“Manter sadia a criança sã”: as políticas públicas de saúde materno-infantil no Piauí de 1930 a 1945b| Joseanne Zingleara Soares Marinho

Joseanne Zingleara Soares Marinho é uma das mais notáveis historiadoras da historiografia piauiense recente. Realiza pesquisas em História da Saúde, das Doenças e das Ciências, Políticas Públicas, Gênero, História das Mulheres, Ensino de História e História da Educação. É professora Adjunta do Departamento de História da Universidade Estadual do Piauí (UESPI) – Campus Poeta Torquato Neto, em Teresina – Piauí. É Professora Permanente do Mestrado Profissional em Ensino de História (ProfHistória) UESPI/UFRJ. É uma das líderes do Grupo de Pesquisa em História das Ciências e da Saúde no Piauí (SANA), vinculado à Universidade Estadual do Piauí – UESPI e à Universidade Federal do Piauí – UFPI, cujas ações têm contribuído para o desenvolvimento de pesquisas e para a sistematização da História da Saúde e das Doenças no Piauí. Dentre uma vasta produção de pesquisas da autora, uma obra que ganha muita projeção é “Manter sadia a criança sã”: as políticas públicas de saúde materno-infantil no Piauí de 1930 a 1945. O livro foi publicado no ano de 2018 pela Paco Editorial, trata-se do resultado da sua tese de Doutorado, realizado no Programa de Pós-Graduação em História, da Universidade Federal do Paraná – UFPR. A relevância da obra e a sua importância podem ser notadas pela produção do Prefácio, da Apresentação, da orelha do livro e da contracapa, todos produzidos por historiadores renomados como Ana Paula Vosne Martins, Maria Martha de Luna Freire, Pedro Pio Fontineles Filho e Antônia Valtéria Melo Alvarenga. Leia Mais

O Poder em Tempos de Peste (Portugal – séculos XIV/XVI) | Mário Jorge Motta Bastos

O professor Mário Jorge da Motta Bastos tem atuado no estudo da doença (a peste1), tema que o move desde sua graduação no ano de 1989 até o termino de seu doutorado e também hoje como professor associado II na Universidade Federal Fluminense onde atua desde 1992. Em seus estudos juntamente com seus alunos nos laboratórios de pesquisa que integra, procurou desenvolver conhecimentos sobre a sociedade do medievo, principalmente nas sociedades ibéricas, acerca dos impactos das levas epidêmicas tiveram sobre as populações, seu imaginário e as produções artísticas sobre o tema, e sobre a atuação do poder monárquico junto aos súditos a fim de deter as epidemias, seus efeitos danosos ao corpo social e como meio e desculpa para acelerar o processo de unificação do poder na figura do suserano. Todos estes estudos resultaram em dois livros sendo o primeiro e nosso objeto de estudo O Poder em Tempos de Peste (Portugal – séculos XIV/XVI)2 de 2009. O volume começa com o prefácio do celebre historiador marxista Ciro Flamarion Cardoso cujo autor fora aluno e que faz questão de ressaltar que apesar de focar massivamente na questão do discurso régio – construído para legitimação das ações de combate ao contágio e a sucessivas investidas de centralização do poder sob a figura real- o professor Mário não agiria à maneira dos pós-modernos que creem ser o discurso que constitui a realidade e não o contrário. Que buscaria “… estabelecer nexos.” “… entre a perspectiva cristã relativa à doença e à peste em particular…”. O prefaciador ressalta também que não se detendo somente no discurso, mas que estariam embasados em dados estatísticos e demográficos demonstrando a articulação entre o discurso e a materialidade a que ele representa. Leia Mais

O sabá do sertão: feiticeiras, demônios e jesuítas no Piauí colonial (1750-1758) | Carolina Rocha Silva

