitalista como responsável pelo caos sanitário, assim como o papel protagonista de combatê-lo. Por fim, o artigo escrito pelos professores Diego Mendes Cipriano, Mestre em Educação Ambiental pela Universidade Federal do Rio Grande (FURG) e Carlos Roberto da Silva Machado, Doutor em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) analisam as remoções de moradias do Bairro Getúlio Vargas entre os anos de 1971 e 1973. A análise apresentada busca esclarecer as consequências do deslocamento dos moradores, evidenciando as contradições do processo. O texto aprofunda-se no direito das populações desenvolverem livremente suas potencialidades e considera os meios de se promover sustentabilidade às gerações futuras.

Fabrina Magalhães Pinto – Professora de História da Universidade Federal Fluminense – UFF.

Flávia Benevenuto – Professora de Filosofia da Universidade Federal de Alagoas – UFAL

Maceió, novembro de 2015.


PINTO, Fabrina Magalhães; BENEVENUTO, Flávia. Apresentação. Crítica Histórica, Maceió, v. 6, n. 12, novembro, 2015. Acessar publicação original [DR]

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História e Literatura / Crítica Histórica / 2015

No livro intitulado Seis passeios pelos bosques da ficção, que reúne a famosa série de seis conferências ministradas em 1993 na Universidade de Harvard, o escritor e teórico italiano Umberto Eco nos fornece inúmeras pistas de como, no papel de leitores, entrarmos, percorrermos e sairmos dos bosques da ficção. Entre elas, preconiza o princípio da suspensão da descrença: o leitor, mesmo sabendo que aquilo que se narra parte do imaginário, nem por isso deve pensar que o escritor conta mentiras. Afinal, todo autor literário, mesmo quando atua no campo mais radical de evasão da realidade (a literatura fantástica, por exemplo), delimita seu “pequeno mundo” a partir da experiência numa realidade cuja estrutura total não lhe é possível descrever. Ler a obra literária teria, portanto, a mesma função lúdica do brinquedo ou do jogo infantil – dar sentido a um mundo cujos meandros e trajetória ainda não mapeamos inteiramente, e cujo processo de formação é demasiadamente extenso e complexo -, sendo as possibilidades de decodificação do texto condicionadas, entre outras coisas, pela “enciclopédia” ou pelas “lentes” que cada leitor traz consigo ao adentrar o bosque: sua experiência pessoal, mas também sua relação prévia com outros textos (ficcionais ou não), sua trajetória educacional e profissional, suas competências e habilidades.

E o que ocorre quando os bosques da ficção são trilhados com as lentes da história? Este Dossiê História e Literatura visa, justamente, discutir as interrelações entre o fazer histórico e o literário, as quais se constituem propriamente em “vias de mão dupla” no bosque de múltiplas possibilidades: isto é, tanto a dinâmica que se estabelece entre a criação ficcional e seus quadros históricos de referência, quanto o uso de ficções, modelos heurísticos e estratégias da construção literária pelos historiadores na constituição de suas narrativas. Assim, devido a esse recorte que possibilita, de forma abrangente, os intercâmbios e cruzamentos entre os dois campos expressos no título – história e literatura / literatura e história – as questões abordadas neste dossiê caracterizaram-se pela variedade de temas, autores, contextos e aportes teóricos.

O volume inicia-se com “Versos do Cativeiro: um olhar sobre a imposição do nacionalismo chileno em Tacna e a resistência peruana na obra de Federico Barreto”, de Maurício Marques Brum, que problematiza o tema da formação das identidades nacionais na América Latina, tendo como objeto a poesia do peruano Federico Barreto, e sua função de resistência à chilenização da província de Tacna. A temática da formação identitária, dessa vez no Brasil, é também o ponto de partida do artigo de Luiza Rosiete Gondin Cavalcante (“Entre ‘registro’ e poesia: história e construção literária em Iracema, de José de Alencar”), no qual diversos elementos da composição do célebre romance indianista alencariano, presentes, por exemplo, na construção dos protagonistas, são explorados em sua relação com a história, de modo a demonstrar algumas das formas através das quais Iracema ressemantiza, através da transfiguração literária, o processo de colonização brasileira marcado pelo hibridismo.

Se a formação da identidade nacional brasileira está marcado por semelhante processo de hibridização cultural de que nos falam autores como Beatriz Sarlo e Nestor García Canclini acerca de outros países latino-americanos, a crônica, gênero híbrido por excelência, a meio caminho entre a história, a literatura e o jornalismo, torna-se, sem sombra de dúvida, um dos objetos fundamentais para a análise das interseções entre o histórico e o literário. Em “O tempo escrito com a pena da galhofa e a tinta da melancolia”, Ana Lady da Silva debruça-se sobre duas das crônicas de Machado de Assis, de modo a observar a atitude cética e crítica do autor frente ao horizonte de expectativas (para utilizar a categoria de Jauss) das elites brasileiras do final do século XIX diante de questões como a Abolição e a República. Também Poliana dos Santos, no artigo intitulado “História, subjetividade e especulação nas personagens machadianas”, vem contribuir com a inesgotável fortuna crítica sobre Machado, examinando indícios significativos na construção das personagens de contos machadianos, e sua relação com o contexto de alargamento e exploração das forças econômicas, na passagem do Império à República, que desemboca na especulação financeira.

Em “Histórias de Ricardo Reis”, Priscila Tenório Santana Nicácio, tendo como objeto de análise o romance O ano da morte de Ricardo Reis, de José Saramago, investiga alguns dos procedimentos pós-modernos de referenciação do histórico na literatura, como na chamada metaficção historiográfica, no qual os aspectos históricos não são documentais em seu sentido tradicional, mas elementos intra e / ou paratextuais que refletem sobre sua própria forma de produção. Já no artigo “A Pedra do Reino e a carnavalização”, que encerra o Dossiê História e Literatura, José Nogueira da Silva utiliza a categoria bakhtiniana da carnavalização para analisar, no Romance d’A Pedra do Reino e o Príncipe do Sangue do vai-e-volta, de Ariano Suassuna, o apagamento da dicotomia erudito / popular.

Nesse sentido, o dossiê, além de possibilitar mais uma vez o debate intelectual acerca do tema, tem como objetivo criar uma rede de intelectuais preocupados com as conexões entre o histórico e o literário, de modo a criar as necessárias pontes para o desenvolvimento do campo historiográfico da História Cultural.

Na Seção de Artigos, Dagmar Manieri abre com um estudo do conceito de virtù em Nicolau Maquiavel. A partir do Renascimento italiano, o autor adentra o campo da política, a um novo pensamento sobre a história, assim como da prática política. E é nesse quadro histórico que o pragmatismo de Maquiavel aparece e está inserido. Assim, “O conceito de virtù em Maquiavel” apresenta a importância da ética na eficácia da prática política, sem a qual funda-se o que se denomina de ciência política moderna.

O segundo artigo, “Cristãos-novos, inquisição e escravidão: Ensaio sobre inclusão e exclusão social (Alagoas Colonial, 1575 – 1821)”, de Alex Rolim Machado, trabalha a “Alagoas Colonial” e os assuntos relacionados aos cristãos-novos, ainda lacunares. Os argumentos do autor tendem a trazer os personagens às novas interpretações, inserindo-os em um mundo multifacetado, de intensa comunicação com outras categorias sociais das Vilas, procurando observar os polos de inclusão e exclusão aos quais estavam sujeitos e, por decorrência da vivência americana, também atuavam na estratificação da sociedade.

Em “A imigração subsidiada: os contratos para introdução de espanhóis no Pará”, Francisco Pereira Smith Júnior e Rodrigo Fraga Garvão destacam que entre os anos de 1890 e 1920, a história das migrações internacionais causou impacto no Pará, já que houve, neste período, uma eficaz propaganda migratória na Europa fazendo com que o Estado paraense recebesse um significativo número de imigrantes europeus. Argumenta que os recém chegados fizeram parte de um exército de estrangeiros que tinha o papel de povoar e trabalhar na Amazônia e que, neste cenário, destacaram-se muitos espanhóis que vieram viver o sonho do “eldorado amazônico”, juntos com suas famílias e recomeçaram sua história de vida. Assim, o artigo traça um perfil desse imigrante espanhol e analisa o processo de constituição dos núcleos populacionais em que estes espanhóis estavam inseridos.

Já o quarto artigo que compõe a seção, de Augusto Neves da Silva, intitulado “Metamorfoses de uma festa: Histórias do carnaval em Recife (1955-1972)”, discute as transformações dos carnavais brincados na cidade do Recife entre os anos de 1955 e 1972, voltando-se à compreensão das relações estabelecidas entre o poder público municipal, os foliões e alguns intelectuais. Essas relações geraram conflitos que, por sua vez, deram o tom da identidade que se buscava construir nesta festa. A reflexão aqui foi tentar entender quais os espaços criados na cidade para os dias de Momo e os sentidos dessa tradição.

Fechando a Seção Artigos, Wanderson Chaves nos apresenta “A Fundação Ford e o Departamento de Estado Norte-Americano: a montagem de um modelo de operações no pós-guerra”, no qual brilhantemente demonstra que o relacionamento estabelecido entre a Fundação Ford e o Departamento de Estado, bem como com a Agência Central de Inteligência (CIA), constituiu-se em aspecto definidor e estruturante, ainda que secreto ou sigiloso, da atuação dessa organização filantrópica e destes órgãos de governo quanto às políticas de inteligência e propaganda. Reconstruindo documentalmente os acordos tal como se deram no momento de seu estabelecimento, ilumina a história da Guerra Fria.

E, finalmente, o número 11 da Revista Crítica Histórica encerra-se com a contribuição de uma das organizadoras do dossiê, na Seção Ensaios, que articula-se profundamente com o debate apresentado no volume. Ana Claudia Aymoré Martins, em “Cartografias imaginadas: Brasil e Cabo Verde na rota dos signos”, faz uma reflexão sobre a construção simbólica da insularidade na formação nacional do Brasil e de Cabo Verde, suas consonâncias e diálogos.

Agora, só nos resta convidá-los à leitura, certas de que as contribuições aqui publicadas dialogam diretamente com a história e a historiografia regional e nacional.

Ana Claudia Aymoré Martins

Ana Paula Palamartchuk

Maceió, julho de 2015


MARTINS, Ana Claudia Aymoré; PALAMARTCHUK, Ana Paula. Apresentação. Crítica Histórica, Maceió, v. 6, n. 11, julho, 2015. Acessar publicação original [DR]

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Os 50 Anos do Golpe Civil-Militar / Crítica Histórica / 2014

As produções sobre o golpe civil-militar de 1964 e seus desdobramentos são muitas e com variadas temáticas. Livros de memória, filmes e documentários, pesquisas acadêmicas, enfim, uma gama de reflexões sobre esse passado recente da história do Brasil, que ainda suscita calorosas polêmicas. Da segunda metade da década de 1970 em diante, a maior parte das interpretações puseram em lados opostos Estado e sociedade. O primeiro, representante das forças opressoras, fez uso de mecanismos de manipulação e repressão, subjugando a segunda, que sofreu as consequências duras do autoritarismo estatal; mas que, mesmo com todos os percalços, não hesitou em resistir.

As abordagens que priorizam o estudo da repressão política e / ou dos focos de resistência ao Estado ditatorial possuem um papel social importantíssimo de denunciar os atos de violência e tortura, sobretudo num país como o Brasil onde o processo de redemocratização se deslanchou, em grande parte, através de acordos e negociações e não resultou em punições a torturadores. No entanto, a despeito da enorme relevância dessas interpretações, um aspecto foi, há tempos, silenciado: o golpe de 1964 e a ditadura civil-militar foram construções sociais e não simples invenções de cima para baixo ou de fora para dentro. Isto significa que o Estado é parte da sociedade e, muitas das vezes, práticas autoritárias, como a intervenção militar, foram reivindicadas por significativos setores sociais. Um passado incômodo para uma sociedade que pretende legitimar uma identidade de nação democrática. Acreditamos ser necessário enfrentar esses fantasmas até para evitar possíveis assombros e levantar debates em torno do comportamento da sociedade frente aos arbítrios praticados pelo Estado não apenas no momento da ditadura, mas sobretudo em momentos de democracia como o que vivemos atualmente.

Neste sentido, a edição da Revista Crítica Histórica nº 10 apresenta o dossiê Entre história e memória no cinquentenário do golpe de 1964 com o objetivo de fomentar o debate em torno dos 50 anos do golpe civil-militar e do regime autoritário inaugurado a partir deste evento histórico. Ao organizar o dossiê, pretendi reunir diferentes abordagens sobre temáticas variadas, que tratam do sistema repressor e da resistência, mas também, e sobretudo, da relação complexa entre Estado e sociedade, entre autoritarismo e democracia.

