Posts com a Tag ‘Corpos Políticos’
O circuito dos afetos: corpos políticos, desamparo e o fim do indivíduo – SAFATLE (RFMC)
SAFATLE, Vladimir. O circuito dos afetos: corpos políticos, desamparo e o fim do indivíduo. São Paulo: CosacNaify,2015. Resenha de: PINTO, Thiago Ferrare. Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.5, p. 381-387, n.2, dez, 2017.
Em seu Circuito dos afetos, Vladimir Safatle se propõe a elaborar uma teoria política que pense os “caminhos da afirmação do desemparo” (SAFATLE, 2015, p. 72) e a “insegurança ontológica” que ele produz (SAFATLE, 2015, p. 73). A referência ao caminho implica a relação do desamparo com a história enquanto espaço de conflito em torno de pretensões opostas de validade moral. Mas há mais: a referência ao caminho de afirmação do desamparo envolve também a compreensão da história enquanto espaço de disputa em torno dos padrões a partir dos quais discursamos quando da tentativa de tornar produtivos os conflitos entre pretensões opostas de validade. Aqui está o sentido da insegurança ontológica que o desamparo produz: sua afirmação implica um desafio à suposição das teorias críticas hegemônicas segundo a qual a estrutura deliberativa do Estado democrático de direito espelharia a formadas demandas históricas por realização da liberdade. A insegurança, portanto, vem do reconhecimento da possibilidade de que a realidade histórica e sua materialidade surpreendam as formas hegemônicas de mediação da liberdade.
Segundo o autor, a teoria crítica contemporânea tende a reconhecer a produtividade dos conflitos entre pretensões materiais opostas que convivem no interior de uma comunidade política. Assim, demandas por reconhecimento ganham espaço na arena pública enquanto conflitos materiais voltados à efetivação dos princípios constitucionais que seriam objeto de consenso sobre o modo de resolução desses conflitos. A política caminharia sem pôr em xeque a forma de resolução dos conflitos, uma vez que se definiria pelo desdobramento daqueles conflitos passíveis de tematização nos marcos pré-estabelecidos para a vivência da liberdade. De modo geral, as abordagens críticas reconhecem a produtividade dos antagonismos materiais, embora ao preço da ocultação da possibilidade dos antagonismos formais (SAFATLE, 2015, p. 27).
Desenvolvendo esse ponto, Safatle define política a partir de uma crítica à teoria discursiva do Estado democrático de direito de Jürgen Habermas e à idealidade da razão como horizonte formal do discurso sobre a realização da liberdade. Nos marcos da teoria habermasiana – que nesse ponto influenciou personalidades como Axel Honneth e Nancy Fraser -, pode-se dizer que há devir, há história a ser ressignificada: a dor dos ofendidos nos impele à revisão das estruturas de nossa forma de vida (HABERMAS, 2007, p. 66). O problema é que a história só é revelada naquelas dimensões que podem ser expressas nos marcos racionais – marcos da razoabilidade, diria John Rawls (2006, p. 32-33) – do horizonte consensual que define o corpo político:
[…] argumentar a partir da razão significa introduzir a política em um campo tendencial de concórdia, afastar-se da instabilidade das paixões para aproximar-se da perenidade de determinações normativas encarnadas na estabilidade de instituições capazes de garantir a procura comum pelo melhor argumento a partir de ideias claras e distintas (SAFATLE, 2015, p. 149)
O que daí se segue é uma tentativa de ressignificar o conceito de política. Nos marcos da teoria discursiva do Estado democrático de Direito, política é a efetivação de demandas por liberdade no interior das estruturas normativas do projeto constitucional. Política é, portanto, a atividade de constante revisão dos nossos padrões de coordenação de ação a partir das estruturas que delimitam o que pode vir à luz enquanto demanda por reconhecimento. A abordagem de Safatle se sustenta na tese segundo a qual a teoria discursiva do Estado democrático de direito anula a política à medida que retira dela sua espontaneidade e sua possibilidade de fazer da contingência o impulso para a reinvenção das estruturas fundantes de uma comunidade.