A obra, de autoria da historiadora Carolina Rocha Silva, sob o título de “O sabá do sertão: feiticeiras, demônios e jesuítas no Piauí colonial (1750-1758)” tem por eixo central confissões da prática de magia, por duas escravas, no sertão do Piauí entre os anos 1750 e 1758, ou seja, na época em que o Brasil era colônia de Portugal, a América Portuguesa. A obra foi escrita como dissertação de mestrado da autora e, posteriormente, foi transformada em livro. É dividido em quatro capítulos que tratam, principalmente, do relacionamento da religião frente à magia – e da Santa Inquisição, em diferentes âmbitos e períodos, na seguinte ordem de abordagem: mundial/europeu; do reino de Portugal; da América Portuguesa; e do Piauí colonial.

O capítulo I, Religião, magia e demonologia, aborda, em especial a dicotomia existente na Europa do fim da Idade Média e início da Idade Moderna. Período este marcado por doenças, revoltas, guerras religiosas e políticas, em que era preciso encontrar um responsável por tantas mazelas. A Igreja Católica e os governos europeus visualizaram o Diabo, figura antônima e complementar de Deus, como o grande inimigo da sociedade, capaz de alterar a ordem natural e causar danos à população, como a impotência da medicina da época, por meio de seus agentes. Os grupos divergentes da igreja, os não-católicos, seriam esses agentes do Príncipe das Trevas; e os fiéis e eclesiásticos, os representantes de Deus. A Igreja, intérprete oficial dos atos divinos, passou, entre os séculos XIV e XVII, a espalhar a ideia de que as mazelas eram castigos de Deus pelos pecados das pessoas (como as práticas pagãs por católicos batizados) e que, por isso, o Diabo havia ganhado mais força e poder para quase tudo.

A Reforma Protestante (século XVI) atacou toda a magia, tanto popular como eclesiástica (milagres por Santos e beatos, e a utilização de elementos sagrados) e apontou um novo caminho: o da autoajuda com orações a Deus e foco no trabalho humano e na descoberta de novas tecnologias. O mundo moderno se tornou o mundo encantado, onde o sobrenatural era comum, havia magos curandeiros, videntes, adivinhos, feiticeiros.

O Diabo católico inspirou teses de teólogos, juízes, filósofos, advogados e religiosos. A primeira obra de Demonologia, o Malleus Malleficarum, de 1486, abriu espaço para esta “ciência” na Europa, que foi usada como base para legislações e a teologia na caça às bruxas. O livro, que era uma verdadeira enciclopédia de bruxas, depreciou o sexo feminino e apontou-o como mais suscetível ao controle do demônio, como também o fez médicos e juristas, estes embasados em leis do direito romano. O Cristianismo, apesar de não ter originado o medo em relação às mulheres, o alimentou desde sempre – como fez com Eva, imperfeita, irracional e fraca, que introduziu o mal na terra ao comer o fruto, sendo a responsável por todas as desgraças desde então. Foram escritos, inclusive, manuais ensinando os padres a fugirem das tentações femininas.

A bruxaria, um crime inatingível/mental, impossível de ser provada era tida como deslealdade a Deus, já que as almas (propriedades de Deus) eram objeto de pactos diabólicos em troca de poderes, o que deveria ser revertido para que Ele não se vingasse da coletividade.

Os processos da Inquisição visavam a essa reversão. Os processos, seja em tribunais civis ou eclesiásticos (Estado e igreja unidos), eram escritos, secretos e arbitrários, os processados (iletrados e pobres, na maioria dos casos) não sabiam o motivo do julgamento, tampouco quem os havia denunciado. O processo era aberto especialmente quando da confissão, sendo que falta desta podia gerar penas ainda mais severas, caso o juiz considerasse o acusado uma pessoa falsa e dissimulada.

O crescimento numérico das obras de demonologia era proporcional a crença e, subsequente temor do povo, o que os impulsionava a denunciar. O conteúdo dos livros chegava ao público iletrado quando da leitura pública das sentenças condenatórias.