Abrindo o dossiê, o artigo de Rodrigo José da Costa, “Por uma História do Golpe Civil e Militar em Alagoas”, faz um balanço do que foi produzido em 2004, nos 40 anos do golpe, e no ano de 2014, nos 50 anos, com ênfase nas disputas pela memória, sobretudo na imprensa alagoana. Também analisa produções acadêmicas e memorialísticas de Alagoas e inventaria acerca de fontes históricas surgidas nos últimos anos. O autor é doutorando em História pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Seguindo, Carla Darlem Silva dos Reis, mestranda em História da Universidade Federal de Sergipe (UFS), discute a mudança de posicionamento político do periódico Gazeta de Sergipe após o golpe de 1964 no texto intitulado “Gazeta de Sergipe: ‘Gazeta Combativa’? (1959-1968)”. No terceiro artigo, intitulado “Ditadura no Paraná: ‘Foi na lavoura que a subversão encontrou resistência’”, Juliana Valentini, mestre em História pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE), trata das formas de organização e posicionamento político de setores agrários do Paraná frente ao governo João Goulart e ao golpe de 1964. Logo depois, Ueber José de Oliveira, professor adjunto do Departamento de Educação e Ciências Humanas da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), procura compreender, no artigo “A Fórmula para o caos: o golpe de 64 e a conspiração contra o governador Francisco Lacerda de Aguiar, no Espírito Santo (1964-1966)”, o posicionamento dos principais atores individuais e coletivos da realidade capixaba diante do golpe de 1964, com ênfase na ação de forças políticas oposicionistas que pretendiam destituir o então governador do Espírito Santo Francisco Lacerda de Aguiar. Professora da Universidade Federal do Piauí (UFPI), Marylu Alves de Oliveira é autora do próximo artigo, intitulado “Esteja preso, comunista! Breves considerações sobre práticas anticomunistas no pós-golpe civil-militar de 1964 no Piauí”, que tem como objetivo apresentar as principais práticas anticomunistas após o golpe civil-militar de 1964 no Piauí. Com o título “O Serviço Nacional de Informações (SNI): o sindicalismo em Pernambuco como alvo (1964- 1967)”, o artigo de Dmitri Felix do Nascimento, doutorando pelo Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa (UL), analisa a constituição do aparato repressor da ditadura militar a partir da criação do Serviço Nacional de Informações (SNI) e a perseguição ao Conselho Sindical dos Trabalhadores (CONSINTRA) em Pernambuco. O sétimo artigo do dossiê, “Militares de esquerda e o regime militar: ‘Marechal da Legalidade’ na defesa da democracia”, foi escrito por Karla Guilherme Carloni, professora adjunta do Departamento de História da Universidade Federal Fluminense (UFF). A autora aborda a atuação política do marechal Henrique Teixeira Lott durante a crise de 1961 e o regime militar, destacando sua postura de esquerda e a perseguição a ele liderada pelos mentores da ditadura. Logo depois, Andréa Lemos, doutora pela Universidade Federal Fluminense (UFF), apresenta o artigo chamado “A Editora Brasiliense e a oposição à ditadura civil-militar brasileira”, destacando os principais aspectos da construção da linha editorial da Editora Brasiliense e as ações políticas de seus editores frente à ditadura civil-militar. No nono texto do dossiê intitulado “Friedrich Hayek e os liberais brasileiros na transição democrática”, o doutorando em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF) Gabriel Onofre analisa as ideias do filósofo e economista austríaco Friedrich Hayek sobre política, economia e sociedade que serviram de referência para os grupos (neo)liberais brasileiros durante a transição democrática. Por fim, fechando o dossiê, Cleidson Carlos Santos Vieira, mestrando em História pela Universidade Federal de Alagoas (UFAL), escreve o artigo “Anistia de 1979, justiça de transição e Comissões da Verdade: apontamentos e limites”, o qual analisa o processo de transição democrática e suas limitações institucionais e jurídicas.

Além do dossiê, a seção de fluxo contínuo traz quatro artigos com temas diferenciados sobre história política do Brasil republicado. O primeiro, intitulado “O negro nos meandros dos debates parlamentares da Primeira República (1889-1894)”, foi escrito por Talita Teixeira, mestranda em História pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e tem como objetivo analisar a imagem de nação almejada por autoridades políticas após a Proclamação da República, identificando o papel destinado ao negro. Sob o título “O carnaval carioca oficializado: a aliança entre sambistas e prefeitura do Rio de Janeiro (1932-1935)”, o segundo artigo foi escrito por Paula Cresciulo de Almeida, mestra em História pelo Programa de Pós Graduação em História da Universidade Fluminense (UFF). A autora pretende analisar o processo de reconhecimento e oficialização dos desfiles das escolas de samba no carnaval carioca pelo prefeito do Rio de Janeiro, Pedro Ernesto, em 1935. Em seguida, mestrando em História também pela Universidade Federal Fluminense (UFF), Diego Carvalho da Silva escreve o artigo “Caminhos da redemocratização: alguns apontamentos da política no pós-guerra em Pernambuco (1945-1946)”, cujo objetivo é analisar o processo da reorganização dos principais partidos políticos em princípios de 1945 em Pernambuco, a partir do encaminhamento do processo de abertura política do Estado Novo. Por último, Leide Rodrigues dos Santos, graduanda em História pela Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC), escreve o artigo “Mobral: a representação ideológica do Regime Militar nas entrelinhas da alfabetização de adultos” com o intuito de analisar as representações do discurso político do Estado presentes em materiais didáticos, publicações e propagandas utilizadas pelo Movimento Brasileiro de Alfabetização (Mobral) no período equivalente a sua implantação e extinção (1967 -1985).

Na seção seguinte, Gisele Iecker de Almeida, doutoranda em História pela Universiteit Gent (Bélgica), apresenta uma entrevista feita com a historiadora Nina Schneider, que é pesquisadora de pósdoutorado Marie Curie na Universidade de Konstanz, na Alemanha e doutora em História pela Universidade de Essex (Reino Unido). A entrevista intitulada “Justiça de Transição no Brasil: uma entrevista com Nina Schneider” foi realizada em 20 de setembro de 2014 e aborda os debates atuais sobre o processo de transição democrática no Brasil, a justiça de transição e os trabalhos da Comissão Nacional da Verdade.

Encerrando o número 10 da Revista Crítica Histórica, o mestrando em História pela Universidade Federal de Alagoas (UFAL) Flávio Pereira apresenta uma resenha da obra de Karl Marx O 18 de Brumário de Luís Bonaparte, destacando a temática do político em torno do conceito de luta de classes.

Através de mais um número lançado pela Revista Crítica Histórica, esperamos contribuir proveitosamente com o debate historiográfico e com boas reflexões. Aproveito para agradecer aos autores, que se dedicaram e produziram textos de excelência para esta edição.

Michelle Reis de Macedo – Doutora. Professora Adjunta de História do Brasil da Universidade Federal de Alagoas (UFAL). Organizadora da edição nº 10.


MACEDO, Michelle Reis de. Apresentação. Crítica Histórica, Maceió, v. 5, n. 10, dezembro, 2014. Acessar publicação original [DR]

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História e Relações Internacionais / Crítica Histórica / 2014

A Edição nº 9 da Revista Crítica Histórica é dedicada à relação entre a História e as Relações Internacionais. O Dossiê foi organizado por um corpo de pesquisadores das áreas de História Contemporânea, Direito Internacional e Economia Política Internacional, e seu propósito editorial constituiu-se em reunir trabalhos que (1) destacassem o caráter histórico e político-econômico das relações internacionais atuais, bem como (2) estudos de História que buscassem enfatizar as Relações Internacionais. Esta opção abordativa reflete a percepção, pelos organizadores, da necessidade de interpretar as atuais relações internacionais sob o prisma de sua história, que por sua vez tem sido movida por um conjunto de “forças” que envolvem, ao mesmo tempo, tanto práticas unilaterais, quanto exercícios de cooperação de poder.

Esse “jogo de forças” envolve um conjunto de agentes sociais, Estados e Organizações Internacionais, inseridos numa estrutura e em posições que dependam de seus interesses estratégicos orientados para a transformação ou a conservação da chamada “Nova Ordem Internacional”.

Assim é que, recentemente, um encontro entre representantes do Grupo chamado BRICS – Brasil, Rússia, China, Índia, África do Sul – firmou uma série de acordos, dentre os quais ressalta-se a criação de um banco próprio para financiar e garantir novas linhas de liquidez aos seus membros como alternativa de solução econômica ao Fundo Monetário Internacional e ao sistema financeiro ocidental centrado no eixo Nova York – Londres.

No mesmo sentido, Argentina e China realizaram acordos para cooperação em diversas áreas, que envolveram, em especial, a abertura de um swap cambial entre peso e yuan, o que viabilizará transações da ordem de onze bilhões de dólares em importações para a Argentina, e promoverá as reservas internacionais deste país em 30 bilhões de dólares, ampliando o saldo do balanço de pagamentos deste país, e, por consequência, a sua capacidade e seu poder de compra no exterior.

Como se pode verificar, tais práticas diplomáticas vêm contribuindo para construção de alternativas à “Ordem Internacional” vigente, em que se contestam a predominância do dólar como moeda e dos Estados Unidos como principal agente da economia internacional.

Ao mesmo tempo, observam-se práticas no sentido de conservar e ampliar o poder do establishment internacional. Intervenções estatais por tropas da Organização do Tratado do Atlântico Norte ao arrepio da Carta das Nações Unidas e aprovação onusiana na África do Norte; o consentimento da Assembleia Geral e do Conselho de Segurança das Nações Unidas para as denominadas “ingerências humanitárias” à revelia da manifestação da vontade de movimentos sociais e políticos ou governantes legítimos, como na África Central; os sucessivos descumprimentos de resoluções dessa Organização para a finalidade de proteção de povos e populações civis submetidos a “crimes de guerra” e “contra humanidade”, no Oriente Médio e na Europa do Leste: todos estes fatos denotam a importância de uma interpretação realista no plano das relações internacionais, que não pode, por sua própria natureza, ser realizada sem estudos históricos.

Nessa esteira, em 2014, uma decisão judicial da Suprema Corte Norte-Americana favoreceu uma minoria de agentes financistas que, em 2005, havia decidido não acordar junto ao Governo argentino desconto sobre o pagamento de dívidas contraídas por empréstimos junto a bancos estadunidenses. Nesse sentido, em sede de jurisdição interna, a Corte entendeu que teria havido prejuízo dos acionistas norte-americanos, que desde aquela época, deixaram de receber a integralidade dos pagamentos previstos em contratos. A decisão ignorou as circunstâncias políticas internacionais e, aproveitando-se do fato de que o fórum eleito pelas partes contratantes para dirimir conflitos se estabelecera nos Estados Unidos, sancionou a ilegitimidade do acordo firmado entre a maioria dos credores e o estado Argentino.

Por fim, como se percebe, além da ultima ratio econômica e do necessário liame histórico, as relações internacionais ainda podem ser condicionadas às circunstâncias dos usos particularistas de princípios do direito internacional e, como no caso concreto, também do direito interno das superpotências.

Nessa edição, o artigo que abre o Dossiê, de Mateus Fernandez Xavier, “A Coluna prestes e seus impactos nas Relações Internacionais do Brasil”, tem como objetivo apontar as influências da Coluna Prestes sobre as relações internacionais do Brasil na década de 1920. A análise do contexto político, social, econômico e internacional do país, foi possível compreender as condicionalidades impostas à atuação externa brasileira. A apresentação da configuração do Exército Brasileiro e dos movimentos “subversivos” que tiveram origem no interior dessa instituição também forneceu elementos importantes para o estabelecimento da relação existente entre a Coluna Prestes e as medidas tomadas pelas chancelarias de Félix Pacheco e, em menor medida, de Otávio Mangabeira. Historicizando o espisódio, o artigo nos mostra como foi possível o Ministério das Relações Exteriores ser utilizado como instrumento de repressão a movimentos que contestaram a ordem oligárquica da República Velha.

Com efeito, o artigo de Mojana Vargas intitulado “A construção do Pan-Americanismo nas páginas de Américas (1949-1969)” tem como objetivo concatenar o momento de criação da Organização dos Estados Americanos (OEA) (1948), seu principal veículo de informação no período: a Revista Américas, os interesses político-econômicos estadunidenses e a tentativa de influenciar o “jogo de poder” assimétrico entre o principal ator regional – os EUA – e seus vizinhos, bem como analisar a construção do “discurso do pan-americanismo”.

Na mesma direção, João Gilberto Neves Saraiva procura investigar “As representações do Nordeste brasileiro nas páginas do New York Times (1950-1960)” identificando um conjunto de imagens associadas à região brasileira com o intuito de justificar certas escolhas políticas estadunidenses pelo investimento financeiro externo, seja na área militar, em bases norte-americanas no Rio Grande do Norte, por exemplo, seja na área econômica, em empreendimentos hidrelétricos na Bahia ou turísticos em outros estados do Nordeste.

