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História da África: uma introdução – LOPES; ARNAUT (RHR)
LOPES, Ana Mónica; ARNAUT, Luís. História da África: uma introdução. Belo Horizonte: Crisálida, 2005. Resenha de: SILVA, José Alexandre da. Revista de História Regional, v.16, n.1, p. 304-310, Verão, 2011.
Desde 2003, quando o Presidente Lula sancionou a lei nº 10.639, vários títulos dedicados à história afro-brasileira e africana têm surgido no mercado editorial brasileiro. O conteúdo da referida lei torna obrigatório o ensino de História Africana e Afro-brasileira nas escolas públicas e particulares de nosso país. Nesse sentido, ela cria uma demanda de materiais que sirvam de subsídio para professores da Educação Básica, alunos de graduação e a quem mais interessar. Uma das formas em que o mercado editorial vem respondendo a essa necessidade é trazendo a público livros de caráter introdutório.1 Uma dessas obras é História da África: uma introdução.
De autoria de Ana Mónica Lopes, africana nascida em Lubango, doutora em História das Culturas, e Luís Arnaut, professor de História da África na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Este livro de dimensões modestas visa introduzir o leitor ao conhecimento acerca da história da África. Não obstante, cumpre seu papel construindo um panorama do continente amparado em pesquisadores brasileiros e africanos e, seu principal mérito, traz as principais concepções historiográficas acerca do continente africano.
A conquista dos movimentos negros que representa essa lei, a nosso ver, passa por alguns dilemas. Embora algumas unidades da federação organizadas com suas Secretarias de Educação, oficialmente possuam um discurso no sentido de efetivar a lei, é outra história afirmar que ela seja de fato levada até seu objetivo final, a sala de aula. Quando se fala de história africana, logo nossas lembranças escolares nos remetem à história da escravidão, com as imagens de negros em ambiente de trabalho ou sendo açoitados. Pensando na história da África, o conteúdo escolar mais recorrente é o das navegações do século XVI, quando portugueses e holandeses contornam o continente. Essa visão repousa na representação do dominador, civilizado e possuidor de um aparato tecnológico mais sofisticado, o europeu. Em contrapartida, temos a representação do africano submisso, colonizado e destituído de objetos que remetam à ideia de tecnologia. Assim, a visão mais difundida da África continente torna-se um obstáculo.
Ao longo do tempo, esses elementos presentes nos materiais escolares e nas salas de aulas, se cristalizaram em nosso imaginário. Romper com a narrativa do negro vitimizado vindo de um lugar desconhecido pode ser um passo essencial para que os afrodescendentes se assumam como tal. Entretanto, também é importante lembrar que construir uma narrativa na qual os africanos e os afro-brasileiros figurem de forma digna não significa fomentar ódio racial ou um país cindido entre brancos e negros.2 Nosso país é composto por várias etnias, e que cada uma tenha sua história não implica em animosidade entre as mesmas.
Já na introdução da obra, os autores justificam a necessidade de seu livro apresentando a questão de como os professores ensinarão a seus alunos algo que não aprenderam nos bancos da universidade, considerando que nos cursos de licenciatura o continente aparece como secundário e marginal em relação a alguns processos históricos. No primeiro capítulo, são abordadas as várias construções acerca da ideia de África, em fontes como os textos de Heródoto, Plínio e a cartografia medieval, desde o período da Antiguidade, passando pela Idade Média e Moderna. No geral, prevalece a noção de “território de monstros”, continente associado ao “Bestiário” e região de “clima inóspito”.
O segundo capítulo questiona o termo África que, utilizado de forma genérica, como identidade estabelecida pelo europeu, para todos os habitantes do continente não permite uma matização de suas diferenças físicas, culturais e sociais, tendo sido utilizado como sinônimo de atraso. Os autores pontuam que os habitantes da África devem ser pensados como membros de civilizações e culturas que realizaram migrações, trocas culturais com outras civilizações e com padrões de sociabilidade que tornam inadequadas sua caracterização pela ótica ocidental. Há que se destacar a importância da reflexão empreendida pelos autores sobre os conceitos de raça, etnia e formação humana.