Além dos pactos, o mito do sabá (sabat), assembleia de feiticeiros, reuniões noturnas dos agentes do Diabo para a prática de infanticídio, canibalismo, metamorfose, orgias, blasfemação, voo das bruxas e abjuração dos sacramentos cristãos, tudo na presença de Lúcifer, também foi largamente difundido pela Europa.

Com o tempo, céticos apontaram a falta de provas e o medo da população diminuiu; as leis foram revogadas e a prática mágica deixou de ser delito. Historiadores, na tentativa de explicar o fenômeno da caça às bruxas, acreditam que tudo foi invenção da igreja; ou, como a própria autora, que foi resultado do encontro da cultura folclórica com a cultura erudita dos doutores. Independente disso, admitem que os processos inquisitoriais são importantes fontes para se entender a mentalidade da época.

O capítulo II, A “feitiçaria” em Portugal: prática e repressão, tem um título autoexplicativo. As feiticeiras lusitanas manipulavam atos e desejos, principalmente amorosos, além de executarem curas. Com a expansão ultramarina da Coroa, famílias frequentemente recorriam aos feiticeiros para encontrar parentes desaparecidos. A magia tinha regras, todo um sistema simbólico de tempo, espaço, dos próprios elementos utilizados e de números.

O sincretismo mágico-relogioso dos portugueses impediu uma forte tradição editorial centrada na bruxaria, o que não barrou o embasamento de legislações, tratados de teologia e medicina (existiam obras médicas dedicadas só à cura de doenças causadas por feitiços), manuais de confessores e afins, em literatura alheia.

Em Portugal, os poderes do Diabo eram limitados pela autoridade divina, aquele tinha apenas poderes de enganação e provocações sensoriais, que atingiam somente os pecadores; pensamentos influenciados por São Tomás de Aquino e Santo Agostinho. Havia um certo ceticismo quanto ao sabá europeu, à metamorfose. As confissões e denúncias costumavam seguir um mesmo padrão estrutural, sempre envolvendo um pacto com o Diabo.

Em 1492 os judeus, expulsos da Espanha, escolheram Portugal para viver. O rei, em 1497, emitiu um decreto régio convertendo todos os judeus e mouros e batizando-os involuntária e coletivamente, surgia, então, a figura do cristão-novo. O rei tentou protegê-los por vinte anos, porém o Tribunal do Santo Ofício fez cessar os privilégios: os cristãos-novos deveriam seguir somente a doutrina católica.

O Tribunal do Santo Ofício de Portugal concentrava suas forças nos ditos cristãos-novos (tradição antijudaica), este foi outro motivo pelo qual muitas das denúncias, inclusive as de colônias, por feitiçaria não se tornaram processos. Os processos eram caros e demorados, então os bens dos acusados por prática de magia eram confiscados para que cobrissem duas despesas na prisão.

A partir da segunda metade do século XVIII, com o Novo Regimento da Inquisição (1774) a descriminalização da bruxaria, as bruxas passaram a habitar somente a imaginação de pessoas rudes.

Além do mais, as testemunhas eram avaliadas e juramentadas. Caso fossem inimigas do acusado, a denúncia não era considerada verossímil; os réus podiam se defender, mesmo que minimamente; e a confissão espontânea poderia livrar da pena de morte, uma vez que o objetivo era o resgate das almas, e não assassinatos em série.

O capítulo III, As crenças mágico-religiosas na América Portuguesa: entre práticas e condenações, explana a história do Brasil colônia. Para os colonizadores, o demônio havia sido expulso da Europa para terras distantes, como a América. A igreja precisava enfrentá-lo com missões catequéticas, visando a cristianização e a ordenação das populações segundo padrões culturais e religiosos europeus.

As idolatrias dos índios significavam, pelo pensamento dicotômico europeu, a aliança daqueles com o Diabo, de forma que, para salvar as almas dos ameríndios, seus ídolos precisariam ser expulsos pelos missionários. O mesmo pensamento recaia sobre os escravos africanos. Ao mesmo tempo, entretanto, a natureza das terras americanas era vista como paraíso.

