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Celebrando a Pátria Amada: esporte, propaganda e consenso nos festejos do Sesquicentenário da Independência do Brasil (1972) | Bruno Rei Duarte
Entender como governos autoritários construíram bases de apoio social capazes de legitimar e estabilizar o funcionamento das instituições políticas mobilizou a atenção dos pesquisadores das ditaduras militares da América do Sul nos últimos anos. Especialmente no Brasil, com o ressurgimento recente de narrativas laudatórias sobre os “anos de chumbo”, o interesse sobre o assunto se tornou ainda mais patente. Afinal, como é possível que partes expressivas da sociedade possam apoiar, ou mesmo, não se rebelar contra governos que exaltam a tortura, a perseguição política e a censura?
No final dos anos 1970 e início dos anos 1980, quando a ditadura brasileira começou a ter que lidar com um descontentamento social que ia além das esquerdas e abarcava amplos setores da esfera pública brasileira, a resposta para essa pergunta ganhou contornos redentores: as pessoas que apoiaram regimes autoritários foram manipuladas ou coagidas pelas políticas repressoras do Estado. Por isso apoiaram, pelo engano ou pelo medo. Dessa forma, a sociedade, vista como vítima, se redimia da conivência com os absurdos autoritários. Os filhos dessa pátria, que por anos levaram pedras feito penitentes1, viam passar a página infeliz da nossa história convictos da culpa estatal. O jardim da democracia que florescia sem pedir licença consagrava a memória binária da sociedade versus o estado; dos civis contra os militares. Leia Mais
O movimento queremista e a democratização de 1945: Trabalhadores na luta por direitos – MACEDO (AN)
MACEDO, Michelle Reis de. O movimento queremista e a democratização de 1945: Trabalhadores na luta por direitos. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2013. Resenha de: COUTINHO, Renato Soares. Anos 90, Porto Alegre, v. 21, n. 40, p. 553-558, dez. 2014.
Boas perguntas, por vezes, costumam gerar boas respostas.
É muito raro uma pesquisa consistente, com hipóteses originais e abordagem coerente partir de uma questão de menor relevância. Nas últimas décadas, as pesquisas na área de história e o pensamento social brasileiro vêm se debruçando sobre um debate gerado por uma indagação inquietante. Como Getúlio Vargas, presidente que governou durante período ditatorial, especialmente entre 1937 e 1945, conseguiu estabelecer suas bases de apoio eleitoral entre os trabalhadores brasileiros, com o Partido Trabalhista Brasileiro, no período democrático, entre 1946 e 1964? Indo direto ao problema, podemos sintetizar a pergunta da seguinte maneira: como explicar a popularidade de Vargas e de seu projeto político, o trabalhismo, entre os trabalhadores? Em linhas gerais, podemos identificar a existência de duas vertentes analíticas que percorrem caminhos bastante distintos para explicar o mesmo fenômeno. A mais antiga delas destaca as ações dos agentes estatais. Censura, repressão policial e propaganda política são os objetos mais investigados da perspectiva que busca, em última análise, entender a popularidade de Getúlio Vargas como resultado das bem-sucedidas estratégias de dominação social. Interpretações mais recentes preocupam-se com as relações mantidas entre o Estado e os setores populares, elevando os trabalhadores à condição de ator político. Projetos e crenças políticas, demandas sociais e organizações sindicais, ideias e valores culturais dos trabalhadores tornam-se objeto de estudo dos historiadores. Ou seja, temos duas correntes interpretativas que formularam variáveis independentes que se situam em polos distintos: para uma delas, as ações do Estado explicam o comportamento dos trabalhadores; para outra, as interações entre eles e o Estado se tornam a chave explicativa.
Para os leitores que estão familiarizados com o tema, não é difícil decifrar quais são as perspectivas apontadas acima. A primeira delas, a mais antiga, acabou por produzir e consolidar o conceito de populismo como ferramenta conceitual capaz de explicar a popularidade de líderes como Vargas – valorizado pelo seu carisma.
Segundo essa perspectiva, a estrutura social construída pelo processo de modernização capitalista tardia acabou conferindo ao Estado-Nacional uma condição privilegiada de dominação sobre os trabalhadores, por conta da ausência de um histórico de lutas capaz de gerar, entre essa camada da população, uma consciência de classe autônoma.