No capítulo 3, intitulado “Religiões”, Lopes e Arnaut traçam um perfil do continente africano no que tange a essa questão. A introdução das religiões monoteístas, como o cristianismo e o islamismo, é analisada de forma atenta pelos autores, os quais destacam que esta última se encontra na melhor posição para se tornar a religião do continente, devido ao seu ritmo de crescimento. No que se refere às religiões nativas, consideramos importante citar:
“[…] tentam responder às mesmas indagações que as demais religiões. Apresentam um deus superior que criou o universo e, em algumas, verificamos a presença de entidades menores […] Outro elemento importante é a ligação com os ancestrais […].” 3
O quarto capítulo trabalha a questão de como as diferentes tradições intelectuais se posicionaram diante do continente africano. A concepção hegeliana de negação de história para a África prevaleceu favorecida pela noção, superada, de se considerar o que é histórico vinculado ao surgimento da escrita. Nos dias de hoje, acredita-se que a humanidade está vinculada ao princípio da ereção corporal que possibilitou pensar outros registros, iconográficos e artísticos, como fontes de pesquisa. Os autores também mencionam a importância de alguns centros de pesquisa, que mesmo estando atrelados ao colonialismo europeu, deram uma contribuição importante para aspectos da história e geografia africana, assim como a realização do projeto História Geral da África coordenado pela na década de 1960.
O quinto capítulo versa sobre as organizações políticas. Nele, os autores trabalham com categorias de império e reinos e classificam a organização política dos povos africanos em três fases distintas até o período da colonização.
Uma se estende até o século VI da era cristã, marcada pela constituição de grandes culturas na faixa mediterrânea e na extensão do Nilo. Uma segunda até o século XV, marcada pela presença islâmica. A terceira fase vai até 1880 e é caracterizada pela presença europeia no continente.
O capítulo 6 é referente ao fenômeno que chamamos também de neocolonialismo. Até o final do século XIX, o contato dos europeus com o continente africano estava mais restrito ao litoral. Com as independências das nações latino- -americanas, voltaram sua atenção para continente que até então funcionava principalmente como repositório de escravos, partilhando-o entre si. As explicações mais comuns para esse fenômeno são realizadas a partir da perspectiva europeia, com a concentração de capital e formação de monopólios nos países colonizadores.
O livro aqui analisado traz uma perspectiva diferente, amparada na teoria da dimensão africana. Segundo essa, uma expansão do capital privado desencadeou uma ocupação militar no continente africano frente à ação de resistência dos habitantes nativos à colonização. Os europeus de fato tiveram motivos de ordem econômica para essa expansão, mas os povos do continente africano também estavam passando por transformações antes da presença europeia, de modo que a resistência dessas populações ao domínio comercial desencadeou o domínio militar. Essa resistência é categorizada pelos autores em: primária, primária retardada e intermediária. Em suas palavras: A resistência primária foi uma reação direta à ameaça representada pelos invasores europeus. Os reis buscavam através dos diversos meios disponíveis, tanto militares quanto diplomáticos, conter a invasão, ou pelo menos impedir que resultasse na extinção dos reinos. Após os europeus já terem estabelecido sua presença e sua autoridade no território africano, desenvolveu-se a resistência primária retardada.
Apesar da diferença da presença ou não do europeu, as duas resistências são chamadas de primária, na medida em que traduzem um confronto entre povos distintos […] A resistência intermediária revela uma acomodação entre as antigas estruturas africanas e as novas estruturas coloniais. A partir da década de 1920, assistimos a uma acomodação e a um ajustamento à nova situação na qual os africanos e os europeus participam, de forma assimétrica, é verdade, da mesma configuração social.4 O domínio colonial é tema do capítulo 7. Lopes e Arnaut explicam o êxito do domínio militar dos europeus com cinco razões: superioridade militar e logística; maior estabilidade; maiores recursos materiais e financeiros; maior conhecimento do continente; e o avanço da medicina tropical. As primeiras e principais preocupações dos europeus foram no sentido de coagir mão de obra para abastecer os portos com produtos nativos e expropriação da propriedade da terra em favor dos colonos.
