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Cores, classificações e categorias sociais: os africanos nos impérios ibéricos, séculos XVI a XIX / Estudos Ibero-Americanos / 2018
O presente dossiê reúne investigação de historiadores do Brasil, Canadá, Estados Unidos, México e Portugal, em torno das categorias sociais empregadas para classificar os africanos e seus descendentes nos impérios ibéricos. O elemento central das diversas contribuições é a tentativa de problematizar as classificações e as hierarquias na documentação e nas sociedades aqui examinadas, sejam elas Luanda, Rio de Janeiro, Paraíba, Coimbra, o norte de Moçambique, a fronteira sul do Brasil, a Nova Espanha ou o Reino do Congo. Na problematização, os autores acabam por historicizar as diferenciações sociais que, em distintos espaços e épocas, resultavam em privilégios ou exclusões.
Conquista e ocupação significavam impor uma nova forma de classificação nas populações sob domínio, aspecto esse que não foi exclusivo dos impérios espanhol e português (ANDERSON, 1983; APPADURAI, 1993; SCOTT, 2005; SALESA, 2011). Ao contrário da historiografia sobre os impérios britânicos e franceses, principalmente produzida em inglês e francês, que defende a invenção do conceito de raça como um fenômeno do século XIX, os agentes dos impérios espanhol e português já utilizavam categorias de classificação baseada na cor da pele no século XV (PERRONE-MOISÉS, 1989; SWEET, 1997; MENDES, 2012, 2013; BETHENCOURT; PEARCE, 2012). O conceito de raça está associado à crença de que “os fundamentos da alteridade postulada entre grupos humanos não é – e apenas – social, mas também – e igualmente – natural” (SCHAUB, 2016, p. 102). Entre outras características culturais e físicas, incluía-se a cor atribuída aos indivíduos. É certo que nos estados ibéricos, a genealogia medieval do conceito de raça aponta para a linhagem e o sangue, articulados posteriormente com critérios religiosos que, nos estatutos de limpeza de sangue, associavam “raça”, ou “raças infectas”, a judeus, mouros e infiéis, uma identificação que se foi afirmando a partir da expulsão dos judeus e muçulmanos da Península Ibérica. Essa marca alargou-se aos africanos e aos seus descendentes quando, na disputa por recursos, “mulatos” e “pardos” entraram no rol das raças infectas e viram ser-lhes recusados ou dificultados o acesso a determinados privilégios que ordenavam a sociedade estamental do Antigo Regime. Esse percurso não foi simples nem linear, sendo notório em diversa legislação do século XVII, apesar de medidas que, mais do que grupos, exceptuavam indivíduos (VIANA, 2007; FIGUEIROARÊGO, 2009; FIGUEIROA-RÊGO; OLIVAL, 2011; PAIVA, 2015). A cor “preto”, frequentemente relacionada com a qualidade mecânica do trabalho feito pelos escravos, foi conectada com os africanos e a escravidão. O padre António Vieira, por exemplo, escreveu tratados e sermões sobre brancos e negros, suas diferenças físicas e morais, e os vínculos entre ser negro e ser escravo. No Sermão XX do Rosário, sobre as irmandades de brancos e negros argumentou: “os brancos e senhores não se deixem vencer dos pretos, que seria grande afronta da sua devoção: os pretos e os escravos procurem de tal maneira imitar os brancos e os senhores, que de nenhum modo consintam ser vencidos deles” (BOSI, 2011, p. 244-245). Ou seja, o vocabulário e a atribuição de valores associados à cor da pele já estavam presentes no século XVII.
