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O Crédito e o Descrédito. Ensaios sobre as relações sociais envolvidas em empréstimos nas Américas (séculos XVIII ao XIX) / Locus – Revista de História / 2014
Este dossiê traz as contribuições de onze pesquisadores de História social e de Economia sobre o problema do crédito na História. Esses pesquisadores são formados por diferentes escolas, baseiam-se em diferentes princípios teóricos e empregam diferentes métodos. Tamanha diversidade justifica-se pela complexidade dos fenômenos sociais envolvidos nas práticas de emprestar, dever, penhorar e cobrar.
Os temas abordados nos artigos têm um ponto em comum, que é a importância da informação, fundamento das relações de crédito. Saber mais sobre a quem se empresta e conhecer o uso que o emprestador faz do empréstimo são fundamentais para o credor, que assume o risco de não reaver o recurso empenhado. Pelo lado de quem faz a dívida, apresentar-se como confiável e, portanto, digno de crédito, é decisivo para convencer o credor a ceder-lhe recursos. O descrédito, ou a perda de confiança, também envolve produzir informações sobre o estado patrimonial do devedor, a fim de avaliar as chances de reaver o que se emprestou. Os ensaios aqui apresentados revelam que o controle sobre a conduta econômica do devedor pode ser feito pela comunidade dos mercadores, ou pela Justiça, a depender do período histórico.
Parte-se da suposição de que a convivência entre credores e devedores pode ser cercada de atritos. Uns buscando vasculhar os negócios de outros; outros buscando omitir bens e esconder os erros de decisão. Essa trama social que fundamenta as relações de crédito examinadas nos artigos ocorre em dois tempos e lugares: o mundo das trocas mercantis do Oceano Atlântico no período moderno e nas relações de crédito que têm lugar no setor mais dinâmico da economia brasileira do século XIX, a economia do café.
Além da diversidade de situações econômicas em que se observam práticas de crédito, o dossiê também busca examinar outro aspecto importante da questão, que é o grau de formalidade em que as relações entre credores e devedores se dão. Examina-se desde a mais absoluta informalidade do crédito mercantil alicerçado unicamente na palavra e na reputação dos contratantes, até as formas paradigmáticas de formalidade e amparo legal, a assegurar os direitos dos credores e constranger os devedores a cumprirem com seus compromissos. O dossiê percorre desde o crédito mercantil, sustentado no estreito conhecimento mútuo das partes, passando pela circulação de crédito entre os pobres, até as operações realizadas sob o amparo de arcabouço jurídico formal e, teoricamente, impessoal, do sistema bancário do mundo liberal.
No primeiro bloco temático, os pesquisadores examinam o papel das relações de poder que azeitam as relações de crédito e punem quem perde a confiança, ou ingressa no descrédito. Nesse bloco temático Fábio Pesavento, historiador econômico, associa-se ao historiador social, Tiago Luís Gil, para rever as elaborações teóricas da Nova Economia Institucional e avaliar a sua pertinência a fim de compreender as tramas sociais observadas nas práticas de crédito dos agentes envolvidos com a atividade tropeira, nas capitanias do sul colonial.
No artigo seguinte, Teresa Cristina de Novaes Marques oferece uma visão alternativa sobre o problema das instituições sociais e o manejo da reputação em uma comunidade mercantil. Marques examina o controle que os próprios comerciantes do Recife exerciam sobre os integrantes do seu grupo apoiando-se em elaborações teóricas da Antropologia do Direito, desenvolvidas pelos historiadores do Direito, Paolo Grossi e Antônio Hespanha.
Os dois artigos seguintes examinam práticas de crédito na economia cafeeira. Rita Almico examina o mercado de empréstimos a produtores rurais da Zona da Mata na segunda metade do século XIX. Os amplos dados examinados pela autora mostram o perfil das transações – os valores médios emprestados, os bens oferecidos em garantia às transações – sugerindo um ativo mercado de crédito na região. A autora mostra como as crises no mercado financeiro da Corte repercutiam na região cafeeira de Juiz de Fora, levando ao aumento das cobranças judiciais de dívidas. O artigo mostra, também, que a informação sobre o estado patrimonial precário dos devedores se espalhava como rastro de pólvora entre os credores que corriam todos aos tribunais para, simultaneamente, tentar reaver parte do seu capital no rateio dos bens do devedor. O artigo apresenta situações nas quais a falta de informação exercia papel importante: muitas vezes, um indivíduo oferecia o mesmo imóvel a diversos credores como garantia, uma vez que estes não se conheciam mutuamente ou não sabiam das outras dívidas do devedor.
