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Coração Civil. A vida cultural brasileira sob o regime militar. 1964-1985. Ensaios históricos | Marcos Napolitano
Os estudos mais recentes do historiador Marcos Napolitano, professor do Departamento de História e do Programa de Pós-graduação em História da Universidade de São Paulo (USP), têm se tornado indispensáveis para aqueles que pretendem alçar voo em pesquisas sobre o processo de militarização da ditadura brasileira. Nos últimos anos, o autor vem se dedicando a um balanço histórico do regime militar no Brasil e aprofundando o debate sobre os deslocamentos de sentido das diferentes memórias produzidas e cultivadas sobre o período autoritário.[2] Tal esforço ficou evidente com o livro 1964: História do Regime Militar Brasileiro, lançado em 2014, exatamente 50 anos após o golpe de 1964.[3]
No entanto, Coração Civil vem coroar anos do trabalho que o autor vem realizando, pelo menos desde o doutorado, no campo da cultura de oposição à ditadura por meio da MPB, do cinema e do teatro. Nesse sentido, o livro retoma questões levantadas pelo próprio Napolitano na sua tese, publicada em livro em 2001,[4] e se une ao Brasilidade Revolucionária do sociólogo Marcelo Ridenti,[5] no intento de elaborar reflexões relevantes para a compreensão da resistência cultural no Brasil.
Logo de início, Napolitano busca reposicionar a cultura no campo de oposição e resistência ao regime militar brasileiro, principalmente após o AI-5, quando ela parece simplesmente ser colocada para escanteio. Assim, o autor se propõe a identificar o quanto os dilemas vividos no seio das diferentes oposições culturais traduziam as contradições e desafios da própria resistência política. Para isso, são apresentados quatro grandes grupos de atores na arena político-cultural: os liberais, os comunistas do PCB, os grupos contraculturais e a “nova esquerda”, surgida nos anos 1970. A partir da separação didática desses quatro grupos, Napolitano procura apontar convergências e divergências, que ajudem a explicar porque prevaleceu na memória social uma imagem de resistência cultural de consenso entre as mais diferentes tendências artísticas, sob uma percepção pouco aberta às clivagens da vida cultural que pulsava no coração civil das oposições ao regime.
Valendo-se das tipificações apresentadas por Roderick Kedward[6] para caracterizar as ações e movimentos de resistência, Napolitano procura entender quais valores marcaram a resistência ao regime militar brasileiro, qual o papel dos mediadores e das instituições na afirmação das resistências ao regime e quais os resultados, sobretudo no plano cultural e estético, do culto à inversão de valores defendidos pela direita militar encastelada no Estado pós1964. (p. 32)
Com esse aporte teórico, o autor procura complexificar o debate sobre as dinâmicas de apoio e resistência à ditadura, que nos últimos anos acabaram gastando muita tinta com um binarismo, que por vezes, não serve à análise histórica. Desta forma, a organização dos capítulos segue uma lógica cronológica, mas também teórica, que pretende dar conta das várias facetas da vida cultural sob a tutela autoritária, assumindo um caráter ensaístico com vistas a suscitar menos conclusões e mais reflexões.
O livro está dividido em nove capítulos: o primeiro apresenta os diferentes atores culturais e suas estratégias elaboradas ao longo do regime; o segundo detalha as ações e debates artístico-culturais da oposição, especialmente o campo teatral, formuladas entre o golpe e o AI-5; o terceiro aponta os impasses de cada grande grupo de oposição no baile das cinco artes (com destaque para o cinema, a música popular e o teatro); o quarto discute as lutas culturais entre os comunistas e os contraculturais a partir da ideia de vazio cultural que surge no início dos anos 1970; o quinto problematiza as políticas culturais de oposição assimiladas pelo Estado e o jogo de acomodações costurado pelos comunistas no contexto de abertura do regime; o sexto analisa o debate sobre as “patrulhas ideológicas” que ganhou capas e manchetes de jornais, revendo o papel do artista-intelectual e esgaçando qualquer possibilidade de aproximação entre a velha e a nova esquerda já no contexto da luta pela anistia e da “invenção de honras e futuros”;[7] o sétimo se debruça sobre as novas perspectivas culturais e políticas propostas pela “nova esquerda” sintetizada na proposta de criação do Partido dos Trabalhadores, ao final dos anos 1970; o oitavo faz um balanço dos diferentes caminhos que a cultura segue durante o processo de redemocratização e por fim, o nono dedica um precioso espaço de reflexão para as “batalhas de memória” no seio da resistência cultural.
