Mordaça: histórias de música e censura em tempos autoritários | João Pimentel, Zé McGill

O livro “Mordaça: história de música e censura em tempos autoritários” de João Pimentel e Zé McGill se apresenta como um instrumento de extrema urgência, tanto para pesquisadores da arte, bem como para todos que queiram compreender parte da história do Brasil por meio da música e dos personagens que estiveram de algum modo presentes durante um dos momentos mais perversos na esteira dos acontecimentos no âmbito político e cultural, que foi a ditadura militar e o famigerado AI-5 (Ato Institucional número 5). Leia Mais

História da Igreja: Notas introdutórias | Ney Souza

A segunda edição da coleção Iniciação à Teologia da Editora Vozes está lançando diversos volumes sobre as disciplinas e áreas da Teologia com um conteúdo introdutório para aqueles (as) que desejam conhecer melhor os fundamentos da ciência teológica, suas áreas e a sua relação com os demais saberes.

O volume referente à História da Igreja é de autoria do Prof. Dr. Ney de Souza, professor da Faculdade de Teologia da nossa Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, doutor em História Eclesiástica pela Pontifícia Universidade Gregoriana (Roma), cujo diploma de Doutorado em História foi registrado na Universidade de São Paulo. Professor Ney é um historiador renomado, centrando suas linhas de pesquisas em catolicismo na América Latina no que se refere à piedade popular, ditaduras militares, e a recepção e desdobramentos do Concílio Vaticano II no continente, promovendo através de publicações diversas, congressos e grupos de pesquisas a História da Teologia. Leia Mais

Rimbaud na África: Os últimos anos de um poeta no exilio (1880/1891) | Charles Nicholl

Pretendemos neste artigo discutir as possibilidades que tem o historiador de utilizar em suas reflexões a Literatura como fonte histórica. Trata-se de uma relação difícil, mas possível e, sobretudo, prazerosa. A historiografia apela à literatura hoje mais como um registro do real, um instrumento para sua apreensão, ou ainda como sua metáfora epistemológica. O historiador não pode encarar a obra literária apenas como veículo de conteúdo, pois, o valor do texto literário não está propriamente na confrontação que dele se pode fazer com a realidade exterior, mas na maneira como esta realidade é abordada, aprofundada, questionada, recriada. Deve encarar a literatura não como reflexo, mas como refração, como desvio. (ELEUTÉRIO, 1992)

Como produção artística que é, a arte ilustra os valores de uma cultura, e não se presta a fornecer a confirmação de um saber que poderia adquirir de outras formas, por exemplo, por uma pesquisa histórica; ela tem princípios e leis diferentes dos da realidade exterior, já inventariada. Além do mais, o artista está sempre ultrapassando os sistemas de classificação, aos quais uma sociedade confirma suas representações provisórias do mundo. A arte não reproduz a realidade exterior, mas a transforma, exprimindo o que nela está reprimido ou latente.

A obra literária eficaz, que age sobre seus leitores, é aquela que dramatiza as contradições e exacerba-as, leva-as às últimas consequências, ou seja, representa-as, e oferece assim, um princípio de respostas a perguntas ainda não claramente formuladas. Ela libera possibilidades subjacentes a certas situações, joga com essas possibilidades, dá-lhe vida, e assim, tenta explorar as virtudes inerentes a uma época. As obras literárias que melhor traduzem os movimentos sociais e históricos não são as que retratam de forma escrupulosamente exata os acontecimentos anteriores; são as que exprimem aquilo que falta a um grupo social, e não aquilo que ele possui plenamente.

A literatura fala ao historiador sobre a história que não ocorreu, sobre as possibilidades que não vingaram, sobre os planos que não se concretizaram. Pode-se, portanto, pensar numa história dos desejos não consumados, dos possíveis não realizados, das ideias não vingadas (SEVCENKO, 1995).

Ocupa-se o historiador, portanto, da realidade, enquanto o escritor é atraído pela possibilidade. Cabe, portanto, ao historiador, captar esse excedente de sentido embutido no romance. O método para Lacapra (1991) é o de se fazer uma fusão entre o texto e o contexto, ou seja, usar a linguagem para se interpretar contextos. Não contexto no sentido positivista, mas como representação de uma experiência histórica. É a tentativa de perceber como se apresentou uma dada realidade.

A história é um caleidoscópio de ações humanas, é um romance verdadeiro, simplifica, seleciona, organiza, reflete e dissemina. Portanto, para Veyne (1995), o que distingue um livro de história de um romance, isto é, a narrativa histórica da narrativa de ficção, é que o primeiro tem seu suporte na realidade exterior, que tem existência concreta e autônoma. Dispensa, portanto, artifícios discursivos e estéticos para ser valorizado. A história é assim, uma narrativa verídica, mesmo levando-se em conta que a verdade sempre é relativa, depende de quem a conta, e os acontecimentos submetem-se ao critério de verificabilidade, ao contrário do discurso ficcional, que é uma questão de verossimilhança.

Ainda nessa comparação, podemos afirmar que a história é um discurso que visa a realidade teórica e científica, não ignorando o caráter de relatividade da verdade histórica, e toda subjetividade que comporta a elaboração desse conhecimento. O texto literário tem como objetivo fundamental a produção da realidade estética, o que não exclui que ele possa ter relações com a realidade objetiva, ou seja, com tudo aquilo que lhe é exterior, e de que certa forma o envolve.

Os romances históricos transmitem

uma verdade histórica através da verossimilhança novelesca, tem o poder de fazer a carne voltar a ser verbo, sem o verbo perder o gosto, ou a cor, ou o cheiro, ou a forma da carne, imagem que nos parece bastante significativa do poder de recriação da obra literária e das suas relações com a realidade que ela representa. (FREYRE, 1961)

Assim, a transformação de elementos não-literários em expressão estética é uma outra maneira de olhar o objeto, uma nova forma de relação com o real. Discurso histórico e narrativa literária, formas distintas de narrativas, apresentam formas de contatos, relacionam-se com a realidade exterior de maneiras diferentes, porém, complementares. Tanto um como o outro, são imagens dessa realidade, que se submetem às exigências do discurso e, podem, portanto, apresentar deformações, fragmentações, ou distorções, formas parciais de conhecimento.

Dessa forma buscamos entender a figura de um poeta do século XIX nascido na França e que se tornou famoso entre seus quinze e dezoito anos. Suas poesias encantavam e disseminavam-se com facilidade pelo universo das cidades europeias que devoravam através de seus leitores o que o jovem escrevia. Falamos de Arthur Rimbaud que foi perfeitamente historicizado no livro escrito por Charles Nicholl onde o autor tem a preocupação de mostrar o poeta abandonando a Literatura e a fama para empreender um novo rumo a sua vida, iniciando uma viagem pela África. Aventureiro? Desilusão? Assumir uma nova identidade? Desejo de conhecer outras paragens? Difícil é responder. Neste artigo onde podemos ser interpretados como descritivos, queremos na realidade mostrar que na primeira parte da vida de Rimbaud a sua literatura poética nos responde, enquanto fonte, ao historiador que percorre a sua produção artística. Como comerciante outras fontes teriam que ser buriladas para que pudéssemos decodificar no conjunto dessas duas identidades, embora um e outro desafiem a vida e enfrentam a própria morte.

No mundo do conhecimento a História sempre manteve um lugar de destaque com forte identidade própria, embora modernamente tenha se moldado o seu desenvolvimento acadêmico enquanto disciplina. O pesquisador Diogo da Silva Roiz do departamento de História da Universidade Estadual do Mato Grosso do Sul afirma que as pesquisas nos últimos vinte anos estão concentradas em História Cultural, perfazendo um total de 80% de tudo que tem sido produzido nas universidades brasileiras, tornando-se uma temática constante no mundo inteiro.

A História Cultural se tornou, na atual conjuntura, um imenso lucro para o mercado editorial. O interesse pela História Cultural em representações dos desdobramentos das preocupações da História Social com orientação marxista e a Nova História Cultural com a virada linguística e abordagens pós-modernas. As novas tendências historiográficas inspiram-se em uma crítica, em uma releitura dos conceitos fundamentais da História Social.

Se pensarmos nas contribuições dadas por Roger Chartier (2007) dentro de uma relação Cultura/Representação que perpassa por qualquer temática de pesquisa no campo da História, pois o historiador, segundo Raymond Williams (2011) exerce um trabalho de compreensão das representações dos sujeitos sociais. Tanto Chartier quanto Williams estabelecem uma fidelidade da História Cultural com os postulados da História Social. Portanto, o historiador passou a estabelecer diálogos através da História Cultural que foi seguida de forma exemplar por Pesavento (2003) no Brasil, com outras fontes possíveis de conhecimento e relações como História e Literatura. Uma pensa o concreto e a outra a ficção, mas consegue-se interpretar sujeitos, lugares, espaços, cores publicidade, propaganda, conversas, modas e temporalidades distintas e muito mais utilizando a Literatura como fonte.

De autoria de Charles Nicholl o livro Rimbaud na África: Os últimos anos de um poeta no exílio (1880-1891), impressiona o leitor pela riqueza de detalhes e profundidade de análise. Não se trata de uma obra ficcional, mas do resultado de uma pesquisa de historiador que o autor realmente é. Escreveu nove livros e alguns com prêmios recebidos este é o segundo que leio, sendo o primeiro com o qual tomei contato com a reflexões de Nicholl foi Leonardo Da Vinci, uma de suas produções premiadas.

Interessada em produzir um artigo sobre um literato que tivesse tido contato através de suas narrativas com o cotidiano de uma cidade africana cheguei a essa obra que nos narra o autoexílio de Arthur Rimbaud, o poeta francês que nasceu no lar de uma família de classe média de Charleville em Ardenas na região nordeste da França em 1854. Era o segundo filho de Vitale Cuif e do capitão Fréderic Rimbaud que lutou na Argélia, chegando até a receber o prêmio Legion D’Onneur. Em seguida ao nascimento da quinta filha do casal que faleceu após um mês o casamento chegou ao fim, quando o pai deixou a família.

Tal acontecimento contribuiu negativamente para o jovem que cresceu mais ao lado da mãe. Pelos seus escritos nota-se um desentendimento entre ambos e ele não se senta amado pela mãe. Sempre foi um estudante brilhante, embora calado, inquieto, impaciente e nada travesso. Em torno de quinze anos ganhou prêmios pelos versos que compunha, classificados como originais, sua primeira produção publicada foi Primeira Tarde. Escrevia na sua língua de origem, entremeada por diálogos em latim.

Fugia com frequência de casa e, em 1871, uniu-se à Comuna de Paris, retratada em seu poema A Orgia Parisiense ou Paris Repovoada. Deixou levemente transparecer em Coroação Torturado ter sofrido violências sexuais por soldados embriagados da Comuna. Fato que não chegou a ser comprovado, pois ele sequer abandonou a Comuna. Escrevendo poemas sobre ela que correspondiam aos seus pensamentos e reivindicações.

Transformou-se em um anarquista, começou a beber muito e frequentemente, usava roupas pouco adequadas, deixou os cabelos crescerem, com a nítida intenção de chocar a burguesia parisiense.

Sempre inquieto, deixou Paris e as suas relações para se dedicar a criação de um método para atingir a transcendência poética ou o poder visionário através do “longo, imenso e sensato desregramento de todos os sentidos” (As Cartas Videntes).

Retornou a Paris em setembro do mesmo ano, a convite do poeta do Simbolismo Paul Verlaine, depois que Rimbaud lhe enviou uma carta contando o seu método de trabalho. Casado, Verlaine logo se apaixonou pelo adolescente calado de olhos azuis de cabelos castanhoclaros e cumpridos. Tornaram-se amantes e levaram uma vida ociosa regada a absinto e haxixe, escandalizando o círculo literário, sobretudo pelo comportamento de Rimbaud o arquétipo do enfant terrible que escrevia versos notáveis.

Envolvidos por um tempestuoso caso amoroso, viajaram para Londres no ano seguinte. Verlaine abandonou a esposa e o filho que sofriam abusos com as suas iras alcoólicas. Viveram uma vida pobre em Bloomsbury e Camdem Town, desprezando uma vida de ensino e uma pensão da mãe de Verlaine. Rimbaud frequentava o Museu Britânico, onde produzia seus versos, pois calor, luz, penas e tintas eram de graça.

