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Cidade e cultura visual / Urbana / 2017
A Revista Urbana apresenta, em sua trajetória, uma especial atenção aos documentos visuais. Nos artigos reunidos pela revista, não é raro o uso de fotografias, cartografias, desenhos e outros suportes visuais, num diálogo muito profícuo e latente com as reflexões diretamente ligadas à cultura urbana. A própria transformação e o desenvolvimento dos debates acadêmicos expressos ao longo de seus volumes têm trajetória inerente a um diálogo com esses documentos, destacando uma ligação que acompanha a própria constituição dos saberes urbanos. Não por menos, logo em seu segundo volume, a Revista Urbana foi organizada em torno do tema ‘Cidade, Imagem, História e Interdisciplinaridade’, marcando, desde o seu início, a necessidade de se pensar a história urbana a partir de documentos visuais.
O volume publicado há uma década se insere num contexto muito específico dos estudos urbanos, mas também de um momento próprio da disciplina da história – em seu sentido alargado. Naquele momento, passava-se a incorporar os estudos visuais como um de seus problemas de investigação. Josianne Francia Cerasoli, no editorial do volume publicado em 2007, destacou que aquela publicação era fruto de reflexões que se deram em dois Simpósios Temáticos da ANPUH, sendo um deles proveniente do GT “Cultura Visual, Imagem e História”. Essa não é uma informação menor, visto que aquele GT nascera no ano de 2003. Foi, portanto, no início dos anos 2000, que os historiadores se puseram a pensar mais cuidadosamente as fontes visuais, propondo novos caminhos e sentidos para a história urbana. Não por menos, o grupo formado naquele GT se consolidou e relevantes pesquisas se estruturaram em torno de seus núcleos de pesquisas.
Vale destacar que esse interesse dos historiadores pelas imagens – com especial atenção à fotografia – vinha tomando corpo a partir de meados dos anos 1980, no Brasil, com notável desenvolvimento a partir dos anos 1990. Trabalhos de expressiva amplitude e cuidado metodológico foram publicados nesse período, onde se pode destacar o volume 6 da revista Acervo do Arquivo Nacional e o volume 5 do Boletim do Centro de Memória da Unicamp, ambos publicados em 1993; o número 27 da Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, em 1998 ou o volume 32 dos Anais do Museu Histórico Nacional; além de outras publicações como Retratos quase inocentes, de autoria de Carlos Eugênio de Moura e publicado em 1983, ou a publicação organizada por Annateresa Fabris, Fotografia: usos e funções no século XIX, publicado em 1991. Os documentos fotográficos – nesse caso – passavam a ser tratados não apenas como iconografia para a história, mas eles mesmos – documentos – passavam a ocupar o lugar central de reflexão dos historiadores.
No que se refere aos debates da cidade, da arquitetura e do patrimônio, o uso de documentos visuais também passou a ser recorrente nos trabalhos acadêmicos. Através desse interesse dos historiadores, colocou-se em debate momentos específicos da trajetória das cidades, especialmente no caso dos grandes centros urbanos que tiveram seus aspectos radicalmente transformados pelo processo de urbanização do século XX. Nesse sentido, o trabalho Fotografia e Cidade, das historiadoras Vânia Carneiro e Solange Lima, logo se estabeleceu como uma importante referência para qualquer pesquisador dedicado ao tema. O debate em torno dos mapas, proposto por Beatriz Bueno em Desenho e desígnio, também marca esse momento da produção acadêmica, interessada em pensar a formação das cidades brasileiras a partir dos documentos visuais.
Essa renovação em torno dos suportes documentais seguiu o momento decisivo pelo qual a historiografia brasileira da arquitetura e do urbanismo passou a partir a partir dos anos 1980. Já amplamente destacada e enfrentada em publicações organizadas pelo Dr. Abílio Guerra (2010) e pelo Dr. José Tavares Correia de Lira, através dos números 11 e 12 da revista Desígnio (2011), a revisão historiográfica da arquitetura e do urbanismo é, em grande parte, devedora dessa renovação em torno das fontes, documentos e arquivos. Desse modo, foi possível que novos objetos de investigação e novos problemas pudessem contribuir com uma transformação plural. Num movimento correspondente, Ana Claudia Veiga de Castro e a Joana Mello de Carvalho e Silva organizaram recentemente um número temático dos Anais do Museu Paulista sobre o estatuto das fontes e dos acervos nas pesquisas de história da arquitetura e da cidade, ampliando o debate especialmente no que se refere aos diferentes suportes documentais. Os arquivos e coleções passaram também a ocupar um lugar importante dentro desse movimento de renovação da historiografia.
Não por menos, identifica-se uma nova guinada nos trabalhos dos historiadores, colocando novas perguntas e novos problemas para se pensar os documentos visuais. Já no final do século XX, é possível identificar uma série de trabalhos icônicos que contribuíram de maneira singular para se pensar e produzir história com documentos visuais. De forma pioneira, Michael Baxandall constituiu uma importante contribuição sobre o Renascimento italiano, articulando de forma inovadora imagem e texto. A produção do real através de instrumentos científicos e a constituição de seus suportes visuais, numa relação imbricada com a sociedade, aparece caracterizada de forma cuidadosa no trabalho da pesquisadora Svetlana Alpers. Assinalava-se, assim, o que se denominou por Cultura Visual, um campo de saber interdisciplinar constituído “através das relações de interlocução e produção de sentidos com a história da arte, literatura, filosofia, estudos cinematográficos e de cultura de massa, sociologia, antropologia e arquitetura” (SCHIAVINATTO; COSTA, 2016). No Brasil, esse debate é recente e teve início nos trabalhos Fontes visuais, cultura visual, história visual, de Ulpiano Bezerra de Meneses; e em O desafio de fazer história com imagens, de Paulo Knauss.