A violência, o extermínio biológico e cultural são apenas algumas das facetas da colonização europeia na África. Lopes e Arnaut destacam outros elementos que necessitam ser considerados ao se analisar esse processo histórico. A colonização europeia trouxe transformações significativas para os africanos tais como: a urbanização, propagação da educação formal e formação de uma nova identidade. Esse último elemento foi fundamental no processo de luta pela independência dos países africanos. Essas independências são tema do capítulo 8, no qual os autores problematizam a forma como a temática é apontada nos livros didáticos. O termo independência é apresentado como forma de pensar o processo de fim de domínio de nações europeias sobre o continente africano, em contraposição ao termo descolonização.
Essa última designação, também utilizada por professores de História em sala de aula, elimina vestígios da luta africana nesse processo e fortalece uma visão etnocêntrica do processo histórico em questão.
Também destacamos a importância de um item ao final livro que apresenta uma lista de filmes cuja temática é África. Os comentários que acompanham cada filme podem bem auxiliar professores numa eventual escolha para trabalhar com seus alunos. Nesse mesmo item, também pode ser encontrada uma cronologia detalhada das independências africanas, trazendo dados como ano, data, chefe de governo, principais partidos e fatos ligados ao evento. Na sequência, encontra-se uma considerável lista de sugestões bibliográficas agrupadas em torno de grandes temas que podem servir como roteiro de um estudo mais aprofundado. Também observamos a presença de alguns erros gráficos que esperamos sejam corrigidos em edições posteriores.
A obra ora resenhada cumpre bem seu papel de introduzir ao conhecimento de história da África. Pode ser bastante útil tanto a professores do Ensino Fundamental e Médio, bem como a acadêmicos das Ciências Humanas e ao público em geral. Trata-se de um trabalho introdutório que oferece ao leitor um panorama historiográfico, e não meramente informativo, do tema abordado, a África, o que pode ser destacado como ponto forte da obra. Outro elemento que merece atenção diz respeito à forma como os autores abordam o impacto da colonização europeia no continente não de forma maniqueísta, colonizador versus colonizado, mas como elementos que integram um processo histórico que cotidianamente desafia os africanos na busca de novos rumos para o seu continente.
Notas
1 Sobre algumas dessas obras traçamos algumas reflexões: SILVA, José Alexandre. África e Brasil Africano para a sala de aula. Históriae-História. In: http://www. historiaehistoria.com.br/materia.cfm?tb=resenhas&id=21; _____ Ancestrais: uma introdução à História da África Atlântica. Revista África e Africanidades. Ano I – n. 4 – Fev. 2009. In: http://www.africaeafricanidades.com/documentos/ Ancestrais_uma_introducao_a_historia_da_Africa.pdf
2 Este argumento é defendido por alguns autores, entre os quais destacamos: MAGNOLI, Demétrio. Uma Gota de Sangue. São Paulo: Contexto, 2009. Ver: SILVA, José Alexandre. Históriae-História. In: http://www.historiaehistoria. com.br/materia.cfm?tb=resenhas&id=60
3 LOPES, Ana Mónica; ARNAUT, Luís. História da África: uma introdução. Belo Horizonte: Crisálida, 2005, p. 30-31.
4 LOPES, Ana Mónica; ARNAUT, Luís. História da África: uma introdução. Belo Horizonte: Crisálida, 2005, p. 64.
José Alexandre da Silva – Professor de História da Secretaria de Estado de Educação do Paraná, e mestrando em educação pela Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG). E-mail: sjosealexandre@ymail.com.
Territórios de mando: banditismo em Minas Gerais, século XVIII – SILVA
SILVA, Célia Nonata da. Territórios de mando: banditismo em Minas Gerais, século XVIII. Belo Horizonte: Crisálida, 2007. Resenha de: ROMEIRO, Adriana. Varia História, Belo Horizonte, v.23, n.37, p. 237-240, jan./jun., 2007.
Originalmente escrita como tese de doutorado, defendida no Programa de Pós-Graduação do Departamento de História da Universidade Federal de Minas Gerais, o livro Territórios de mando – banditismo em Minas Gerais, século XVIII debruça-se sobre um campo raramente explorado pela historiografia mineira: a vasta região rural da capitania, dominada por potentados e poderosos locais, perdidos em meio às lonjuras de um sertão inóspito e distante. Poucos foram os estudiosos que se aventuraram por esse verdadeiro continente indevassado, a exemplo de Bernardo da Mata-Machado1e, mais recentemente Carla M. J. Anastasia, num trabalho pioneiro sobre as turbulentas zonas de fronteira, intitulado A geografia do crime.2 Ao contrário do enfoque predominante na historiografia sobre o Setecentos mineiro, voltada para o universo das vilas e arraiais, a urbanização restringia-se a uns poucos núcleos populacionais, para além dos quais abria-se, imenso e inquietante, o sertão.
