Os militares e a crise brasileira | João Roberto Martins

Joao Roberto Martins Filho Foto Gabriela Di BellaThe Intercept
João Roberto Martins Filho Foto: Gabriela Di Bella/The Intercept

Em 2020, João Roberto Martins Filho publicou a segunda edição de O palácio e a caserna: a dinâmica militar das crises políticas na Ditadura (1964-1969), adaptação da sua tese de Doutorado em Ciência Política, orientada por Décio Saes e defendida em 1989. Nesse livro, manteve a proposição de que as forças armadas brasileiras configuram um partido político fortalecido na emergência uma “ideologia militar fortemente calcada na repulsa à política civil”, cujas pautas correlatas e consequentes seriam a estabilidade social e a garantia da ordem. (p.55). A tese contrapunha-se à interpretação da experiência militar como um conflito entre dois ideais capitalistas: o internacionalismo da Escola Superior de Guerra (ESG) e o nacionalismo de grupos minoritários. Um ano depois da republicação, Martins Filho nos brinda com outro estudos sobre “militares” e “crise” dos anos recentes, reunindo dezessete autores vinculados a instituições de ensino e pesquisa nas áreas de Estudos de Defesa, Segurança Internacional, Relações Internacionais, Estudos Estratégicos, Ciência Política e História Contemporânea, Antropologia e, ainda, profissionais do jornalismo e da área militar.

Os militares e a crise brasileiraSe o organizador registra que a proposição de 1989 ficou no limbo até 2005, agora restam poucas dúvidas de que os militares representam funções e estratégias de um partido político para si mesmos e que são corresponsáveis pelos ataques à democracia liberal brasileira, perpetrados, por exemplo, desde 2013. O leitor, contudo, encontrará alguma dificuldade para chegar às provas dessa responsabilização. A coletânea é qualitativamente desequilibrada e variada em termos de gênero textual. Verá divergências compreensíveis e saudáveis, em termos de fontes e interpretações. A credibilidade das Forças Armadas (FA), na última década, por exemplo, é tida como em declínio e em ascensão; as políticas dos governos progressistas em termos de defesa são vistas positivamente e negativamente; e a profissionalização dos militares é fundamental e nula para a sua submissão ao controle político civil. Leia Mais

A quebra da mola real das sociedades: a crise política do antigo regime português na província do Grão-Pará (1821-1825) / André R. A. Machado

A obra ora resenhada faz parte da renovação historiográfica nos estudos sobre as mudanças políticas vividas no mundo lusobrasileiro no primeiro quartel dos oitocentos. Durante décadas, debruçados sobre a “questão da Independência” – tema de forte apelo nacional –, historiadores de diferentes matizes obscureceram as alternativas políticas que se apresentavam para o momento. A mesma perspectiva transformou a Revolução do Porto – vitoriosa em agosto de 1820 – numa espécie de “antecedente” da Independência, reação última ao “projeto recolonizador” levado a cabo pelas Cortes portuguesas.

Desde a década de 1990, autores como István Jancsó – mestre de todos nós e orientador da tese que dá origem a este livro – destacavam os pressupostos a serem refutados e sugeriam os caminhos a serem trilhados por um renovado conjunto de historiadores. Em síntese: 1) recusava-se a pré-existência do Estado e da Nação, com a abolição de expressões como “manutenção da unidade”, “restauração das províncias rebeldes”, “separatismo do Norte”; 2) propunha-se a recuperação da dinâmica política a partir das variáveis que afligiam os cidadãos que se movimentavam na nova cena pública, sem o peso de explicações estruturais, como aquelas pautadas na “truculência das Cortes”, na “falência ibérica” e nas “novas necessidades do capital”; 3) recuperava-se a participação dos “homens do comum”, que ganharam vida: anseios, vinganças e frustrações motivaram sua efetiva participação política, perspectiva muito diversa das “massas de manobra”, por vezes denunciadas sob a falsa aparência de criticidade; 4) por fim, convidava-se a uma imersão no conjunto de documentos produzidos dentro e fora da esfera estatal: códices, caixas e latas conviveriam agora com jornais e folhetos, tomados como novos ingredientes de uma política cujo aprendizado se dava também em praça pública.

Pesquisador atento a tais ensinamentos, André Machado os tomou como balizas para a sua pesquisa, sem, contudo, ater-se a receitas prontas, já aplicadas ao estudo de outras províncias. De maneira autônoma, com sólida discussão bibliográfica e conjunto documental, propôs uma história das possibilidades políticas abertas desde a “adesão” do Grão-Pará à Revolução do Porto até o Reconhecimento da Independência.

Tal recorte poderia sugerir uma “História da Independência desde a Revolução do Porto”, perspectiva teleológica e tradicional que encadeou episodicamente esses dois momentos, dando-lhes inteligibilidade. Em direção diametralmente oposta, o autor reserva à Independência – palavra evitada ao longo do texto e substituída pela noção de “novo alinhamento” – um papel absolutamente secundário ante as disputas suscitadas pelas possibilidades advindas do constitucionalismo português. A seu modo, todos eram portugueses, pressuposto que inviabiliza a perspectiva de “projetos nacionais” emersos com o “7 de setembro”, ou, no caso do Grão-Pará, com o “15 de agosto de 1823”.