A renovação historiográfica associada à cultura visual coloca, portanto, no centro de seu debate não apenas o estatuto das fontes – sua natureza – nas suas diferentes tipologias, mas também as interrelações e o lugar ocupado por elas na relação com seus temas e objetos diretamente relacionais. Isso quer dizer que pensar com imagens não significa uma associação direta com uma questão real ou objeto descrito ou ilustrado pelo documento. O documento, em si, é artefato – tem matéria – e, portanto, tem uma natureza específica que é inerente a uma dada cultura. Desse modo, é possível compreender que o documento visual funciona como elemento intrínseco e indissociável de uma dada cultura, fazendo com que certas especificidades sejam fundamentalmente importantes para a compreensão de seu lugar e relevância. A imagem que carrega uma fotografia, um filme, um livro, um mapa ou desenho é, portanto, apenas um dos elementos fundamentais para a leitura do documento. Este possui também um suporte que carrega uma imagem, valorado diferentemente em acordo com sua natureza; assim como um lugar e uma importância numa dinâmica cultural, que envolve os agentes diretamente ligados a sua produção, circulação e consumo; como também o modo como essa imagem foi produzida, sua linguagem e seus signos e instrumentos diretamente relacionados.
Foi a partir dessas avaliações que os artigos aqui reunidos foram ordenados. Primeiramente, privilegiou-se as tipologias documentais, favorecendo a futura leitura de pesquisadores interessados em determinados documentos. Assim, este número da Revista Urbana pretende servir como apoio a futuras investigações que se dediquem não apenas a um dos temas aqui tratados, mas à natureza do documento enfrentado. Para tanto, a organização deste número apresenta artigos que tratam de livros de arquitetura, produções cinematográficas, telas históricas e fotografias, como que fornecendo subsídios para que se possa acompanhar mais claramente a renovação historiográfica em curso. Paralelamente, é possível notar que os primeiros artigos se enquadram mais cuidadosamente no que se entende hoje por Cultura Visual e, neste aspecto, vale uma pequena descrição.
Em “A imagem da Cabana Primitiva no Renascimento”, Francisco Dias de Andrade apresenta um texto de grande importância para o entendimento de como a imagem da cabana primitiva foi se equacionando a partir da redescoberta do tratado De Architectura de Vitrúvio. Cuidadosamente debatido a partir de fontes, o autor demonstra como essa imagem, hoje consagrada através do trabalho de Joseph Rykwert, é fruto de disputas e tensões culturais. De maneira semelhante, Herta Franco, em seu “Cinema, Estigmatização Territorial e História Urbana”, e Flaviano Isolan, em seu “Metropolis, Trem Azul e Zumbis”, demonstram brilhantemente como a produção cinematográfica não apenas contribuem para a consolidação de significados sobre o próprio território, como no caso de Franco, mas também podem intervir no próprio campo historiográfico, mudando conceitos e sentidos sobre movimentos, como apresentado por Isolan. O cinema não é, portanto, apenas uma representação, mas ocupam uma posição ativa na formação de sentidos sobre um determinado território.
Seguindo uma reflexão cuidadosa em torno da cultura visual, Carlos Oliveira apresenta uma bela contribuição sobre o papel que a circulação de imagens teve para os debates patrimoniais. Apresentando algumas das telas produzidas por Émile Rouède, Oliveria deixa claro que os debates patrimoniais e preservacionistas, gerados pela mudança da capital de Minas Gerais no final do século XIX, guardam associações diretas com a produção visual daquele momento. De maneira semelhante, Bruno de Andrea Roma apresenta uma importante reflexão sobre o papel ocupado pela fotografia na consolidação dos debates ligados à preservação de bens culturais. Em ambos os casos, Oliveira e Roma contribuem para reforçar a importância do estatuto das fontes na relação com os debates patrimoniais, sendo que, nesse último caso, a fotografia ocupa o centro da reflexão para os debates contemporâneos ligados à preservação no Brasil.
Vera Lucia Vieria Lima e Renata de Almeida, em “Arquitetura das colônias de imigração alemã”, assim como Laura Cury, em “A imagem do Parque do Ibirapuera”, se não investem especificamente sobre os debates da cultura visual, apresentam bons contributos para se pensar a imagem na organização de uma memória. Seja sobre a cultura arquitetônica alemã ou mesmo na modernidade expressa através da arquitetura do Parque do Ibirapuera, ambos os artigos representam a natureza intrínseca dos documentos fotográficos.
A Revista Urbana apresenta, desse modo, uma mobilização renovada em torno dos debates visuais. Com este número, espera-se que os debates ligados à cultura visual possam avançar nas universidades brasileiras, renovando as perspectivas possíveis de produção intelectual ligada aos estudos urbanos.
Referências
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Eduardo Augusto Costa – Pós-doutor em história pela Unicamp (2018). Foi vencedor do XI Prêmio Funarte Marc Ferrez de Fotografia (2010). Atualmente é Pesquisador Colaborador da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP. E-mail: eduardocosta01@gmail.com
COSTA, Eduardo Augusto. Editorial. Urbana. Campinas, v.9, n.2, maio / ago, 2017. Acessar publicação original [DR]