As culturas se adaptaram na América Portuguesa, os feiticeiros degradados do Reino e os demais portugueses, os negros trazidos da África, os ameríndios, todos compartilharam naturalmente seus elementos religiosos e acabaram contribuindo uns com os outros na criação de uma religiosidade híbrida. De sorte que, no Brasil, o Cristianismo tomou contornos ainda mais afetivos com a esfera divina. Um Deus frio e inacessível não seria útil para quem precisava sobreviver à escravidão ou ao trabalho numa terra distante e desconhecida – o mesmo passava com os Santos e a Virgem Maria, que foram amplamente cultuados desde então; existiam poucas igrejas e sacerdotes, o que, somado à interiorização da vida religiosa nas casas e fazendas, tornou a fiscalização pela igreja ainda mais difícil e favoreceu desvios e heterodoxias. A afetividade e familiaridade propiciavam maior devoção e detração dos símbolos de fé. Os feitiços na colônia foram formas sutis de resistir e compensavam a sobrevivência dos escravos, sejam africanos ou índios.

O capítulo IV, O sabá do sertão: contextos e personagens, traz, especialmente, experiências dos missionários jesuítas no sertão. Os índios do litoral, os tupis, foram de mais fácil aldeamento, dada a sua homogeneidade cultural; enquanto os tapuias, índios do sertão, constituíram verdadeiro desafio aos missionários, graças à diversidade.

No século XVII, intensificaram-se as missões desbravatórias pelos sertões em busca de índios para apresar, visto que sua mão de obra era muito requisitada no norte; e para expandir a ocupação e aumentar a produção de gado e açúcar principalmente. Neste cenário, vários jesuítas se posicionaram contra os desbravadores, protegendo os índios, que, inclusive, foram usados no combate a outros nativos no século XVIII. A Coroa não gostou da proteção dada pelos jesuítas ou do poder econômico que haviam conseguido no norte por doações de terras, escravos, engenhos, gado. Em 1760 os jesuítas foram expulsos das terras Portuguesas, presos e remetidos para Lisboa.

Um documento com confissões de duas escravas inspirou a elaboração de um artigo por Luiz Mott. Este artigo orientou o livro de Carolina Rocha Silva. As confissões são de um sabá, característico da Europa, mas com informações do sincretismo luso-afro-brasileiro, no Piauí colonial. Elas confessaram participar de reuniões noturnas com o Diabo, com direito a orgias sexuais e metamorfoses, conforme ensinadas por Mestre Cecília, esposa do anterior senhor/dono de Joana (esta era uma das escravas confitentes). Certamente o documento sofreu alterações e adições pelo padre Manuel da Silva, responsável pela oitiva das escravas e pelo envio das confissões à Inquisição de Portugal. As mulheres se mostraram arrependidas e atribuíram o acontecido à rusticidade e à falta de igrejas e sacerdotes para orientá-las no caminho de Deus. O caso foi arquivado nos cadernos do promotor.

Por fim, a autora admite que sua pretensão era permitir a reflexão acerca das formas híbridas e diversificadas de tratar o “mundo” sobrenatural no Brasil colônia, representante das tensões sociais suportadas na época.

A historiadora consegue prender o leitor até a conclusão da leitura do livro. A obra é uma verdadeira aula de história e apresenta a importância de micro-histórias para se entender o pensamento do povo em geral, pois a história, tal como é maiormente conhecida, foi contada por uma minoria letrada; e aos demais restaram apenas documentos, como as confissões e denúncias, que sequer são somente suas. Isto demonstra, sobretudo, o poder da alfabetização.

O direito evoluiu e consigo trouxe garantias, mas as pessoas, em especial as mais pobres e iletradas, seguem sendo vítimas do Estado, que agora não é ligado [formalmente] à igrejas. O livro traz a reflexão, também, sobre a formação cultural do Brasil e a desigualdade social desde que era colônia, como bem pretendia a autora.