Em “A internacionalização do Estado na história contemporânea: posições de um debate crítico interdisciplinar”, Rejane Carolina Hoeveler articula o debate acerca da internacionalização do Estado na história contemporânea a partir de uma abordagem interdisciplinar e que já se desenvolve desde os anos 1980. As transformações vividas pelo Estado contemporâneo se relacionam tanto com as metamorfoses do capitalismo contemporâneo quanto com as diversas crises que se entrecruzaram ao longo dos anos 1970, a partir das quais se nota um avanço na relevância das organizações internacionais de diversos tipos. O artigo, portanto, procura identificar e debater as proposições das principais correntes críticas que abordaram o problema da internacionalização do Estado, entre elas as dos chamados “neogramscianos” (como Robert Cox e Stephen Gill) e dos “neopoulantzianos” (como Bob Jessop, C. Gorg e U. Brand). A autora problematiza estas classificações e, ao mesmo tempo, identifica as matrizes teóricas comuns a estas correntes, comparando suas hipóteses acerca do problema e também relacionando estudos de caso internacionais de relevância acerca do tema.

Fechando o Dossiê, o artigo de Giorgio Romano Schutte busca mostrar como a criação do chamado grupo G20, bem como dos BRICS, responde a ajustamentos por parte das nações mais ricas a uma economia internacional cíclica, interdependente e instável, buscando-se maior coordenação entre elas. Ao mesmo tempo, busca argumentar como, nestes espaços multilaterais criados pelas nações desenvolvidas, a presença necessária dos chamados países emergentes, num contexto mais interdependente, pôde, ao menos em parte, ser aproveitada para maior “ganho de poder de decisão, por menor que seja, dos países emergentes, em particular dos BRICS”.

Com a publicação do Dossiê História e Relações Internacionais, procuramos reiterar a importância deste debate tanto no campo da História como no conjunto das Ciências Humanas. A interdisciplinaridade é condição sine qua non para o alargamento e aprofundamento de questões urgentes no campo internacional, não só no que diz respeito às relações entre Estados-nação, mas também entre esses e as Organizações Internacionais e os blocos econômicos. De toda a forma, a prática ou o “exercício do poder” impende uma multiplicidade de questões que deverão ser ponderadas a depender dos interesses e das posições de cada agente na estrutura de poder.

A desproporcionalidade entre o uso de mecanismos bélicos israelenses contra a população civil palestina no conflito na Faixa de Gaza denota como as mais rudes modalidades de relações internacionais permanecem atuais, à margem da diplomacia e do direito internacional.

Este é o caso de Israel e seu apoio norte-americano. Estaria assim equivocada uma abordagem meramente formalista ou jurídica de tais eventos, que depositasse excessiva confiança na capacidade das instituições globais multilaterais, como a Organização das Nações Unidas, em dirimir de forma justa tais tipos de conflito. Daí a importância de uma abordagem histórica e política do ambiente internacional, que permita transcender o campo das declarações oficiais dos grandes centros de poder, em busca de uma leitura mais independente e realista que busque situar os fenômenos em sua dimensão diacrônica, permitindo assim uma compreensão mais adequada de suas gêneses.

Boa leitura!!!

Alessandra Marchioni – Professora Doutora. Direito / UFAL

Henrique Zeferino de Menezes – Professor Doutor. Relações Internacionais / UFPB

Vitor Eduardo Schincariol – Professora Doutora. Ciências Econômicas / UFABC


MARCHIONI, Alessandra; MENEZES, Henrique Zeferino de; SCHINCARIOL, Vitor Eduardo. Apresentação. Crítica Histórica, Maceió, v. 5, n. 9, julho, 2014. Acessar publicação original [DR]

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História, Estado, Relações de Poder e Movimentos Sociais / Crítica Histórica / 2013

A edição da Revista Crítica Histórica nº 8 – Dossiê História: Estado, Relações de Poder e Movimentos Sociais apresenta temáticas que se estendem da organização do um comércio legal na grande Senegâmbia, pós proibição do tráfico de escravos, atravessando o Atlântico e terminando no Brasil para entender a formação de relações de poder nos oitocentos, chegando ao debate racial dos anos trinta.

O artigo que abre o Dossiê, apresenta como na Senegâmbia Histórica, após a proibição do tráfico de escravos, outras atividades comerciais se desenvolveram. A extinção do tráfico negreiro alterou a visibilidade das relações de poder sobretudo, econômicas, políticas e sociais, no interior da Costa da Guiné e daí com os portugueses. Quais atividades comerciais se formam aí e como elas aconteciam são perguntas as quais o artigo de Diego Zonta e Cristina Portellla, pretendem responder.

Já o artigo de Martha Vieira, procura entender como o processo de Independência do Brasil, em especial, entre 1821 e 1822, alterou significativamente as relações políticas institucionais na Província de Goiás, gerando uma crise de autoridade local que acabou por reorganizar seus próprios fundamentos.

Pensando no cotidiano, Sebastião Pimentel Franco, apresenta-nos as características sociais da população da Comarca de Vitória (ES) em meados dos oitocentos. Ressalta-se, porém, no artigo, como, através dos autos criminais, é possível dar visibilidade aos aspectos do cotidiano daquela sociedade.

De forma geral, o artigo de Célia Nonato articula a ideia de que o messianismo oitocentista pode ser pensado como movimentos sociais diferenciados na medida em que se articularam no mundo rural, contra o reformismo e o barroco, tornando tais aspectos centrais na ação coletiva que empreenderam e projetaram.

Encerrando o Dossiê, o artigo sobre o médico alagoano, Arthur Ramos, parte de sua atuação profissional, em especial entre os anos trinta e quarenta, na qual atua em diferentes áreas cujo foco central era o “racismo”, sempre tratado pelo médico nas suas dimensões políticas, sociais e culturais.

Na Seção Artigos, há uma complexa e interessante abordagem sobre a historiografia do Congo, ao mesmo tempo em que a articula na abordagem epistemológica e nas estratégias metodológicas plurais que evidenciam as contribuições da historiografia africanista ao campo da História.

Ana Paula Palamartchuk – Professora Doutora. Editora Chefe / Coordenadora do Dossiê


PALAMARTCHUK, Ana Paula. Apresentação. Crítica Histórica, Maceió, v. 4, n. 8, dezembro, 2013. Acessar publicação original [DR]

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História Medieval / Crítica Histórica / 2013

A abertura que o historiador tem dado, atualmente, às desconstruções das narrativas historiográficas, permitiu uma desterritorialização dos estudos sobre o medievo, abrindo possibilidade para uma história medieval vista a partir de outros continentes e de outros olhares que não o europeu. As perspectivas de estudo sobre este período na América Latina tem mostrado propostas interessantes de (des)construção historiográfica e reflexões que muito tem contribuído para a noção de “história como problema”, tão cara a Marc Bloch.

Os artigos que constituem este dossiê são uma amostra expressiva desta produção e do espaço que a história medieval tem alcançado dentro da historiografia brasileira. Cobrindo o período que vai deste o V século até o XVII, os trabalhos aqui publicados versam sobre problemáticas que atingem o campo da religiosidade, de gênero, da cultura, da política e do pensamento, deixando à mostra os interesses de pesquisa dos vários laboratórios que têm se articulado ao longo dos últimos anos no país e que em muito têm contribuído para essa fase frutífera da historiografia medieval brasileira.

O presente Dossiê de História Medieval, e sétimo número da Revista Crítica Histórica, é organizado por um destes laboratórios, o VIVARIUM – Laboratório de Estudos da Antiguidade e do Medievo – Núcleo Nordeste. Nosso objetivo aqui não é somente possibilitar o debate intelectual proposto pelos artigos, mas fortalecer uma rede de pesquisadores preocupados com a produção historiográfica elaborada no campo da medievalística na região Nordeste do país e da sua articulação às demais regiões.

Dentro desta perspectiva, procuramos dar espaço às pesquisas que estão sendo produzidas a partir das discussões historiográficas que fomentam esses laboratórios de estudos medievais e que num movimento de contínua troca de conhecimento acadêmico, cruzaram as mais diversas regiões do país, chegando até nós por meio dos textos dos autores aqui publicados.

Nosso dossiê inicia-se com um artigo que é exemplo dessa troca de conhecimento apontada acima. Paulo Duarte Silva da UFRJ e Bruno Gonçalves Álvaro UFS, fazem juntos uma interessante discussão acerca da atuação dos representantes das sedes episcopais de Alexandria e Hipona entre os séculos IV e V, a partir dos filmes Agostino d´Ipona (Itália, 1972) e Ágora (Espanha, 2009), que permitem comparar as diferentes formas e características da atuação bispal. Em seguida, Pâmela Torres Michelette busca compreender a elaboração da concepção da Realeza católica na Hispânia Visigoda, a partir da análise das ideias políticas de Isidoro de Sevilha. Partindo da análise da obra Vitas Sanctorum Patrum Emeretensium, hagiografia do período visigodo redigida por um autor anônimo no terceiro decênio do VII século, Germano Miguel Favaro Esteves dedica-se à interessante análise da figura do Diabo e suas representações na obra Incipt vita vel virtutibus sancti Masonae Episcopi (Vida e Virtudes do Santo Bispo Masona). Segue-se o artigo de João Charrone, que propõe uma discussão sobre as hagiografias de Venâncio Fortunato, tratando questões como a autenticidade e o público alvo das obras do autor, além de discutir as funções e o papel do hagiógrafo medieval. Já Munir Lutfe Ayoub realiza uma análise dos salões de culto e banquetes no espaço escandinavo, buscando compreender suas atribuições na formação dos espaços religiosos e políticos na Escandinávia do período viking. Partindo para a Idade Média Central e Baixa Idade Média, o artigo de Andréia Cristina Lopes Frazão da Silva nos apresenta uma agradável discussão de como a versão narrativa elaborada pelo franciscano Juan Gil de Zamora de um tradicional milagre ganha sentido em um contexto específico, o Reino Castelhano-leonês no século XIII, por meio das representações do Diabo e do Judeu. Ainda tratando do tema das hagiografias, Renata Cristina de Sousa Nascimento busca analisar os elementos presentes na construção discursiva no relato Martyrium et gesta infantis domini Fernandi que justificam ao papado a canonização do primeiro santo dinástico, durante as conquistas em África no século XV. Marcelo Pereira Lima apresenta uma discussão que parte da interseção entre a História Institucional do Direito e os Estudos de Gênero, para pensar as masculinidades clericais representadas nas legislações elaboradas no reino de Castela e Leão, do século XIII. Em seguida, Francisco de Paula Souza de Mendonça Júnior traz uma singular discussão acerca da maneira pela qual Giambattista della Porta lidou com a chamada comunicação secreta dentro das obras De Magiae Naturalis e De furtivis Literarum Notis vulgo De Ziferis – Libri III, mostrando a importância da concepção de universo e das forças esotéricas nos mecanismos pensados por Della Porta na utilização de técnicas de comunicação secreta. Adriana de Souza Zierer apoia-se na análise da novela anônima A demanda de Santo Graal para pensar as principais características dos cavaleiros e seus papéis na sociedade medieval, a partir da análise de vários personagens da narrativa. Em seguida, trazemos o artigo de Anderson D´Arc Ferreira, visando um importante aspecto do pensamento medieval, a filosofia, no qual o autor busca retomar os principais elementos pelos quais o filósofo Tomás de Aquino trata do problema acerca da possibilidade do intelecto humano adquirir conhecimento sobre Deus. Carlos J. Rodríguez Casillas retrata o enfretamento político-religioso entre o Mestre de Alcântara, Yáñez de Barbudo, com o reino de Granada, em 1394, mostrando como tal fato influenciou na desestabilização política entre os reinos castelhano e nazarí. Já Luciano José Vianna realiza uma tentativa de identificar os significados da plenitude do poder para Marsílio de Pádua no capítulo XXIII de sua obra O Defensor da Paz, bem como a sua utilização pelo bispo de Roma, apontando para uma rica discussão sobre a luta entre o poder temporal e espiritual no medievo. Por fim, o artigo de Leandro Duarte Rust fecha o Dossiê de história medieval, trazendo uma intrigante discussão a respeito das implicações intelectuais que o uso da terminologia antipapa carrega na historiografia sobre a Idade Média, principalmente com relação aos conflitos de poder e relações sociais decisivas para a constituição política da Sé Romana e da Cristandade.

Na seção Documentos, trazemos a tradução do excerto “Diatribes 12 e 13 de Musônio Rufo: Sobre coisas relativas a Afrodite e Casamento”, traduzido pelo professor Aldo Dinucci, da Universidade Federal de Sergipe. O documento, escrito por Caio Musônio Rufo – estoico do primeiro século e mestre de Epicteto – trata de questões relativas ao sexo e ao casamento, ambos sob o prisma do estoicismo romano.