Em junho de 1873, Verlaine retornou a Paris e sofreu muito com a ausência do jovem Rimbaud e em junho o convida para ir a Bruxelas encontra-lo no Hotel Liège. Rimbaud vai e o convívio passou a não ser nada agradável, reclamações mútuas, culminando em uma fúria de bêbado, onde Verlaine disparou dois tiros contra Rimbaud, ferindo o jovem poeta no pulso. Rimbaud não acusou Verlaine que, junto com sua mãe, acompanharam o jovem a uma estação de trem em Bruxelas onde Verlaine se comportou como um louco. Essa atitude assustou Rimbaud que, amedrontado, sem nada dizer, foi embora, mas pede a um policial para prender Verlaine.

Ele foi detido por tentativa de homicídio e submetido a um humilhante exame médico. Suas correspondências foram submetidas a uma leitura policial e somadas às acusações de sua mulher. Chamado a depor, Rimbaud retirou a acusação, mas mesmo assim Verlaine foi condenado a dois anos de prisão.

Rimbaud retornou a sua casa em Charleville e completou um trabalho em prosa, Uma Estação no Inferno, considerada pioneira do Simbolismo moderno, e escreveu Farsa Doméstica, uma narrativa sobre sua vida com Verlaine que ele chamava de lamentável irmão.

Em 1874 retornou a Londres e, depois, para Stuttgart, na Alemanha, onde se encontrou novamente com Verlaine, pela última vez, depois que este saiu da prisão e se converteu ao Catolicismo.

A partir daí Rimbaud tomou uma decisão de mudança de vida. Desistiu de escrever e desejava uma vida fixa, com um trabalho rentável, queria ficar rico e independente para algum dia viver como um poeta despreocupado. Para isso continuou a viajar de forma intensa, a pé, pela Europa. Mantinha vivo ainda, embora mais contido, o seu antigo comportamento selvagem. Em maio de 1876 se alistou como soldado no Exército Colonial Holandês para poder ir livremente para Java, na Indonésia. Foi, mas depois de alguns meses desertou e retornou à França em um navio de forma clandestina.

Continuava inquieto e desejando na realidade uma vida mais tranquila o que, até então, não havia encontrado em todas essas andanças.

Seguindo essa meta, viajou para Chipre e em Lamaca trabalhou como capataz na pedreira em uma empresa de construção onde contraiu uma febre que o leva de volta à França onde foi diagnosticado com febre tifoide.

Em 1880 viajou para Áden, um protetorado britânico, um entreposto, um lugar de passagem de viajantes que seguiam para a África e para a Índia. Foi de navio/vapor, desceu pelo Canal de Suez em busca de qualquer trabalho, sem achar. Atravessou o Estreito Bab al’Mandeb, percorreu o árido litoral do Iêmen, até chegar a Áden

O rosto queimado pelo sol, os trajes de algodão sujos, a mala remendada: é o que tudo indica. Seus olhos podem sugerir outras histórias menos decifráveis. São extraordinários, de um azul pálido hipnótico e inquietante. Décadas mais tarde, um missionário francês que o conheceu na África diria: lembro de seus olhos grandes e claros. Que olhar! (NICHOLL, 2007, p.18)

Finalmente esse coração inquieto adaptou-se em Áden, como empregado na agência de Bardey. Aí teve várias relações com mulheres nativas e por um tempo viveu com uma amante da Etiópia. Ensinou-lhe a ler a falar em francês e mais tarde a abandonou, mandando-a para Obock, do outro lado do Mar Vermelho, com um pouco de dinheiro para que pudesse voltar para casa. Como testemunha Bardey em carta a Berrichon datada de 16 de julho de 1897:

Foi em Áden que aconteceu o relacionamento afetivo com a mulher Abissínia, entre 1884 e 1886. Era uma relação íntima e Rimbaud, que no início morava e fazia suas refeições conosco, alugou uma casa separada onde poderia morar com sua companheira nas horas em que não estava trabalhando em nossa firma. (NICHOLL, 2007, p.258).

O próprio Rimbaud, em uma carta para Augusto Franzoj, escrita por volta de setembro de 1885 e publicada pela primeira vez em 1949 por Enrico Emanuelle na revista literária italiana Inventário.

Caro senhor Fransoj,

Lamento, mas dispensei aquela mulher sem apelação.

Darei a ela alguns táleres e ela tomará o barco

para Obock que agora está em Rasali. De lá, ela seguirá para onde desejar.

Estou farto dessa farsa, não seria tão estúpido a ponto

de trazê-la de Choa, e também não serei para me

encarregar para leva-la de volta.

Cordialmente, Rimbaud (NICHOLL, 2007, p.258).

Em 1884, deixou o trabalho para se tornar um mercador por conta própria em Harar na Etiópia. Vendia café e armas e como teve grande sucesso nesse ramo, tornou-se grande amigo do governador de Harar, pai do futuro imperador da Etiópia Haile Selasse.

Como mercador teve uma vida de andarilho, agitada, conhecendo vários lugares e obtendo grande sucesso na nova profissão.

Foi exatamente com 25 anos que o poeta abandonou para sempre a literatura e a fama na Europa e partiu para a África, onde sobreviveu por onze anos como comerciante e contrabandista, tentando apagar seu histórico de um passado boêmio. Era outro homem, tinha outra identidade, onde só manteve os belos olhos azuis que encantavam as pessoas.

O historiador Charles Nicholl construiu um perfil fascinante dessas duas vidas e dessas duas tão distantes identidades: a do poeta reconhecido e a do aventureiro comerciante que se transformou até morrer: “Um e outro vivendo sempre no limite da existência” (NICHOLL, 2007, p. 84).

Para descortinar esse período, Charles Nicholl pesquisou em documentos históricos inéditos, burilou a vasta correspondência de seu objeto de pesquisa, em cartas enviadas da África, onde ele nunca mais falou em literatura, mas apenas sobre dinheiro, comércio, lucros e rendimentos e, descrevendo suas andanças percorridas entre as regiões da Etiópia e o Egito com altivez, não mais parecido com o jovem poeta que Verlaine tanto admirava.

Apesar de um físico frágil, andava quilômetros, percorrendo em caravanas os lugares mais perigosos do continente africano.

Amigos morreram acompanhados por familiares comandando caravanas nas rotas de Harar e da Abissínia, nas viagens a Hensa e na rota Harar-Zeila. Perigos, medo e, ao mesmo tempo coragem, o jovem Rimbaud passou nessa sua vida de comerciante de caravana. Os nativos, com imensas lanças, assaltavam esses comerciantes e os matavam para roubar, sobretudo armas.

Sente-se sozinho ao perder seus companheiros e com muito temor, mas com uma coragem maior ele seguiu em seus trajetos comerciais obtendo seus lucros, passando a ser um mercador de sucesso.

De tanto caminhar e de tanto carregar as suas mercadorias pelos caminhos vielas e cidades africanas, em péssimas condições climáticas que eram mais ásperas que as da Europa, trouxeram ao jovem literato/comerciante, consequências tristes.

Rimbaud desenvolvei sinovite em seu joelho direito que mais tarde se tornou carcinoma. Seu estado de saúde piorou, sendo obrigado a retornar a França, em maio de 1891. Foi hospitalizado em Marselha e teve sai perna amputada. Passou um rápido e curto período na casa da família para uma recuperação no pós-operatório, mas logo desejou voltar à África para cuidar de seus negócios, mas o seu estado de saúde piorou, pois sua enfermidade se agravou. Voltou para o hospital em Marselha onde sofreu muito e recebia apenas as vistas de sua irmã Isabelle. Em novembro do mesmo ano Rimbaud finalmente descansou. Morreu ainda jovem, com apenas 37 anos e seu corpo foi enterrado no jazigo da família em Charleville.

Rimbaud, que foi para a África e acabou por traficar armas de fogo no norte desse continente, mas por outro lado, tornou-se uma referência para a literatura poética do século seguinte, servindo como argumento para célebres discussões que se processaram sobre a impossibilidade de dissociação do poeta e da poesia.

Assim sendo, deixou seguidores, influenciados pela sua produção e pelo método do Simbolismo, pois sua poesia e sua vida sempre impressionaram literatos, historiadores, músicos e pintores do século XX como Pablo Picasso, Allen Guinsberg, Vladimir Nabokov, Bob Dylan, entre vários outros. Sua vida foi retratada também no cinema, em filmes do cineasta italiano Nelo Rizzi, como Uma Temporada no Inferno, de 1970 e, em 1995 a cineasta polonesa Agnieska Holland dirigiu Eclipse Total de Uma Paixão.

Referências

CHARTIER, Roger. A História ou a Leitura do Tempo. Belo Horizonte: Autêntica, 2007.

ELEUTÉRIO, Maria de Lourdes, AVELINO, Yvone Dias (et. Al.). O Bosque Sagrado e o Borrador, In: Revista Projeto História. São Paulo: EDUC, nº 8/9, 1992.

FREYRE, Gilberto. Casa Grande e Senzala. Rio de Janeiro: José Olympio, 1961.

LACAPRA, Domonick. História e Romance, In: RH, Revista de História da UNICAMP, nº 2/3. Campinas: UNICAMP, 1991.

NICHOLL, Charles. Rimbaud na África: Os Últimos Anos de um Poeta no Exílio (1880-1891). Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2007.

PESAVENTO, Sandra Jutahy. História & História Cultural. Belo Horizonte: Autêntica, 2003.

SEVCENKO, Nicolau. Literatura como Missão. São Paulo: Brasiliense, 1995.

VEYNE, Paul. Como se Escreve a História. Brasília: UnB, 1995.

WILLIAMS, Raymond. O Campo e a Cidade: Na história e na literatura. São Paulo: Companhia de Bolso, 2011.

Yvone Dias Avelino – Professora-titular do Departamento de História da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e Coordenadora do Núcleo de Estudos e História Social da Cidade (NEHSC-PUC-SP).


NICHOLL, Charles. Rimbaud na África: Os últimos anos de um poeta no exilio (1880/1891). Trad. Mauro Pinheiro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2007. Resenha de: AVELINO, Yvone Dias. Rimbaud: Um Poeta perdido na Europa e que se encontrou na África (1880-1891). Cordis – Revista Eletrônica de História Social da Cidade. São Paulo, n.20, p. 424-439, jan./jun. 2018. Acessar publicação original [DR]

 

Tereza Batista cansada de guerra | Jorge Amado

Esta resenha objetiva descrever e analisar algumas passagens do romance acima citado no intuito de perceber as relações elencadas por Jorge Amado, que possibilitam um conhecimento da época, do espaço e das relações sociais, que todas as obras literárias carregam nas entrelinhas de sua trama. No caso de Jorge Amado, escritor baiano que começa a escrever na década de 1930, estas relações são postas intencionalmente para mostrar a sociedade na qual o autor está inserido e é observador atento do cotidiano do povo. Aqui identificaremos estas relações enfocando a mulher como sujeito social no cenário proposto pelo autor.

Posto que Jorge Amado trabalha com uma temporalidade que descreve os meandros por que perpassam a memória, fazendo uma alusão ao caráter popular que ele dá as suas obras, traçaremos aqui uma linha cronológica que nos permita caminhar por uma ordem que não segue necessariamente a do livro.

Tereza ficou órfã muito cedo e passou sua curta infância com uma tia. Foi uma criança livre, gostava de correr e subir em árvores. Com os meninos, seus colegas, aprendeu que um bom guerreiro não chora. Aos doze anos ela foi vendida ao Coronel Justiniano, por uma quantia irrisória e um bracelete barato. Seu tio foi contra a venda, não por um gesto altruísta, mas por desejar ser ele a tirar o “cabaço” da menina. Sabendo que sua esposa conhecia suas intenções, não se atreveu a falar nada.

Já neste momento o autor sinaliza a falta de alternativa de Tereza. Era condição de ela perder a infância, pois se o Coronel não a desvirginasse violentamente o tio faria, fazendo-a perder, portanto a chance de ser uma “mulher direita”, posto que para isso era necessário ser virgem. Ela é coisificada e pela dimensão da violência deste processo ela é obrigada a aceitar esta condição.

Na casa do Coronel “Justo”, Tereza viveu um verdadeiro inferno a começar na sua chegada, na condição de “coisa sexual”, depois de resistir bravamente à primeira “cavalgada” (termo usado pelo próprio Coronel para referir-se aos estupros que comete) continua a ser estuprada. A descrição detalhada que o autor faz destas violências sexuais carrega nos detalhes a angústia, a raiva, a impotência do leitor, sensação esta que nos faz refletir sobre a nossa condição como participantes desta sociedade que carrega embaixo de um fino pano as injustiças contra a mulher.