A segunda perspectiva delineada anteriormente vem cumprindo a tarefa de dialogar e enfrentar proposições que há décadas estão enraizadas não só no campo acadêmico, mas também no senso comum. Tendo como base trabalhos inovadores, como a A invenção do trabalhismo (GOMES, 2005), o suposto problema da falta de organização e consciência de classe dos trabalhadores brasileiros foi substituído por vasta pesquisa documental que visava a dar conta da construção da cultura política do operariado brasileiro a partir das suas próprias experiências de luta. A premissa de que a repressão e a propaganda foram capazes de gerar satisfação ou persuadir os trabalhadores foi abandonada. Pesquisas recentes, baseadas em fontes documentais, comprovam que o operário brasileiro interagiu com o Estado, resultando em trocas materiais e simbólicas que, em muitos aspectos, respondiam aos anseios e às reivindicações dos próprios trabalhadores. Vale destacar que não se trata de mudar os nomes, simplesmente trocando o termo populismo por trabalhismo. Não se trata da substituição de conceitos.
Trabalhismo é compreendido como um projeto político resultante das relações entre Estado e classe trabalhadora, em que ambos foram protagonistas na construção do projeto político.
O livro O movimento queremista e a democratização de 1945, da historiadora Michelle Reis de Macedo (Rio de Janeiro, 7 Letras, 2013), oferece sólida resposta para a pergunta que mobiliza diversos historiadores brasileiros. Nas palavras da autora: “[…] por que vários setores sociais, especialmente a maioria dos trabalhadores e setores populares, apoiavam o ditador?” (p. 17). Sem se perder nos intermináveis debates conceituais que envolvem a temática escolhida, a autora não se furta de destacar com clareza a sua filiação teórica e metodológica. Porém, o faz sem os andaimes das citações bibliográficas que, quando exageradas, tornam o texto enfadonho até mesmo para o especialista. O livro de Michelle de Macedo é uma obra sustentada por uma edificação conceitual rica e clara, mas com as estruturas teóricas cobertas pelo refinado acabamento documental. A utilização de uma vasta documentação e a análise das fontes são os maiores méritos do trabalho da historiadora, e, para a satisfação do leitor, as polêmicas conceituais são discorridas em meio aos problemas postos pela pesquisa.
O livro é o primeiro publicado sobre o movimento queremista no Brasil. Inspirados pela frase “Queremos Getúlio”, os queremistas organizaram comícios, produziram panfletos e pressionaram diretamente o presidente Getúlio Vargas a lançar sua própria candidatura para as eleições que colocaram fim ao regime ditatorial do Estado Novo, em dezembro de 1945. O movimento acabou não conseguindo sucesso na sua principal empreitada – a candidatura de Vargas –, mas teve influência determinante no resultado eleitoral das eleições presidenciais de 1946, além de ter contribuído decisivamente para a organização das bases programáticas e para a composição social do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB).
Dividido em quatro capítulos, a obra destaca inicialmente a conjuntura internacional gerada pela vitória dos países aliados sobre os regimes fascistas ditatoriais na Segunda Guerra Mundial.
A autora mostra como o discurso de oposição ao Estado Novo buscou associar a imagem de Vargas aos líderes fascistas europeus.
A União Democrática Nacional (UDN), partido que inicialmente arregimentou um leque de oposicionistas a Vargas, iniciou a campanha eleitoral motivada pela certeza de que a imagem do ditador não poderia resistir ao contexto de ampla mobilização e exaltação dos valores liberais democráticos que ressurgiam prestigiados ao final da guerra. A campanha para a presidência, articulada em torno do brigadeiro Eduardo Gomes, começou contagiada pelo otimismo da certeza da vitória.
Nem mesmo o avanço das organizações queremistas a partir do segundo semestre de 1945 foi capaz de conter o ânimo da campanha udenista. Mesmo nos casos em que a mobilização queremista se mostravam coordenada e em crescimento, a resposta dos líderes udenistas era marcada pelo descrédito daqueles que julgavam os atos dos trabalhadores como “desvios” gerados pela propaganda estadonovista.