Por fim, nosso dossiê encerra-se com duas resenhas: a primeira delas trata do livro de Gary Ferngren, Medicine & Health Care in Early Christianity, que versa sobre a relação entre o cristianismo dos séculos I e IV e a medicina grega, texto feito por Bruno Uchoa Borgongino; a segunda, escrita por Marcos Cruz, nos instiga a ler o livro do historiador Ruy de Oliveira Andrade Filho, Imagem e reflexo. Religiosidade e Monarquia no Reino Visigodo de Toledo (séculos VIVIII), no qual este autor dedica-se a análise das articulações entre religiosidade e a montagem da monarquia católica visigoda, após a conversão de Recaredo.

Esperamos, assim, que o presente número possa contribuir com a produção do conhecimento acerca do medievo no Brasil, ao mesmo tempo em que agradecemos as contribuições dos autores para esta edição, e dentre elas, a gentil colaboração dos participantes da rede Vivarium, região Nordeste, Bruno Álvaro e Marcelo Pereira Lima.

Raquel de Fátima Parmegiani – Professora Doutora.

Roberta Miquelanti – Professora Mestre.


MIQUELANTI, Roberta; PARMEGIANI, Raquel de Fátima. Apresentação. Crítica Histórica, Maceió, v. 4, n. 7, julho, 2013. Acessar publicação original [DR]

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História, Racismo e Religiosidades Negras / Crítica Histórica / 2012

O sexto número da revista Crítica Histórica participa organicamente das reflexões no ano de 2012 sobre “História, Racismo e Religiosidades Negras”, apresentadas durante o IV Encontro Nacional de História, promovido pelos Cursos de Bacharelado e Licenciatura em História da UFAL, ocorrido em outubro último. Tais reflexões e debates possuem uma importância estratégica de levar para a academia as discussões dos problemas e avanços de uma série de lutas específicas da população negra brasileira, por direitos plenos de cidadania. Principalmente, no âmbito da história local de Alagoas. Ao rememorar criticamente o evento conhecido como Quebra de Xangô, ocorrido em 1912, no Estado, está-se estabelecendo uma análise dos processos históricos que verificam as continuidades e mudanças das condições de vida material e cultural na sociedade brasileira e alagoana. Neste caso, este dossiê, mas também as comunicações apresentadas nos Grupos de Trabalho, durante o evento, confirmam o aumento da produção historiográfica sobre as relações étnico-raciais, a história da cultura negra, dos movimentos de emancipação, da atuação dos sujeitos históricos em processos variados ao longo da história nacional, dos problemas em torno da educação étnico-racial; além, das graves dificuldades que as religiões afro-brasileiras ou de matriz africana, enfrentaram e enfrentam em todo o território nacional. De fato, o que se percebe no âmbito desta nova produção, é a tentativa de trabalhar de modo inter e multidisciplinar a complexidade do campo social e cultural afro-brasileiro. Pode-se afirmar, por outro lado, que na última década a área de História adentrou de modo mais sistemático nos estudos sobre o negro no Brasil, buscando a superação das teorias racistas e racialistas que permearam por muito tempo certas interpretações sobre a identidade brasileira.

Os artigos apresentados neste número expressam, portanto, elementos dessa nova realidade da historiografia e dos estudos multidisciplinares, ao trazer resultados parciais ou totais de pesquisas sobre a temática em diferentes locais e temporalidades. O primeiro texto do dossiê, “Auto-Afirmação e Valorização como Perspectivas Projetivas para as Religiões Afro-brasileiras” de Irineia Maria Franco dos Santos abre com uma breve discussão sobre o processo histórico de valorização da etnocultura negra, dado especialmente no ambiente das comunidades-terreiros no período contemporâneo. Tal processo apresenta-se articulado com outros movimentos de emancipação da população negra em África e na Diáspora. O aspecto da auto-afirmação e da atuação dos sujeitos históricos negros é também perceptível nos artigos seguintes. Em “Trabalho, Política e Distinção Social em Três Organizações com Gente Preta e Parda: Recife, década de 1840”, Marcelo Mac Cord discute o processo das “estratégias políticas e sociais de determinados grupos de homens pretos e pardos, indivíduos livres e libertos, que estavam organizados em duas irmandades religiosas e em uma mutualista”. Para Mac Cord, essas “três entidades permitiram a construção de solidariedades vinculadas ao mundo do trabalho”. O que nos permite inferir a diversidade de estratégias de superação da discriminação no século XIX. Também o artigo de Solange Pereira da Rocha, “Cardoso Vieira, um Homem Negro na Composição das Elites da Paraíba Oitocentista: Biografia, Memória e História”, têm-se outra perspectiva dessas estratégias, ao utilizar os estudos biográficos na análise da atuação de Cardoso Vieira na sociedade paraibana. Interessa para Rocha entender “como um homem negro integrante das elites imperiais e também um sujeito multifacetado e controverso que teve uma trajetória de vida marcante na complexa sociedade escravista no final do Império brasileiro”. Já Ulisses Neves Rafael, no artigo ““Mulheres de Vida Livre” e “Feiticeiras” na Imprensa Alagoana: Representações Acerca da Participação Feminina na Vida Social no Começo do Século XX”, realiza “uma reflexão acerca das representações das mulheres negras em Alagoas a partir de documentação histórica, mais especificamente, dos jornais publicados no Estado entre os anos de 1900 e 1912, período este, escolhido por se tratar de um dos mais sintomáticos da história alagoana, o qual ficou conhecido como “Era dos Maltas” e que coincide com um dos momentos mais violentos de que foram vítimas as casas de culto religioso de natureza afro-brasileira e que ali convencionou-se chamar de xangô”. A importância da discussão de Rafael, além de auxiliar na construção de uma teoria explicativa sobre a formação e experiência das religiões negras em Alagoas, oferece também um estudo multidisciplinar em que História e Antropologia são utilizadas de modo exemplar. Mantendo o espírito integrado dos estudos sociais, o artigo no original em inglês, “Diaspora Africa-Brazil & Space of Candomblé: Some References” do geógrafo Rafael Sanzio Araújo dos Anjos, aborda “aspectos historiográficos e geográficos da formação, distribuição e resistências no espaço e da população de ancestralidade na África do território brasileiro”. Os mapas e dados trazidos pelo especialista proporcionam novos olhares para a discussão da presença das comunidades-terreiros nos espaços urbanos. Também compõem este dossiê, a seção Documentação que, especialmente, traz neste número o roteiro do importante documentário “1912: o Quebra de Xangô”, produzido pelo antropólogo Siloé Amorim. Ao disponibilizar para os estudantes e pesquisadores este roteiro, Amorim possibilita a análise de uma tipologia pouco utilizada como fonte histórica, mas que é fundamental para a fortificação do campo de estudos interdisciplinares, nos debates a respeito da memória e de sua construção ao longo da história. Como afirmado, em outros momentos, o chamado “Quebra de Xangô” marcou profundamente as transformações históricas para as religiões e a cultura negra em Alagoas. Construir análises e diferentes elementos para a pesquisa social deste evento e de outros fomenta aquele objetivo geral apontado, qual seja, o de auxiliar na construção de uma historiografia nacional antirracista, o que contribuirá para a educação étnico-racial e para o fim da intolerância em diferentes níveis.

Para a seção de artigos do fluxo contínuo, o sexto número da Crítica Histórica contribui ao democratizar o acesso à produção historiográfica em temáticas variadas cobrindo uma temporalidade que vai do século XVIII ao XX, em diferentes espaços no território nacional. O artigo de Izabella Fátima Oliveira de Sales “Economia das armas no Termo de Mariana: 1713- 1736” discute “parte da dinâmica de distribuição das armas no termo de Mariana, utilizando como base a análise de 145 inventários existentes no Arquivo da Casa Setecentista de Mariana, referentes ao período compreendido entre os anos de 1713 e 1736”. A autora ao utilizar essas fontes buscou “mensurar a distribuição das armas entre as freguesias que compunham o Termo de Mariana, se havia uma concentração desses armamentos sob o poder de uma determinada camada da população, o valor apresentado por esses instrumentos, a relação entre a posse de armas e o nível de riqueza e também em relação ao número de escravos”. Em “Hugh Wilson: um capitalista britânico na Bahia oitocentista”, Marcos Guedes Vaz Sampaio e Felipe Amorim Campos pretendem discutir a participação inglesa no setor de transporte da Bahia do século XIX, destacando a atuação do engenheiro e capitalista Hugh Wilson. Fecha a seção, a discussão teórico-metodológica de Nathaniél Dal Moro no artigo “Os Memorialistas e a Edificação de um Passado Glorioso”, na qual faz uma reflexão sobre a utilização, por parte dos historiadores, das fontes memorialistas, em especial aquelas que constituem parte da documentação da história do Mato Grosso.

Ainda encerram este número as resenhas de Rafael Pereira da Silva sobre o livro de Russel Jacoby, Os últimos intelectuais: a cultura americana na era da academia, editado pela: Edusp em 1990. E a de André Mendes Salles sobre o livro Maldita Guerra: Nova História da Guerra do Paraguai de Francisco Doratioto, editado pela Companhia das Letras em 2002.

Aproveitamos para agradecer mais uma vez a todos os participantes do IV Encontro Nacional de História, palestrantes, comunicadores, ouvintes, monitores, participantes enfim que fizeram as contribuições excelentes para o sucesso do evento. Estamos convencidos de que a História se constrói num processo coletivo de trocas de informações, debates e reflexões que encaminham (ou busca encaminhar) proposições críticas sobre o passado, o presente e o futuro da sociedade humana. Que nossas contribuições possam fazer parte, mesmo que modestamente, deste processo amplo e democrático.

Irinéia Maria Franco dos Santos – Coordenadora do Dossiê


SANTOS, Irinéia Maria Franco dos. Apresentação. Crítica Histórica, Maceió, v. 3, n. 6, dezembro, 2012. Acessar publicação original [DR]

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História Social do Trabalho / Crítica Histórica / 2012

Fechamos a edição da Revista Crítica Histórica nº 5 – Dossiê História Social do Trabalho no Brasil certos de que o debate intelectual é parte central na construção do conhecimento. Elaborado a partir de convites a pesquisadores, em especial do Nordeste brasileiro, o presente Dossiê marca a dimensão em que essa área temática e as suas diferentes abordagens se encontram e as possibilidades se apresentam de forma expressiva. Os seis artigos que o compõem, estabelecem o diálogo conceitual e empírico de longa tradição entre os historiadores e cientistas sociais.

Os artigos abrangem um recorte temporal que extrapolou os marcos do período republicano da pesquisa precedente e se estendem tematicamente nas experiências dos trabalhadores brasileiros. No interior destas histórias, os temas são variados e enfatizam desde os paradigmas interpretativos e o debate historiográfico a respeito das relações entre Estado e trabalhadores, passando pelas experiências e processos da relação dos trabalhadores (urbanos e rurais) com instituições de Estado e com organizações sindicais, pelos conflitos trabalhistas e o movimento operário, o trabalho e os trabalhadores no mundo contemporâneo.

O artigo “Rodando a baiana e interrogando um princípio básico do comunismo e da história social: o sentido marxista tradicional de classe operária”, de Antonio L. Negro, abre o debate provocando a reflexão acerca dos limites do sentido marxista tradicional de classe operária para entender a formação da classe trabalhadora no Brasil. Chama a atenção para as especificidades dessa conceituação tradicional que, centrada na formação da classe trabalhadora inglesa, carrega uma distinção entre o fenômeno histórico e o conceito.

Partindo da sistematização da produção historiográfica no Brasil das últimas décadas, o segundo artigo que compõe o Dossiê, “Pela Reforma, Contra a Revolução: notas sobre o reformismo e colaboracionismo na história do movimento operário brasileiro da Primeira República”, de Tiago Bernardon de Oliveira, pontua com pertinência a centralidade que algumas temáticas ocuparam no interior da História Social do Trabalho. Ao constatar que correntes do movimento operário da Primeira República, muitas vezes consideradas como reformistas, estiveram marginalizadas da produção historiográfica mais recente, o artigo busca no sindicalismo reformista elementos formadores de uma cultura política dos trabalhadores.

De forma geral, os quatro artigos seguintes que compõem o Dossiê apresentam resultados de pesquisas que confluem para aspectos de um debate estabelecido entre a História e a Antropologia e, mais especificamente, podemos dizer, entre história social, história regional e recortes mais específicos, por vezes dialogando com o olhar da micro-história. Os sentidos e as linhagens que daí resultam são extensos e dispersos. Por isso, longe de querer classificar tais artigos, buscamos entendê-los e apresentá-los naquilo que há de mais enriquecedor: a formação das classes trabalhadoras como fenômeno singular. Os artigos, assim, visitam quatro estados do Nordeste brasileiro, várias categorias de trabalhadores, em eventos e períodos específicos.