Tereza foi escrava sexual por cerca de três anos, até ser seduzida por Daniel, jovem boêmio, sem caráter, muito semelhante fisicamente ao anjo pendurado na parede do quarto do Coronel, que presenciava toda a violência cometida contra a menina. Por Daniel, Tereza foi capaz de matar o Coronel quando ele descobrir a relação dos dois e humilhou o rapaz.

Neste momento o autor nos desvela que o Coronel não conseguiu anular a coragem da menina, agora mulher, com as surras e os estupros. A coragem lhe era inerente, só ficou adormecida por um tempo, despertando na primeira oportunidade.

Quem libertou Tereza da prisão, já que ela matou o Coronel na presença de Daniel que a denunciou acusando-a covardemente (e nós leitores sabemos que ela o fez para salvá-lo), foi o Coronel Emiliano, este já havia se encantado pela menina quando lhe fez uma visita ao, agora, falecido Justo, e tentou, na ocasião, “comprá-la”, mas não teve sucesso. A menina viveu durante seis anos na condição de “amásia” do Coronel Emiliano, ele a colocou numa casa, lhe deu vestidos, contou-lhe uma porção de coisas e ensinou-lhe a ser uma “senhora”. Porém nunca tornar-se-ia uma “senhora”, posto que as “mulheres de família” suportavam as “protegidas” dos Coronéis por medo e respeito aos mesmos, sua condição de “mulher da vida” iria acompanhá-la para sempre, como uma sombra.

Apesar desta condição de “amásia”, Tereza foi feliz durante aqueles anos, e quando finalmente o Coronel revelou seu amor por ela (dizendo-lhe inclusive que pensava em lhe dedicar parte da herança), confessando sua infelicidade no seio familiar, ele morreu, durante o ato sexual, dentro de Tereza. Novamente sem ninguém e sem nada a menina-mulher “cai na vida”.

O Coronel Emiliano reproduziu com Teresa a mesma lógica de todos os Coronéis, inclusive a do Coronel Justino, o vilão do primeiro capítulo. Mas pela primeira vez a menina, que perdeu a infância, foi tratada com carinho, ele fez o papel de pai e amante e este fato em contraste com os momentos vividos com o outro primeiro Coronel acabou aliviando a culpa deste.

O contraste também se faz presente na estrutura do texto, que nos transporta para dois momentos respectivamente: ora são descritos os momentos de felicidade de Tereza ao lado do coronel Justino, ora o desfecho da morte deste e o sofrimento da perda por Tereza, aliado a chegada da família, que o Coronel dizia nunca tê-lo amado. Neste momento as lembranças da menina são nossos guias, pois o autor nos faz enxergar o Coronel pelos olhos da personagem.

As relações dos dois espaços da mulher nestas cidades são descritas neste capítulo quando Amado narra a função de Tereza como “amásia”: a mulher sustentada e protegida por um Coronel próspero. Estas mulheres normalmente são tiradas de prostíbulos e colocadas na casa de descanso destes Coronéis, a maioria tem que estar consciente de seu papel; elas esperam os Coronéis terem vontade de estar com elas, fazendo, quando isso acontece, todas as vontades deles. Esta relação de submissão fica clara quando Tereza aborta, ao saber, pela boca do Coronel Emiliano, que ela não era mulher para ter filhos dele.

O Coronel então morreu durante o ato sexual e quando a família legitima dele chegou, Tereza se viu obrigada a ir embora sem nada. O autor deixou explicito o orgulho da personagem e o amor sem interesses materiais que ela mantinha pelo falecido, indo embora sem reivindicar nada. Ao partir, deixou todos os bens materiais que recebeu do Coronel para a família que se mostrava avarenta, pois mostravam-se mais preocupados com a herança do que com a morte do ente. Este é um cenário sempre presente na obra de Amado, tendo em vista sua busca por retratar as famílias patriarcais, tradicionais baianas, onde as diferenças sociais sempre são a tônica central.

Tereza instalou-se numa cidadezinha e lá trabalhou como “rapariga” (termo usado para designar as profissionais do sexo). Logo conheceu um médico e mudou-se com ele para uma cidadezinha do interior quando ele foi promovido. Mas em meio à tranqüilidade da saúde na cidade, houve um surto de Bexiga Negra, o médico que permaneceu por pouco tempo no local, recebeu a ajuda de Tereza que neste curto período aprendeu um pouco sobre a doença e o tratamento. Quando o médico fugiu, num ato covarde, com medo de contrair a doença, assim como fizeram as autoridades da cidade (sobraram apenas os mais pobres, que não tinham como fugir), Tereza ficou para tentar amenizar o problema. O autor a descreve como uma guerreira, que mesmo diante de tão heróicos feitos é condenada pelas más línguas da cidade devido ao seu passado e sua condição. O autor nos mostra a dificuldade de aceitação de uma mulher que foge das regras da sociedade, seja esta uma condição ou uma escolha.

Antes de encontrar a paz, Tereza ainda passaria por mais uma batalha. Este último capítulo é iniciado por uma Mãe de Santo que fala do destino de Tereza. Ela era querida no lugar onde agora vivia e trabalhava novamente como “mulher da vida” de coronéis muito poderosos, devido a sua exuberante beleza. Em sua narrativa, o autor nos apresenta uma distinção sócio-econômica entre os prostíbulos: existiam os mais simples, onde era aceito qualquer cliente, e os mais sofisticados, onde os clientes eram ricos e em sua maioria coronéis, estes tinham mulheres fixas, como Tereza que também se apresentava em shows de dança.

O governo decidiu deslocar os prostíbulos mais pobres para uma região de condições precárias. O autor descreve detalhes destas relações puramente políticas, sem preocupação social, mostrando como a vida do povo estava subjugada aos desígnios das autoridades locais. Por mais que Tereza não estivesse envolvida, tomou aqueles acontecimentos como se fossem dela, pois quando as mulheres se recusaram a sair, a polícia as reprimiu violentamente. A idéia veio de Tereza, as “profissionais do sexo” não trabalhariam enquanto o problema não fosse resolvido. Concomitantemente estava por chegar um navio com muitos marinheiros americanos que iriam movimentar a cidade com seus dólares, porém sem a atuação das “mulheres da vida” este movimento se reduziria significativamente.

A polícia ao saber da greve tentou violentamente reprimi-la, mas com a ajuda dos Deuses africanos, os Orixás, Tereza incentivou todas a não voltarem às atividades naquela noite. “A greve do balaio fechado”, um dos possíveis títulos para este capítulo sugerido pelo autor, deu certo, mas Tereza foi presa e apanhou muito na cadeia.

As torturas não foram suficientes para acabar com sua beleza e ela foi pedida em casamento por um antigo pretendente. Tereza por ter perdido seu grande amor, um marinheiro que ela conheceu quando ele a salvou da polícia no inicio do livro, e por ela estar acreditando que ele havia morrido no mar, sem nenhuma esperança de amar novamente aceitou o casamento. Porém, momentos antes de se casar, seu grande amor apareceu reivindicando seu lugar no coração de Tereza.

Finalmente ela encontrou a paz nos braços de quem amava, no convés de um barco, e foi no mar que ela descarregou as três mortes que pesava em suas costas: o Coronel Justo que ela matou com uma facada, o Coronel Emiliano que morreu durante o ato de amor e seu filho que ela matou ainda no ventre dela.

Através dos olhos de um narrador que se diz presente na história contada e que sempre coloca sua opinião apaixonadamente influenciando desta forma a opinião do leitor, Jorge Amado denunciou uma realidade dolorosa, cruel e ainda atuante. Tereza Batista é a personagem que carregou em suas costas as experiências de meninas que se tornam mulheres condicionadas a um futuro de escolhas limitadas. Tereza parece ser o grito desesperado de denuncia que Jorge Amado vem trazendo em todas as suas obras, estereotipada na mulher baiana que é muito sensualizada e que só encontra saída na sujeição do próprio corpo.

A estratégia estrutural do texto nos induz aos caminhos da memória, onde podemos ouvir a voz e as impressões do narrador presente, que tudo indica ser um taxista que conta a história para um passageiro, relembrando o que viu unido ao que ouviu da boca do povo que até transformou a história em cordel. Para dar veracidade à história ele usa o argumento desta ser conhecida nas ruas da Bahia, valorizando a oralidade e a tradição oral como forma de perpetuação da História de um Povo (deste povo marginalizado e oprimido que nunca é privilegiado pela história oficial). Esta tradição oral que veio nos navios negreiros e esta tão presente nas religiões e costumes de origem africana, com as quais o autor sempre trabalha.

Conhecemos Tereza Batista por meio da “Memória”, a mulher forte e inteligente é fruto de uma vida de violências físicas e psicológicas de uma sociedade machista, limitadora, patriarcal, injusta, desigual e muito violenta. Tereza pagou o preço por nascer mulher, negra, bonita e pobre, mas ela não desistiu, não se rendeu e venceu a guerra, cujas as batalhas por serem tão violentas fazem com que, nós leitores, duvidemos que seria possível vencê-la. Tereza perdeu o medo de apanhar, de sentir fome, de ser sozinha e talvez tenha sido isso que a fez querer enfrentar este monstro que é a sociedade, apresentando-se a ela na figura de um coronel, de uma doença (Bexiga Negra), da prisão, da lei, a mulher sem infância a enfrentou e mesmo diante de tanto sofrimento e desilusão, não perdeu a capacidade de amar.

Luciana Santos Barbosa – Mestra em História Social pela PUC-SP.


AMADO, Jorge. Tereza Batista cansada de guerra. São Paulo: Martins, 1972. Resenha de: BARBOSA, Luciana Santos. O grito de denúncia de Tereza: história, corpo e literatura. Cordis – Revista Eletrônica de História Social da Cidade. São Paulo, n.7, p. 403-411, jul./dez. 2011. Acessar publicação original [DR]

 

Futuros imaginários: das máquinas pensantes à aldeia global | Richard Barbrook

Agraciado com o Prêmio Marshall Macluhan, na categoria “Livro do Ano sobre Ecologia de Mídias 2008”, Futuros Imaginários é resultado de pesquisa documental aliada à recordações de uma experiência pessoal marcante de seu autor, o inglês Richard Barbrook: a Feira Mundial de Nova York de 1964. Embora não seja um historiador de formação, o Doutor em Ciências Políticas e professor de Hipermídia da Faculdade de Ciências Sociais, Humanidades e Letras da Universidade de Westminster, resgatou com competência este importante episódio ocorrido durante sua infância, situado durante os efervescentes anos 1960, época em que ele crescia na cidade que sediou o tal evento. Acrescendo às suas memórias uma cuidadosa pesquisa amparada num conjunto de variadas fontes bibliográficas, que contribuíram para que ele reconstituísse o período compreendido entre 1964 e 1966, quando o tal evento preenchera a agenda cívica norte-americana, para dali extrair reflexões atualizadas acerca dos rumos das sociedades contemporâneas em detrimento da relação de seus sujeitos com as tecnologias que vêm desde então dando o tom de seu desenvolvimento.

Enfocando os desvios das utopias tecnológicas que anunciavam o advento de sociedades futuras baseadas no intenso fluxo de informação, bem como de uma nova economia adequada aos novos paradigmas de um novo contexto global, centrado entre o processo de desenvolvimento de novas linguagens midiáticas e sua aplicação em políticas internacionais de uma nova espécie de imperialismo, diga-se, virtual, o livro posiciona os Estados Unidos, fortalecidos com o fim da Guerra Fria, na vanguarda desta corrida pela liderança tecnocientífica, destacando sua influência sobre o quadro econômico e cultural mundial. Desde aquela época a construção de uma rede de informações, que viria a ser denominada como internet já se apresentava como a meta primordial de uma corrida tecnológica que determinaria as futuras lideranças mundiais merecendo, por isso, total atenção do governo norte-americano.