Filiada às novas tendências historiográficas, a autora se propõe a examinar a configuração política peculiar que floresceu à roda dos grandes potentados sertanejos, responsáveis pela constituição de vigorosos pólos de poder privado, que, ao longo de todo o século XVIII, minou insidiosamente as sucessivas tentativas da Coroa portuguesa no sentido de estender os seus tentáculos por toda a capitania. Afinal, como se dava o exercício do poder e do mando entre esses homens, tidos freqüentemente por facinorosos e rebeldes? Que valores pautavam o imaginário político deles? Ao longo da pesquisa, Célia Nonata da Silva descobre uma cultura política singular, profundamente marcada pelas concepções barrocas do Portugal restaurado, reinventadas no contato com as tradições locais. Mestiça, essa cultura política estruturava-se em formas de mando complexas, que estavam longe do estereotipo fixado pelos contemporâneos, que viram nelas tão-somente a expressão de uma violência irracional, típica do cenário bárbaro em que supostamente viviam os sertanejos.
Encarnando um poder que fustigava a Coroa, contra a qual empreenderam uma tenaz e bem-sucedida resistência, os potentados dominavam vastas extensões de terra – os chamados territórios de mando -, nos quais eram reconhecidos como chefes políticos legítimos, e por essa razão, obedecidos e respeitados por um número expressivo de moradores. Um exemplo disso é a situação inusitada em que se viu o Conde de Assumar, por ocasião do motim de Barra do Rio das Velhas, obrigado a enviar bandos para informar a população local de que ela devia obediência e vassalagem ao rei de Portugal e não a Manuel Nunes Viana. Apesar disso, este último continuou a reinar soberano e absoluto na região, desafiando acintosamente os esforços desesperados do governador para estabelecer ali o poder público.
Ao carisma destes potentados, somavam-se práticas de dominação que se traduziam sob a forma de ritos de violência específicos, como o recurso à vingança, a valorização da honra, a exibição de signos de virilidade, como a valentia, a bravura e o desafio, dos quais resultou um exercício de poder marcadamente privado, refratário, em alguns casos, à negociação, em outros, abertos à transação. Em torno deles, gravitava uma complexa rede de solidariedades, de que faziam parte escravos, forros, homens livres e pobres – e por vezes, as próprias autoridades locais – organizados em bandos armados, dispostos a executar os desígnios dos chefes locais, engalfinhados na luta pela expansão de seus territórios de mando e nas contendas entre famílias.
O principal mérito do livro reside no estudo sistemático da lógica e racionalidade do poder privado, buscando apreendê-lo como uma outra forma de exercício de poder, e não como mera negação da ordem pública. Dele emergem potentados a um só tempo fascinantes e perturbadores, como o contrabandista Mão de Luva, líder de uma quadrilha que aterrorizou por anos a Mantiqueira, ou o já mencionado Manuel Nunes Viana, que se valia de crenças mágicas africanas – como o ritual do corpo fechado – para controlar as populações da Barra do Rio das Velhas. Situados numa zona cinzenta, nos tênues limites entre a ordem e a desordem, os poderosos do sertão resistem à tipologia simplificadora proposta por Eric Hobsbawm em seu clássico Bandidos, cujo objeto são os indivíduos considerados criminosos pelo Estado. O caso dos potentados mineiros é muito mais complexo: se desafiavam as leis de Sua Majestade, perpetrando toda sorte de crimes e violências, ainda assim era os seus mais valiosos aliados, os únicos capazes de impor alguma ordem em meio às lonjuras da América. A este respeito, é bem reveladora a trajetória de Manuel Nunes Viana – que nada tinha de extraordinária ou excepcional, se comparada à de outros potentados. Tido pelos contemporâneos por um dos mais homens mais experientes nas matérias relativas ao sertão, investido de uma autoridade reconhecida pelos sertanejos, o chefe emboaba era, na opinião de um ouvidor do Rio das Velhas, o único indivíduo capaz de levar alguma ordem àquele “receptáculo para criminosos de toda a América”. Endossando esta idéia, o marquês de Angeja tecia-lhe elogios em carta ao rei, observando que “é certo que o