“Da aldeia da preguiça à ativa colmeia operária: o processo de constituição da cidade-fábrica Rio Tinto – Parahyba do Norte (1917-1924)”, de Eltern Campina Vale, procura entender o processo de instalação da tecelagem Rio Tinto nas primeiras décadas do século XX, em Mamanguape – microrregião do litoral norte paraibano, área de produção de sacarose no século XIX. Neste processo, deixa clara a articulação existente entre as oligarquias e os empreendimentos da indústria têxtil, com isenções de impostos, incentivos de diversas naturezas, assunção de serviços públicos por parte da fábrica. Outra estratégia utilizada gira em torno do esbulho de territórios indígenas, da ocupação de terras devolutas. Da instalação da unidade fabril, com o seu ideário de modernização, chegam os migrantes que vão formar a classe operária e, com ela, a Vila Operária.

Conceitos como coronelismo e paternalismo ganham vida no artigo “Trabalhadores, organizações e disputas políticas na última década da Primeira República”, de Philipe Murillo Santana de Carvalho. Recuperando estratégias de negociação de organizações de trabalhadores do Sul da Bahia, especificamente, Itabuna e Ilhéus, em disputas e conflitos, o artigo articula a dimensão dos “de baixo” e a dominação no funcionamento da política institucional local.

A dupla de autores, Airton de Souza Melo e Anderson Vieira Moura, nos apresenta artigo sobre a greve dos operários da Fábrica Carmem, em 1956, “Uma greve espontânea em Fernão Velho: Comissão Operária, Justiça do Trabalho e repressão patronal”. Sendo a primeira e, durante muitos anos, a mais importante indústria têxtil do estado de Alagoas, foi cenário do movimento paredista que reivindicava o pagamento do “novo” salário mínimo aos operários. Os proprietários da fábrica mobilizaram rapidamente a estrutura da Justiça do Trabalho e, assim que o delegado regional chegou, a greve foi encerrada com a “promessa” de mediação do conflito e sem prejuízos legais para os trabalhadores. A promessa não foi cumprida e vários trabalhadores foram punidos e, dentre eles, cinco responderam juridicamente na Justiça do Trabalho de Alagoas.

E para encerrar o Dossiê História Social do Trabalho no Brasil, o artigo de José Marcelo Marques Ferreira Filho, “Conflitos trabalhistas nas ‘terras do açúcar: Zona da Mata Pernambucana (anos 1960)”, analisa o momento de promulgação do Estatuto do Trabalhador Rural (assim como a formação das Juntas de Conciliação e Julgamento) e sua aplicação na região de plantação de cana-de-açúcar, buscando, para além dos ganhos e perdas dos trabalhadores, entender as suas ações, os limites e o alcance de suas estratégias. Através do olhar do jovem pesquisador, além de um levantamento que revela o movimento de acionar a justiça pelos trabalhadores, encontramos uma pertinente e aguçada leitura dos silêncios da documentação serial utilizada, fornecendo-nos sugestivas pistas para perscrutar alguns dados que não visto com facilidade através da quantificação.

Abrindo a Seção Artigos (de fluxo contínuo), “Entre emoções e leis naturais: reflexões sobre o conceito de ‘motim’ na obra do Barão de Guajará”, de Luciano Demotrius Barbosa Lima, debate como a ideia de motim articula os conflitos sócio-econômicos no Pará do século XIX. Partindo da obra do historiador, Domingos Antonio Raiol (Barão de Guajará), faz escrutínio do conceito e o analisa no debate sobre romantismo e cientificismo do período.

Já no final do século XIX, vamos para a formação da capital de Minas Gerais, na qual as elites se afinam com um projeto de “modernização” claramente identificado com as ideias de civilização e racionalidade que se chocam com a realidade da classe trabalhadora presente no centro urbano de Belo Horizonte. Assim, o artigo “O sonho da metrópole fin de siècle em vias de definição: ordem social, moral pública e mundo do trabalho em Minas Gerais (1897-1920)” de Fabio Luiz Rigueira Simão, apresenta-nos um cenário de conflitos e descontinuidades que se vai desenhando nos métodos e discursos do poder público, construídos através de uma lógica do trabalho que visa romper as resistências da população pobre e assimila-las ao projeto das elites mineiras.

Abrindo o que poderíamos chamar de segundo bloco dessa seção, o artigo “O custo de uma devoção: horas de trabalho e itens de um ritual do candomblé no início do século XX”, de Flávio Gonçalves dos Santos, entende as atividades no e do candomblé a partir da cultura material, trazendo à tona a dimensão dos custos dos objetos ali utilizados e das horas de trabalho dispendidas. Inserindo os rituais de candomblé em um contexto pouco explorado, análogo a um mercado consumidor, o artigo articula o culto aos orixás à solução de aflições das pessoas em suas experiências do cotidiano.

“Homi Bhabha leitor de Frantz Fanon: acerca da prerrogativa pós-colonial”, de Muryatan Santana Barbosa, refaz os passos da leitura de Fanon realizada décadas depois pelo indiano Bhabha e recupera conceitos do primeiro relegados pelo segundo, inserindo-os no debate contemporâneo sobre o pós-colonialismo.

Em seguida, o artigo “Jornalismo e imprensa: relações com o civilizado, o histórico e o político”, de Mauro Luiz Barbosa Marques, debate o papel e as funções do jornalismo e da imprensa a partir de autores como Pierre Bourdieu e Norbert Elias. Atribuindo-lhes um lugar na sociedade contemporânea, que se organiza conceitualmente através de ideias como civilização, história e política, o autor enfatiza sua produção como fonte para a historiografia e reconhece suas possibilidades e limites.

E, para encerrar essa edição, a resenha de divulgação (de David Vital Acioli e Dionísio Josino de Oliveira Filho) do livro Tudo pelo trabalho livre: trabalhadores e conflitos no pós-abolição (Bahia, 1892-1909), de Robério Santos Souza, não poderia vir em melhor momento. Obra publicada no ano passado, a partir da dissertação de mestrado defendida pelo autor junto ao Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Estadual de Campinas, em co-edição EDUFBA e FAPESP, acaba de obter o segundo lugar na categoria “Obra Publicada” no Prêmio Kátia Mattoso de História da Bahia, promovido pela Fundação Pedro Calmon / Secretaria de Cultura / Governo do Estado da Bahia. História cheia de coragem e inovação, mostra-nos como a construção da estrada de ferro que liga a Bahia ao São Francisco, no fim do século XIX e início do XX, gera a formação de uma classe trabalhadora singular, pois originária de ex-escravos, marcados pelas experiências contra a exploração de sua força de trabalho e pela dignidade.

Em meio a tantas histórias dos trabalhadores, de suas organizações, de suas estratégias de ação e luta, não poderíamos deixar de mencionar que essa edição surge durante a maior greve dos docentes das IFES no país, sem contar as inúmeras categorias diretamente ligadas ao governo federal que também se encontram em greve e outras que pipocam suas reivindicações no mapa nacional. Assim, na vida real, com homens e mulheres de carne e osso, se faz a luta por melhores salários, condições de trabalho, por direitos e cidadania. Esperamos que a leitura desses artigos contribua para a reflexão e para o estímulo a pesquisas futuras.

Ana Paula Palamartchuk – Professora Doutora. Editora Chefe / Coordenadora do Dossiê

Osvaldo Maciel – Professor Doutor. Coordenador do Dossiê


PALAMARTCHUK, Ana Paula; MACIEL, Osvaldo. Apresentação. Crítica Histórica, Maceió, v. 3, n. 5, julho, 2012. Acessar publicação original [DR]

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História Ambiental / Crítica Histórica / 2011

O considerável número de artigos que recebemos para a Revista Crítica Histórica nº 4 – Dossiê História Ambiental, é possível que expresse pelo menos duas coisas: (1) a lacuna de publicações especializadas para tratar do assunto e (2) a vitalidade que a abordagem da temática sobre o Ambiente tem alcançado em anos recentes.

Os questionamentos sobre as ideias de uma Natureza inesgotável, os debates sobre o aquecimento global, as condições climáticas, as catástrofes naturais e ainda uma das questões centrais que diz respeito para onde destinar os diversos tipos de lixos, resíduos, objetos descartáveis, etc. colocam em discussão o futuro e a sobrevivência da espécie humana.

Como anunciamos na chamada pública de artigos para compor esse número da Revista Crítica Histórica nº 4 – Dossiê História Ambiental, as pesquisas sobre a História Ambiental no Brasil ainda são muito tímidas. Por outro lado, trata-se uma área onde necessariamente os estudos dialogam intensamente com outras áreas do conhecimento, o que torna as abordagens instigantes, mas também desafiadoras. E, assim, esse Dossiê tem antes de tudo como objetivo socializar estudos, reflexões e abordagens nesta área da historiografia.

Os textos selecionados e ora aqui publicados por atenderem os critérios estabelecidos pela Revista Crítica Histórica, versaram sobre uma variedade de temas relacionados à História Ambiental: fontes de energia, modernização da agricultura no Brasil, direitos dos animais, extração de madeiras, memórias indígenas e suas relações com um rio, ocupações de várzeas, lavoura do café e degradação ambiental, o que confirma as necessárias abordagens multidisciplinares e transdisciplinares nos estudos sobre o Ambiente.

Em uma breve apresentação dos artigos que tratam do tema específico proposto para o Dossiê publicado nesse número da Revista Crítica Histórica, tem-se o primeiro texto “La evolución material y energética de los EEUU, 1980-2010” de Vitor Eduardo Schincariol, bem fundamentado com uma série de dados em gráficos e tabelas em que discute o descompasso entre o crescimento econômico norte-americano até 2010 e a produção energética, o que significa sérias preocupações futuras no que diz respeito à escassez de combustíveis fósseis a exemplo do petróleo. Sem dúvida essa é uma questão muito importante a ser acompanhada nos próximos anos, pois sabemos que afora a necessidade de investimentos em pesquisas para novas fontes de energia, também representará mudanças nas relações comerciais e econômicas entre os países do Hemisfério Norte e os do Sul com terras agricultáveis ainda disponíveis. O artigo, portanto, lembra em ficarmos atentos / as para os modelos agrícolas propostos, as lavouras a serem plantadas, a serviço de quais interesses e seus impactos socioambientais.

As discussões sobre a modernização da agricultura no Brasil é de longa data. Não por acaso nos estados existem os institutos agronômicos, universidades, cursos de pós-graduação, publicações, que investem e divulgam estudos especializados sobre os meios para uma maior produtividade e qualidade agrícola no país. Amilson Barbosa Henriques no artigo “Um ‘órgão dos agricultores brasileiros’: algumas propostas da moderna agricultura na Revista Agrícola Paulista, (1895-1907)”, analisou como nas páginas desse periódico eram publicadas as propostas da modernização agrícola em substituição as formas tradicionais de plantio e cultivo no país. As discussões sobre a diversificação, os adubos químicos ou naturais, a extensão da lavoura, o uso da mão-de-obra, as forma de ocupação da terra e os modelos agrários, bem como o ensino e os experimentos agrícolas são discutidas a partir dos conteúdos da citada Revista.

Os direitos dos animais é um tema de debates ainda incipiente no Brasil. Essa discussão ganhou força no bojo da chamada crise ecológica, com questionamentos à tradicional compreensão ocidental da plena dominação humana sobre os animais. Com o texto “Reflexões sobre a crise ambiental e o histórico emergir das sensibilidades para com os direitos dos animais nas Ciências Humanas e nas ciências da vida”, os autores José Otávio Aguiar, Francisco Henrique Duarte Filho e Rodrigo Ribeiro de Andrade nos provocam para uma instigante reflexão sobre as sensibilidades presentes nos debates históricos, sociológicos e jurídicos, as nossas sensibilidades para pensarmos no assunto, e também avaliarmos nossas práticas em torno do trato com seres de outras espécies.

A exploração florestal com o corte de madeiras em áreas indígenas no Sul da Bahia durante o Século XIX e a utilização da mão-de-obra nativa foi discutida por André de Almeida Rego no artigo “Corte de madeiras e o confinamento de populações indígenas: o caso da Bahia no Século XIX”. O autor evidenciou em seu estudo os impactos socioambientais de um modelo econômico baseado na destruição das matas, o que provocou novas relações marcadas pela redução de espaços, violências físicas, doenças, declínio demográfico e pela necessidade de reordenamento dos referenciais socioculturais indígenas em virtude dos desmatamentos.

Sabemos que as relações de grupos humanos são em muito marcadas pelos espaços que ocupam e transitam rotineiramente. No texto “O Ambiente e as memórias dos índios Xukuru sobre o Ipojuca e a Barragem Pão-de-Açúcar”, Denise Batista Lira analisou como em suas memórias os Xukuru do Ororubá, povo indígena que habita nos municípios de Pesqueira e Poção no Agreste pernambucano, expressam os estreitos vínculos estabelecidos com o Rio Ipojuca que outrora intermitente e hoje represado pela Barragem Pão-de-Açúcar, e é fonte de subsistência por meio da pesca para o consumo e a comercialização.