A obra também apresenta os paradoxos deste país como pioneiro de um suposto comunismo cibernético, ocasionado pelas intenções de implementação de uma ideologia de combate ao socialismo russo, mas que se mostrou substancialmente próximo às ideologias soviéticas que intencionavam combater. Negando o stalinismo, os estadunidenses, como propõe o autor, criaram uma Esquerda da Guerra Fria amparada por teorias marxistas e macluhanistas, que acabaram criando sua própria versão de futuro imaginário socialista. A ideologia americana do consumo, disfarçada em meio à políticas neo-liberais guiadas por profecias de um determinismo tecnológico, que outrora fora responsável pela criação dos futuros imaginários norte-americanos jamais concretizados, estabeleceu um inédito espaço de participação política, demandando novas táticas de ativismo que soubessem explorar as novas linguagens midiáticas. E tudo veio se configurando numa nova e complexa rede de relações sociais que desviou a realidade daquilo que, na Guerra Fria, parecia ser um destino quase certo.

As sociedades contemporâneas desenvolveram-se amparadas sobre três ícones tecnológicos fundamentais, que vieram desde o fim da Segunda Guerra Mundial ditando o curso de seu progresso: energia nuclear, viagens espaciais e os computadores, com a ambição de um dia se chegar à almejada inteligência artificial. Em plena Guerra Fria, os Estados Unidos da década de 1960 preocuparam-se em apresentar ao público as aplicações pacíficas destas tecnologias que alimentavam a indústria bélica. Como constata Richard Barbrook, a Feira Mundial de Nova Iorque de 1964, evento que por dois anos procurou divulgar para os norte-americanos e para todo o mundo que aquele país era o pioneiro nos mais diversos quesitos, científicos, econômicos e sociais, contou com a participação de órgãos governamentais, grupos religiosos e as principais empresas e instituições financeiras estadunidenses, trazendo à cena os computadores da IBM, os reatores nucleares da General Eletric e os foguetes espaciais da NASA, que se destacaram como as principais atrações dentre os 140 pavilhões que compunham o evento, seduzindo toda uma geração de indivíduos ávidos em consumir um futuro tornado produto, sem perder de vista o dever patriótico. Prometiam algumas das principais ideias já apresentadas ao público pela ficção científica – tradicional fonte geradora de futuros imaginários –, como as viagens de turismo espacial, energia farta e barata para todos e robôs inteligentes dentro dos lares e ambientes de trabalho, poupando seus proprietários de riscos e esforços desnecessários.

Tudo isso deveria acontecer, como prometiam os expositores, dentro de duas ou três décadas. Mas apesar dos avanços conquistados nestas três áreas, nenhuma destas metas fora atingida da forma como haviam sido divulgadas. No entanto, cumpriram os seus papéis naquele momento, que eram o de convencer os cidadãos quanto a importância do desenvolvimento de tais tecnologias para que estes dessem seu apoio coletivo incondicional a tais empreendimentos, ao custo de que mantivessem sua posição privilegiada no cenário mundial. Este apoio não viria enquanto a população estivesse aterrorizada pela possibilidade de uma Terceira Guerra Mundial, afinal, as consequências dos conflitos mundiais anteriores se faziam ainda presentes. Era necessário inverter as imagens que pululavam no imaginário daquela geração, que testemunhara os ataques nucleares ao Japão, para que enxergassem que os

[…] reatores nucleares eram geradores de eletricidade barata, e não fábricas de bombas atômicas. Foguetes eram construídos para levar heróicos astronautas para o espaço, não lançar ogivas nucleares em cidades russas. No momento em que eram colocados em exibição pública, quase todas as pistas de suas origens militares desapareciam.[1]

As revoluções tecnológicas do pós-Segunda Guerra, que vieram na forma dos reatores nucleares, foguetes espaciais, satélites e computadores não trouxeram a revolução social que o projeto iluminista incumbira-se de promover. Segundo Barbrook, a invasão da tecnologia nesta segunda metade do século XX, sobretudo sob a forma dos computadores, para dentro dos locais de trabalho criou uma competição desigual entre o trabalhador comum, assalariado, e uma nova força informacional de trabalho, que concentrava em si o controle sobre todo o ritmo de produção, sem exigir direitos ou, sequer, remuneração: as máquinas pensantes. Embora a inteligência artificial ainda esteja restrita ao campo de temas da ficção científica, os softwares de gerenciamento adotados pelas empresas, como ferramenta de controle da produção, são um fato.

Ele ainda lembra que a fabricante de computadores IBM veio desde o final da Segunda Guerra Mundial promovendo […] a fantasia ficcional das máquinas pensantes (mas), […] ironicamente, a fantasia otimista dos gurus dos computadores dos anos de 1960 confirmou o pesadelo dos escritores de ficção cientifica dos anos 1930: a inteligência artificial era o inimigo da humanidade.[2]

A inclusão progressiva de todos, a partir do desenvolvimento tecnocientífico, fora uma meta não alcançada pelas sociedades modernas, que apenas viu ampliarem-se as disparidades sociais. Atento a este contra-senso, Barbrook pretendeu apontar as contradições de uma sociedade cujo desenvolvimento tecnocientífico se mostrou proporcional aos seus desavanços sociais. As tecnologias originalmente idealizadas para servir ao homem mostraram, a partir dos anos 1940, sua outra face: “ao invés de criar mais tempo de lazer e melhorar os padrões de vida, a informatização da economia sob o fordismo aumentaria o desemprego e cortaria os salários”[3], tornando o homem uma força de trabalho cada vez mais dispensável, pois que, como enfatiza o autor, “a nova tecnologia era um servo dos chefes, não dos trabalhadores.”[4]

A cada página, Barbrook conduz o leitor à constatação de que embora, em parte, os referidos ícones tecnológicos mais influentes da segunda metade do século XX, acima citados, passassem gradualmente a dividir o espaço com novas tecnologias, notadamente voltadas aos campos da comunicação e da informática, as últimas quatro décadas prosseguiram perpetuando a avidez desta sociedade pela tecnologia aplicada ao cotidiano, marcando esta etapa atual da história como uma era da informação. As transformações sociais compreendidas nesse período são na obra apontadas como consequentes desta nova relação homem-tecnologia que se desenvolveu com esta geração, da qual o autor faz parte, fortemente influenciada pelo contexto da Guerra Fria, mas que vira esta meta nacional de manutenção de sua hegemonia esvair-se dentro de um novo e amplo cenário mundial que convencionou-se chamar, erroneamente na opinião de Barbrook, de Aldeia Global, sem negar a permanência das aspirações pelos avanços técnicos que continuam guiando o curso progressista das sociedades contemporâneas ao redor do globo.

Ao final da leitura, oferece-se um item chamado Tradução em Imagens que é uma compilação de ilustrações produzidas pelo artista plástico inglês Alex Vennes. Ordenadas em sequência e acompanhadas de título e legendas, propiciam uma leitura imagética da obra complementando as questões discutidas. A edição brasileira também conta com ilustrações de Lúcio de Araújo e Cláudia Washington, que antecedem cada um dos quinze capítulos que compõem o livro, totalizando 447 páginas entre o prefácio, assinado por Wanderlynne Selva, uma introdução à edição brasileira redigida pelo próprio Barbrook e as referências bibliográficas.

Cabe também lembrar que esta adaptação para o português de Imaginary Futures é resultante de um esforço conjunto entre seu autor, que doou a propriedade intelectual de sua obra para a tradução e subsequente lançamento em língua portuguesa e os pesquisadores e colaboradores do DES).(CENTRO, que, desde 2002, realizam por todo o Brasil projetos de pesquisa e eventos voltados às discussões acerca das novas tecnologias de mídia e seu impacto sobre as sociedades contemporâneas. Futuros Imaginários constitui-se numa enriquecedora referência aos estudiosos com interesse nas relações entre história, mídias e contemporaneidade fornecendo, a partir das “profecias novaiorquinas” não cumpridas, uma base de elementos de apoio a uma leitura do contexto atual, que nos auxiliam no entendimento dos processos engendrados num dado presente que nos conduzem a este ou aquele futuro.

Notas

1 BARBROOK, op. cit., 2009, p. 68.

2 BARBROOK, op. cit., 2009, p. 100 e 102.

3 BARBROOK, op. cit., 2009, p. 94.

4 BARBROOK, op. cit., 2009, p. 96.

Luiz Aloysio Rangel – Graduado e mestre em História Social pela Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP). Desenvolve pesquisa sobre temporalidades e representações urbanas na produção cinematográfica, com foco nas relações entre humanidades e tecnologias e fenômenos da contemporaneidade. Atua como pesquisador do Arquivo Estado.


BARBROOK, Richard. Futuros imaginários: das máquinas pensantes à aldeia global. São Paulo: Peirópolis, 2009. Resenha de: RANGEL, Luiz Aloysio. As profecias nova-iorquinas não cumpridas. Cordis – Revista Eletrônica de História Social da Cidade. São Paulo, n.6, p. 373-380, jan./jun. 2011. Acessar publicação original [DR]

A história escrita. Teoria e história da historiografia | Jurandir Malerba

A teoria da história é mais do que apenas um pensamento sistemático sobre a História e sua escrita; a narrativa história se mostra, cada vez mais, complexa, por suas tensões entre fatos e ficções, verdade e imaginação, objetividade e subjetividade, fontes documentais e as retóricas do discurso; a historiografia não é apenas o discurso circunstanciado sobre as obras históricas, mas fixa-se, cada vez mais, em todo discurso sobre o passado. O que a coletânea de textos organizados por Jurandir Malerba nos mostra, em resumo, é um ‘fazer história’ mais denso e articulado, com as questões de nosso tempo.

Ao reunir as contribuições de Horst Walter Blanke, Massimo Mastrogregori, Frank Ankersmit, Jörn Rüsen, Angelika Epple, Masayuki Sato, Arno Wehling, Hayden White e Carlo Ginzburg, nos oferece uma mostra do resultado dos debates das últimas décadas a respeito da história da historiografia, da teoria da história, da epistemologia histórica, quanto ao princípio de realidade, ao gênero, a comparação e a narrativa. Para ele:

O critério principal para a seleção dos textos que constituem a presente obra foi a intenção de compor um painel, o mais amplo possível, dos campos problemáticos presentes na construção de uma teoria da historiografia, com vistas ao aprimoramento prático de uma revigorada história da historiografia. Nesse sentido, os textos […] reunidos oscilam da reflexão teórica acerca do conceito de historiografia para a reflexão crítica de uma epistemologia da história, passando necessariamente pelas potencialidades e limites metodológicos que cada caminho apresenta. Tratam-se, como é notório, de autores consagrados do pensamento histórico contemporâneo, provenientes das mais distintas tradições nacionais e simpatias teóricas.[1]

Para articular tais textos, o autor os posicionou em quatro blocos, a saber: a) os de que “o foco recai primordialmente sobre o conceito de historiografia e o estatuto teórico do texto historiográfico”, como se vê no texto de Blanke, Mastrogregori e de Arkersmit; b) “por ensaios com propostas mais teórico-metodológicas para o campo da história da historiografia propriamente dita”, como nos casos de Rüsen, Sato e de Epple; c) “discussão teórica da prática historiográfica para o campo da epistemologia”, em que se apresentam Wehling; d) e, no último “seria quase um exemplo das implicações políticas do exercício historiográfico, que tomamos propositadamente no exemplo-limite da história do Holocausto”, por meio do debate entre os textos de White e Ginzburg.

