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Corporativismo e neocorporativismo / Estudos Históricos / 2018
Surgido em meio à ampliação da participação dos setores sociais subalternos na política e à consolidação do capitalismo industrial, o corporativismo foi apresentado por seus defensores como uma modalidade de representação de interesses e de organização societal e estatal alternativa tanto à democracia liberal quanto ao socialismo. Propondo-se garantir estabilidade social pela conciliação de classes, o corporativismo irradiou-se da Europa para o restante do mundo (e a América Latina foi-lhe um terreno fértil) nas primeiras décadas do século passado. Tema prestigiado pela historiografia e pela ciência política, tem conhecido, no último decênio, um interesse renovado, que tem gerado livros, artigos e eventos acadêmicos no Brasil e no exterior. Um dos traços marcantes da nova produção sobre o corporativismo é o debate sobre sua relação com regimes autoritários e democráticos. Arriscaríamos a afirmar que a posição dominante, atualmente, entre os estudiosos é de recusa de uma associação necessária entre corporativismo e autoritarismo. Entre os argumentos mobilizados pelos acadêmicos que comungam de tal posição está o exemplo escandinavo, que adotou formas corporativas para implementar, em um ambiente político democrático, Estados de bem-estar social.
O presente número de Estudos Históricos dispõe-se, assim, a contribuir para aprofundar a reflexão em torno das experiências do corporativismo histórico (anterior à Segunda Guerra) e do neocorporativismo (posterior à Segunda Guerra) no Brasil e na Europa. No primeiro artigo da edição, Miguel Ángel Martínez investiga a introdução, por meio da Assembleia Nacional Consultiva, da representação política de inspiração corporativa na Espanha da década de 1920, durante a ditadura de Primo de Rivera. O segundo artigo, de autoria de Valerio Torreggiani, estuda a presença da modalidade corporativa de representação de interesses no repertório político britânico da primeira metade do século XX. Em seguida, Paula Borges dos Santos ilumina o debate em torno de soluções corporativas, nos âmbitos econômico e social, durante a elaboração da Constituição portuguesa de 1933. Álvaro Garrido também trata do corporativismo português, examinando o (frágil) aparato de seguridade social instaurado pela ditadura salazarista. Por sua vez, Irene Stolzi acompanha o corporativismo no ordenamento jurídico italiano, tanto no contexto fascista quanto no democrático dos anos 1980 e 1990.
Na seção Ensaio bibliográfico, Cláudia Viscardi recenseia a produção contemporânea sobre corporativismo, em diálogo com a literatura clássica sobre o tema. Na seção Colaboração especial, Péter Zachar explora a elaboração de um projeto, informado parcialmente pelo ideário corporativo, de reforma social, econômica e política na Hungria do entreguerras. E Miguel Ángel Perfecto traça uma genealogia das propostas corporativas na Espanha, ao mesmo tempo que investiga sua implementação no país a partir da década de 1920.
O número encerra-se com uma entrevista concedida a Estudos Históricos por Renato Boschi, um dos mais importantes estudiosos do corporativismo no Brasil.
Referências
SCHMITTER, Philippe. Still the century of corporatism?. The Review of Politics, v. 36, n. 1, 1974.
Angela Moreira Domingues da Silva – Professora da Escola de Ciências Sociais da Fundação Getúlio Vargas (CPDOC / FGV). Editora da Revista Estudos Históricos. E-mail: angelamoreirads@gmail.com
Marco Aurélio Vannucchi Leme de Mattos – Professor da Escola de Ciências Sociais da Fundação Getúlio Vargas (CPDOC / FGV). Editor da Revista Estudos Históricos. E-mail: marco.vannucchi@fgv.br
Paulo Fontes – Professor da Escola de Ciências Sociais da Fundação Getúlio Vargas (CPDOC / FGV). Editor da Revista Estudos Históricos. E-mail: paulo.fontes@fgv.br
Os editores.