Constantemente os noticiários informam dos transtornos provocados pelas chuvas e grandes enchentes nas áreas urbanas de São Paulo. No artigo “História da ocupação e das intervenções na várzea do rio Tietê”, Sílvia Helena Zanirato tratou dos processos históricos de degradação do conhecido rio paulista, provocada pelas ocupações urbanas de suas várzeas. A autora demonstrou ainda em seu texto as preocupações, mas a ineficácia e os limites das ações públicas para conservação das várzeas como tentativas de adequar o rio ao desordenado crescimento urbano.

Para plantio do café no Rio de Janeiro fazendeiros destruíram consideráveis áreas da Mata Atlântica. Baseado em documentos dos séculos XVIII e XIX, Mauro Leão em “A cultura do café e a degradação ambiental na serra fluminense oitocentista” retomou o debate no Brasil no Século XIX sobre a questão da “rotina da lavoura do café”, um conjunto de práticas nos latifúndios cafeeiros que advogava a constante mudança de espaços para a lavoura do café, provocando com isso o desmatamento, o empobrecimento do solo e a degradação ambiental.

O papel do Juiz Conservador das Matas, um cargo público de investidura real pouco conhecido e estudado no Brasil, nas discussões em torno da exploração de madeiras nas matas de Ilhéus, Sul da Bahia, foi analisado por Ana Paula dos Santos Lima no artigo “Baltasar da Silva Lisboa: o Juiz Conservador das Matas de Ilhéus (1797 – 1818)”. No texto, a autora evidencia a importância da atuação desse funcionário da Coroa nas relações com moradores, destacando o regimento dos cortes das madeiras matas da Comarca de Ilhéus, em meio aos interesses econômicos da atividade madeireira e o surgimento de um pensamento da necessidade de preservação das matas no Brasil.

Na seção de fluxo contínuo que compreende os demais artigos que não tratam do tema específico proposto para esse Dossiê e ainda resenhas de publicações, temos textos que discutem a demografia histórica em Minas Gerais no Século XVII, com a contribuição valiosa do professor Iraci del Nero Costa (“As populações das Minas Gerais no século XVIII: um estudo de demografia histórica”); uma discussão sobre os crimes de defloramento em Porto Alegre apresentada por Carlos Eduardo Milengrosso em “Honra e Conduta: populares e práticas amorosas em Porto Alegre (1898-1923)”; “O Recolhimento de Nossa Senhora da Glória e as perspectivas de propriedade na modernidade”, em que Mayra Guapindaia trata das formas de sobrevivência das mulheres no Recolhimento de Nossa Senhora da Glória no Recife; a repressão aos movimentos sociais nos anos que antecederam a Ditadura Militar em Alagoas, com o texto “Repressão e Resistência dos Movimentos Sociais em Alagoas (1961-1964)” de Rodrigo José da Costa; as relações entre o pensamento iluminista, a Revolução Francesa e a modernidade, reflexão de Rafael Alexandre Belo em “O pensamento iluminista e o desencantamento do mundo: a modernidade e a revolução francesa como marco paradigmático”; e, por fim, os condicionamentos e os limites do conhecimento histórico apresentado na análise de Ulisses do Valle no texto “Diagnóstico de um mal estar historiográfico: os limites do conhecimento analítico-discurso”. Compõe ainda essa seção uma apresentação do livro A presença indígena no Nordeste: processos de territorialização, modos de reconhecimento e regimes de memória, organizado por João Pacheco de Oliveira, significativa coletânea de estudos que consolidam os povos indígenas nessa Região nas pesquisas e debates acadêmicos. A ideia desse texto não é fazer propriamente uma resenha do recém-publicado livro, pois uma resenha, diante da dimensão do conjunto de textos que compõe o livro, é uma tarefa bastante árdua e demandaria um espaço bem maior dos limites que aqui propomos. Buscamos tão somente, então, situar o livro em um debate mais amplo: as pesquisas, as reflexões e os textos gerais publicados sobre os índios no Nordeste.

Na seção Documentação & Ensaio trazemos uma Entrevista com D. Jaime Chemello, bispo emérito de Pelotas (RS) discutindo o papel da Igreja Católica na luta pela reforma agrária no Brasil. Esta foi realizada por Célia Nonata da Silva, no ano de 2006, como parte de um projeto mais amplo para pesquisa sobre os problemas agrários no país, as lutas sociais pela ocupação das terras improdutivas, seus avanços e recuos e a constituição de fontes históricas sobre esses processos. Nos Ensaios temos de Mauricio Waldman uma reflexão sobre a crise ambiental na modernidade – “Crise ambiental: ponderando a respeito de um dilema da modernidade” -, em que o autor aprofunda questões teóricas e de posicionamento epistemológico e de historicidade. Todos os textos, artigos e resenha compõem junto ao Dossiê um corpo de debates e provocações para os pesquisadores e estudantes da área de história ambiental.

Por fim, quero agradecer a todos / as aqueles atenderam a chamada de publicação e enviaram seus artigos. Agradeço também aos / as colegas parecerista que contribuíram sobremaneira com suas leituras, análises e avaliações dos textos aqui publicados ou aqueles que foram devolvidos em razão de não corresponderem aos critérios da Revista Crítica Histórica. Peço também desculpas por eventuais transtornos no recebimento dos textos e problemas de comunicação com os / as autores / as. Agradeço ainda ao Prof. Antonio Filipe Pereira Caetano (UFAL) pela pronta aceitação da nossa proposta de organizar esse Dossiê. Registro ainda um agradecimento especial a Profa. Irinéia Maria Franco dos Santos (UFAL) pela sua disponibilidade, presteza e paciência nos assuntos relativos às formas e meios de publicação desse Dossiê. Sua ajuda foi de fundamental importância para a publicação.

Edson Silva – Conselho Editorial. Coordenador do Dossiê História Ambiental


SILVA, Edson. Apresentação. Crítica Histórica, Maceió, v. 2, n. 4, dezembro, 2011. Acessar publicação original [DR]

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História Social do Crime / Crítica Histórica / 2011

As análises sobre a criminalidade começaram a ser resultantes do interesse público burguês apenas no século XIX, quando o Estado passou a se preocupar com a pobreza e a desordem [1]. Os estudos incidiram drasticamente sobre os bêbados da classe trabalhadora, que devido às flutuações do mercado de trabalho, afogavam o seu desespero e a sua miséria nas bebidas como único recurso. Essa relação entre os hábitos de bebedeira, o aumento de crimes, as desordens sociais e a oferta do mercado de trabalho favoreceu as análises e estatísticas de pesquisadores do século XIX, como Morrison (1891) [2], tornando significativa a relação crime-prosperidade ‘versus’ uma economia de miséria. Em 1927 Tobias [3] reiterou a ligação entre os hábitos de bebedeira e a incidência de crimes. Também, em 1977-1987, as análises de Philips e Emsley [4] demostraram não haver muita diferença entre uma classe criminal desonesta e um honesto operário – já que esta ‘marginália’ vivia sob constante suspeita. Roger Lane, Yue-Chim Wong e historiadores como Willian Taylor e John E. Kicza são exemplos de estudiosos que tem relacionado à violência interpessoal e a incidência de crimes aos hábitos de bebedeira nas sociedades ocidentais e colônias em particular.[5]

A partir da década de 1960 com a história social os trabalhos acadêmicos interessaram-se pela violência direcionada aos movimentos sociais e a exploração da classe operária. Isto de certa forma possibilitou o surgimento de outras perspectivas, utilizando-se de uma releitura sobre o aparato conceitual marxista (norteado pelo paradigma da privação – pobreza – crime) e a nova ênfase sobre os estudos culturais, em especial para as mudanças sociais. A historiografia desenvolvia, então, estudos buscando compreender a violência coletiva, como parte importante da grande temática da violência, separando os comportamentos subversivos segundo o perfil de sua ação. Dentre estes trabalhos as teses de Charles Tilly, Hobsbawm, Thompson e Ted Gurr [6], transformaram a historiografia contemporânea, buscando não apenas a correlação dos elementos culturais, mas as mudanças sociais interagidas às relações de dominação e do poder público. Assim, a história social proporcionou mudanças na historiografia, consolidando uma referência conceitual fundamentada em novos aportes teórico-metodológico fornecido por Fernand Braudel, Michel Foucault e Pierre Bourdieu. Os oprimidos, os marginalizados, as mulheres, os vadios, todos aqueles que foram excluídos da história, começavam a ressurgir do passado. E, do conceito de ideologia, que emanava da relação ‘dominantes-dominados’, a História Nova buscou inserir as noções de mentalidade, imaginário e inconsciente coletivo, abrangendo o aspecto cultural. A partir daí, as análises da violência interpessoal tem se concentrado em dois modelos interdependentes: (1) a violência instrumental (racional) que traduz-se enquanto abordagem quantitativa. Um aumento ou declínio da proporção de homicídios nas dadas culturas traduz-se em resultados variáveis nos níveis de violência. (2) A abordagem qualitativa, por sua vez, apóia-se no estudo da violência impulsiva e suas variáveis culturais. A ênfase da pesquisa qualitativa situa-se no campo do comportamento moral e ritual dos indivíduos; assim como o significado contemporâneo atribuído aos atos violentos. Segundo Spierenburg [7], a obra de Natalie Davis foi pioneira neste tipo de estudo.

Com a Escola dos Annales surgiram outras perspectivas historiográficas a partir de novos objetos e propostas. Uma destas propostas tem sido recentemente recolocada em seu lugar com os estudos de violência de gênero. É uma dimensão para a qual a historiografia criminal poderá caminhar. A idéia é desenvolver a partir das metodologias interdisciplinares, análises da historiografia criminal orientada para temáticas voltadas a condição social e cultural, como é a proposta do ‘femicide’. Assim, as estatísticas criminais deverão ser elaboradas segundo as categorias de análise e processadas em longa duração, disto a verificação dos dados e a busca pela sua significação social. A compreensão de um passado criminal recente pode revelar processos de continuidade e ou descontinuidade como dados seminais às análises criminais. Recentemente, Jock Young (2008) criticou a criminologia contemporânea em não perceber a importância das mudanças sociais para o entendimento do crime enquanto fenômeno histórico e social.

Assim, o presente número da revista Crítica Histórica tem o objetivo de participar destes debates e discussões com o Dossiê sobre História Social do Crime. Por conseguinte, no primeiro artigo: “Justiça Privada e Banditismo: um estudo sobre as formas de acomodação de poder no Brasil Setecentista”, os autores Celia Nonata da Silva e Renato Dias analisam o banditismo rural como um fenômeno social de longa duração no país, compreendendo o pistoleirismo como parte integrante da cultura política e das relações de poder presentes no meio rural, comungando com a permanência de valores coloniais da valentia, da honra e das formas de vingança. Ainda sobre o contexto histórico do século XVIII, o artigo intitulado “Crime e Justiça no Domicílio Ordinário dos Delinquentes: Comarca das Alagoas (Século XVIII)” dos autores Alex Rolim, Arthur Almeida Santos de Carvalho Curvelo, Dimas Bezerra Marques e Lanuza Maria Carnaúba Pedrosa apresentam uma análise sobre a relação da justiça oficial com os poderes locais, propondo uma visão historiográfica colonial do conflito interno na América Portuguesa e não da ordem. Para isso, serão abordados casos de crimes envolvendo as diversas cadeias de micropoderes que permeavam o corpo social da localidade. Visto isto, pretende-se trazer à discussão os abusos de poder dos Ouvidores Gerais, bem como as deturpações morais dos eclesiásticos e dos oficiais das Câmaras, como também a manutenção decadente das cadeias municipais.

Notamos que o compromisso historiográfico de identificar a desordem e o seu contraponto como o controle do Estado tem se tornado tema recorrente nos trabalhos. É o que se propõe o artigo “Reforma penitenciária? Aspectos do cotidiano da Casa de Detenção do Recife na segunda metade do século XIX” do autor Flávio de Sá Cavalcanti de Albuquerque Neto, que analisa o local de controle estatal identificado como a prisão no século XIX em Recife as reformas de controle estatal no período. A partir de fontes produzidas na Casa de Detenção do Recife desde sua inauguração, em 1855, até o final do Império, este artigo analisa os limites da reforma do regime das prisões brasileiras, efetivado na segunda metade do século XIX. Algumas abordagens se centram em discussões temáticas em torno da criminalidade em si, como elemento contundente das formas de desordem e delinquência social. É o caso do artigo “Nos limites da criminalidade: práticas de homicídios, conflitos e relações de sociabilidade em Salvador (1940-1960)” pelo autor Wanderson B. de Souza, que pretendeu discutir neste trabalho os aspectos da criminalidade em Salvador, a partir da análise das práticas de homicídios, na tentativa de compreender as relações conflituosas dos grupos marginalizados em suas multiplicidades de formas e configurações históricas. A ideia do autor se sustentou na documentação pesquisada em fontes jornalísticas, processos criminais e um conjunto de correspondências trocadas entre as autoridades policiais. Inserido na temática das formas da criminalidade. O artigo seguinte “Em nome da segurança nacional: os escritores na mira da polícia” da autora Ana Paula Palamartchuk, buscou-se uma análise do discurso policial nos anos trinta com referencia a um discurso de criminalização ‘às mentes comunistas perigosas’. Os autores pesquisados que sustentaram a argumentação estão centrados nas obras de Graciliano Ramos, Jorge Amado, Caio Prado Júnior e Astrojildo Pereira, onde suas obras passam a ser visadas pela polícia como “perigosas”.