Além dos textos ora indicados, a coletânea ainda é enriquecida com o capitulo de Malerba, que indica os principais eixos das discussões sobre teoria e história da historiografia ocorridas no século passado. Para ele, haveria, sem dúvida, uma tensão entre, de um lado, o “anti-realismo epistemológico, que sustenta que o passado não pode ser objeto do conhecimento histórico ou, mais especificamente, que o passado não é e não pode ser o referente das afirmações e representações históricas”[2] , e, de outro, o “narrativismo, que confere aos imperativos da linguagem e aos tropos ou figuras do discurso, inerentes a seu estatuto linguístico, a prioridade na criação das narrativas históricas.”[3] Em ambos os casos, a pesquisa histórica esteve ancorada em matrizes, senão frágeis, ao menos em constante pressão, e com necessidade de justificação perante as outras áreas do saber. Mas, o “caráter auto-reflexivo do conhecimento histórico talvez seja o maior diferenciador da História no conjunto das ciências humanas.”[4]

Para Blanke, a “história da historiografia é uma atividade nova”, que esteve ao lado “do desenvolvimento da história como disciplina independente e com pretensões científicas”, com início “na época do iluminismo.”[5] Suas características estariam balanceadas entre tipos (história dos historiadores, história das obras, balanços gerais, história da disciplina, história das idéias históricas, história dos métodos, história dos problemas, história das funções do pensamento histórico, história social dos historiadores, história da historiografia teoricamente orientada) e funções (afirmativa e crítica). Não por acaso, Mastrogregori ressaltará que as “possibilidades de contato são certamente inúmeras”[6], visto a complexidade da tarefa de se efetuar adequadamente uma história da historiografia. Para Ankermist, tal tensão “nos confronta diretamente com o problema do relativismo resultante da historicização do sujeito histórico.”[7] Como nos indica Rüsen, a “historiografia é uma maneira específica de manifestar a consciência história”, porque “apresenta o passado na forma de uma ordem cronológica de eventos apresentados como ‘factuais’, ou seja, com uma qualidade especial de experiência.”[8] Por isso:

Não há cultura humana sem um elemento constitutivo de memória comum. Ao relembrar, interpretar e representar o passado, as pessoas compreendem sua vida cotidiana e desenvolvem uma perspectiva futura delas próprias e de seu mundo. História, nesse sentido fundamental e antropologicamente universal, é uma reminiscência interpretativa do passado de uma cultura, que serve como um meio de orientar o grupo no presente. Uma teoria que explica esse procedimento fundamental e elementar de dar sentido ao passado consoante à orientação cultural no presente é um ponto de partida para a comparação intercultural. Tal teoria tematiza a memória cultural ou a consciência histórica que define o objeto de comparação em geral. Ela serve como definição categórica do campo cultural no qual a historiografia toma forma. […] [e] a historiografia aparece, na sua estrutura geral da consciência histórica ou memória cultural, como uma forma específica de uma prática cultural básica e universal da vida humana.[9]

Ao levarem a cabo uma intensa discussão sobre o caso do Holocausto, White e Ginzburg promovem uma verdadeira investigação a respeito do lugar do enredo na narrativa histórica e de que maneira se configura o princípio de realidade, que dá forma e modela o discurso histórico.

Em todos esses aspectos, a coletânea em pauta, traz mostras de um panorama rico e denso dos intensos debates que circunstanciaram a produção da história da historiografia no século passado, cujas marcas e implicações ainda vemos nos resultados apresentados pela pesquisa histórica.

Notas

1. MALERBA, op. cit., 2006, p. 8.

2. MALERBA, op. cit., 2006, p. 13.

3. MALERBA, op. cit., 2006, p. 14.

4. MALERBA, op. cit., 2006, p. 15.

5. MALERBA, op. cit., 2006, p. 27.

6. MALERBA, op. cit., 2006, p. 87.

7. MALERBA, op. cit., 2006, p. 98.

8. MALERBA, op. cit., 2006, p. 125.

9. MALERBA, op. cit., 2006, p. 118

Diogo da Silva Roiz – Doutorando em História pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), bolsista do CNPq. Mestre em História pela Universidade Estadual Paulista (UNESP). Professor da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (UEMS).


MALERBA, Jurandir. (Org.) A história escrita. Teoria e história da historiografia. São Paulo: Contexto, 2006. Resenha de: ROIZ, Diogo da Silva. Teoria da história e historiografia. Cordis – Revista Eletrônica de História Social da Cidade. São Paulo, n.6, p.367-371, jan./jun. 2011. Acessar publicação original [DR]

 

A instrução feminina em São Paulo: Subsídios para uma história até a Proclamação da República | Leda Maria P. Rodrigues

“Outro prazer (do historiador), este excitante prazer de decifrar, que não passa na verdade de um jogo de paciência.”

Georges Duby

A arte de vasculhar o passado, as memórias, as histórias fazem com que a oficina da História seja eternamente uma fonte de estudos e olhares, ciência e interpretações. O fato de sempre estar alerta às obscuridades e aos silêncios impele uma entrada investigativa em campos (inter)disciplinares como é a interface entre História e Educação, seguir os rastros empoeirados de velhos e esquecidos corpus documentae (sejam eles textuais, orais ou visuais), vozes silenciadas e, ainda assim, observar possíveis armadilhas que as intempéries e o uso de registros oficiais podem armar no processo de construção/reconstrução da História. Tudo isso indica-nos a difícil aventura percorrida neste campo do saber e tendo em vista que é produto da elaboração do conhecimento histórico/historiográfico.

Como expressou Georges Duby em seu livro A história continua: “cabe perguntar se o historiador encontra-se alguma vez mais próximo da realidade concreta, dessa verdade que anseia por atingir e que lhe escapa permanentemente, do que no momento em que tem diante de si, examinando-os atentamente, esses restos de escrita que emanam do fundo das eras, como destroços de um completo naufrágio, objetos cobertos de signos que podemos tocar, observar na lupa.”[1]

Este percurso por estudos que cruzaram as fronteiras da História e da Educação brasileiras tem um ponto em comum e um eixo fundante: a pesquisa desenvolvida por Leda Maria Rodrigues, ainda nos idos dos anos 60 e que reforçaram toda a produção posterior através de dissertações, teses, artigos e comunicações que partem de seu trabalho como referência da revisão historiográfica. Com seu doutorado intitulado A instrução feminina em São Paulo: Subsídios para uma história até a Proclamação da República, a historiadora Leda (mas também conhecida como Madre Maria Ângela) cria um marco na produção sobre a temática. Reconhecida pelas Escolas Profissionais Salesianas, de São Paulo, em 1962, conclui este estudo e faz extenso levantamento das principais inovações introduzidas no ensino particular feminino paulista durante o último quartel do século XIX, com destaque para o advento da Proclamação da República, ademais de ampla documentação para o Estado de São Paulo (elenco de colégios e dados fornecidos sobre educação feminina até 1889 é uma fonte demográfica/histórica de grande contribuição). Menciona desde ações governamentais que marcaram o período até a chegada de ordens religiosas ao Brasil e à Paulicéia. Alvo de sua atenção foram duas biografias em especial: Martha Watts e Marie Rennotte na Piracicaba dos anos 1880.

Das preceptoras às primeiras letras, das coleções de livros ao latim e às disciplinas “femininas”, das instruções “encomendadas” às primeiras ações políticas e religiosas que marcariam profundamente o projeto para um Brasil republicano. Das inúmeras instituições aos projetos profissionalizantes e técnicos; das exemplares professores/investigadoras até os mais remotos lugares de educação no interior do Estado foram alvo da tinta e da cuidadosa investigação promovida na tese.

Ao procurar narrar o cotidiano destas mulheres, formadas e educadas a partir dos princípios católicos de mãe cristã, Rodrigues marca o uso de categorias e fontes diferenciadas na construção da história regional. De um lado, há um ideal paradigmático de boa moça e do qual a mulher urbana não escapa, moldado para sua inserção funcional na nova sociedade brasileira, seguidora de normas do dever ser. Por outro, as experiências cotidianas demonstram existir uma certa tensão nesta relação, assentada nos costumes, nas maneiras originais pelas quais assimilaram ou não na sua formação os elementos prescritos, coercitivos e normatizadores, agravados pelos caminhos de um progresso acelerado decorrente do pós-guerra e que exigia a definição imediata dos novos papéis sociais para a mulher.

A tentativa de observar as transformações sócio-culturais ocorridas nos finais do século XIX e primeiras décadas do XX impõem, efetivamente, o inevitável esclarecimento de projetos ideológicos em vigor. No campo educacional, as discussões se exasperam no afã de adaptar a sociedade brasileira às constantes mudanças advindas do processo de republicanização e assentamento de novas relações no país. A trama republicana lançava os pilares de ordem e do progresso, contidos no ideário da Escola Nova, encontrando apoio nos princípios de desenvolvimento e de civilização, incentivando o surgimento de inúmeros agrupamentos em prol da formulação de políticas educacionais e médico-sanitaristas, incumbidos de traçar os rumos “inovadores” pelos quais a Nação deveria guiar-se. Confirma em sua tese que, no período anterior, justamente se caminhava na contra-mão: “na própria metrópole não havia escolas para meninas, apenas recolhimentos que visavam o ensino de afazeres domésticos e a mentalidade era considerar a instrução feminina como algo supérfluo e mesmo perigoso.”[2] Sua proposta doutoral indicou caminhos e possibilidades a outros estudos e detalhamentos. Não só como investigadora, mas sobretudo como integrante do Programa de Estudos Pós-Graduados em História da PUC-SP, Irmã Leda – como era conhecida nos corredores – abriu múltiplas referências e oportunidades de entender, compreender e analisar melhor os matizes do projeto civilizador/civilizatório para educação e formação feminina dentro da história contemporânea brasileira.[3]

Um desses esforços, para além de suas orientações e trabalhos como educadora, foi verificar as contribuições realizadas a partir de seu marco. Pode-se mencionar aqui que um número especial da “Projeto História”[4] mostrou-se uma contribuição proeminente, não só pela temática apresentada, como por introduzir debates historiográficos que circundam ambos os temas. Nesta obra, a diversidade pode ser detectada a partir das perspectivas das autoras – de áreas acadêmicas distintas –, que enriqueceram a teoria e a historiografia em torno de temas tão “marginalizados”.

Em Educação e Gênero no Brasil, Fúlvia Rosemberg ressalta que a escola brasileira enfrentou um processo de “feminização”, causados por diversos fatores e que podem estar atrelados às “modificações culturais nas relações de gênero, os processos de urbanização, modernização, terceirização da economia e as crises econômicas poderiam estar provocando um aumento de escolaridade das mulheres e modificações no padrão de organização familiar”. Ademais, podemos citar como elementos constituidores deste processo de ampliação da escolaridade feminina: “a participação no mercado de trabalho, diminuição da fecundidade e retardamento da idade de casamento; diminuição da taxa de mortalidade infantil; ampliação de sua participação na esfera política.”[5]

Fruto também de diálogos com Leda Rodrigues, Rosemberg assinala contradições nos processos educacionais e que perpassam por questões de gênero, sendo exemplificado através da divisão curricular (conteúdos humanísticos para mulheres e técnicos para homens), ocasionando maior assimetria entre os sexos e apontando a escola como um centro de manutenção e reprodução da ordem estabelecida, seja esta na família, nos meios de comunicação ou no mercado de trabalho.

Outra assertiva é a de Eliane Lopes, cruzando História da Educação e Gênero e resgatando Michel de Certeau ao afirmar que a História é a escrita do “encontro de contingências, de decisões e de práticas”. Descreve os caminhos e fronteiras do ofício do historiador – desde o manuseio das fontes, passando pelo Scandere/Découper (decomposição/divisão) dos fatos históricos, pressupondo arte da inquirição e construção de categorias analíticas. “Categorizar, atrevo-me a uma definição, é a tarefa de organizar o material coletado, a partir de perguntas, para dar inteligibilidade ao problema posto. […] servem a problemas e a pesquisadores específicos, em realidades e tempos sociais determinados.”[6]

Talvez esta tenha, realmente, sido uma das maiores contribuições do trabalho original de Rodrigues e referência para as produções seguintes: a formulação, o uso de categorias de análise que possibilitem reconstituir culturas, memórias e histórias múltiplas. Concomitantemente, a tese envereda e articula a questão da história e educação feminina no Brasil, que será nas décadas seguintes alvo de inúmeros projetos e pesquisas. Apesar de uma ênfase na história das mulheres, sua tese ainda não se aproximava das contribuições sobre a categoria gênero.

Guacira L. Louro, em Uma leitura da História da Educação sob a perspectiva do gênero, demonstra séria preocupação nas questões concernentes ao gênero e a História da Educação, tendo como objetivo vislumbrar a abordagem histórica da educação sob tal perspectiva e com base teórica em Joan Scott e Michelle Perrot.

Após a introdução ao tema, Louro caracteriza a História da Educação: esteve sob o domínio de 1º) um paradigma experimental-positivista e, posteriormente, 2º) a articulação da educação com o todo social. Justamente neste ponto de transição e discussão epistemológica e teórica, a tese de Rodrigues marca seu tempo: ênfase dada aos estudos de instituições educacionais masculinas ou femininas, introduzindo uma abordagem embasada na categoria gênero, ampliando uso de fontes possíveis de investigação, além de contribuir para a elaboração de visões históricas. Para além do descritivo e cronológico, seguindo essa argumentação, a tese serviria como uma escrita comprometida e bastante detalhada de documentação sobre História e Educação feminina.