Classificações, sejam por afiliações religiosas e culturais ou cor da pele, atuam como instrumentos perniciosos empregados pelo estado para diferenciar populações e limitar direitos e o acesso a recursos. Toda a classificação implica ordenação e hierarquização. Nem todos os historiadores, entretanto, vinculam o uso de marcadores associados à cor da pele à existência do conceito de raça ou do racismo presente no período anterior ao século XIX e priveligiam a ideia de hierarquias de cores. (LARA, 2007; RAMINELLI, 2012; GUEDES, 2017; PAIVA, 2015). De qualquer modo, é importante destacar que os termos preto, negro, mulato ou branco eram utilizados antes do século XIX, como os autores dos artigos neste dossiê também demonstram. Na maioria dos casos, essas classificações são empregadas de forma ambígua, em que a terminologia tem o objetivo de, como apontado nas palavras do historiador e cientista político Achelle Mbembe, “transformar-se em um complexo perverso, gerador de medos e tormentos, de pensamentos perturbadores e de terror, mas especialmente de sofrimento infinito e, em última análise, de catástrofe” (MBEMBE, 2017, p. 10).
Os impérios ibéricos do período moderno na América, África e Ásia, independentemente dos modos de dominação aí introduzidos, colocaram em contato pessoas de origens diversas e implementaram classificações que priorizavam a textura do cabelo, a cor da pele ou o formato do nariz. Nessas sociedades, construíram-se formas de identificação e de hierarquização social baseadas em aspectos físicos como a cor, que se combinavam com o estatuto jurídico, o patrimônio, a distinção, a religião ou vinculação política. Tais critérios deram origem a um amplo vocabulário, que assumiu fórmulas comuns nos distintos territórios imperiais, mas traduziu, igualmente, especificidades locais. Com variações temporais e espaciais, as classificações eram construções subjectivas, mas estigmatizaram grupos sociais que foram alijados de uma série de direitos. O conceito de classificações, tanto no passado quanto no presente, possui a mesma definição, ou seja, são ficções epistemológicas que estão diretamente vinculadas ao contexto histórico e social (BOURDIEU, 2000; BOURDIEU; SAYAD, 2004; BETHENCOURT, 2014). A partir do final do período moderno, as associações entre a cor da pele dos indivíduos e os seus comportamentos foram reforçadas como critérios de classificação social e foram perdendo sua fluidez e flexibilidade. Em sua concepção, no final do período medieval, os sistemas de classificação eram teológicos e baseados na pureza de sangue, com o objetivo de excluir judeus e muçulmanos em um contexto de expansão do cristianismo e expulsão dos não católicos da Península Ibérica. Religiosos, juristas e burocratas cristãos eram responsáveis por um sistema epistemológico que permitia classificar os demais sem ser classificados. E essa classificação legitimava a conquista, o saque dos bens, a conversão forçada e a expulsão dos muçulmanos e judeus. Esse sistema classificatório passou por transformações, porém, criou a base da hierarquização que privilegiava os ideais cristãos, ancorado em diferenças ontológicas que justificavam a conquista e a colonização. Durante os séculos XVIII e XIX, a teologia foi lentamente substituída pela filosofia secular de Immanuel Kant e pela ciência de Charles Darwin, que elaboraram a noção de que as classificações são inerentemente biológicas, inatas e hereditárias (MIGNOLO, 2013, p. xiv-xv).
Foi, principalmente, no contexto da Iluminismo e das reformas administrativas então encetadas que os impérios começaram a expandir as suas redes de informação sobre os povos conquistados, e, assim, a tentar melhorar a governabilidade. Mapas populacionais, relação de moradores, apontamentos de viagens e inventários de chefes locais foram tentativas de enumerar e determinar a população a ser governada, com o objetivo de taxá-la ou de mobilizá-la para fins defensivos (CANDIDO, 2011, p. 75-99; MATOS, 2013; MATOS; VOS, 2014; RODRIGUES, 2013; SILVA, 2017; WAGNER, 2009). Enumerações e catalogações nunca funcionaram como simples coleção de informações sobre as populações colonizadas. Faziam parte da estratégia de enumeração e objetificação que culminaram com a criação de novas categorias de identificação, baseadas em simplificações binárias, como povos gentios ou vassalos, livres ou escravizados, solteiros ou casados. Essas categorias moldaram estatutos políticos e jurídicos e influenciaram as condições de mobilidade social. A lógica da classificação gerou uma riqueza documental nos arquivos coloniais, onde é possível consultar censos, mapas populacionais, relatórios de viagem, informes etnográficos, entre outros documentos, que justificavam a colonização e a subordinação e forneciam munições à administração colonial para impor tributos, resolver disputas, legislar sobre direitos e representação política, etc. (STOLER, 2002; APPADURAI, 2003; CRAIS, 2003). Apesar do caráter prático e utilitário, as classificações eram, e continuam a ser, uma ilusão burocrática, ou uma abstração, que sugere a ideia de compreensão e clareza. No entanto, o controle burocrático do estado colonial sempre foi frágil no período moderno, apesar do uso constante da violência para garantir a ordem desejada e o controle social.