Outra abordagem mais sutil à discussão do controle estatal sugere as reformas urbanas como elementos da racionalidade moderna e estratégias de poder público. Este é o exemplo do artigo “A Cidade está Chegando: Expansão Urbana na Zona Rural do Rio de Janeiro (1890-1940)” por Leonardo Soares dos Santos, que analisa as transformações urbanas na zona rural da cidade do Rio de Janeiro, entre 1890 e 1940. Como fonte de informação este estudo examina alguns projetos, cartas de jornais e requerimentos de autoridades políticas, funcionários públicos e cidadãos comuns. Ainda relacionado ao tema do conflito social e as formas do controle público, o artigo “Terras de aldeamentos: Trajetória de Atalaia e Sepultura nos Campos de Guarapuava (século XIX)” por Cristiano Augusto Durat discute algumas questões que marcaram a história da ocupação e povoamento dos Campos de Guarapuava nas primeiras décadas dos oitocentos: a aproximação dos lusos brasileiros com os índios da região; a criação da Aldeia de Atalaia; o pós-aldeamento e a existência de outro território tido como sesmaria dos índios conhecido por Sepultura.

Os artigos de fluxo contínuo avaliam temáticas diversas tais como o texto sobre “Walter Benjamin: inspirações para a historiografia da educação” onde o autor Rafael Alexandre Belo buscou apresentar princípios metodológicos e proposições teóricas para a história da educação a partir da leitura de Walter Benjamin. Consideramos como alicerces epistemológicos da presente construção: a concepção de tempo (Jetztzeit); a dimensão teológica; a concepção de história; a crítica ao progresso; e a concepção de experiência (Erfahung). A articulação desses princípios como elementos metodológicos demonstrou ser uma importante contribuição para investigações de grupos silenciados pela história oficial. Outro artigo apresentou a importância de Michel de Certeau na historiografia com o titulo “Diálogos com Michel de Certeau sobre a Pesquisa nas Ciências Humanas” de Francisco das Chagas Loiola, a proposta deste artigo foi estabelecer um diálogo com Michel de Certeau sobre o trabalho do pesquisador no campo da História e das Ciências Humanas, em geral. Assim também “Educação, Diversidade e Racismo: Repensando a Formação do / a Professor / a” de Elenice Silva Ferreira pretendeu uma reflexão acerca da necessidade urgente de se repensar a prática educativa hoje, no que diz respeito ao ensino da história da África e da cultura afro-brasileira na educação básica, vindo à tona a partir da promulgação da lei 10.639 / 20038 . Nessa perspectiva, a autora buscou discutir como na história da educação brasileira, a ausência de uma reflexão sobre as relações raciais no planejamento escolar tem impedido a promoção de relações interpessoais respeitáveis e igualitárias entre os agentes sociais que integram o cotidiano da escola. Ainda na perspectiva da temática da educação os autores a seguir apresentam os resultados dos trabalhos do núcleo de pesquisa. O artigo “O Núcleo de Estudos e Pesquisa sobre a Diversidade Étnico-Racial (NEDER)” apresenta algumas análises pela proposta aqui referida pelos autores Marcus Swell e Rosário de Fátima, abordam parte dos resultados da ação do Núcleo de Estudos e Pesquisa sobre a Diversidade Étnico-Racial (NEDER) na rede municipal de ensino de Maceió, na aplicação das Leis 10.639 / 2003 e 11.645 / 2008. E o objetivo do artigo foi apontar os desafios pedagógicos e políticos da luta antiracista, tendo em vista a histórica intolerância existente no Brasil e na sociedade alagoana.

Deixando a temática da educação o artigo final insere-se numa análise da literatura de Emile Zola intitulado “Entre a Genialidade e a Justiça: A Trajetória do Escritor Naturalista Émile Zola” por Rodrigo Carvalho, cujo objetivo foi analisar a literatura de Zola inserida no seu contexto histórico de época, participando de um engajamento político como figura libertária. [8] Atualmente 11.645 / 2008, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da rede de ensino, a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena. Uma conquista justa pelos indígenas brasileiros.

Notas

1. Ver: SHINNER, Q. Liberdade antes do liberalismo. Tradução: Raul Fiker. São Paulo: UNESP, 1999.

2. APUD: WONG, Yue-Chim An Economic Analysis of the Crime Rate in England and Wales, 1857-92. P.: 235. In.: Economica (1995) 62. P.: 235.

3. APUD: WONG, Yue-Chim. Op .Cit. P.: 237

4. APUD: WONG, Yue-Chim. An Economic Analysis of the Crime Rate in England and Wales, 1857-92. Economica (1995) 62. P.: 335.

5. LANE, Roger. Crime and criminal statistics in nineteenth century Massachusetts. Journal of Social History.; WONG, Yue-Chim. Op. Cit. Pp.: 235-246.; TAYLOR, Willian. Drinking, homicide and rebellion in colonial mexican villages. Stanford University Press: London, 1979; KICZA, John. “Drinking, popular protest and governamental response in seventeenth and eighteenth century Latin America”. Contemporary Drug Problems.

6. Respectivamente: TILLY, Charles. Social Movements: 1768-2004. Paradigm Publishers: London, 2004.; HOBSBAWM, Eric. Bandidos. Tradução: Donaldson Magalhães Garschagen. Rio de Janeiro: Forense, 1976; THOMSON, E.P. Senhores e Caçadores. Tradução: Denise Bottmann. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997 e Ted. “Crime and Justice”. In.: An Annual Review of Research. 1994. Pp.: 295-351.

7. Cf.: SPIERENBURG, Pieter. “Faces of Violence: Homicide trends and Cultural meanings: Amsterdam, 1431-1816”. In.: Journal of Social History. Pp.: 701-716.

8. Atualmente 11.645 / 2008, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da rede de ensino, a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena. Uma conquista justa pelos indígenas brasileiros.


SILVA, Célia Nonata da. Apresentação. Crítica Histórica, Maceió, v. 2, n. 3, junho, 2011. Acessar publicação original [DR]

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Movimentos Sociais / Crítica Histórica / 2010

Quando a história apareceu como área de conhecimento desgarrada da filosofia, nos idos do século XIX, o seu caminho para “cientificidade” passou pela formação de um método e teoria atrelado ao que os historiadores denominaram de “história positivista”. Genuinamente alemã, este modelo de pensar o passado não só exigia o uso de documentos (exclusivamente escritos e preferencialmente oficiais) como prioritários para a realização da análise de um fato, mas também elegia o mundo político como o locus central para se entender a realidade. Neste caso, a história de grandes personagens célebres (Luis XVI, Napoleão Bonaparte, D. Manuel e D. Pedro) e mais precisamente da elite econômica e política fora devassada pelos historiadores que seguiram o modelo rankeano.

No Brasil, tais instruções e / ou orientações foram absorvidas pelo Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) que visando à construção de uma identidade nacional também “olhou para trás” buscando seus personagens mais “ilustres”. Assim, não foi por acaso que com a necessidade de demonstrar raízes mais profundas do sentimento do nativismo brasílico que a figura de Tiradentes tenha sido a eleita para corporificar estas expectativas. Neste caso, apesar de representar um episódio muitas vezes considerado como “libertino” e na época “crime de lesa-majestade”, Joaquim José da Silva Xavier fazia parte de um grupo: a elite das Minas. Para os membros do IHGB, ávidos por demonstrar que a independência não havia sido pensada em 1822 (sob os auspícios de D. Pedro I, um português) e sim em 1789, Tiradentes reunia todos os ingredientes necessários para servir de espelho e identificação para os criadores desse mito.

Mas, por outro lado, a população de uma maneira geral podia (e provavelmente) enxergava tal personagem muito distante de suas características sociais. Ou seja, apesar do esforço incomensurável (?) dos pensadores do IHGB em associar o movimento social como matriz da história nacional, sua identificação não representava ainda o bojo da população. Assim, é quase lícito afirmar que a história política quando se debruçou sobre os movimentos sociais (talvez sendo os primeiros a já fazerem isso, há de se ressaltar!) não conseguiram dar voz, fala e apelos aos personagens comuns, aos homens do cotidiano e aos episódios que tinham como figura justamente estes indivíduos.

Somente como a Escola dos Annales, no início do século XX, e com os trabalhos que tinham como base as teorias marxistas que a história dos movimentos sociais ganharia uma nova roupagem. Evidentemente, a mais importante e principal delas esteja relacionada a entender os conflitos, as revoltas, as revoluções, as devassas, os motins, as insurreições, as bernardas, as conjurações e as greves também levando em consideração o povo (neste caso, pensando também na própria metamorfose que o conceito de povo sofreu na virada das centúrias), o homem comum e o cidadão explorado e vilipendiado por um grupo, por um sistema, por uma pessoa ou por um comportamento social.

Tais críticas foram absorvidas até mesmo pelos historiadores políticos no terceiro quartel do Novecentos, quando “a nova história política” passava a entender que outros atores sociais também deveriam ser levados em consideração para a compreensão dos embates de uma sociedade. Indo além disso, não só a política fora repensada como a “cultura política” passava a fazer partes dos textos para compreensão das ações sociais, interconectada com os elementos econômicos, religiosos, comportamentais, religiosos e culturais. O resultado desta mudança de análise e até mesmo posicionamento teórico, redundou em investigações sobre as revoltas escravistas, as greves dos sindicatos, a interpretação das ONG’s, o papel dos movimentos culturais, os motins anteriores a insurreição mineira de 1789, a resistência indígena e dentre outras temáticas. Logo, o que se percebe é a ampliação e variabilidade temática dos estudos sobre os movimentos sociais nos tempos atuais, debate essencial em grande parte dos cursos de graduação e pós-graduação do país.

Assim, tendo em vista o cenário amplo, irrestrito, rico e diferenciado para esta temática, o presente número da revista Crítica Histórica tem por objetivo, em seu Dossiê, abri espaço para discussão desta temática. Para isso, seu primeiro artigo Os amotinados e seus algozes: A construção de imagens do homem rebelde na América Portuguesa (Séculos XVII-XVIII) escrito por Antonio Filipe Pereira Caetano analisa como os revoltosos na América Portuguesa eram vistos por aqueles que sofriam seus reveses, bem como pela coroa portuguesa, entendida como a reguladora das relações sociais e de poder nos dois lados do Atlântico. No fundo, a intenção também é entender como esses homens agiam e de que maneira usaram tais recursos como barganhas políticas para a construção do espaço ultramarino. Rumando ao século XIX, Anna Marie Buyers em Em Defesa da Honra: a Emancipação de Alagoas no Imaginário Institucional faz uma breve análise historiográfica sobre um dos episódios mais controversos e debatidos na historia alagoana, a Insurreição Pernambucana de 1817 que culminou na separação da comarca das Alagoas da capitania de Pernambuco. Expondo as versões sobre o fato, a autora demonstra a existência dos interesses de cada grupo institucional em fazer com que sua “verdade” prevalecesse sobre o movimento, contribuindo para dificuldades de interpretações, mas das vezes não fundamentadas em um corpus documental.

Chegando ao início do século XX, Filipe Pinto Monteiro nos traz A Santíssima Trindade nos Sertões: Severino Tavares e a Gestação do Movimento Messiânico-Milenarista de Pau de Colher (Casa Nova, Bahia, 1934-1928), onde tenta inserir seu personagem beato no rol dos episódios conectados com aqueles ocorridos com o Padre Cícero Romão Batista (no Ceará) e José Lourenço Gomes da Silva (Caldeirão dos Jesuítas), praticamente ocorridos ao mesmo tempo. Desta feita, a intenção é fazer um estudo comparativo apresentando as aproximações e as divergências entre o ocorrido em Pau de Colher e as outras localidades nordestinas. Ainda discutindo movimento social, Igreja Católica e religiosidade, Celia Nonata da Silva em “Os pobres herdaram a terra”: Conflitos rurais e a Igreja Católica no Brasil na Segunda Metade do Século XX analisa de que maneira as Conferências de Medellín e Puebla alteraram a forma de pensar dos líderes religiosos e camponeses na luta pela terra, construindo discursos que resgatam o papel missionário e de luta da Igreja nos sertões brasileiros que remontam ao século XIX.