Já o artigo de Rogério Faleiros explora questões sobre o crédito em outra região cafeeira, o Oeste paulista, onde se situam os interesses de um grande fazendeiro e devedor. Faleiros analisa as escolhas empresariais do fazendeiro que contribuíram para a sua ruína e perda de credibilidade. Ao discutir as escolhas do fazendeiro, Faleiros levanta aspectos da transição do trabalho escravo para o trabalho livre na região do café paulista.
O segundo bloco temático do dossiê examina mais formas de crédito, desde as transações mais pessoais, envolvendo pequenos valores, a transações formalizadas por contrato entre um tomador e um banco, a atuar como emprestador institucionalizado. Esse bloco também analisa diversos instrumentos de crédito, de empréstimos bancários a hipotecas, buscando examinar o funcionamento de cada um deles, a frequência com que são levantados, o seu uso em projetos de maior vulto, a exemplo de investimentos em indústrias, além das garantias que amparam essas transações.
O artigo de Carlos Vallencia Villa discorre sobre um tema pouco explorado entre historiadores brasileiros, que são as transações de pequeno valor, mas de grande frequência, entre os moradores pobres da cidade do Rio de Janeiro. Além do ineditismo do tema, Vallencia aporta contribuição metodológica ao campo, por conjugar rigor estatístico ao uso de ferramentas de georreferenciamento. Ao fazer isso, o autor situa trama social dos agentes econômicos na cidade onde vivem, oferecendo uma nova dimensão para as relações sociais no meio urbano.
Em contraponto ao trabalho de Villa, o artigo de Luiz Fernando Saraiva e Théo Lobarinhas examina transações de grande monta, que geraram processos de execução. Em diálogo com a historiografia bancária do período formador do mercado capitalista no Brasil, 1821 a 1850, os autores revisitam a documentação sobre cobranças de dívidas e, assim, fornecem uma visão em detalhes sobre a sistemática das cobranças, as garantias das dívidas, a rede de indivíduos envolvidos no mercado bancário no período.
Na linha que investiga a formação do sistema bancário do Império, o dossiê traz a contribuição da historiadora norte-americana Gail Triner sobre a forma de atuação dos bancos ingleses no Brasil. Particularmente, a autora examina a importante questão do mercado de câmbio, elemento que atua como a válvula reguladora da rentabilidade da economia agrário-exportadora.
Em complemento, o artigo de Walter Pereira desce ao plano da economia regional do Norte Fluminense e, a partir do exame de duas instituições bancárias, Pereira revela o alcance da influência econômica da cidade de Campos, que abrangia a província do Espírito Santo. O estudo de Pereira sugere, também, que a compreensão da influência política das elites da região requer o conhecimento das relações de crédito que os poderosos locais mantinham uns com os outros.
Avançando nas primeiras décadas do século XX, Renato Marcondes apresenta um cuidadoso estudo sobre o mercado de empréstimos garantidos por um peculiar instrumento, as hipotecas. Marcondes mostra que a compreensão dos investimentos de maior monta na economia urbana de São Paulo, uma cidade em franca expansão industrial e comercial, requer o exame das transações garantidas por hipotecas e, por consequência, o conhecimento do perfil dos tomadores de crédito com essa garantia e dos fornecedores de recursos.
Concluindo, os artigos reunidos neste dossiê apresentam um amplo leque de situações envolvendo o crédito, mediante diversos fundamentos teóricos, metodológicos e o exame de diferentes estratos sociais e espaciais. Além disso, chama a atenção que muitos artigos enfatizam as relações sociais e seguem os rastros de indivíduos e de famílias, demonstrando a distância que a história econômica vem mantendo das análises socioprofissionais e de grandes grupos abstratos. Seria o caso de refletir sobre até que ponto há aqui uma influência da micro-história italiana e até que ponto os historiadores começam a consumir o vocabulário neoclássico, colocando o indivíduo no centro da atenção. Seria esta uma saída adequada para a compreensão das economias modernas?
Por fim, e não menos importante, os colaboradores prestam homenagem ao autor e professor Théo Lobarinhas Piñeiro, recentemente falecido e que dedicou sua vida acadêmica à história econômica, tendo oferecido especial contribuição aos estudos sobre o crédito e à formação de pesquisadores.
Teresa Cristina de Novaes Marques
Rita de Cássia da Silva Almico
Tiago Luís Gil
Organizadores do dossiê
MARQUES, Teresa Cristina de Novaes; ALMICO, Rita de Cássia da Silva; GIL, Tiago Luís. Apresentação. Locus – Revista de História. Juiz de Fora, v.20, n.2, 2014. Acessar publicação original [DR]