No caso dos africanos e dos seus descendentes, tanto na África quanto nas sociedades da América e da Ásia, para onde foram transportados como escravizados, as classificações baseadas no mesmo tipo de normas tiveram um forte componente de cor associado à construção de categorias sociais, conquanto, em alguns contextos, elas fossem suficientemente maleáveis para os indivíduos poderem transitar de umas para outras (CASTRO, 1995; MATTOS, 2008; LARA, 1997, 2007; GUEDES, 2008; TWINAM, 2015). É importante ressaltar que nos impérios ibéricos a cor era uma entre outras formas de classificação, e, combinadas com outras categorias como o gênero, o estatuto jurídico, ou a ocupação, garantia ou excluía indivíduos de uma série de direitos e proteções. A crescente analogia entre características físicas e hereditárias moldou um discurso de classificação e hierarquização e a associação entre brancura, pureza, acesso a direitos, a privilégios e à cidadania, que se reforçou no século XIX (LARA, 2007; SILVA, 2009; FIGUEIROA-RÊGO; OLIVAL, 2011; MENDES, 2012; GUEDES, 2013). Tais formas de diferenciação, que não permaneceram fixas, ecoam ainda nas sociedades atuais, como acontece nos debates sobre cotas raciais no Brasil.
Em impérios onde a ideia da naturalidade e da pureza de sangue eram centrais para a organização social e o acesso a cargos, a mistura entre os povos também passou por um processo de organização que resultou na pintura das castas na Nova Espanha (MARTÍNEZ, 2008; VELÁZQUEZ, 2006; KATZEW, 2004), ou na criação de termos como cabra, pardo, mameluco, cafuzo para ordenar os mestiços nas colónias ibéricas da América (RAMOS, 2004; VIANA, 2007; PAIVA, 2015). A mestiçagem deveria ser legislada e encarada como parte do processo de expansão colonial e a categoria social do mestiço deveria ser definida. A miscigenação, seja no Brasil, em Portugal, Angola ou no México, forçou os centros de poder a repensar as relações jurídicas entre súditos e colonos e determinar o status e o lugar social de cada um. No Brasil e nas colónias espanholas da América, africanos e seus descentes, livres, libertos ou escravizados eram classificados não só pela cor como também pela “nação”, criando ainda mais camadas nos processos de identificação (REIS, 1993, 1996; SOARES, 2004; VIANA, 2007; TWINAM, 2015).
Este dossiê da Revista Estudos Ibéricos reúne estudos que revelam as dicotomias dos processos de classificação e mostram, na sequência de outras investigações, que nem sempre os critérios privilegiados pelos poderes centrais das monarquias ibéricas prevaleciam nas colônias. As categorias de cor, almejadas nos mapas populacionais ou nos registros eclesiásticos, eram suscetíveis de apropriação pelos actores locais, que adaptavam a terminologia imperial para exprimir as hierarquias sociais locais. Assim, os limites entre os termos brancos, pretos e mulatos eram constantemente negociados e repensados, em um contexto de expansão do comércio de seres humanos escravizados e do uso de mão de obra africana escravizada. Os textos aqui reunidos apresentam reflexões sobre o lugar dos africanos nos territórios dos impérios ibéricos e exploram a construção das classificações nos vários espaços imperiais. Os autores examinam como essas identificações se sobrepuseram, coexistiram e se transformaram ao longo do tempo, problematizando visões a-históricas das classificações que não consideram o lugar da epistemologia no processo de colonização. Os textos aqui reunidos interrogam a relevância que essas classificações tiveram na formação de categorias sociorraciais e em que medida condicionaram a mobilidade social dos indivíduos.