Entre a Alta Idade Média e o início da Idade Moderna, como apontado texto, os Estados ainda eram confessionais, ou seja, declaradamente vinculados à uma religião, qual seja a cristã católica. A Justiça Eclesiástica, isto é, a justiça da igreja atuava por seus Tribunais do Santo Ofício, conhecidos como Inquisição, no combate à heresias, que iam da não crença em Lúcifer à troca da alma por poderes mágicos, passando pela blasfemação, um “delito da palavra”, comum na América Portuguesa.

Com a Reforma Protestante e o início da Idade Moderna a caça às bruxas se intensificou, pois todo e qualquer tipo de magia passou a ser condenado. Milhares de mulheres morreram e até hoje os historiadores não sabem se as tais mágicas de fato aconteceram ou se foram apenas invenções da igreja, que estava com medo de perder fiéis e, consequentemente, força e poder.

O direito à liberdade religiosa se mostrava necessário desde a época colonial, principalmente em países como o Brasil, de proporções continentais e de formação, inclusive na seara da religiosidade, híbrida. Certamente inúmeras perseguições e mortes teriam sido evitadas. Porém, o ideal da separação entre religião e Estado é mais recente. Este Estado é conseguido através da laicidade, método de ruptura entre Estado e Igreja e, mais profundamente, entre política e religião. Tal ruptura torna o Estado autônomo frente à Igreja Católica ou qualquer outra, possibilitando uma liberdade religiosa aos cidadãos, como defendido atualmente.

Carolina Soares Hissa – Doutoranda em Direitos Humanos na Universidade Federal de Goiás- UFG. Mestre em Direito Constitucional pela Universidade de Fortaleza (2012). Graduada em Direito pela Universidade de Fortaleza (2002). Professora universitária onde leciona as disciplinas de Direito Constitucional, Administrativo, Internacional Público e privado. Pesquisadora Cnpq no grupo de pesquisa Relações Econômicas, Políticas e Jurídicas na América Latina da Universidade de Fortaleza. E-mail: carolshissaacademico@gmail.com

Veronica Trindade Costa Póvoa – Graduanda em Direito na Escola Superior Associada de Goiânia – ESUP. E-mail: vevepovoa10@gmail.com


SILVA, Carolina Rocha. O sabá do sertão: feiticeiras, demônios e jesuítas no Piauí colonial (1750-1758). Jundiaí – SP: Paco Editora, 2015.Resenha de: HISSA, Carolina Soares; PÓVOA, Veronica Trindade Costa. O sabá do sertão: feiticeiras, demônios e jesuítas no Piauí colonial (1750-1758). Contraponto. Teresina, v.9, n.1, p.810-815, jan./jun. 2020. Acessar publicação original [DR]

 

O escravo na formação social do Piauí: perspectiva histórica do século XVIII | Tânya Maria Pires Brandão

Trabalho originalmente proposto como dissertação de mestrado, trata-se de um dos mais importantes estudos sobre a formação social do Piauí, tomando como cerne a questão do trabalho escravo na Capitania do Piauí.

A autora estuda a economia e a demografia escrava no Piauí durante o século XVIII. Mostrando como a atividade criatória permitiu a consolidação do regime de trabalho escravo, com perfil socioeconômico semelhante ao restante do Brasil. Ela baseou-se num rico leque de fontes documentais, como, por exemplo, inventários e correspondências. O trabalho de dissertação de mestrado da autora foi defendido na UFPE em 1984 sob orientação do Prof. Armando Souto Maior.

A notável pesquisadora pode ser tida como uma apaixonada pelos problemas da história notadamente da história do Piauí, nesse trabalho mergulha numa tentativa de desvendar a formação de uma sociedade em constituição de um Piauí distante e remoto do século XVII, a presença do escravo e a sua participação na construção desse universo, Professora e pesquisadora de longa experiência leva o leitor a refletir com rigor sobre a história do Piauí colonial.