SILVA, Angela Moreira Domingues da; MATTOS, Marco Aurélio Vannucchi Leme de; FONTES, Paulo. Editorial. Estudos Históricos. Rio de Janeiro, v.31, n.64, maio / ago.2018. Acessar publicação original [DR]
Corporativismo / Oficina do Historiador / 2016
O corporativismo, como diria Álvaro Garrido, um dos seus mais importantes estudiosos contemporâneos, se trata de “uma velharia que importa trazer a debate e submeter à crítica histórica” (GARRIDO, 2016: 17). Para tanto, em sua opinião, deve-se distinguir o corporativismo enquanto doutrina, ou como discurso ideológico das direitas autoritárias e antiliberais, do corporativismo institucionalizado pelos regimes autoritários e totalitários que o adotaram. Nesse sentido, pode-se dizer que a ideologia corporativa serviu de justificativa “para edificar um conjunto de instituições assentes na integração forçada dos interesses do Estado. (…) A ideologia corporativista e as suas instituições foram o centro do processo de fascistização da Europa e alguns países sul-americanos na primeira metade do século XX” (GARRIDO, 2016: 27).
De um lado, observa-se que os estudos sobre o chamado corporativismo histórico o associam diretamente aos regimes de tipo fascista do período entre guerras, definindo-o como uma doutrina destinada a assegurar a ordem social e a conciliação dos interesses econômicos entre capital e trabalho, sob a forte regulação do Estado. De outro lado, contudo, especialmente após a publicação do artigo “Still the century of Corporatism? (1974)”, de Philippe Schmitter, observa-se uma crescente preocupação em distinguir este corporativismo autoritário do que o autor chamou de neocorporativismo ou corporativismo democrático da segunda metade do século XX, por ele associado à ação dos grupos de interesse e seus sistemas de representação e novas formas relação com o Estado. Em sua definição, Schmitter diz que o corporativismo é um sistema de representação de interesses cujas instituições se organizam num número limitado de categorias, funcionalmente distintas e hierarquizadas, compulsórias e não concorrenciais, às quais o Estado concede o monopólio da representação em contrapartida de colaboração no exercício do controle social e político [1]. Essa seria sua definição clássica do corporativismo societal, distinto do que o próprio Schmitter chama de corporativismo político, ou seja, um sistema de representação política baseado numa visão orgânico-estatista da sociedade, onde suas unidades orgânicas (família, poderes locais e organizações profissionais) substituem o modelo eleitoral baseado no indivíduo e na representação parlamentar.
Mais recentemente, como diria mais uma vez Álvaro Garrido, observa-se também uma revitalização teórica do corporativismo, “muito embebida na episteme das Ciências Sociais”, onde avultam especialmente a Ciência Política, a Sociologia e a Economia. Em geral, segundo ele, “os politólogos e sociólogos que se ocupam do tema detém-se na teoria e ação dos grupos de interesse, na questão dos corpos sociais intermédios e nas formas de articulação entre o Estado e a ‘sociedade civil’”. Já no campo da Economia Política, diz Garrido, “as formas e práticas corporativistas também expressam as relações entre o Estado e a economia, ou entre o Estado e o mercado” (GARRIDO, 2016: 20). Hoje, diz o autor, o centro do debate teórico da Ciência Política interessada no fenômeno do corporativismo situa-se no estudo “das formas de conciliação entre as práticas de concertação corporativistas e a otimização dos agentes no âmbito do mercado, num quadro neoliberal de Economia Política” (GARRIDO, 2016: 24).
Em síntese, embora os sentidos atualmente atribuídos ao corporativismo sejam muitos e variados, isso não significa, como no caso de qualquer doutrina ou ideologia, que esse conceito possa ser definido de maneira atemporal, mas, ao contrário, que os novos estudos sobre o corporativismo devem ser feitos sempre com base em sua historicidade, tanto no sentido de um discurso ideológico quanto no de um conjunto de instituições que articulam as relações entre Estado e sociedade civil.