No artigo “Habitantes desta negra Etiópia, descendentes de Ham”, Carlos Almeida analisa o papel da literatura missionária na construção do mito de Ham para justificar e legitimar a escravização dos africanos centro-ocidentais e a sua comercialização. Almeida identifica a crônica de Gomes Eanes de Zurara, escrita no século XV, como o texto fundador da imagem do africano como o Outro, com uma clara associação entre os povos africanos, os mouros negros a serem temidos, e a maldição hamítica. Nos séculos seguintes, missionários capuchinhos fizeram uso da crônica de Zurara para justificar a conquista, o batismo e o cativeiro dos centro-africanos em textos religiosos. O autor mostra como a maldição de Ham favoreceu a criação de visões estigmatizantes sobre a cor negra e, posteriormente, sobre os africanos, o que levou a associar a cor branca com à pureza e à civilização. A ideia da descendência de Ham também justificou a escravização e o cativeiro como medidas disciplinadoras para salvar almas em um contexto onde a expansão colonial caminhava lado a lado com a missão evangelizadora da Igreja Católica. A associação entre Ham, negritude e cativeiro resultou em imagens estereotipadas dos africanos e seus descendentes e na associação entre comportamento e moral, com consequências que chegam aos nossos dias.
As representações dos africanos construídas a partir desse e de outros mitos operavam na estruturação classificaçções e categorias sociais na Europa e nos seus impérios. Lucilene Reginaldo examina a presença de estudantes de cor na Universidade de Coimbra, em Portugal, durante o século XVIII, apesar dos silêncios das fontes históricas no registro da presença desses indivíduos. “‘Não tem informação’: mulatos, pardos e pretos na Universidade de Coimbra” traz importantes contribuições metodológicas ao evidenciar as dificuldades que historiadores encontram para identificar a cor de indivíduos de certa posição social no passado. Defendendo o diálogo entre os estudos sobre as categorias de cor em Portugal e no seu império, Reginaldo analisa a história de estudantes na Universidade de Coimbra, entre eles o reinol António de Souza Falcão, o baiano Ignácio Pires de Almeida e o mineiro André Couto Godinho, para discutir os conceitos de limpeza de sangue e defeito mecânico nos processos de habilitação académica e seus significados para os africanos e seus descendentes. A miscigenação, ou o “impedimento da mulatice”, podia servir como argumento para negar direitos e o acesso a qualificações académicas e prevenir a mobilidade social de descendentes de africanos, com o argumento sustentado no defeito de qualidade, ou na origem mecânica, que também estava associada à escravidão. Apesar da ausência de estatutos que proibissem a admissão de homens de cor na Universidade de Coimbra, Lucilene Reginaldo registra os percalços que homens pardos e mulatos passavam para concluir o curso e obter o diploma. O texto mostra como se foram reforçando no século XVIII as hierarquias de cor na universidade, que reduziam a mobilidade social dos homens de ascendência africana e o acesso a direitos e privilégios inerentes ao percurso académico. Reginaldo demonstra claramente a variação temporal dos significados e usos dos termos pretos, pardos e mulatos no centro da Universidade de Coimbra.
No artigo “De castas, calidades y razas. Nociones y significados de las clasicaciones sociales”, Maria Elisa Vélazquez discute como as classificações sociais operavam no Vice-Reino da Nova Espanha, entre os séculos XVI e XIX. Conforme a autora destaca, ainda persiste um desconhecimento e silêncio sobre o papel dos africanos e seus descendentes no México, principalmente devido a uma representação da nação, com raízes oitocentistas, que celebra a miscigenação e silencia os processos de diferenciação. Conforme a prática na América espanhola em relação aos grupos sociais estruturados em função da colonização, no período vicereinal também emergiram classificações para os africanos transportados como escravos para o Novo México, sobretudo no período de união das coroas ibéricas, e para os seus descendentes. Em seu artigo, Maria Elisa Vélazquez analisa os conceitos de nação, casta, qualidade e raça ao longo de diversos contextos históricos e discute a complexidade e fluidez das classificações construídas para os africanos e afrodescendentes. Assim como no Império Português, um vocabulário rico foi inventado para descrever os grupos sociais baseados em hierarquia de cores, castas, nações e qualidades, frequentemente combinando mais do que uma dessas características atribuídas ou fazendo-as equivaler. No entanto, a autora sublinha, na sequência de outros estudos, que os famosos quadros de castas que, principalmente no século XVIII, catalogaram grupos sociais minuciosamente tinham pouca correspondência com as práticas quotidianas, onde emergia um leque mais reduzido de catalogações. O empenho por catalogar e hierarquizar indivíduos e grupos não preveniu a mobilidade social, em parte associada à ascensão econômica de africanos livres.