Nos capítulos que integram a obra, a professora Tânya Brandão trava um debate claro sobre a questão do escravo na formação social do Piauí colonial. Tânya Brandão mostra que a escravidão foi uma instituição presente no sertão do Piauí até o século XIX como uma instituição perfeitamente consolidada. Portanto o trabalho escravo no Piauí desde o século XVII ao XVIII foi voltado para atividades de agricultura de subsistência, a fabricação de instrumentos, os cuidados com serviços domésticos e em essência relacionados ao manuseio com o gado.

A Autora debate, intencionalmente, sempre na mesma tecla – uma variação sobre o mesmo tema: a compreensão da construção social de um Piauí colonial e a inserção do escravo nessa sociedade.

Como credencial a Professora Doutora Tânya Maria Pires Brandão possui graduação em Licenciatura em História pela Universidade Federal do Piauí (1974), especialização em Metodologia do Ensino Superior pela Universidade Federal do Ceará (1975), mestrado em História pela Universidade Federal de Pernambuco (1984) e doutorado em História Social pela Universidade de São Paulo (1993). É Professora Adjunta da Universidade Federal de Pernambuco. Como historiadora, desenvolve pesquisas com ênfase em História do Brasil. Atuando principalmente nos seguintes temas: Oligarquia, Colônia, Piauí.

No século XVII, a colonização do Piauí tomou um novo rumo com direcionamento tomado pela política colonial portuguesa, pois o avanço na busca de vias terrestres permitiria assegurar o domínio da região e efetivar o domínio econômico da Metrópole portuguesa. Na ocasião não se apresentaram muitas opções à valorização do território piauiense.

O modelo extrativista vegetal e mineral não se consolidou, bem como se inviabilizou o cultivo da cana para fabricação do açúcar. Logo, a escolha da pecuária como atividade principal talvez tenha resultado da observação aos aspectos regionais.

Nesse ponto a perspectiva apontada por Tânya Brandão começa a desvelar a intencionalidade da proposta portuguesa para a região, pois de acordo com a mesma (1999, p.27) “A formação social do Piauí enquadrou-se em caráter escravista. Desde os primórdios da colonização do território, os pecuaristas, a exemplo de Domingos Afonso, utilizavam-se do trabalho escravo”.

Assim, de acordo com o que foi afirmado pela autora, o escravo africano também começava a fazer parte da colonização do Piauí, mesmo que a atividade econômica desenvolvida não exigisse grande concentração dos mesmos, por outro lado a opção dos fazendeiros no Piauí pelo trabalho escravo do negro deu-se ainda no início da implantação da pecuária, pois o sistema escravocrata já estava consolidado em toda zona colonial portuguesa.

Para Tânya Brandão (1995), o “emprego do escravo no criatório piauiense ocorreu desde a implantação dos primeiros currais”, cuja função destinava-se à construção e manutenção da infraestrutura das moradias, a lida no campo e o cultivo das roças.

Ainda segundo Tânya Brandão, durante o século XVIII, no Piauí se consolidou também o latifúndio, “tipo de propriedade rural pertencente a um senhor, tendo por base a pecuária e com boa parcela da área sem cultivo”. (1999, p. 54)

Ou seja, a atividade pecuarista não deixava muito espaço para o desenvolvimento de outras práticas produtivas que, no entanto, existiam em menor escala, como a própria agricultura de subsistência.

A pecuária extensiva e a produção de gêneros agrícolas foram às principais atividades econômicas desenvolvidas no Piauí, tais atividades possibilitaram a existência de várias categorias de trabalhadores, a proposta de Tânya Brandão parte do princípio de tentar compreender qual o lugar do escravo nesse emaranhado das relações sócias do Piauí colonial.