Essa é a tônica da primeira parte do livro, dividida em três capítulos. Desde as primeiras linhas, o autor compartilha a narrativa com seus personagens, perscrutando as incertezas e a provisoriedade das posições políticas assumidas ao sabor das circunstâncias. A “quebra da mola real das sociedades bem constituídas” – expressão de autoria do bispo do Pará, inspiração para o título do livro e norte para a noção de “instabilidade” construída pelo autor ao longo da narrativa – provocara um dissenso heterogêneo, múltiplo em suas razões e frágil em sua capacidade de construir acordos duradouros.

Tais questões são acompanhadas de uma análise que articula os estratos dominantes da província às relações de poder expressas nos “partidos” que então se organizavam. Sem recorrer a relações mecânicas de classe / partido, conclui que os proprietários de fortuna acumulada recentemente tendiam a ser “mais constitucionais”, forma de atingir postos até então ocupados por figuras ligadas ao ancien régime português. Para o autor, esses grupos “mais constitucionais” se demonstraram, gradativamente, propensos ao “alinhamento” com o Rio de Janeiro, na medida em que seus projetos políticos foram inviabilizados internamente.

Outras razões são apresentadas na explicação para o “alinhamento”, mas seguramente a mais original é a noção de “bloco regional”, rede composta por sólidos laços econômicos e políticos que aproximavam as províncias do Grão-Pará, Maranhão, Goiás e Mato Grosso.

Construída a partir de certa leitura de Benedict Anderson (Nação e consciência nacional) – autor comumente evocado pela historiografia brasileira nos debates sobre nações como “comunidades imaginadas” –, a noção serve ao autor como mais um importante contraponto ao clássico “Brasil versus Portugal”.

Sem transformar o “alinhamento” do Grão-Pará em mero reflexo dos interesses do “bloco regional”, estabelece conexões entre a inviabilidade de sua manutenção, por exemplo, a partir do “alinhamento” do Maranhão1, em 28 de julho de 1823, decisão seguida pelo Grão- Pará, poucos dias depois.

Destaque-se ainda a alternativa que o autor oferece às explicações pautadas na centralidade das pressões militares para o “alinhamento”, corporificadas na atuação de John Grenfell, inglês que chegou ao Pará em agosto de 1823 e assumiu a incumbência de comandar as forças navais a serviço de D. Pedro I. Trilhando outros caminhos, tangencia o debate sobre o papel das tropas externas: seu foco são as condições “internas” (dinâmica política provincial e interesses do “bloco regional”) que viabilizaram o “alinhamento” da penúltima província da América portuguesa ao Império nascente.

Na segunda parte do livro, composta por dois capítulos, o autor persegue os conflitos que tiveram continuidade com o “alinhamento”, forte indício de que a questão principal não estava aí, mas nas disputas abertas com a “quebra da mola real”. Se projetos políticos “préalinhamento” persistiam, novidades como a Confederação do Equador – também tomada como proposta de um “bloco regional” – traziam novos ingredientes para o campo da política.

Somem-se a esse quadro de instabilidade a crescente participação política de negros e tapuios, grupos que muitas vezes compartilhavam projetos de futuro distintos daqueles levados a cabo pelos “partidos” da província, e a partida de Grenfell, em março de 1824, uma das poucas autoridades minimamente reconhecidas entre os grupos em litígio.

Gradativamente, constrói a “solução brasileira”, tomando como referência a inviabilização de pelo menos dois importantes projetos: a alternativa republicano-regional, fracassada com a derrota da Confederação do Equador, e o realinhamento a Portugal, prejudicado pelo Tratado de Reconhecimento da Independência, assinado em meados de 1825. Paralelamente, apresenta-nos os sucessos obtidos pela junta de Santarém, representação composta majoritariamente por proprietários e comerciantes, que a partir dos primeiros meses de 1824 acumulou vitórias políticas e militares, recompondo os estratos dirigentes da província ante o “perigo maior” de uma nova São Domingos.

Por fim, vale-se de uma apropriada metáfora de Immanuel Wallerstein (Capitalismo histórico & civilização capitalista) para sintetizar as preocupações que o acompanharam por toda a pesquisa. Para o autor citado, crises sistêmicas se assemelham à experiência de passar por vários pontos de bifurcação, que obrigam a sucessivas escolhas e alimentam incertezas na busca pela estabilidade perdida. Os homens do Grão-Pará, em tempos de crise, não escaparam a essa máxima. Já nós, historiadores, talvez sejamos eternos “homens em tempos de crise”: para o nosso conforto, textos como esse demonstram que é possível, diante de cada bifurcação, aprimorar a caminhada.

Marcelo Cheche Galves – UEMA. E-mail: marcelocheche@ig.com.br.


MACHADO, André Roberto de A. A quebra da mola real das sociedades: a crise política do antigo regime português na província do Grão-Pará (1821-1825). São Paulo: Hucitec / Fapesp, 2010. 321 p. Resenha de: MACHADO, André Roberto de A. Outros Tempos, São Luís, v.7, n.10, p.292-205, dez. 2010. Acessar publicação original. [IF].