Corporativismo / Oficina do Historiador / 2016

O corporativismo, como diria Álvaro Garrido, um dos seus mais importantes estudiosos contemporâneos, se trata de “uma velharia que importa trazer a debate e submeter à crítica histórica” (GARRIDO, 2016: 17). Para tanto, em sua opinião, deve-se distinguir o corporativismo enquanto doutrina, ou como discurso ideológico das direitas autoritárias e antiliberais, do corporativismo institucionalizado pelos regimes autoritários e totalitários que o adotaram. Nesse sentido, pode-se dizer que a ideologia corporativa serviu de justificativa “para edificar um conjunto de instituições assentes na integração forçada dos interesses do Estado. (…) A ideologia corporativista e as suas instituições foram o centro do processo de fascistização da Europa e alguns países sul-americanos na primeira metade do século XX” (GARRIDO, 2016: 27).

De um lado, observa-se que os estudos sobre o chamado corporativismo histórico o associam diretamente aos regimes de tipo fascista do período entre guerras, definindo-o como uma doutrina destinada a assegurar a ordem social e a conciliação dos interesses econômicos entre capital e trabalho, sob a forte regulação do Estado. De outro lado, contudo, especialmente após a publicação do artigo “Still the century of Corporatism? (1974)”, de Philippe Schmitter, observa-se uma crescente preocupação em distinguir este corporativismo autoritário do que o autor chamou de neocorporativismo ou corporativismo democrático da segunda metade do século XX, por ele associado à ação dos grupos de interesse e seus sistemas de representação e novas formas relação com o Estado. Em sua definição, Schmitter diz que o corporativismo é um sistema de representação de interesses cujas instituições se organizam num número limitado de categorias, funcionalmente distintas e hierarquizadas, compulsórias e não concorrenciais, às quais o Estado concede o monopólio da representação em contrapartida de colaboração no exercício do controle social e político [1]. Essa seria sua definição clássica do corporativismo societal, distinto do que o próprio Schmitter chama de corporativismo político, ou seja, um sistema de representação política baseado numa visão orgânico-estatista da sociedade, onde suas unidades orgânicas (família, poderes locais e organizações profissionais) substituem o modelo eleitoral baseado no indivíduo e na representação parlamentar.

Mais recentemente, como diria mais uma vez Álvaro Garrido, observa-se também uma revitalização teórica do corporativismo, “muito embebida na episteme das Ciências Sociais”, onde avultam especialmente a Ciência Política, a Sociologia e a Economia. Em geral, segundo ele, “os politólogos e sociólogos que se ocupam do tema detém-se na teoria e ação dos grupos de interesse, na questão dos corpos sociais intermédios e nas formas de articulação entre o Estado e a ‘sociedade civil’”. Já no campo da Economia Política, diz Garrido, “as formas e práticas corporativistas também expressam as relações entre o Estado e a economia, ou entre o Estado e o mercado” (GARRIDO, 2016: 20). Hoje, diz o autor, o centro do debate teórico da Ciência Política interessada no fenômeno do corporativismo situa-se no estudo “das formas de conciliação entre as práticas de concertação corporativistas e a otimização dos agentes no âmbito do mercado, num quadro neoliberal de Economia Política” (GARRIDO, 2016: 24).

Em síntese, embora os sentidos atualmente atribuídos ao corporativismo sejam muitos e variados, isso não significa, como no caso de qualquer doutrina ou ideologia, que esse conceito possa ser definido de maneira atemporal, mas, ao contrário, que os novos estudos sobre o corporativismo devem ser feitos sempre com base em sua historicidade, tanto no sentido de um discurso ideológico quanto no de um conjunto de instituições que articulam as relações entre Estado e sociedade civil.

Esse é exatamente o sentido do presente dossiê, que reúne importantes estudos de pesquisadores portugueses e italianos vinculados à Rede Internacional de Estudos do Corporativismo (NETCOR), criada em princípios de 2015 em Lisboa, os quais se propõem a pensar justamente sobre o processo de institucionalização do corporativismo histórico nesses países, respectivamente, durante os regimes de Benito Mussolini e Antônio de Oliveira Salazar.

Francesca Nemore toma por base o caso italiano, principal referência para a difusão do corporativismo por diversos outros países da Europa entre guerras. Em estudo intitulado “New perspectives in the sources of the story of corporatism in Italy” Nemore analisa a perda e reconstrução do arquivo do Ministério das Corporações, o que, segundo ela, não representa apenas a história de um arquivo, em si, ou mesmo a história política e econômica do fascismo italiano, mas também dos seus períodos anterior e posterior.

Valerio Torreggiani, por sua vez, no estudo “Rediscovering the guild system: the New Age Circle as a British laboratory of corporatist ideas”, se dedica ao estudo de uma espécie de rede informal de intelectuais britânicos antiliberais – a New Age Circle (1907-1916), a fim de demonstrar que o corporativismo não se constituiu apenas num produto socioeconômico do fascismo ou de regimes de ideologia autoritária e nacionalista, como não seria o caso da Grã-Bretanha de princípios do século XX, antes mesmo da ascensão ao poder do fascismo italiano.

Os textos seguintes, de Manuel Cardoso Leal, José Reis dos Santos, Leonardo Pires e Natália Pereira, se dedicam à análise de diferentes formas de ordenamento social e representação de interesses em Portugal entre fins do século XIX e a década de 1940, durante o regime de Salazar. De sua parte, Cardoso Leal se propõe a estudar o que diz ser “A primeira representação orgânica no Parlamento de Portugal”, ocorrida entre 1895 e 1897, ao abrigo da lei eleitoral de 28 / 03 / 1895, e não apenas durante o governo de Sidônio Pais, como geralmente afirma a historiografia pertinente ao tema. Já o texto de José Reis dos Santos, “O corporativismo (integral) de Salazar e as redes internacionais das revoluções conservativas na Nova Ordem dos anos 30”, busca analisar a influência do ditador português no panorama intelectual europeu de 1930 e como este pretendeu difundir o seu modelo político e nova forma de governo como uma terceira via ao fascismo italiano e ao nacional-socialismo alemão. Leonardo Pires, por sua vez, em seu “Corporativismo e proteção laboral no Estado Novo português: o caso dos acidentes de trabalho e doenças profissionais”, visa analisar, por meio dos registros de acidentes laborais e de doenças profissionais, a relação entre os trabalhadores e o Estado Novo português em tempos de corporativismo. Natália Pereira, por fim, no texto intitulado “Nós, o povo: a rede de Casas do Povo e os alinhamentos corporativos em perspectiva comparada”, pretende explorar as dinâmicas sociais internas das Casas do Povo do distrito de Braga (1934-1973) e suas inter-relações com os organismos corporativos centrais do Estado Novo português, tais como os Grêmios da Lavoura, a Junta Central das Casas do Povo e a Federação Distrital das Casas do Povo de Braga.

Desejo a todos uma ótima leitura e que este dossiê possa contribuir para a renovação dos estudos e reflexões sobre a doutrina do corporativismo e sua institucionalização nos países ora analisados.

Luciano Aronne de Abreu – Organizador

Nota

1. Ver texto original: SCHMITTER, Philippe. Still the Century of Corporatism? In The Review of Politics, n. 36, n. 1, The New Corporatism: social and political structures in the Iberian world, p. 85-131 (1974).


ABREU, Luciano Aronne de. Apresentação. Oficina do Historiador. Porto Alegre, v. 9, n. 2, jul. / dez., 2016. Acessar publicação original [DR]

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