Afastando-se da discussão religiosa, mais ainda permanecendo no debate da problemática da terra, Edson Hely Silva discute em Os Índios Xucurus e as Ligas Camponesas (Pesqueira / PE, 1961) de que maneira os ameríndios lutam para a garantia de seus espaços invadidos por proprietários de terras locais. Com uma farta documentação (oral e escrita) o texto demonstra também como havia um discurso forjado pelas autoridades de manipulação dos índios pelos grupos comunistas da época, desprezando o entendimento de que os mesmos já se enquadravam na condição de trabalhadores assalariados e explorados pelos proprietários de terra. Finalizando o dossiê, mas incluído na seção Documentação, Alberto Vivar Flores nos prestigia com a transcrição da entrevista do General Emiliano Salazar Zapata para o Diário Nova Era, em 1911, momento em que revelava os bastidores da Revolução Mexicana (1910). Tal documento torna-se oportuno neste momento, justamente em que o episódio completa seu centenário de aniversário e ainda é considerado por muitos como um dos pilares da discussão sobre a reforma agrária, a valorização dos indígenas e a ampliação dos direitos e liberdades na América Latina.

Nos artigos de fluxo contínuo Loiva Canova avalia em As Representações de Antônio Rolim de Moura Sobre a Paisagem no Interior da América Portuguesa no Século XVIII como este funcionário através de uma viagem que percorreu o Rio de Janeiro, São Paulo e Mato Grosso em meados do Setecentos não só descortinou o cenário maçoeiro como analisa a impressão da fauna, flora e aspectos da morfologia destes espaços ultramarinos. Enquanto isso, Marcos Guedes Vaz Sampaio em Padrão dos Investimentos Britânicos e a Modernização Conservadora na Economia Baiana Oitocentista explora como a infra-estrutura baiana (sobretudo a de transporte) foi ventilada pela inserção de capital norte-americano na segunda metade do século XIX, o que não implicou em alterações nos mecanismos produtivos da agricultura, mas apenas reforçando sua condição agro-exporadora. Saindo do mundo da história econômica e flertando com a história cultural, Diogo Cesar Nunes em História, Linguagem e Literatura: Dilemas e Perspectivas da Historiografia Contemporânea ousadamente nos apresenta como a crítica ao contextualismo e apologia a interpretação contribuíram para redefinições teóricometodológicas na própria histórica que possibilitaram uma sobrevivência e maior aproximação entre a História e a Literatura.

Ainda na discussão sobre teoria, José D’Assunção Barros em seu texto Os Tempos da História: do Tempo Mítico às Representações Historiográficas do Século XIX faz uma análise historiográfica sobre as diversas interpretações sobre o tempo ao longo da História que perpassa desde a antiguidade até fins do século XIX, buscando compreender como essa relação tempo-história se forjou em concepções e representações. Já Gabriel Magalhães Beltrão propõe em A Continuidade da Abordagem Positivista Acerca do Folklore na Obra de Théo Brandão uma análise sobre olhar sobre o conceito de folclore em um dos principais representantes desta área no Estado de Alagoas. Neste caso, a intenção também é entender como o positivismo intervém nas construções epistemológicas no fenômeno folclórico. No debate sobre política pública e educação, Caio Penko em Multiculturalismo e Direitos: do marco legal à política pública interpreta como as alterações previstas na Lei 11.645 / 08 deflagrou uma ação diferenciada na educação brasileira visando tratamentos diferenciados as minorias étnico-raciais, elementos constituintes das novas políticas governamentais de reconhecimento social e minimização das diferenças étnicas.

Encerrando esta seção, Ticiane Oliveira de Sales nos desafia a compreender a relação entre história e patrimônio em Práticas Urbanísticas e Preservação Patrimonial no Brasil onde discute como o debate de preservação do patrimônio tem se desenvolvido na formação social do país, principalmente mediante ao crescimento urbano e os impedimentos que o desenvolvimento das cidades acarreta para a manutenção patrimonial.

Por fim, na seção Resenhas João Vinicius Bobek em Distinção e Divulgação: a civilidade e seus livros nos apresenta uma análise da obra Leitura e Leitores na França do Antigo Regime do Antigo Regime de Roger Chartier como uma alternativa para a compreensão do perfil cultura dos homens do Antigo Regime.

Logo, como se pôde observar este número da Revista Crítica História privilegiou não só uma discussão diversificada dos movimentos sociais (temática de nosso dossiê) como também ampliou possibilidades teóricas, metodológicas e de temáticas em seu conteúdo complementar. Função esta que tem como principal objetivo continuar contribuindo para um debate aberto e plural no meio historiográfico nacional.

Antonio Filipe Pereira Caetano – Conselho Editorial

Maceió, dezembro de 2010


CAETANO, Antonio Filipe Pereira. Editorial. Crítica Histórica, Maceió, v. 1, n. 2, dezembro, 2010. Acessar publicação original [DR]

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Ensino e História de Alagoas / Crítica Histórica / 2010

Talvez o trabalho mais árduo e o mais compensador do ofício historiográfico é aquele da pesquisa e da elaboração sistemática de seus resultados. As horas dedicadas às leituras, à investigação em arquivos e fundos documentais somadas às discussões com alunos e colegas são resumidos e apresentados em textos que deverão cumprir, por sua vez, um outro ciclo de debates. Estes, quando bem recebidos, transformar-se-ão em fontes e referências para novas pesquisas e tantas outras discussões. Esse processo da produção historiográfica, apresenta-se como um continuum nas universidades, grupos e centros de pesquisa e ensino no Brasil e em outros países.

Tendo isso em mente, os Cursos de História (Bacharelado e Licenciatura) da UFAL, através do CPDHis (Centro de Pesquisa e Documentação Histórica) apresenta ao público a Revista Crítica Histórica. Tal publicação almeja fazer parte do processo continuado de debate e produção historiográfica nacional e local, contemplando as diferentes temáticas e os resultados de pesquisa originais, contribuidores para a fortificação de linhas teórico-metodológicas explicativas dos processos históricos. Com isso, quer-se contribuir para o aumento de uma consciência crítica histórica em nossa sociedade, essencial para a constituição de um espaço social mais justo e plural.

Este primeiro número foi, portanto, pensando para atender a essas perspectivas. O Dossiê Ensino e História de Alagoas traz artigos da produção historiográfica local em diferentes temporalidades que renovam o tratamento dado à História alagoana, apresentando novas fontes e análises. Os textos de Antonio Filipe Pereira Caetano (Existe uma Alagoas Colonial?…) e de Janaína Cardoso de Mello (Alagoas e a Escrita de Si Mesma…) problematizam temas consagrados sobre a história de Alagoas, tais como a identidade cultural e política da região, os cabanos e os conflitos em torno do poder político. Pela contribuição na renovação dos debates tais textos tornam-se referência para os estudantes e pesquisadores da área. Sobre a história política contemporânea de Alagoas, José Alberto Saldanha (Governadores Alagoanos e os “Tempos de Antes”) analisa através do debate sobre identidades, memória e mito político os discursos dos governadores Arnon de Mello e Muniz Falcão que nas décadas de 1950 e 1960 apresentavam-se como “portadores da modernidade”. O tratamento dado pelo historiador aos discursos, é exemplar do uso das fontes, esclarecendo aspectos importantes da história política alagoana. No debate sobre a criação do Curso de História da UFAL e sobre o Ensino em Alagoas têm-se os textos de Ana Luiza de Araújo Porto (O Curso de História da Universidade Federal de Alagoas) e Maria Aparecida de Farias (Uma Prática Pedagógica Comum…). Os dois artigos abrem oportunidades para novos pesquisadores pensarem a História da Educação em Alagoas, contribuindo sobremaneira, para um olhar crítico sobre a formação e profissionalização do historiador local, como também do entendimento de parte das transformações institucionais na UFAL ocorridas nas últimas décadas.

Para fechar o Dossiê tem-se a análise comparativa de documentação apresentada por Osvaldo Batista Acioly Maciel (Estatutos de Sociedades Mutualistas e a História Social do Trabalho…). Este texto contribui ao apresentar a história e a memória dos trabalhadores de Fernão Velho no século XIX e seus modos de organização, tendo em vista suas demandas e as necessidades de “proteção e auxílio” mútuos, comentandos a partir de seus estatutos.

Os artigos de fluxo contínuo, abordam temáticas e temporalidades diversas, em que são privilegiados diferentes tratamentos teórico-metodológicos para a documentação histórica e sua análise. Rossana Pinheiro (Apontamentos sobre poder, autoridade e ascetismo: Uma breve comparação entre Agostinho e João Cassiano) apoia-se em Max Weber e Hannah Arendt para discutir os conceitos de poder, autoridade e ascetismo nas obras de Agostinho de Hipona e João Cassiano. Já Grazielle Rodrigues do Nascimento (No Tempo dos Loronhas se Erguia uma Ilha Presídio no Atlântico, 1504-1800) apresenta uma análise da história da Ilha de Fernando de Noronha, defendendo sua participação na história do Brasil como “espaço” de configuração de relações sociais e econômicas. Marcelo Souza Oliveira (Um Confronto Literário: abolição e cidadania negra na ficção baiana na segunda República) traz o interessante artigo que discute a produção de Anna Ribeiro (1843-1930) e Xavier Marques (1860-1942), em que se pode compreender como os temas ligados à cidadania negra no Brasil foram importantes para as futuras definições e debates sobre a identidade nacional. Na temática História e Literatura temos o texto de Ana Cláudia Aymoré Martins (Não há Pecado ao Sul do Equador: histórias de amor construindo o Brasil), debatendo a construção simbólica da identidade nacional através das obras Iracema, de José de Alencar, O Cortiço, de Aluísio Azevedo e O Xangô de Baker Street, de Jô Soares. Por fim, os textos de Irinéia Maria Franco dos Santos (História e Antropologia: relações teórico-metodológicas, debates sobre os objetos e os usos das fontes de pesquisa) e João Carlos de Oliveira Luna (História e Pensamento Hermenêutico na Alemanha do Século XX) contemplam temáticas de Teoria e Métodos da História, apresentando panoramas sobre a relação multidisciplinar da História e Antropologia, e também os autores e as discussões importantes sobre a hermenêutica alemã, respectivamente.

A seção Documentação, traz a análise de Marco Antonio Mitidiero Junior (A Geografia dos Documentos Eclesiais: o envolvimento da Igreja Católica com a questão agrária brasileira) sobre a participação de parte do clero católico no debate sobre a questão agrária no Brasil e a sua decorrente produção teológica contemporânea. Esta teve como substrato ideológico a Teologia da Libertação e luta política dos movimentos sociais de base.

Fechando esta primeira edição tem-se duas Resenhas que são outros exemplos de tratamentos dados às fontes visuais, em especial ao cinema e, suas possibilidades de análise histórica. Karine Mileibe de Souza, escreve sobre a obra Cinematógrafo: um olhar sobre a história organizada por Jorge Nóvoa, Soleni Biscouto Fressato e Kristian Feigelson. Fábio Henrique Gonçalves (Quando a guerra faz da verdade um butim), problematiza a construção da verdade histórica através do filme polonês Katyn de Andrezj Wajda.

Este número inaugural da Revista Crítica Histórica marca um processo muito rico para o Curso de História da UFAL, de modo particular. De modo geral, insere a produção historiográfica local no âmbito nacional da articulação de espaços em rede para troca de informação e produção entre diferentes centros, grupos de pesquisa, pesquisadores e estudantes de História. Tal construção coletiva do conhecimento historiográfico só é possível mediante a participação e apoio dos estudantes, professores e pesquisadores-autores. A eles é dedicado esta edição.

Irinéia Maria Franco dos Santos – Conselho Editorial.

Maceió, Junho de 2010.


SANTOS, Irinéia Maria Franco dos. Editorial. Crítica Histórica, Maceió, v. 1, n. 1, junho, 2010. Acessar publicação original [DR]

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Crítica Histórica | UFAL | 2010

Critica Historica 2

A Revista Crítica Histórica  (Maceió, 2010-) é uma publicação semestral do Programa de Pós-Graduação em História – Mestrado da Universidade Federal de Alagoas. Seu objetivo principal é divulgar a produção historiográfica em geral com ênfase em pesquisas originais e articular a troca de informações junto a outros pesquisadores da região e do país. Com isso, quer-se criar um veículo democrático para o debate e a reflexão crítica sobre os temas históricos de interesse regional e nacional.

Compreende-se que através dos estudos históricos é possível buscar o conhecimento dos processos dinâmicos da sociedade no tempo e no espaço com as perspectivas de transformação e melhoria da vida social como um todo.

Periodicidade semestral.

Acesso livre.

ISSN 2177-9961

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