Para a historiografia da cultura brasileira que tem se estabelecido nos últimos dez anos, talvez os três primeiros capítulos não suscitem grandes questões, embora o exame do conceito de resistência seja fundamental para o início de qualquer debate no campo das oposições ao regime militar brasileiro. Ainda assim, a análise dos diferentes níveis de consciência em torno da ideia de resistência político-cultural, desde posições ideológicas estratégicas e doutrinárias até posições táticas e conjunturais, continuam tendo o seu valor na discussão a respeito da complexidade de ações e posições assumidas pelos resistentes. As lutas culturais entre comunistas e contraculturais, analisadas no quarto capítulo, ganha ainda mais corpo com o questionamento da cultura nacional-popular pela vanguarda e pela cultura popular da “nova esquerda”, demonstrando o quanto o processo de esfacelamento do nacional-popular se confunde com a própria história da resistência cultural no Brasil.
Por outro lado, os grandes problemas se situam a partir do quinto capítulo quando o debate a respeito das tensões e negociações do regime e o campo cultural, envolve o Estado, o mercado e os produtores culturais de esquerda, juntos em nome da necessidade da defesa de uma “cultura nacional” e da valorização do “produto brasileiro” (p. 234). Nesse campo minado para o debate em que os extremos (controle e cooptação) aparecem como os atalhos muito tentadores, Napolitano, mais uma vez, opta por conferir maior complexidade a esse debate indagando por que a pretensa “hegemonia” da cultura de oposição nos segmentos sociais mais influentes (setores da burguesia e da classe média) não se traduziu numa organização social e política eficaz para “derrubar a ditadura”. (p. 235)
Questões como essa não são fáceis de serem respondidas e, nem mesmo o próprio autor busca respondê-las de forma definitiva, mas aponta caminhos interessantes para se pensar saídas para esses problemas ao analisar com mais vagar os interesses de cada grupo e os seus impasses, sem perder de vista o fato de que, apesar da especificidade das relações do regime brasileiro e a cultura de oposição, ainda se vivia sob o arbítrio e o terrorismo de Estado.
O quadro de confusão sintetizado pela polêmica das “patrulhas ideológicas” abordada no sexto capítulo, lança luzes sobre o quanto o campo cultural ainda estava associado ao campo político no contexto de abertura e de crise profunda da arte engajada e do frentismo como estratégia de oposição ao regime. Enquanto apontavam-se patrulheiros e assumiam-se patrulhados, o mercado ganhava cada vez mais força, tanto à direita quanto à esquerda. Talvez a reflexão mais instigante – e necessária – de todo o livro esteja exatamente na identificação das políticas culturais da “nova esquerda”. Muitas lacunas permanecem. Napolitano consegue traçar em linhas gerais as diferenças entre a proposta de cultura popular da “nova esquerda” e a velha estratégia de frentismo cultural da “velha esquerda” e as disputas entre os intelectuais que acabam migrando do PCB para o PT nascente. No entanto, existe a necessidade de reflexões mais aprofundadas sobre o processo de formulação da chamada cultura popular da “nova esquerda”, que não se inicia nos anos 1970, mas já corre nas margens do cotidiano antes mesmo do golpe de 1964.
Por fim, o debate sobre a memória da resistência cultural ainda muito impregnado de certa hegemonia aliancista, aglutinando liberais e comunistas sob uma mesma resistência democrática, continua a suscitar reflexões sobre a real existência de uma hegemonia cultural de esquerda, bem como os seus limites e seus legados. Se não responde essas questões diretamente, Marcos Napolitano oferece um importante ponto de partida para quem deseja entrar no campo de batalha das memórias de resistência cultural, a partir da desmistificação de algumas percepções cristalizadas na memória social do período.
Napolitano questiona a ideia de que a arte engajada tinha uma hegemonia limitada a pequenos grupos de consumo, restrita a classe média brasileira, historicamente conservadora. O autor não entende que a dimensão quantitativa seja suficiente para pensar o alcance da cultura de esquerda e rejeita certa concepção que parece confundir maioria com hegemonia, sem atentar para o fato de que as bases sociais radicalmente democráticas não permitiram que a revolução cantada nas músicas ganhasse as ruas.
O autor também rejeita a ideia de que a massificação da cultura, via mercado, seja responsável por um suposto esvaziamento da crítica ao regime e que os artistas de esquerda possam a ser enquadrados em meros produtos de entretenimento a partir dos anos 1970. Napolitano prefere apostar nas complexas interações entre a produção cultural de esquerda, mercado e militância para evitar que se esqueça da dinâmica dos militares em busca de uma classe média crítica ao regime e o maniqueísmo que resiste em considerar a televisão, por exemplo, como espaço exclusivo de alienação e transmissão de lixo cultural.