dito Manuel Nunes Viana não só é o homem mais capaz que tem aqueles distritos, tanto para fazer o cabal informe que se lhe manda, e executar as ordens de V. Majestade fazendo-as observar e respeitar como devem ser; mas é o único que atualmente dá cumprimento ao que se lhe mandam, e faz ter em sossego e respeito o distrito, que se lhe tem assinado como sua capitania mor, sossegando-a e limpando-a dos ladrões todas as vezes que aparecem alguns por aqueles distritos…”.3 Existia mesmo, no início da década de 1710, um consenso generalizado entre os funcionários régios sobre o seu papel estratégico nos sertões distantes e, mesmo os inimigos, a exemplo do conde de Assumar, reconheciam que, não obstante seus excessos e tiranias, ele era uma figura respeitada e obedecida nos territórios distantes do controle da Coroa. Sensíveis à importância do conhecimento acumulado por estes potentados, verdadeiros depositários de um saber essencialmente sertanejo, que abrangia desde as condições ecológicas até a índole dos moradores, os sucessivos governadores-gerais sempre os tiveram em altíssima conta, encarregando-os de uma série de diligências relevantes nos confins da capitania.
O caráter ambíguo das relações entre os poderes público e privado é refutado veementemente pela autora, que vê nos potentados e poderosos do sertão o foco de um poder privado, a serviço de interesses particulares – e por essa razão, incompatível com as exigências das autoridades. Aliás, mesmo essas, como a própria autora admite, submeteram-se ao processo de privatização do poder, transformando-se também em pólos de poder concorrente, capazes de prejudicar – e mesmo subverter – a soberania portuguesa em terras mineiras.
Atenta às formas de expressão e consolidação da ordem privada, a autora opta por não esmiuçar o outro pólo do exercício político dos chefes sertanejos: a comunidade que a eles devotava respeito e admiração. Para além do nível mais imediato de capangas, caboclos e escravos, configurando os bandos armados, havia largos setores da população que os reconheciam como uma liderança política legítima e absoluta. Tudo indica que, nas paragens distantes em que a Coroa não havia instalado o seu aparato administrativo, a ordem privada desempenhava um papel decisivo no cotidiano miserável dessas populações, uma vez que proporcionava desde o exercício da justiça e a solução dos conflitos vicinais até a cura de doenças e o auxílio a doentes e inválidos.
Campo vasto, mas árduo, o tema do poder privado nos sertões mineiros esbarra em inúmeras dificuldades, sendo a principal delas o fato de que as fontes disponíveis reproduzem o olhar das autoridades e por essa razão tendem a mascarar a natureza complexa da ordem privada, reduzindo-a à mera violência e barbárie. Se os potentados não tiveram direito à palavra, o mesmo também aconteceu com os seguidores deles: sociedade de analfabetos, não legaram aos estudiosos relatos mais densos sobre as suas motivações políticas. É através do olhar enviesado dos seus detratores que o historiador tem de adentrar no imaginário político desses homens, buscando nas entrelinhas as pistas e indícios das idéias e práticas que floresceram no sertão.
Por fim, é preciso elogiar a bela edição da Crisálida – cuja única restrição é a falta de uma revisão cuidadosa -, com um destaque especial para a sugestiva capa, inspirada numa xilogravura de Arlindo Daibert. A promissora editora firma-se assim como mais um veículo de publicação que se abre às numerosas e competentes dissertações de mestrado e teses de doutorado que, a exemplo do trabalho de Célia Nonata da Silva, tem revigorado a historiografia mineira.
Notas
1 MATA-MACHADO, Bernardo Novais da. História do sertão noroeste de Minas Gerais (1690-1930). Belo Horizonte: Imprensa Oficial, 1991.
2 ANASTASIA, Carla M. J. A geografia do crime: violência nas minas setecentistas. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2005.
3 Ambos os documentos foram citados por RUSSELL-WOOD. Manuel Nunes Viana: paragon or parasite of Empire? The Americas, April 1988, v.37, p.488-489, n.4.
Adriana Romeiro – Professora do Programa de Pós-graduação da UFMG. E-mail: adriana.romeiro@uol.com.br
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