A compreensão da função do direito na constituição do espaço público é fundamental no caminho argumentativo do autor. O direito não só reproduz determinada percepção daquilo que a crítica social pode ser, mas também a constitui, à medida que estrutura os espaços sociais de crítica e delimita formalmente o politicamente possível. O ponto do autor se comunica com a abordagem de Butler naquilo que diz respeito à estruturação jurídica do regime de gênero nas democracias ocidentais contemporâneas (BUTLER, 2017, p. 23). A orientar o autor e a autora, encontra-se a ideia segundo a qual a estrutura jurídica de uma sociedade institui um regime de validade que tem a pretensão de sustentar juízos sobre o real. Nesses termos, a vida política que caminha sem a tematização de antagonismos formais produz a já referida segurança ontológica, no sentido de que as possibilidades de recuperação histórica de narrativas sobre a liberdade – narrativas silenciadas pelo teor universalizante da forma de vida hegemônica – se encontram pré-determinadas e, portanto, delimitadas em seu potencial transformador. O diagnóstico de Safatle tem o seguinte teor: “[…] a estrutura do direito determina as formas possíveis que a vida pode assumir, os arranjos que as singularidades podem criar. Elas fazem das formas de vida aquilo que previamente tem o molde da previsão legal” (SAFATLE, 2015, p. 360).
A estrutura jurídica constitui, portanto, o padrão hegemônico de realização da liberdade. A gramática constitucional estabelece critérios de dizibilidade, formas que são condições de possibilidade para o falar sobre política e emancipação. É assim que a pretensão de reconstruir a história de determinada comunidade política se perde na delimitação prévia daquilo que pode ser uma pauta a ser debatida no espaço público estruturado constitucionalmente.
A ideia central aqui é a desincronização. A partir dela se percebe a anulação da materialidade da vida política como um desdobramento da suposição da existência de um modelo único de realização da liberdade: a liberdade realizada no espaço institucional do Estado democrático de direito. Nos marcos da teoria discursiva de Habermas, a materialidade que dá ensejo aos processos de aprendizado social é demarcada e limitada em seu potencial produtivo: a contradição que o sofrimento instaura não põe em xeque os pressupostos do discurso prático, as bases do Estado constitucional. Nesse sentido, a descentralização das perspectivas hegemônicas é sempre parcial, no sentido de que nunca dará conta daquelas vivências cuja concretude não se deixa traduzir nos pressupostos comunicativos embutidos nos processos constitucionais de crítica social.
A teoria crítica hegemônica – a teoria discursiva do Estado democrático de direito, em especial–naturaliza os marcos da crítica, determinando abstratamente os sentidos possíveis da liberdade. Safatle assim resume o argumento em torno dos desdobramentos deletérios da sincronização da história enquanto dimensão necessária dessas perspectivas teóricas:
Através da história, ser e tempo se reconciliariam no interior de uma memória social que deveria ser assumida reflexivamente por todo sujeito em suas ações. Memória que seria a essência orgânica do corpo político, condição para que ele existisse nas ações de cada indivíduo, como se tal corpo fosse sobretudo um modo de apropriação do tempo, de construção de relações de remissão no interior de um campo temporal contínuo, capaz de colocar momentos dispersos em sincronia a partir das pressões do presente (SAFATLE, 2015, p. 137)
Ainda a respeito da dimensão jurídica da sincronização, o autor se debruça sobre a ideia de cidadania. A defesa da cidadania nos marcos de uma democracia deliberativa envolveria a pressuposição do caráter jurídico das condições de formação da subjetividade, o que implica uma limitação do sentido da política a partir de sua submissão aos princípios constitucionais que fazem a mediação da crítica social. A potência transformadora da política– sua capacidade para produzir antagonismos formais a partir da experiência do desamparo – é domesticada pela obrigatoriedade de uma forma para o exercício da autoconsciência. Ainda que não se resuma ao voto – como parece ser o caso nos modelos liberais de democracia -, a cidadania advogada pela teoria discursiva do Estado democrático de direito compreende a formação da memória e da identidade de uma comunidade como um exercício discursivo que se realiza nos limites da gramática constitucional. A dimensão política da vida social, portanto, está colonizada pela rigidez de princípios jurídicos, de onde se segue que o desamparo não encontra rotas de fuga por meio das quais possa afirmar-se.