No Piauí a sociedade colonial foi marcada pela presença de elementos distintos em decorrência das funções que desempenhavam e da posição social que ocupavam.

Neste caso desde sesmeiros, passando por posseiros, arrendatários, vaqueiros, senhores, agregados e os escravos, teremos os principais elementos constituidores desta sociedade. (ARAÚJO, CABRAL, 2012).

A tendência da historiografia piauiense anterior a renovação teórico metodológica implantada nas pesquisas atuais, tendeu sempre a negar ou relativizar a participação do elemento negro escravizado na sociedade piauiense do período colonial.

Numa análise mais aprofundada a servidão negra no Piauí na perspectiva da historiadora Tânya Brandão (1999) é apresentada como secundária nas fazendas de gado. Esta característica deveu-se a vida rústica do sertão, onde os trabalhos desenvolvidos pelos negros não estavam diretamente ligados ao processo produtivo principal no caso a pecuária, mas a tarefas secundárias como fabricação de telhas, tijolos, artesanatos, trabalhos domésticos, alugueis de seus serviços pelos seus senhores, na agricultura e construção civil. (LIMA, SOARES, 2011).

Nas fazendas, o cuidado do gado nos campos e currais seria realizado, predominantemente, por vaqueiros livres. Assim, ficaria para os trabalhadores escravizados as duras e pesadas tarefas da lida nas fazendas.

Considerando a existência de uma dualidade na utilização da mão de obra e de formas de tratamentos, Tânya Brandão defende que a presença do escravo nesta região se deu com características distintas que no resto do país, sendo absorvida muito mais como uma demonstração de status social do que como força de trabalho atuante, apesar de, do ponto de vista da relação social, não fugir a regra do sistema escravista impregnado no Brasil. (LIMA, SOARES, 2011)

Apesar da referência sobre os mecanismos repressores para o controle e domínio dos escravizados, a existência de dois cativeiros no Piauí, o privado e o público, levaram a autora a apontar que os trabalhadores das fazendas públicas gozavam de maiores privilégios e regalias que nas fazendas privadas.

Nas propriedades privadas a violência, principal mecanismo de atuação do sistema escravocrata, se apresentava mais frequente, pois o senhor se mantinha presente e atento aos movimentos de seus trabalhadores. O comportamento violento dos proprietários contrasta com o vivenciado pelos escravizados públicos. (LIMA, SOARES, 2011).

Nesse meandro para Tânya Brandão (1995), o Piauí firmou-se como zona produtora de gado durante a estrutura econômica colonial, constituindo, assim, duas frentes econômicas. A primeira tinha como função ajudar os setores agrário exportador de outras regiões coloniais, fornecendo carne para consumo, a força matriz dos cavalos e bois para mover os engenhos e assegurar os transportes nas duas regiões; a segunda se relacionava à necessidade e capacidade de suprir a colônia com produtos comerciais junto à metrópole.

No entanto, a importância da economia piauiense para o sistema colonial não incidia num grande apoio para balança comercial, mas na articulação que mantinha com os demais setores produtivos da colônia.

Tomando o modelo escravista em vigor no século XVIII, outra perspectiva da sociedade Piauiense colonial era o uso da violência traço também observado por Tânya Brandão, pois segundo a mesma:

De acordo com as fontes históricas, durante os séculos XVII e XVIII, distinguiu-se a sociedade por seu aspecto violento. É evidente que a agressividade da população resultou do processo colonizador. Na primeira fase, quando se iniciou o povoamento da região, foi exigido dos conquistadores, não apenas espírito aventureiro, mas a coragem e a audácia suficientes para dominar a natureza hostil, afugentar o índio bravio, relutante e acostumar a gadaria aos novos pastos. A própria luta pela sobrevivência e garantia de terra conquistada teve caráter violento (BRANDÂO,1999:89)

A violência no cotidiano piauiense tornou-se característica na conquista do território. Tais práticas violentas voltaram-se, sobretudo ao elemento nativo e ao processo de escravização desta população que resistia ao processo de ocupação das terras e a submissão ao trabalho escravo. (LIMA, SOARES, 2011)

Mas para além da violência, podemos destacar outros elementos, na povoação piauiense, pessoas livres que procuravam atingir a condição de fazendeiro, enfim, vários sujeitos com seus traços culturais, suas tradições, que mais tarde configuraram-se em colonizador da terra dando origem à sociedade colonial piauiense, nesse esquema o escravo estava bem alocado.