Napolitano também relativiza a ideia de que o regime autoritário brasileiro tenha sido capaz de interromper os batimentos do coração civil da vida cultural. Em que pese a força do tripé repressivo, o Estado militarizado também buscou desenvolver uma política cultural proativa, aproximando-se e afastando-se dos artistas de esquerda. O autor, principalmente no quinto capítulo, demonstra como o mecenato oficial e a repressão conviveram de maneira tensa e contraditória, mobilizando diferentes grupos e interesses dos militares, dos empresários liberais e dos artistas de esquerda.
Enfim, Napolitano procura reconciliar uma dicotomia, há muito difundida e adotada ainda nos debates historiográficos, que opõe o nacional-popular e a vanguarda cosmopolita como inimigos eternos. O autor consegue demarcar de forma brilhante um campo comum de debate entre as duas correntes, para além das visões opostas sobre o papel do intelectual e da arte. Napolitano conclama os historiadores a adentrarem por um portal de mistérios ainda desconhecido das relações entre o nacional-popular e a vanguarda brasileira, deixando de lado as acusações mútuas e as simplificações elaboradas por ambas as correntes, há, sem dúvida, um tesouro perdido a ser encontrado.
Porém, ainda há mais um tesouro por encontrar. A memória da nova esquerda ainda carece de um mapa mais detalhado que aponte para a origem das suas derrotas. Talvez o processo que levou ao impeachment da presidenta Dilma Rousseff em 2016 sirva como um bom estímulo ao evidenciar as consequências das estratégias de acomodação adotadas pelos governos petistas e a combinação explosiva entre uma crise econômica, a ascensão rápida e marcante das direitas, a campanha anticorrupção da Operação Lava-jato, o declínio do projeto petista/lulista, abandonado pelas elites econômicas que o haviam apoiado, além da manipulação das informações orquestrada pela grande mídia.[8] Por ora, devemos celebrar a importância do trabalho de Marcos Napolitano ao pavimentar caminhos já percorridos até aqui e apontar belíssimos horizontes de pesquisa. Coração Civil preenche com maestria a necessidade de um grande trabalho sobre a resistência cultural ao regime militar brasileiro. Cabe aos próximos estudos, trabalhar para que esse coração continue batendo.
Notas
2. Cf. REIS, Daniel Aarão. Ditadura militar, esquerdas e sociedade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2005.
3. NAPOLITANO, Marcos. 1964: História do Regime Militar Brasileiro. 1. ed. São Paulo: Contexto, 2014.
4. NAPOLITANO, Marcos. “Seguindo a canção”: engajamento político e indústria cultural (1959-1969). São Paulo: Annablume/Fapesp. 2001.
5. RIDENTI, Marcelo. Brasilidade Revolucionária. São Paulo: Editora Unesp, 2010.
6. KEDWARD, Roderik. “La resistance, l’histoire et l’anthropologie: quelques domaines de la theorie”. In: GUILLON, Jean Marie et LABORIE, Pierre (eds.). Memoire et Historie: La Résistance. Toulouse: Éditions Privat, 1995, pp. 109-120.
7. ROLLEMBERG, Denise. “História, memória e verdade: em busca do universo dos homens”. In: SANTOS, Cecília MacDowell; TELES, Edson Luís de Almeida; TELES, Janaína de Almeida (orgs.). Desarquivando a ditadura: memória e justiça no Brasil. Vol. 2. São Paulo: Hucitec, 2009. p. 7.
8. Cf. MOTTA, Rodrigo Patto Sá. O lulismo e os governos do PT: ascensão e queda. In: FERREIRA, Jorge & DELGADO, Lucília A.N.. (Org.). O Brasil Republicano 5. 1 ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2018, v., p. 415-445.
Mathews Nunes Mathias1 – Graduando em Licenciatura em História na Universidade Federal Fluminense (UFF). E-mail: nunes.mathias@outlook.com
NAPOLITANO, Marcos. Coração Civil. A vida cultural brasileira sob o regime militar. 1964-1985. Ensaios históricos. São Paulo: Intermeios, 2017. Resenha de: MATHIAS, Mathews Nunes. Resistência cultural sob arbítrio: a busca por um tesouro perdido? Cantareira. Niterói, n.30, p.145-149, jan./jun., 2019. Acessar publicação original [DR]