Resumiremos o argumento. A teoria discursiva do Estado democrático de Direito encontra sua materialidade no fato de que “a objetividade da exigência de um novo espírito vem da dor dos ofendidos” (HABERMAS, 2007, p. 52). O problema, porém, é que a pressão do presente impele a construção da memória social a partir da sincronização da história. Ou seja, a tematização da dor só se dá à medida do possível, sendo o possível o espaço pré-determinado pelas estruturas do Estado constitucional(SAFATLE, 2015, p. 137). Toda dor é concebida como indício de antagonismo material, nunca como a materialidade fundante de um antagonismo formal. Em última instância, não se põe em xeque “o horizonte formal consensual de legitimidade dos enunciados” (SAFATLE, 2015, p. 149), de modo que a vida política se resumiria ao debate sobre as discordâncias que se travam num espaço delimitado de antemão.
Seria o caso de dizer, portanto, que Habermas ainda opera nos quadros naturalizantes do liberalismo político de Rawls. Embora tenha afastado a ideia do fato do pluralismo razoável através da historicização da formação das diferenças, Habermas supõe o caráter universal do projeto constitucional enquanto instância mediadora da liberdade. Nesses moldes, o universal não é mediado pelos momentos particulares de sua crítica; o universal, portanto, permanece intocável. Precisamente neste ponto a teoria discursiva do Estado democrático de Direito não sustenta a sua pretensão de materialidade: o atrito produtor de antagonismos formais – na terminologia de Safatle, a capacidade do desamparo de pôr em xeque a universalidade das estruturas que medeiam a liberdade jurídica – é ocultado pelo não reconhecimento da legitimidade de demandas que não se deixem traduzir na gramática uniformizante do direito constitucional.
A gramática constitucional ampara as demandas por justiça, uma vez que demarca os limites daquilo que é antecipado como politicamente possível. Pensar a política a partir do desamparo envolve a centralização daquelas demandas que colocam em xeque os limites do possível, ou seja, demandas que questionam a rigidez das estruturas que, à medida que delimitam o espaço formal da crítica social, acabam por dizer o que a crítica pode ser: “[…] estar desamparado é estar sem ajuda, sem recursos diante de um acontecimento que não é a atualização de meus possíveis”(SAFATLE, 2015, p. 71). A produção política de antagonismos formais é o caminho de afirmação do desamparo no sentido de tornar politicamente possível aquilo que até então não o era.
A força política do desamparo reside no desejo de transformação da base supostamente consensual por meio da qual uma comunidade dialoga racionalmente sobre a sua história. A abstração do consenso racional é revelada pela materialidade do desamparo, pela asseveração da necessidade de se dar voz àqueles e àquelas que não encontram voz nos marcos pré-estabelecidos pelo Estado democrático de direito para a crítica social:
[…] a política pode ser pensada enquanto prática que permite ao desamparo aparecer como fundamento de produtividade de novas formais sociais, na medida em que impede sua conversão em medo social e que nos abre para acontecimentos que não sabemos ainda como experimentar (SAFATLE, 2015, p. 67)
A teoria crítica do autor tem como objetivo, portanto, a desconstrução do modelo de realização da liberdade pressuposto pela teoria discursiva. A pretensão de materialidade é levada aqui às últimas consequências, o que implica dizer que os antagonismos políticos transcendem a divergências entre orientações axiológicas, as divergências entre concepções de bem igualmente razoáveis. Os antagonismos políticos põem em xeque, portanto, o próprio consenso constitucional. A materialidade da história vivida de modo não sincrônico produz atrito com as estruturas formais do Estado constitucional – os procedimentos constitucionais formalmente instituídos são insuficientes enquanto meio de trazer à luz experiências contra- hegemônicas de liberdade. Daí se segue o desafio em torno da revisão das pretensões de universalidade da gramática moral da comunidade e o reconhecimento da impossibilidade de antecipação das estruturas a partir das quais a crítica será exercida, a história será reconstruída e a memória/identidade de uma comunidade será ressignificada.
Referências
BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Trad. Renato Aguiar. São Paulo: Civilização Brasileira, 2017.