Transitando para o outro lado do Atlântico, “Donas, pretas livres e escravas em Luanda” traz como discussão as classificações e a hierarquização das cores para o maior porto escravista no litoral africano. Vanessa Oliveira compara as possibilidades de mobilidade social e os limites que as mulheres enfrentavam em Luanda. Algumas eram mercadoras e proprietárias de terras, gado e pessoas escravizadas e desfrutavam de posições econômicas e sociais de destaque, apesar de excluídas das decisões políticas. A maioria da população feminina, no entanto, eram mulheres escravizadas ou livres pobres que ofereciam serviços urbanos. A autora examina registros eclesiásticos, escrituras de compra e venda de propriedades e registros de escravos para demonstrar como a hierarquia das cores operava em Luanda no século XIX. As filhas da elite eram identificadas como donas na documentação colonial e, geralmente, classificadas como brancas ou pardas, independentemente da sua genealogia ou aparência física. Oliveira argumenta que “a posse de patrimônio embranquecia”. O comércio atlântico e as atividades urbanas atraíam mulheres de outras regiões do interior que se mudavam para Luanda em busca de oportunidades. A existência da escravidão e a possibilidade de sequestro e de cativeiro ameaçavam a circulação dos centro-africanos livres e os residentes de Luanda se viam obrigados a estabelecer redes de proteção para garantir sua liberdade. As mulheres escravizadas em Luanda eram classificadas como pretas e encarregadas de todas as atividades produtivas. Algumas chegaram a atuar como escravas de ganho, o que lhes permitia acumular algum dinheiro para uma eventual compra da alforria. Vanessa Oliveira indica como a classificação por cor estava associada ao estatuto jurídico e ao acesso à posse de bens materiais e de seres humanos. Assim, as mulheres centro-africanas eram classificadas como pretas, pardas ou brancas de acordo com a sua posição social e suas relações com a administração colonial.
Ainda com considerações sobre o continente africano, mas com um olhar voltado para a costa oriental, Regiane Augusto de Mattos reflete sobre a construção das categorias sociais no norte de Moçambique, durante o século XIX. O artigo “Entre suaílis e macuas: o norte de Moçambique como espaço de interconexões” mostra a importância das relações religiosas, culturais, econômicas e sociais entre diferentes espaços, e não necessariamente o fenótipo, na catalogação de indivíduos e grupos nas margens do império português. Usando fontes orais, incluindo as que foram registadas na escrita de autores coloniais, Mattos explora o modo como os grupos locais e os agentes externos, tanto os portugueses quanto os omanitas, construíam identificações para os povos do norte de Moçambique. Certas categorizações podiam assumir um caráter pejorativo, como no caso de “mouros”, transposto da Europa pelos portugueses para designar os africanos muçulmanos. Entretanto, vocábulos originalmente empregues de forma pejorativa podiam adquirir um significado positivo quando reapropriados pelos locais, como o caso do termo “suaíli”, usado pelos omanitas no século XIX para designar os muçulmanos da África Oriental, colocando-os na “margem” do Islão, já que estariam “contaminados” por valores africanos. Os próprios suaílis usavam a palavra “macua”, sinónimo de “sertão” ou “selva”, em sentido pejorativo para distinguir os habitantes do interior. As fontes permitem à autora problematizar classificações como suaílis, macuas, imbamelas, namarrais ou mujojos, e acompanhar as mudanças de significado, dependendo dos atores sociais que a empregavam. Mattos destaca o papel da geografia, trocas comerciais, alianças políticas, parentesco, migrações e afiliação religiosa nos processos de construção de identidades e de classificação no Norte de Moçambique. Neste caso, as “cores” não eram tão relevantes na configuração de catalogações e hierarquias que se estruturaram nos impérios como apontam os outros artigos que compõem este dossiê.