No segundo capítulo, Michelle de Macedo vai ao encontro do seu objeto de estudo. Ao analisar as ações coletivas dos queremistas, a autora mostra para o leitor os significados que norteavam as escolhas políticas dos trabalhadores que apoiavam Getúlio Vargas. Através de matérias veiculadas em jornais e de cartas enviadas para o presidente, a autora desvenda valores e anseios que orientavam os trabalhadores que defendiam a candidatura de Vargas. As divergências entre o pensamento liberal udenista e a cultura política dos trabalhadores entravam em conflito especialmente em torno da compreensão de “qual” democracia estava em jogo. Para os queremistas os avanços materiais promovidos pela legislação trabalhista conquistada nos anos anteriores eram mais importantes do que um sistema político baseado em regras formais de competição partidária. A cultura política popular mostrava-se alheia ao discurso liberal da campanha udenista, que tinha como princípio o fortalecimento das instituições da democracia representativa. Investigando quais eram as demandas populares em 1945, a autora mostrou como a questão da representatividade nos parâmetros da democracia liberal estava em segundo plano para o trabalhador brasileiro. Naquela ocasião, mesmo com a vitória das democracias liberais no conflito mundial, o interesse do trabalhador brasileiro era assegurar os benefícios trabalhistas que foram distribuídos durante o governo do presidente Vargas. Nesse contexto, a saída de Vargas representava uma ameaça aos ganhos materiais conquistados no regime que encerrava. E a ameaça era real. Afinal, a campanha udenista desqualificava a legislação social, acusando-a de “fascista”. Aliás, foi nessa época que surgiu a famosa expressão de que “a CLT era cópia da Carta del Lavoro”. Arroubos eleitorais udenistas, certamente, mas que assustaram os trabalhadores.
No capítulo seguinte, a análise do apoio dos comunistas ao queremismo é um dos pontos mais interessantes e elucidativos na disputa entre udenistas e queremistas. Os udenistas tinham como certo a oposição do líder comunista Luiz Carlos Prestes a Getúlio Vargas. Não foi o que ocorreu. Ao contrário, Prestes apoiou Vargas.
A partir daí, os liberais udenistas reforçaram a crítica aos partidários de Vargas e Prestes associando suas crenças aos regimes totalitários europeus. No discurso da UDN, o fascismo de Vargas e o comunismo de Prestes representavam a mais terrível ameaça aos valores democráticos. A participação do Partido Comunista do Brasil (PCB) foi um complicador a mais na campanha eleitoral udenista. Como também da imprensa, toda ela alinhada com a candidatura do brigadeiro Eduardo Gomes e com a UDN. Ainda no terceiro capítulo, a autora apresenta uma série de matérias publicadas nos jornais que visavam a ensinar a história do Brasil para o trabalhador brasileiro.
Nesses textos, o povo brasileiro sempre aparecia atuando em busca dos seus direitos sociais.
Por fim, Michelle de Macedo analisa o processo de institucionalização do movimento após a desistência de Getúlio Vargas de participar das eleições presidenciais. O queremismo é entendido nesse momento como um primeiro esboço das principais demandas dos trabalhadores que apoiariam, nos anos seguintes, o PTB.
Outro ponto de grande relevância do capítulo que conclui o livro é a pressão feita por facções do queremismo para que Getúlio Vargas declarasse seu apoio à candidatura de Eurico Gaspar Dutra, candidato do PSD. Isso realça o grau de autonomia que os defensores da candidatura de Vargas tinham em relação ao líder político. Durante toda a campanha eleitoral de Dutra, Vargas não pronunciou uma única palavra de apoio ao candidato do PSD. Apenas às vésperas da votação é que Vargas decidiu pedir o voto a Dutra, fato que, muito certamente, contribuiu para a derrota da UDN nas eleições de 1946.
A autora mostra como a pressão dos queremistas contribuiu para a decisão de Vargas, e esse evento comprova como as interações entre a liderança política e os agentes sociais são marcadas por pressões – mesmo que desiguais – vindas de ambos os lados.
Como já escrevi anteriormente, o livro de Michelle de Macedo é mais uma valiosa resposta a um problema que intriga muitos historiadores: a popularidade de Getúlio Vargas entre os trabalhadores.
Resposta que agrega mais substância ainda aos pesquisadores que se dedicam a compreender o fenômeno Vargas não apenas como o resultado de ações manipuladoras por parte do Estado, mas como o resultado da materialização de demandas sociais produzidas por agentes conscientes e organizados.
Referências
FERREIRA, Jorge (Org.). O populismo e sua história: debate e crítica. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.
GOMES, Angela de Castro. A invenção do trabalhismo. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2005.
MACEDO, Michelle Reis de. O movimento queremista e a democratização de 1945: Trabalhadores na luta por direitos. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2013.
Renato Soares Coutinho – Doutor em História Social pelo Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal Fluminense e Professor de História do Brasil da Universidade Castelo Branco. Contato: rscoutinho@hotmail.com.