HABERMAS, Jürgen. A inclusão do outro: estudos de teoria política. Trad. George Sperber e Paulo Astor Soethe. São Paulo: Loyola, 2002.
RAWLS, John. O liberalismo político. Trad. Dinah de Abreu Azevedo. São Paulo: Ática, 2000.
Thiago Ferrare Pinto – Professor substituto do Departamento de Teoria do Direito da Faculdade Nacional de Direito – UFRJ.
Circuito dos Afetos: Corpos políticos, Desamparo, Fim do Indivíduo – SAFATLE (RFMC)
SAFATLE, Vladimir. Circuito dos Afetos: Corpos políticos, Desamparo, Fim do Indivíduo. São Paulo: Cosac Naify, 2015. Resenha de: PACHECO, Mariana Pimentel Fischer. Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.3, p 190-193, n.1, 2015.
Em Circuito dos Afetos, Vladimir Safatle investiga desdobramentos de suas ideias acerca de uma ontologia do negativo, as quais sustentou em sua tese de doutorado 1 por meio de uma engenhosa articulação entre Hegel, Lacan e Adorno. Seu novo livro aborda especificamente a dimensão dos afetos. Nosso autor já havia apontado para essa direção em dois de seus trabalhos, Cinismo e Falência da Crítica e Grande Hotel Abismo. O primeiro mostra que cínico é aquele que aprendeu a rir das normas: não importa se estas se realizam de maneira invertida, para o cínico o que realmente interessa é a promessa de gozo imediato do neoliberalismo. Posteriormente, Grande Hotel Abismo aprofunda a investigação sobre uma ontologia capaz de exercer uma pressão subtrativa e insiste no potencial produtivo de experiências de indeterminação.
Que afetos estão ligados à produtividade do trabalho do negativo? Que afetos permitem a insurgência de uma violência destruidora daquilo que nos faz estagnar em um circuito de repetições intermináveis? Que afetos criam sujeitos? Estas são as perguntas centrais de Circuito dos Afetos. Para pensa-las, Safatle retorna a Freud, particularmente ao desamparo [Hilflosigkeit] freudiano. Este é, de fato, um retorno, pois somente após incorporar sua tríade (Hegel, Lacan e Adorno) nosso autor poderia ler Freud tal como, agora, propõe.
Diferentemente do medo ou da esperança, o desamparo não está ligado a projeções de determinados acontecimentos futuros. O desamparo se conecta a situações às quais não somos capazes de atribuir um sentido (ou, como prefere Safatle, atribuir um predicado) ou a experiências que não sabemos como lidar. No desamparo agimos sem saber em que lugar chegaremos. Mas, mesmo desamparados, agimos. Movemonos, pois de algum modo devemos ter sido capazes de perceber que estávamos presos a um circuito de repetições. Estranhamos isso – o desamparo é, nestes termos, articulado ao estranhamento (Das Unheimlich) freudiano. Nosso autor escreve sobre uma política do impossível, isto é, sobre uma política ligada a um ato que não está mais fundado nas possibilidades que nos são disponibilizadas por uma ordem simbólica. Trata-se de um ato que só poderá adquirir sentido retroativamente.
A partir de textos freudianos, Safatle formula, ainda, um diagnóstico acerca da hegemonia de certos afetos em nosso modo de vida: sua leitura de Totem e tabu expõe a força atual de um circuito repetitivo de medo e culpa, conexo a um laço social de base melancólica.
Em Totem e tabu, Freud conta a história de um pai primevo que possuía todas as mulheres e tinha acesso a um gozo ilimitado. Os filhos se unem, matam o pai e, depois disso, comem a sua carne. Ocorre que, desde o início, a relação com o pai era ambivalente: os filhos não só o odiavam, também o amavam. Foram, por isso, após o parricídio, tomados por sentimentos de medo e de culpa. O banquete totêmico mostra que, com o assassinato, o pai não fica para trás, ele é introjetado. É desse modo que o supereu freudiano se forma.