Os últimos três textos do dossiê analisam a mobilidade social e as hierarquias de cor no Brasil do século XIX. No artigo “‘Diz a preta mina…’: marcas e categorias sociais nos processos de divórcio abertos por africanas ocidentais, Rio de Janeiro, século XIX”, Juliana Barreto Farias examina as associações entre cor, estatuto jurídico, condição social e identidade étnica no Rio de Janeiro de oitocentos, a partir dos processos de divórcio iniciados por mulheres identificadas como pretas minas forras, africanas provenientes ou descendentes de originários da Costa da Mina na África Ocidental. Essas mullheres evidenciavam ser economicamente independentes de seus maridos, possuíam bens, inclusive seres humanos escravizados, e uma rede vasta de amigos e familiares que serviam de testemunhas. Autoras, réus e testemunhas desses processos revelam um mundo de relações em que emergem classificações sociais que, ainda que flexíveis, operavam no dia a dia e estruturavam as hierarquias sociais na cidade. Farias analisa neste artigo as formas de identificação e classificação accionadas por essas mulheres, discutindo como elas se articulavam com valores de bom comportamento, honestidade e recato. Relevantes para a discussão são, igualmente, os registros das classificações dos padres, que, permanecendo muito tempo nas freguesias, conheciam o vocabulário social. Embora o direito canónico não exigisse a indicação de quaisquer “cores”, elas eram anotadas para os africanos e seus descendentes, geralmente acompanhadas da “nação”, a partir de indumentárias, marcas corporais e comportamentos. Já no caso dos europeus, a cor era frequentemente omitida, constando apenas o bispado de onde eram naturais.
Em “Ser negro na Parahyba do Norte: cores, condições, qualidades e universo letrado no século XIX”, Surya Aaronovich Pombo de Barros discute, a partir da imprensa e de documentação administrativa, a polissemia das classificações empregadas para a população afrodescendente da Paraíba, que incluía definições de cor, qualidade e jurídica, relacionando-as com as que circulavam noutras regiões do Brasil. No caso da Paraíba de oitocentos, o estigma da escravidão e a possibilidade de rescravização actuavam na forma como os mesmos indivíduos eram classificados em diferentes documentos, identificados como escravos, negros, cabras, crioulos e pretos. Surya Aaronovich Pombo de Barros discute a flutuação nos usos dos termos e o seu carácter subjectivo e explora o modo como alguns escravos fugidos usavam as fronteiras fluidas entre a liberdade e a escravidão. Essas classificações e estatutos garantiam ou excluíam direitos, como o acesso à instrução, vedado a pessoas escravizadas. Aproveitando as brechas do sistema escravista, alguns escravos tentavam aceder à escolarização. Assim como o texto de Vanessa Oliveira sobre Luanda, a autora argumenta que o acesso à escolarização e a inserção cultural também influenciavam o modo como os afrodescendentes eram rotulados, seja como preto, pardo, mulato ou africano. Em todos os casos, a precariedade da liberdade e a ameaça de escravização rondavam os afrodescendentes. Marcelo Matheus narra a história de Maria Francisca do Rosário, outra mulher identificada como mina, para refletir sobre o lugar dos africanos e seus descendentes em Bagé, no Rio Grande do Sul. O artigo “A africana mina Maria Francisca do Rosário: escravidão, cor e ascensão social em um contexto fronteiriço (Brasil, segunda metade do século XIX)” é uma micro-história que permite compreender as mudanças políticas e jurídicas na segunda metade do século XIX no Brasil. Seguindo a tradição dos estudos sobre escravidão no Brasil, que fazem uso dos registros eclesiásticos para entender a formação das nações, a miscigenação e a mobilidade social, o autor examina como as classificações de cor, procedência e projeção social influenciavam na construção de identificações sociais. A novidade nessa contribuição está em explorar a vida dos africanos e seus descendentes na fronteira do Império Brasileiro e não necessariamente nos grandes centros urbanos ou nas áreas de importância econômica, que têm atraído um maior número de estudos. A atenção a eventuais diversidades regionais permite complexificar a história dos africanos e seus descendentes no Brasil.