“Só podemos avançar em nossa leitura da história (e da história da educação) sob a perspectiva do gênero, na medida em que efetivamente aceitarmos que essa categoria é, ao mesmo tempo, social (portanto histórica) e biológica.”[7]

Outros foram continuidades e podem ser destacados: dissertação de Maria Cândida dos Reis Delgado sobre o período posterior ao estudado por Leda Rodrigues e avançando nas primeiras décadas da República. Também outros recortes e abordagens, tais como a escolarização profissional feminina, buscando “a relação histórica entre o dentro e o fora.”[8]

Outra questão revelada na leitura da tese é a relação Igreja e Educação. Ao dedicar um estudo sobre os libertários, existindo forças assimétricas na realidade feminina: “de um lado a Igreja, a força conservadora que coloca a mulher na secular ignorância, impedindo o seu acesso à educação e à ciência, pontuando o universo feminino de superstições, pregando a resignação e conformação. De outro lado está a educação, capaz de despertar a sua consciência crítica, apresentando-lhes um universo científico e racional, que a leva ao questionamento, sendo uma força de transformação de sua condição.”[9]

Uma resenha da tese e dos caminhos abertos por Irmã Leda são sinônimos. Seu doutorado é uma pesquisa original, inédita, útil e válida [10] e a revelação de suas potencialidades estão não só restritas ao número de citações, comentários e referências, mas aos impactos que tiveram e continuam a ter, mesmo depois de quase cinqüenta anos de distância temporal. ANPUH, ANPED, Programas de pós-graduação e graduação – especialmente nas áreas de História e Educação – continuam a mencionar a escrita de Leda Rodrigues. Rigor, compromisso, escrita criteriosa foram componentes de seu texto e de sua vida como educadora. Seu reconhecimento vem pelo acesso, disponibilidade, impacto, mas, sobretudo, por criar e potencializar uma área de interconexão nas Humanidades que resultou em diversas linguagens, pesquisas e continuidades.

Notas

1. DUBY, Georges. A vida continua. Rio de Janeiro, Zahar/UFRJ, 1994, p. 17.

2. RODRIGUES, Leda Maria P. A instrução feminina em São Paulo: Subsídios para uma história até a proclamação da República. São Paulo, 1960, p. 18. (Tese. PUC/FFCL “Sedes Sapientiae”.

3. CAVALCANTI, Vanessa R. S. Vestígios do Tempo: Memórias de mulheres católicas (1929-1942). 1995. Dissertação (Mestrado em História) – Programa de Estudos Pós-Graduados em História, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), São Paulo, 1995.

4. ROSEMBERG, Fúlvia et al. Projeto História: Mulher & Educação, São Paulo, PUC-SP, n. 11, 1994, p. 9.

5. ROSEMBERG, op. cit., 1994, p. 9.

6. LOPES, 1994, p. 21. In: ROSEMBERG, op. cit., 1994.

7. LOPES, op. cit., 1994, p. 40.

8. OLIVEIRA, 1994, p. 58. In: ROSEMBERG, op. cit., 1994.

9. PRACCHIA, 1994, p. 76. In: ROSEMBERG, op. cit., 1994.

10. ECO, Umberto. Como se faz uma tese. São Paulo: Perspectiva, 1997.

Referências

CAVALCANTI, Vanessa R.S. Vestígios do Tempo: Memórias de mulheres católicas (1929- 1942). 1995. Dissertação (Mestrado em História) – Programa de Estudos Pós-Graduados em História, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), São Paulo, 1995.

DUBY, Georges. A vida continua. Rio de Janeiro, Zahar/UFRJ, 1994.

ECO, Umberto. Como se faz uma tese. São Paulo: Perspectiva, 1997.

RODRIGUES, Leda Maria P. A instrução feminina em São Paulo: Subsídios para uma história até a Proclamação da República. São Paulo, 1960. (Tese. PUC/FFCL “Sedes Sapientiae”).

ROSEMBERG, Fúlvia et al. Projeto História: Mulher & Educação, São Paulo, PUC-SP, n. 11, 1994.

Vanessa Ribeiro Simon Cavalcanti – Pós- doutora em Humanidades pela Universidade de Salamanca, Espanha (CAPES, 2011 e CNPq, 2008). Doutora em História – Universidad de Leon (2003). Mestrado em História Social pela PUC-SP. Professora e pesquisadora da Universidade Católica do Salvador no Doutorado e Mestrado em Família na Sociedade Contemporânea. Integrante do Núcleo de pesquisa e estudos sobre juventudes, identidades, cidadania e cultura (NPEJI/UCSAL) e do Núcleo de Estudos de História Social da Cidade – NEHSC – PUC-SP.


RODRIGUES, Leda Maria P. A instrução feminina em São Paulo: Subsídios para uma história até a Proclamação da República. São Paulo, 1960. Tese. PUC/FFCL “Sedes Sapientiae”. Resenha de: CAVALCANTI, Vanessa Ribeiro Simon. Conexões históricas para além de uma geografia paulista: educação, gênero e instituições. Cordis – Revista Eletrônica de História Social da Cidade. São Paulo, n.5, 2010. Acessar publicação original [DR]

Da União à Fundação. A História da Panificação em São Paulo | Cristina Nilmara Perissini

A presente resenha se faz pertinente porque através dela coloco algumas preocupações referentes às normas da ABNT (Associação Brasileira de Normas Técnicas), citações de fontes e revisão textual. Questões que ficaram evidentes na obra “A História da Panificação em São Paulo”, da autora Nilmara Cristina Perissini.

Com o livro em mãos, tive o primeiro contato com o resumo do currículo da autora, que é formada em História pela UNORP (Centro Universitário do Norte Paulista), e também autora dos seguintes livros: “Do Trigo ao Pão Sem Complicação”, lançado em 2003, e “Palestra Esporte e Clube. Histórias e Memórias”, lançado em 2000. É também responsável pelo Memorial da Panificação de São Paulo desde 1995. Além disso, vem de uma grande família de padeiros. A referida obra eleita para resenha possui dez capítulos e cento e setenta páginas, onde são narrados os principais acontecimentos que envolveram um dos mais antigos alimentos: o pão.

As padarias foram e são ao mesmo tempo um misto de comércio e indústria, e enfrentaram durante as décadas de 10 e 20 a concorrência de outros comércios, como os “quiósques”, que se dispunham a vender pão ao meio de moscas, bebidas alcoólicas, café, leite, cigarros de palha, fumo de corda, biscoitos, balas, jornais, bilhetes de loteria, graxas, cordas para sapateiros, entre outras mercadorias, que prejudicavam o aroma, o sabor e a higiene do pão. Estas e outras questões fizeram com que um grupo de panificadores liderados por Carlos C. Calia, Manuel R. Ladeira e Bignardi Albano fundassem a União Cooperativa dos Proprietários de Padarias de São Paulo, em 11 de fevereiro de 1915, e mais tarde, em 6 de junho de 1935, o Sindicato da Indústria de Panificação e Confeitaria.

Essas organizações foram bastante importantes, pois defendiam a classe patronal dos panificadores, assim como também organizavam as relações com os padeiros. A maioria dos panificadores era de italianos, portugueses e espanhóis. Essa pequena diversidade de nacionalidades resultava também em uma diversificação na fabricação de pães.

As padarias das famílias italianas e espanholas faziam pães que pesavam entre um a dois quilos, e eram conhecidos como filões, roscas ou panholas.

Esses pães foram chamados de caseiros, pois eram feitos com fermentação natural, o que os tornava mais saborosos no dia seguinte. A maioria dos fregueses adquiria pão para dois ou três dias, permitindo assim que a padaria pudesse ficar fechada um dia por semana, oferecendo descanso semanal aos empregados, uma polêmica discussão sobre os direitos trabalhistas de padeiros e de funcionários ligados ao ramo panaderil.

O final da década de 20 e início da década de 30 marcou a presença das padarias chamadas “francezas”, que eram comandadas por portugueses.

Essa denominação estava relacionada à fabricação de pães que utilizavam o fermento biológico, esse derivado da cana de açúcar e do amido extraído da mandioca. Esse sistema de trabalho para a produção de pães permitiu aos padeiros fabricarem várias fornadas diárias, com pão quente toda hora.

Essa forma portuguesa de trabalhar inovou o modo de administrar as padarias, que a partir de então poderiam revezar os funcionários em turnos de trabalho, e garantia o funcionamento sete dias por semana à disposição do freguês, 20 horas por dia aproximadamente.

Havia também já no início do século XX as confeitarias de luxo, que se localizavam no Largo do Rosário e na Rua XV de Novembro. Temos como exemplo desse período a Confeitaria Castelões, que ficava aberta até às dez horas da noite. Outras de destaque foram a Fasoli, a Nagel, a Brassiere e Progredior, todas localizadas na rua XV de Novembro. Algumas delas como a Fasoli tinham até apresentação de orquestra.

A presente obra traz uma imensa contribuição para a área de humanas, sobretudo aos historiadores. Foi de suma importância a leitura deste livro para a pesquisa, e continua a ser relevante e pertinente às discussões no Núcleo de Estudos da História Social da Cidade – NEHSC – da PUC-SP, pois Nilmara consegue dar um panorama sobre tão importante tema, ainda mais quando traz à tona os problemas da história da panificação em São Paulo.

Isso posto, o motivo dessa resenha é chamar a atenção para as lacunas deixadas na obra que, sem dúvida, é de suma importância.

De início, algo chamou a atenção quando a autora narra sobre a alimentação portuguesa na ocasião do “descobrimento” do Brasil. Segundo a sua narrativa, houve um choque de paladar entre a base alimentar estruturada no pão, vinho e azeite, e os novos alimentos e sabores da culinária indígena, em que o consumo de mandioca e seus derivados, como a farinha, predominaram sobre a farinha de trigo.

Nessa discussão, a autora cita uma frase de José de Anchieta no século XVI: “Já deu trigo mas não o querem… Apenas semearam alguns grãos para hóstias e bolinhos…”

A citação acima não é devidamente indicada na presente obra resenhada. De onde foi tirada? De um livro? De uma carta? De um jornal? A dúvida sobre a fonte ficou eloqüente. A referida citação encontra-se na obra de Ernani Silva Bruno (1984, p. 33).

Nilmara continua a narrar sobre essa relação do homem com o pão, a escassez do trigo e hábitos alimentares. Assim, aponta que por volta de 1616, a Câmara Municipal de São Paulo registrou em suas Atas diversos pedidos de licenças para a instalação de moinhos. Mas também a autora não indica a localização das referidas atas [1], como também não indica a fonte documental sobre o trabalho feminino das chamadas padeiras, as quais era permitido fabricarem e venderem pães.

Mais adiante, a autora afirma que nos meados do século XIX, a sociedade paulistana estava influenciada pela presença dos imigrantes italianos na fabricação do pão de trigo. Com as famílias desses imigrantes surgiram as padarias italianas, como a Padaria Santa Tereza, fundada em 1872 e instalada na rua Santa Tereza, próxima à Praça da Sé; a Padaria Ayrosa, fundada em 1888, no Largo do Paissandu; a Padaria Popular, fundada em 1890, da família Di Cunto, na Rua Visconde de Parnaíba.

Após breve citação dos logradouros panaderis, a historiadora apresenta um depoimento oral do Senhor Alfredo Di Cunto, mas também não esclarece a fonte da entrevista. Algumas indagações surgiram: quando foi realizada a entrevista? Quem o entrevistou? A entrevista foi publicada na íntegra? O que foi perguntado ao Senhor Alfredo? Qual a importância desse cidadão no processo de panificação de São Paulo? O documento se perde por não ser devidamente apresentado.

Após esses e outros dados narrativos, o livro segue com um caderno de seis fotos, respectivamente: a Padaria Franceza; a Santa Tereza; a Nova Padaria Franceza; a Confeitaria da Sé; a Padaria União Brasileira; e a carrocinha de entrega de pão. Nenhuma das fotografias possui indicativo de arquivo, se este é público ou particular, e as datas das respectivas imagens são incertas. Por exemplo: por volta de 1900; por volta de 1910; entre outras questões lacunares sobre o trabalho com iconografia.

As atividades do ramo panaderil envolviam muitas questões a serem resolvidas e muitos problemas a serem enfrentados, desde a relação com a exportação do trigo quanto ao preço e venda do pão.

Com essa discussão, a autora cita um documento que se refere à Alimentação da Classe Obreira de São Paulo. Também não se sabe se é um livro, uma Tese, uma Dissertação, ou outro tipo de fonte documental, nem tão pouco a data e o local de publicação.