Poderíamos concluir, como fazem alguns, que o parricídio é um marco para a constituição de um laço horizontal entre irmãos. Há quem diga que estaria aí a base de uma sociedade democrática e igualitária. Safatle mostra, todavia, que não é esta a história narrada em Totem e tabu: a morte do pai e sua introjeção melancólica produz um fantasma. Nosso autor escreve que as democracias neoliberais são sociedades de irmãos assombrados pelo fantasma do pai. Vivemos em tempos de neoliberalismo e de injunção ao gozo, em vez do supereu repressivo da época de Freud, o supereu, hoje, ordena: goze agora! Satisfaça-se imediatamente! Os irmãos se tornaram indivíduos que competem entre si e buscam afirmar sua potência (querem ser como o pai); são, hoje, empresários de si mesmos.
Para pensar a política no tempo presente, devemos, então, compreender que o laço entre indivíduos no neoliberalismo se constitui melancolicamente. A centralidade desta ideia fica clara na afirmação “a gênese do supereu em Freud está alicerçada em uma analítica da melancolia” (SAFATLE, 2015: 82) e na passagem que a segue:
É possível dizer que o poder nos melancoliza e é dessa forma que ele nos submete. Essa é sua verdadeira violência, muito mais do que os mecanismos clássicos de coerção e dominação pela força, pois trata-se aqui de violência de uma regulação social que leva o Eu a acusar a si mesmo em sua própria vulnerabilidade e a paralisar sua capacidade de ação (SAFATLE, 2015: 83).
Tanto o luto como a melancolia são processos ligados à perda de um objeto de forte investimento libidinal. Na melancolia, entretanto, o trabalho de elaboração não se realiza por completo. O objeto não é deixado para trás, ele permanece de um modo bastante peculiar: é introjetado, ou seja, é ligado ao eu. Dessa maneira, afetos como raiva e ressentimento por ter sido abandonado pelo objeto amado se voltam contra o próprio sujeito. Na melancolia há um movimento pendular entre, de um lado, autoacusações e sentimento de impotência e, de outro, afirmações obstinadas da potência. Não é por acaso que indivíduos, empresários de si, oscilam, hoje, entre uma profunda sensação de impotência (o aumento dos diagnósticos de depressão não aconteceu sem motivo) e procura por maximização da performance. Os indivíduos não cessam de tentar alcançar a potencia plena ou gozo ilimitado (como o do pai primevo) que o neoliberalismo promete.
O luto conforma outro modo de lidar com a perda. O trabalho de luto apenas pode se realizar, contudo, se formos capazes de agir sem medo de perder um objeto que já, desde sempre, estava perdido. Em outras palavras, o luto está ligado um ato que acontece sem o amparo de fantasias como a de um pai primevo e sem a promessa de um gozo ilimitado. Safatle se refere ao luto da ideia de indivíduo e da promessa neoliberal de gozo; este é, para ele, um luto do impossível.
Nosso autor realiza, assim, uma crítica que convoca a performatividade adorniana: falar sobre o esgotamento de um modo de vida é também uma maneira de fazer alguma coisa, é um modo de realizar uma intervenção interpretativa. É como se tivéssemos que fazer ressoar, afirmar, uma vez e de novo, que um modelo se esgotou e que não há saída possível, apenas para que, em um segundo momento, possamos dizer: “há, agora, novas possibilidades, há sim uma saída”. Trata-se de tornar o impossível possível: “conseguiremos mais uma vez explodir os limites da experiência e fazer o que até então apareceu como impossível tornar-se possível” (SAFATLE, 2015: 185). Este é um projeto crítico que busca mobilizar “a força performativa da rememoração” (SAFATLE, 2015: 176). Safatle insiste que instituir outros modos de narrar a história pode ser um maneira de realizar um trabalho de luto.
Propomos, por fim, avançar um pouco mais na discussão sobre o luto e possibilidades para crítica. Em diversos trechos do livro, Safatle se refere a Judith Butler. Isso de nenhum modo surpreende, pois a filósofa norte-americana também pensa a política a partir de ideias freudianas sobre luto e melancolia2. Nosso autor não se aprofunda, entretanto, no exame das diferenças entre o seu ponto de vista e o de Butler.