Esse é exatamente o sentido do presente dossiê, que reúne importantes estudos de pesquisadores portugueses e italianos vinculados à Rede Internacional de Estudos do Corporativismo (NETCOR), criada em princípios de 2015 em Lisboa, os quais se propõem a pensar justamente sobre o processo de institucionalização do corporativismo histórico nesses países, respectivamente, durante os regimes de Benito Mussolini e Antônio de Oliveira Salazar.
Francesca Nemore toma por base o caso italiano, principal referência para a difusão do corporativismo por diversos outros países da Europa entre guerras. Em estudo intitulado “New perspectives in the sources of the story of corporatism in Italy” Nemore analisa a perda e reconstrução do arquivo do Ministério das Corporações, o que, segundo ela, não representa apenas a história de um arquivo, em si, ou mesmo a história política e econômica do fascismo italiano, mas também dos seus períodos anterior e posterior.
Valerio Torreggiani, por sua vez, no estudo “Rediscovering the guild system: the New Age Circle as a British laboratory of corporatist ideas”, se dedica ao estudo de uma espécie de rede informal de intelectuais britânicos antiliberais – a New Age Circle (1907-1916), a fim de demonstrar que o corporativismo não se constituiu apenas num produto socioeconômico do fascismo ou de regimes de ideologia autoritária e nacionalista, como não seria o caso da Grã-Bretanha de princípios do século XX, antes mesmo da ascensão ao poder do fascismo italiano.
Os textos seguintes, de Manuel Cardoso Leal, José Reis dos Santos, Leonardo Pires e Natália Pereira, se dedicam à análise de diferentes formas de ordenamento social e representação de interesses em Portugal entre fins do século XIX e a década de 1940, durante o regime de Salazar. De sua parte, Cardoso Leal se propõe a estudar o que diz ser “A primeira representação orgânica no Parlamento de Portugal”, ocorrida entre 1895 e 1897, ao abrigo da lei eleitoral de 28 / 03 / 1895, e não apenas durante o governo de Sidônio Pais, como geralmente afirma a historiografia pertinente ao tema. Já o texto de José Reis dos Santos, “O corporativismo (integral) de Salazar e as redes internacionais das revoluções conservativas na Nova Ordem dos anos 30”, busca analisar a influência do ditador português no panorama intelectual europeu de 1930 e como este pretendeu difundir o seu modelo político e nova forma de governo como uma terceira via ao fascismo italiano e ao nacional-socialismo alemão. Leonardo Pires, por sua vez, em seu “Corporativismo e proteção laboral no Estado Novo português: o caso dos acidentes de trabalho e doenças profissionais”, visa analisar, por meio dos registros de acidentes laborais e de doenças profissionais, a relação entre os trabalhadores e o Estado Novo português em tempos de corporativismo. Natália Pereira, por fim, no texto intitulado “Nós, o povo: a rede de Casas do Povo e os alinhamentos corporativos em perspectiva comparada”, pretende explorar as dinâmicas sociais internas das Casas do Povo do distrito de Braga (1934-1973) e suas inter-relações com os organismos corporativos centrais do Estado Novo português, tais como os Grêmios da Lavoura, a Junta Central das Casas do Povo e a Federação Distrital das Casas do Povo de Braga.
Desejo a todos uma ótima leitura e que este dossiê possa contribuir para a renovação dos estudos e reflexões sobre a doutrina do corporativismo e sua institucionalização nos países ora analisados.
Luciano Aronne de Abreu – Organizador
Nota
1. Ver texto original: SCHMITTER, Philippe. Still the Century of Corporatism? In The Review of Politics, n. 36, n. 1, The New Corporatism: social and political structures in the Iberian world, p. 85-131 (1974).
ABREU, Luciano Aronne de. Apresentação. Oficina do Historiador. Porto Alegre, v. 9, n. 2, jul. / dez., 2016. Acessar publicação original [DR]