São inúmeras as citações de livros, Atas, depoimentos orais, revistas, jornais, relatórios de congressos e cartazes de cursos de panificação que não apresentam indicação de fontes, e o que existe de indicação está fora dos padrões da ABNT.

A autora não apresenta Bibliografia no final do livro, como também organização dos documentos utilizados como fontes. Alguns poemas e crônicas que foram utilizados também não estão devidamente apresentados. Vale ressaltar que a documentação eleita pela autora é variada e rica.

Outra questão que está em evidência é a falta de revisão textual, onde o revisor com o olhar atento deve corrigir os erros de digitação e impressão gráfica.

Ocorre que os historiadores têm uma responsabilidade muito grande com a transmissão da História, seja pelo ensino e/ou pela pesquisa, como também com os resultados obtidos por este ofício, expressos em artigos, resenhas, Teses, Dissertações, livros, comunicações, palestras, aulas, oficinas entre outros. Deve-se pensar como contribuir com qualidade e de forma diferenciada para a produção do conhecimento.

Sem dúvida, Nilmara Cristina Perissini tem dado grandes contribuições à historiografia, e com respeito e admiração pela colega de oficio, ouso resenhar a sua obra de forma crítica, pois a mesma trouxe-me preocupação com a referida documentação apresentada de forma lacunar e, por isso, não pude saborear melhor o saber sobre a história de um dos alimentos mais antigos do mundo, o pão!

Nota

1 As referidas atas encontram-se no Arquivo Municipal Washington Luiz, localizado na cidade de São Paulo, local por mim pesquisado recentemente.

Referência

BRUNO, Ernani Silva. História e tradições da cidade de São Paulo: arraial de sertanistas (1554-1828). São Paulo: Hucitec, 1984. v. 1.

Márcia Barros Valdívia – Professora Doutora em História Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Integra o Núcleo de Estudos da História Social da cidade – NEHSC – da PUC-SP. Atualmente desenvolve projetos de pesquisa junto ao NEHSC, entre eles “Padeiros Portugueses em São Paulo”, “Padarias na Cidade de São Paulo”, “Cantinas Portuguesas e a Cidade de São Paulo” e “História da Vila Madalena.


PERISSINI, Cristina Nilmara. Da União à Fundação. A História da Panificação em São Paulo. São José do Rio Preto: Mundial, 2005. Resenha de: VALDÍVIA, Márcia Barros. Para escrever e fazer pães: a necessidade da técnica e do método. Cordis – Revista Eletrônica de História Social da Cidade. São Paulo, n.2, 2009. Acessar publicação original [DR]

 

Caminhos cruzados: migração e construção do Brasil moderno (1930-1950) | Odair da Cruz Paiva

As marcas das primeiras levas de migrantes que chegaram ao bairro já em meados da década de 1930 continuam presentes, revelando as idades da história. A decodificação dos desafios do presente nos obriga, assim, a deslindar os diferentes tempos que o constitui. Questões e problemas gerados pelas gerações passadas mantêm-se para além do momento em que foram criados e assumem formas diferenciadas a cada novo presente. O trabalho do historiador deve apontar para um olhar sobre o presente e faz emergir o passado que igualmente o constitui.

Odair da Cruz Paiva (p. 279)

“Caminhos cruzados” já seria um título bastante oportuno para se atribuir a um livro que nasce de uma minuciosa pesquisa que tem como principal objeto de estudo o tema migração. Mas, ao se aprofundar na obra percebemos a cada momento que a expressão é muito mais significativa, vai além desse primeiro encontro. Ainda no prefácio, a Profa. Dra. Zilda Márcia Grícoli nos expõe que seu orientando, como pesquisador, consegue com sucesso transpor para a vida acadêmica seus próprios anseios, seus incômodos pessoais, gerados ainda no seio familiar e instigado principalmente pelas histórias contadas por sua mãe (migrante e nordestina). Por outro lado, continua a professora, esse envolvimento com o tema não o impede de priorizar o rigor metodológico, muito pelo contrário. E tal contexto é facilmente identificado ao nos defrontarmos com as 306 páginas da obra de Odair da Cruz Paiva, que nascem de uma pesquisa para obtenção do título de doutor em História Social pela USP.

Desse modo, torna-se bastante apropriada a leitura da obra em diversos aspectos, mas principalmente para percebemos como o autor, graduado pela PUC-SP, demonstra o quanto pode ser rico o ofício do historiador. Uma riqueza que está em conseguir dar conta tanto de aspectos gerais da sociedade, e, ao mesmo tempo, tornar possível a busca de respostas para questões que passam por um campo mais específico, porque não dizer individual. No caso de Paiva, como filho de migrantes nordestinos, questionamentos gerados de acordo com as contradições vivenciadas em sua própria história de vida foram fatores que nitidamente o impulsionaram para a construção desta bela obra.

Assim, fica evidenciado o importante papel do pesquisador, já que observamos a presença de um termo que não pode estar ausente: a experiência. A memória de Paiva entrecortada por memórias de outros, de migrantes antes de tudo, lhe indicavam que a migração nordestina para São Paulo precisaria ser melhor explicada. Pensar o porquê do deslocamento, o desenraizamento, os estranhamentos gerados, vem precedido de o porquê e como procurar. Dessa forma, através de experiências pessoais e da experiência acadêmica, o autor trilha um caminho em que irá cruzar uma diversidade muito grande de fontes. Em conjunto com memórias de vida – inclusive a sua própria – documentos dos mais variados tipos foram somados, alguns ainda inéditos, e mostraram-se valiosos do ponto de vista do historiador que enxerga além das aparências, que busca nas fontes oficiais ou não algo que pode ser encontrado, mas que aos olhos dos desatentos pode permanecer oculto.

O autor, em sua pesquisa, se deteve em muitos documentos produzidos pelo poder público entre os anos de 1930 e 1950. Em sua maioria tratam de dados estatísticos a respeito da demografia e economia de municípios do interior e da capital do estado de São Paulo. Documentos produzidos pela Secretaria da Agricultura, da Indústria e do Comércio que incluíam, ainda, números registrados pela Hospedaria dos Imigrantes. A análise realizada através de uma exaustiva pesquisa permitiu que se originassem muitas indagações e reflexões que culminaram com a construção de uma hipótese fundamental para o estudo da migração nordestina em São Paulo. Assim, Paiva formula a tese de que esse fluxo migratório tinha como característica principal em seu primeiro momento, já nas décadas iniciais do século XX, um sentido rural-rural estimulado por iniciativas públicas associadas aos interesses do capital agro-exportador. E, num segundo momento, teria se transformado em uma migração rural-rural-urbana, articulada por interesses da acumulação do capital, que havia se direcionado, por sua vez, para as atividades industriais.

Nesse sentido, Paiva busca entre as conseqüências da Primeira Guerra Mundial a origem de tal contexto. O conflito teria trazido um decréscimo significativo de braços produtivos para a própria Europa, por conseguinte, e de acordo com as estatísticas buscadas por Paiva, o número de trabalhadores estrangeiros que entravam no Brasil diminuía significativamente, já que em sua esmagadora maioria vinham das regiões mais afetadas pela guerra. Os imigrantes europeus, portanto, já não eram mais a melhor alternativa. A opção agora se direcionava para a valorização do elemento nacional, mais especificamente, do nordestino. Ao mesmo tempo, a Guerra e, principalmente a Crise de 1929, provocaram transformações no padrão de acumulação do capital, já que a cafeicultura apresentava sérios problemas e, conseqüentemente, o setor urbano-industrial recebia um grande impulso em São Paulo. Como o planejamento da elite paulista, em conjunto com o governo Vargas, já envolvia o deslocamento de grandes contingentes de mão-de-obra para o café, isto é, para o campo no Oeste Paulista e outras regiões (principalmente o Paraná), a necessidade aumentava na medida em que a industrialização se desenvolvia e assim surge a chamada “política de subsídios migratórios”. Uma política que consistirá basicamente em captar e encaminhar mão-de-obra em larga escala do nordeste para o interior de São Paulo, primeiro para a cafeicultura, depois para a cotonicultura e para as indústrias, estas sim localizadas na capital paulista.

Todo esse processo, vale lembrar, como diz Paiva, tem outro importante elemento facilitador. A “política de subsídios” foi beneficiada pela excelente malha ferroviária existente, que pôde transportar um enorme contingente de trabalhadores de forma simples e ágil por diferentes regiões, desde o norte de Minas Gerais, até a capital e o interior de São Paulo e arredores. Em outras palavras, café e indústria, elite agrária e urbana, tiveram interesses intrínsecos e a ferrovia foi um instrumento poderoso nas mãos dessa oligarquia paulista.

Nesse sentido, é importante dizer que mesmo a noção de inferioridade numérica da migração nordestina para São Paulo em relação à migração intra-regional nas décadas de 1930 e 1940 é bastante contestável. O autor, valendo-se das fontes ainda inéditas na utilização dessa temática, nos mostra que os estudos dos fluxos migratórios do interior para a capital de São Paulo não consideraram que muitos dos migrantes eram antigos nordestinos que haviam sido arregimentados em sua terra natal para servirem de mão-de-obra nas lavouras de café e só num segundo momento se dirigiram para a indústria. Logo, a migração rural-rural-urabana não foi computada pelas estatísticas e muitos nordestinos engrossaram indevidamente os números das migrações internas do estado de São Paulo.

Estruturado em três capítulos, o livro, já em sua primeira parte, nos instiga a refletir sobre o quanto sertão e cidade se confundem. Como, de acordo com suas próprias necessidades, os migrantes desenraizados “reeditam em São Paulo, aspectos de sua cultura e formas de sobrevivência de suas regiões de origem” (p. 41). Assim, o autor nos conduz à periferia de São Paulo, conceituando-a, caracterizando-a e exemplificando-a, principalmente a partir do caso de um bairro em específico: São Miguel Paulista. Ao realizar uma rica narrativa historiográfica, principalmente a partir da chegada do grande contingente nordestino quando da instalação da empresa Nitro Química em 1935, nesse distante lugar da cidade, Paiva faz com que seus leitores possam ter uma base concreta do quanto foi significativa a presença do elemento nordestino na constituição do que hoje é uma das maiores metrópoles do mundo. Lançando mão de outros estudos realizados e das memórias coletadas por outros pesquisadores, o autor nos traz a imagem de um migrante nordestino que se faz sujeito da história da cidade (construindo a periferia), da história do bairro (da “reedição” de muitos elementos de sua cultura de origem), da história da Nitro Química (do operário que tem consciência de sua classe e que pôde por vários momentos se mobilizar por melhores condições de trabalho).

No segundo capítulo, temos contato diretamente com o processo que permitiu ao autor chegar a sua tese principal. Paulatinamente, vai sendo desvelado todo o sistema de captação, triagem e encaminhamento da mão-de-obra migrante nordestina para São Paulo. O texto afirma que era uma reedição de mecanismos antigos que, naquele momento, porém, tinha um direcionamento diferente que se voltava para a valorização do elemento nacional. Ou seja, poder público e iniciativa privada participavam conjuntamente de um organismo que minuciosamente pensava qual trabalhador se deveria buscar e que estava atento em articular com as elites do próprio nordeste (já que estudos minuciosos sobre o perfil da população e da economia de vários municípios nordestinos foram encontrados por Paiva). Além disso, no interior desse sistema se verifica a entrada de outras entidades privadas que percebem nesse meio um excelente “negócio” financiado pelo Estado e que, por fim, demonstra que justamente por isso vai arregimentar mais braços do que as lavouras paulistas necessitavam. Por conseqüência, através de depoimentos e documentos da própria Secretaria, o historiador se depara com uma importante questão que lhe dará mais subsídios para sua tese: a questão da mobilidade. Segundo as palavras do próprio autor:

A questão da mobilidade da mão-de-obra migrante inserida no campo vem reforçar nosso argumento sobre a dinâmica do processo migratório que, em nosso ponto de vista, tinha dois aspectos inter-relacionados: num primeiro momento ele parte de uma dinâmica rural-rural e, em seguida, na saturação ou na inviabilidade da continuidade no campo, esses trabalhadores migraram para a cidade. (p. 169).