Marcelo Matheus mostra como classificação da cor de indivíduos, e a marca da escravidão que estava associada à cor “preta” e “parda”, podia desaparecer ou ser alterada ao longo de sua vida, o que sugere mecanismos de mobilidade social. Esse foi o caso de Maria Francisca, que de escrava se tornou proprietária e branca, mesmo numa sociedade em que o estigma da escravidão operava na configuração das hierarquias sociais.
O dossiê conta, ainda, com uma resenha escrita por Kara Schultz do livro de David Wheat, Atlantic Africa and the Spanish Caribbean, 1570-1640. O estudo de David Wheat, publicado em 2016, destaca várias das questões abordadas nesse dossier e também a presença africana no processo de ocupação e colonização da América Espanhola. Uma entrevista com a historiadora Silvia Hunold Lara conclui o dossiê. Silvia Hunold Lara, professora na Unicamp, publicou obras importantes como dos Campos da Violência (1988) e Fragmentos Setecentistas. Escravidão, cultura e poder na América portuguesa (2007). Também escreveu dezenas de artigos e capítulos de livros que apresentam novas contribuições sobre os processos de classificação e hierarquização no Brasil durante o período moderno. Seus estudos constituem uma importante contribuição para a historiografia sobre a presença africana no Brasil. Nesta entrevista, Sílvia Hunold Lara reflecte sobre os desenvolvimentos da historiografia sobre os africanos no Brasil nas últimas dédadas e alerta para a importância da integração da História de África nesses estudos. E explica-nos como “o racismo está directamente ligado ao jogo de forças que constitui certa sociedade”.
Acreditamos que as contribuições nesse dossiê apresentam reflexões importantes no campo de debate sobre cores, classificações e categorias sociais. Ao reunir esses oito artigos, resenha e entrevista priorizamos a reflexão sobre os africanos nos impérios ibéricos, séculos XVI a XIX, e esperamos que despertem interesse para novas investigações e diálogos.
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Eugénia Rodrigues – Doutora em História pela Universidade Nova de Lisboa, é investigadora do Centro de História da Universidade de Lisboa e ensina na Faculdade de Letras da mesma universidade. Entre as suas publicações estão, com Mariana P. Candido, ed., African women’s access and rights to property in the Portuguese empire, número especial de African Economic History (n. 43, 2015), e Portugueses e Africanos nos Rios de Sena: Os prazos da Coroa em Moçambique nos Séculos XVII e XVIII (2013). E-mail: rodrigues6@campus.ul.pt
Mariana P. Candido – Doutora em História pela York University, é professora na University of Notre Dame. Lecionou também na University of Kansas, Princeton University e University of Wisconsin-La Crosse. É autora de Fronteiras da Escravidão. Escravatura, comércio e identidade em Benguela, 1780-1850 (Ondijara / Katyavala Bwila, 2018) e de An African Slaving Port and the Atlantic World: Benguela and its Hinterland (Cambridge University Press, 2013). Organizou Crossing Memories: Slavery and African Diaspora, com Ana Lucia Araujo e Paul Lovejoy (Africa World Press, 2011); Laços Atlânticos: África e africanos durante a era do comércio transatlântico de escravos, com Carlos Liberato, Paul Lovejoy e Renée Soulodre-La France (Museu da Escravatura, 2017); African women’s access and rights to property in the Portuguese empire, número especial de African Economic History (n. 43, 2015), com Eugénia Rodrigues.
CANDIDO, Mariana P.; RODRIGUES, Eugénia. Apresentação. Estudos Ibero-Americanos. Porto Alegre, v. 44, n. 3, set. / dez., 2018. Acessar dossiê [DR]