Não é o luto do indivíduo ou de uma promessa de gozo que interessam a Butler, ela investiga o luto que experimentamos em nosso cotidiano, aquele que vivenciamos ao perdermos pessoas importantes como um parceiro ou parceira, nossos pais, filhos, um grande amigo. O trabalho de luto pode, nesses casos, mostrar que não somos proprietários de nós mesmos. Butler não cuida, então, de um luto referente à morte do individuo-proprietário; para ela, é o próprio luto que mata o individuo-proprietário que imaginávamos ser.
Para compreendermos esta ideia, basta nos lembrarmos de perdas que vivenciamos. Ao perdermos pessoas importantes comumente imaginamos que a dor que sentimos é temporária e que, posteriormente, retornaremos à situação anterior. Mas certas perdas não permitem que esse retorno ocorra. São justamente estas que podem revelar algo realmente significativo sobre nós mesmos. Após tais perdas irreversíveis, o que antes sabíamos sobre nós mesmos se desfaz. É como se o “eu” não perdesse simplesmente um “tu” do qual se separaria, é como se perdesse o que conhecia sobre si mesmo: perdemos alguém para descobrir que nos perdemos daquilo que imaginávamos ser. Somente conseguiremos deixar que o trabalho de luto ocorra se aceitarmos essa falta de sentido, isto é, se aceitarmos que não mais sabemos o que fazer, que estamos desamparados. Parece, então, que, para nossa autora, o luto produz desamparo.
Apenas poderemos atravessar o luto se nos deixarmos submeter a uma transformação cujos resultados não podemos prever. Há algo em jogo no luto que é mais forte do que previsões, do que conhecimento, do que escolha. Algo toma conta de nós e, assim, o luto nos mostra que não somos proprietários de nós mesmos. Não seria equivocado falarmos, então, sobre “estranhamento” no sentido que Freud atribui à palavra: no trabalho de luto, o sujeito se percebe como outro.
A nossa autora escreve que, hoje, certas vidas, quando perdidas, não produzem luto (a expressão que usa é “ungrieveble lives”). Ela associa esta ideia à luta de movimentos sociais e pergunta: como os movimentos sociais, formados por pessoas que passaram por perdas irreversíveis, podem realizar o luto? Talvez a elaboração de suas perdas possa mobilizar uma autocrítica e impulsionar o avanço desses movimentos. Ainda, tendo em conta as políticas de guerra nos EUA, nossa autora indaga: o que aconteceria com os EUA se pronunciássemos, uma vez e de novo, o nome de afegãos e iraquianos mortos em virtude da ação de norte-americanos? E se pronunciássemos, uma vez e de novo, os nomes dos prisioneiros de Guantánamo, que não estão ainda mortos, mas também não estão exatamente vivos (BUTLER. 2004).
Parece-nos que há, aqui, dois caminhos para a crítica. De um lado, a crítica adorniana de Safatle e, de outro, a crítica de Butler, que busca uma conexão direta com a ação de movimentos sociais. Os dois projetos têm algo em comum: os nossos autores indicam que crítica deve nos permitir deixar algo para trás e, desse modo, limpar o terreno para que novas possibilidades possam emergir. Estas duas propostas poderiam ser articuladas? Como tal articulação poderia ser feita? Estas são questões que gostaríamos de investigar em futuros trabalhos.
Notas
1 SAFATLE, Vladimir. A Paixão do Negativo: Lacan e Dialética. São Paulo: UNESP, 2006.
2 Esta discussão está presente em diversos trabalhos de Butler. A ligação entre luto e lutas de movimentos sociais é formulada de uma maneira especialmente clara em Precarious Life. BUTLER, Judith. Precarious Life: The Powers of Mourning and Violence. London & New York: Verso, 2004
Referências
SAFATLE, Vladimir. A Paixão do Negativo: Lacan e Dialética. São Paulo: UNESP, 2006.
____. Cinismo e Falência da Crítica. São Paulo: Boitempo, 2008.
____ .Grande Hotel Abismo: Por uma Reconstrução da Teoria do Reconhecimento. São Paulo: Martins Fontes, 2012.
____. Circuito dos Afetos: Corpos políticos, Desamparo, Fim do Indivíduo. São Paulo: Cosac Naify, 2015.
BUTLER, Judith. Precarious Life: The Powers of Mourning and Violence. London & New York: Verso, 2004.
Mariana Pimentel Fischer Pacheco – Pós-doutoranda – USP.