Desse modo, é aberto o espaço para a terceira e última parte do trabalho, que possui uma denominação bastante interessante e que está em plena conformidade com exposto acima: “A migração em São Paulo: modernização sem mudança”. Como é possível já antecipar, aqui o autor nos mostra que não ocorre nenhuma transformação na sociedade, apenas mudanças pontuais: investimentos transferidos do café para o algodão e para a indústria e mão-de-obra não mais imigrante, agora migrante. O conservadorismo dos grupos dominantes continua predominando. Sendo assim, a “política de subsídios migratórios” foi uma reedição da política de imigração, porém as velhas estruturas de dominação agora investem sobre um novo projeto de nação, que traz consigo a valorização do trabalhador nacional por um lado e, por outro, vem acompanhada de uma construção negativa do nordeste, que, no limite, contentará as oligarquias tradicionais. No que se refere às elites do nordeste do país, neste caso, caracterizar essa região como a imagem do atraso, resultado de uma geografia que simplesmente lhe coloca como produto da seca e que não lhe permite crescimento, facilitou a captação de recursos do Estado por parte desses que detém o poder local.

Já com relação às elites do Centro-Sul, que enfrentavam resistências à migração nordestina por parte de sua população, principalmente por meio da imprensa – nutridos por um sentimento eurocêntrico –, a idéia negativa do nordeste vai dar argumentos para uma espécie de “dever” que São Paulo teria para como os seus, neste caso, considerados compatriotas nordestinos. São Paulo sendo a “locomotiva do Brasil” – uma idéia que também passa a ser difundida nessa mesma época – teria os recursos e o saber técnico necessários para resolver o problema da região e, além disso, “educar”, melhor dizendo, “civilizar” os oriundos de outro ponto da nação que por uma questão “natural” não tinha condições de se desenvolver: um “esforço eugênico” (p. 206). Nesse caso, a obra nos traz mais um dado interessante. A Hospedaria dos Imigrantes, de acordo com relatos de ex-funcionários analisados por Paiva, era um local em que:

[…] buscava-se uma assepsia do trabalhador rural, informada por uma lógica urbana, […] regras de segurança e higiene ou procedimentos como o registro da matrícula e do encaminhamento eram impostos e, por vezes, transgredidos pelos trabalhadores; estas transgressões foram avaliadas como falta de higiene, falta de cultura ou pobreza [grifos do autor] (p. 212).

O livro de Odair da Cruz Paiva vem desse modo ao encontro do debate sobre as correntes migratórias internas, mas como podemos observar vai além. Ele vem acompanhado do debate inevitável sobre a questão das identidades e no caso específico a questão do nordestino em São Paulo. Bastante necessário se faz que essa discussão continue ganhando espaço em todos os níveis da sociedade, inclusive do ponto de vista acadêmico, já que na “São Paulo imigrante” o nordeste migrante foi por muito tempo silenciado.

Luciano Deppa Banchetti – mestrando no Programa de Estudos Pós-Graduados em História da PUCSP. Bolsista CNPq.


PAIVA, Odair da Cruz. Caminhos cruzados: migração e construção do Brasil moderno (1930-1950). Bauru: EDUSC, 2004. Resenha de: BANCHETTI, Luciano Deppa. Nordestinos em São Paulo: o deslindar de uma trajetória. Cordis – Revista Eletrônica de História Social da Cidade. São Paulo, n.2, 2009. Acessar publicação original [DR]

Cidade das Águas: Usos de Rios, Córregos, Bicas e Chafarizes em São Paulo (1822-1901) | Denize Bernuzzi de Sant’Ana

Tema original, pouco apresentado na Historiografia contemporânea brasileira, onde pelos caminhos próprios de um estudo crítico, a competente e jovem historiadora Denise Bernuzzi de Sant´Anna nos apresenta este ousado e sugestivo trabalho, resultado de uma criteriosa e brilhante pesquisa, que foi objeto da sua Livre Docênci, defendida em Dezembro de 2004, no Departamento de História da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Obteve para tanto financiamento do CNPq, além de bolsas concedidas a alunos de Iniciação Científica e Aperfeiçoamento Técnico, sendo uma parte das investigações sobre higienismo realizada durante o curso de Pós-Doutorado na École de Hautes Études en Sciences Sociales em Paris, Financiado pela CAPES.

Agora, esta pesquisa é transformada em livro pela Editora SENAC, para alegria de seus leitores/alunos, e como uma substanciosa contribuição para aqueles estudiosos da temática Cidade, como é o caso dos integrantes do Núcleo de Estudos de História Social da Cidade – NEHSC – do Departamento e do Programa de Estudos Pós-Graduados em História da referida, acima citada Universidade, e por nós coordenado, além de outros interessados no tema.

Desde a primeira década do Século XIX, os habitantes da feia e provinciana São Paulo utilizavam-se de rios, bicas, chafarizes, córregos, tanques e regatos para suas necessidades básicas, até os inícios dos primeiros anos da República, quando foram construídas as usinas no rio Tietê. Com essa baliza cronológica, que surgiu inspirada no momento da Independência do Brasil realizada por Dom Pedro, o príncipe regente, às margens do Riacho do Ipiranga (1822), até o estabelecimento da Hidrelétrica de Parnaíba (1901), no Rio Tietê, variados reflexos sobre esse imenso “continente aquático” fazem das páginas deste livro uma história muita bem narrada e interpretada do abastecimento ou não de água na cidade, que hoje é uma megalópole.

Enriquecidas reflexões são trazidas pela autora sobre usos, costumes e abusos sobre a água, suas funções, seus hábitos de higiene do corpo, da casa, das ruas e das calçadas, quando ainda não havia a tecnologia dos séculos que se seguiram. Personagens desfilam, e o olhar atento da pesquisadora não os perde de vista, embora alguns não sejam conhecidos na atual conjuntura. E, se o foram, jazem esquecidos pela maioria da população, que sequer imagina que esta cidade tinha o dom de ter um rico mapa geográfico de águas. Até o Estado a que pertence é atravessado por um dos importantes rios paulistas que, nascendo em Salesópolis, interior do Estado de São Paulo, vai despejar suas águas no rio Paraná, e não no Oceano Atlântico, como a maioria dos outros rios, que despejam suas águas no mar. Uma premonição da importância do deslocamento de fronteiras paulistas, pela interiorização do homem, transformando-as em locais de sociabilidade. A cidade de são Paulo tinha um imenso volume de águas, e uma rica cultura gerada pela presença delas no espaço público.

A historiadora transporta o seu leitor para períodos difíceis da vida da cidade, pois apesar dessa imensa turbulência aquática, houve momentos em que o racionamento da água gerado por períodos de seca, ou problemas de saúde pública, gerados por imensos temporais que alagavam e castigavam a pobre urbe, transformavam a pacata cidade em um caos social, fato que até hoje ainda ocorre.

As águas da cidade contribuíram para as mudanças dos hábitos higiênicos e da cultura do cidadão, pois vão trazer novas crenças, curiosidades no cotidiano, e preocupações de médicos em relação a doenças, e de engenheiros que tentam “dobrar” a natureza.

Muito rica e interessante é a narrativa construída pela autora, que leva de forma envolvente o leitor a refletir junto com ela as mazelas relativas ao abastecimento urbano da água, e os desafios políticos para resolvê-lo. Do uso dos banhos nas bacias domésticas às sofisticadas casas de banho que surgiram com os primeiros restaurantes no decurso do Século XIX (sobretudo, no período após a criação da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco), até às pescarias onde pululavam peixes os mais variados, a atenta historiadora documenta as agravantes cenas do cotidiano urbano relativo às águas, à eletricidade e ao seu consumo, além de captar o comportamento social dos moradores na cidade de São Paulo, como as noções de higiene, as novas condições de vida, oriundas de um progresso quase que “homeopático”. Diferente do olhar do paulistano de hoje, cujo comportamento social rotineiro não é sustentado pelos cursos fluviais. Difícil entender que esta “terra da garoa” de ontem, burgo de estudantes, foi durante décadas “um lugar com muitos veios de água, apoiada por uma rica cultura material, relacionada à construção de samburás, barcos, moringas de barro, fontes, pinguelas e pontes de madeira” (Sant´Anna, 2007, p. 13). Vai cuidadosamente a autora desvelando as ruas que foram portos, como a Ladeira Porto Geral, da Tabatinguera e a da Figueira, no rio Tamanduateí, hoje pavimentado. Além dos pequenos riachos que, soterrados, deram origem às ruas que hoje abrigam importantes centros comerciais, livrarias, cafés etc.

Muitas enchentes destruíram valores acumulados, mas em contrapartida, do fundo desses rios saíram materiais úteis, que edificaram esta cidade. Um exemplo desse progresso arquitetônico foi o Edifício Martinelli, durante muitos anos o mais alto de São Paulo, erguido em 1922, e finalizado em 1929, em plena crise da Bolsa de Nova York, que utilizou areia e outros materiais extraídos do rio Tietê e trazidos ao porto por barqueiros.

As águas paulistanas contribuíram para momentos fundamentais da vida dos habitantes desta cidade. Tristezas, alegrias, vidas em construção, devoções profanas e sagradas. Mas também trouxeram os miasmas que preocupavam os higienistas, que os combatiam com estudos e projetos para a saúde pública, tendo suas origens nas primeiras leis de Saúde Pública, assunto por nós já rastreado.

A Professora Doutora Denise Bernuzzi de Sant´Anna utilizou uma farta documentação, entre as quais se destacam as Atas da Câmara Municipal; queixas e reivindicações dos moradores, localizadas na Coleção dos Papéis Avulsos do Arquivo Municipal; Ofícios e Requerimentos enviados ao Governador da Província; Artigos dos jornais O Correio Paulistano e o Diário Popular; processos criminais; teses sobre Higiene e Salubridade; memorialistas e viajantes.

O livro é dividido em duas partes. Na primeira, a autora trabalha com A Visibilidade da Água, que ocupa uma deslumbrante narrativa que se estende da página 15 à página 185. Na segunda, Do Visível ao Invisível, que se inicia à página 187 e se completa de forma inteligente e eloqüente à página 296. No total, com Agradecimentos, Introdução, Bibliografia e Fontes, o livro contém 318 páginas, além de uma belíssima capa, que ostenta um Óleo sobre Tela de José Wash Rodrigues de 1922, retratando a Igreja e Pátio da Misericórdia em 1840, Acervo do Museu Paulista da USP fotografado por Hélio Nobre e José Rosael.

Esta obra, além de ser uma rica leitura para pesquisadores da área, uma excelente fonte para estudos de temas semelhantes na cidade de São Paulo, é um incentivo à leitura para jovens paulistanos que desejam conhecer a história de sua cidade, que é narrada em estilo simples, que foge ao academicismo, sem prejudicar o seu rigor científico, pois se apresenta de forma ainda profunda e inédita.

Estamos nós todos da Academia Paulistana de parabéns, por recebermos esta excelente contribuição de uma historiadora cuja carreira promissora muito ajuda a difundir a história  desta cidade de São Paulo, e a contribuir para o enriquecimento da Historiografia nacional contemporânea, onde tal temática foi pouco explorada até então.

Yvone Dias Avelino – Professora Titular do Departamento e Programa de Estudos Pós-Graduados em História da PUC-SP. Possui experiência na área de História, com ênfase em História da América, atuando principalmente nos seguintes temas: Cidade, Cultura, História, Memória e Literatura. Coordena o Núcleo de Estudos de História Social da Cidade – NEHSC – da PUC-SP, existente há mais de 15 anos.


SANT´ANNA, Denise Bernuzzi de. Cidade das Águas: Usos de Rios, Córregos, Bicas e Chafarizes em São Paulo (1822-1901). São Paulo: SENAC, 2007. Resenha de: AVELINO, Yvone Dias. Narrativas Citadinas: São Paulo das Águas. Cordis – Revista Eletrônica de História Social da Cidade. São Paulo, n.1, 2008. Acessar publicação original [DR]

 

Cordis | PUC-SP | 2008

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Cordis – Revista Eletrônica de História Social da Cidade (São Paulo, 2008-), vinculada ao Programa de Estudos Pós-Graduados em História e ao Departamento de História da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), é uma revista acadêmica semestral e temática, disponibilizada de forma gratuita pela internet, que se propõe discutir a História e sua integração com os diversos ramos do conhecimento.

O periódico publica artigos, entrevistas, traduções, resenhas e pesquisas de graduação, em particular de assuntos das Ciências Humanas e Sociais.

Sua missão é publicar escritos que problematizem questões referentes à História e à historiografia, em especial a das cidades, primando por contribuir com os campos histórico e da cultura dos sujeitos analisados e, não obstante, também da sociedade em geral.

[Periodicidade anual].

[Acesso livre].

ISSN: 2176-4174

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