No entanto, Tânya Brandão defende a ideia de diferenciação de condições de trabalho e vida entre cativeiro público e privado. Demonstra que as fazendas particulares, sobretudo as maiores, utilizavam o trabalho escravo de forma dominante apenas nas tarefas consideradas mais pesadas, como criação e manutenção da infraestrutura requerida pela pecuária, serviços domésticos e agricultura de subsistência. No manejo do gado nos campos e currais predominava o trabalho livre, “por ser mais próprio ao homem livre”. (BRANDÃO Apud, LIMA, 2002)

A autora ao fazer sua dissertação de mestrado sobre a escravidão no Piauí se debruça sobre uma tese clássica, que tem como foco principal o pastoreio, nesse ponto a dissocia o trabalho de escravo como fonte de riqueza, e o retrata como símbolo de status, tal como nos mostra na seguinte afirmação.

Isto significa a dizer que não havia uma relação direta com o interesse de acumulação de bens, mas uma relação muito mais social na posse do escravo, não apenas no alivio de trabalho braçal, mas uma ostentação de posição social (BRANDÃO p 154)

Tânya Brandão relaciona a escravidão no Piauí como instrumento de classe social, no entanto se desfaz da linha da violência branda da escravidão no Piauí como autores anteriores defendiam e passam a defender a violência física e moral que os escravos sofreram.

Nessa perspectiva o trabalho mostra um avanço significativo à produção textual sobre a questão escravista no Piauí, revelando e desnudando novas possibilidades de compreensão de um Piauí que muito precisa ser estudado, um Piauí colonial, sua sociedade e a escravidão.

Referências

ARAUJO, Johny Santana de, CABRAL, Ivana Campelo, Anais do XXVI Simpósio Nacional de História – ANPUH • São Paulo, julho 2011 4

BRANDÃO, Tânya Maria Pires. O Escravo da Formação Social do Piauí: Perspectiva Histórica do Século XVIII. Teresina: Ed. UFPI. 1999.

LIMA, Solimar Oliveira, SOARES, Débora Laianny Cardoso. Anais do XXVI Simpósio Nacional de História – ANPUH • São Paulo, julho 2011 4

LIMA, Solimar Oliveira. Condenados ao trabalho trabalhadores escravizados nas fazendas públicas do piauí: 1822-1871. Disponível em: www.coreconpi.org.br/papers/…/Monografia_2002Profissional.pdf . Acessado em: 25/05/2012

Johny Santana de Araújo – Professor do Departamento de História e do Programa de Pós-Graduação em História do Brasil da UFPI.


BRANDÃO, Tânya Maria Pires. O escravo na formação social do Piauí: perspectiva histórica do século XVIII. Teresina: Editora da UFPI, 1999. Resenha de: ARAÚJO, Johny Santana de. Um olhar sobre o Piauí escravista e setecentista segundo Tânya Brandão. Contraponto. Teresina, v.5, n.2, p.153-158, jul./dez. 2016. Acessar publicação original [DR]

 

Censura e propaganda: os pilares básicos da repressão | Carlos Fico

O presente texto divide-se em seis tópicos, dos quais se faz presente a narrativa do processo da ditadura militar no Brasil: a) introdução; b) Espionagem; c) Polícia Politica; d) Censura; e) Propaganda; f) Conclusão; Logo na Introdução o autor aborda a questão teórica da historia do regime militar, enfatizando que há varias maneiras de se contar a história, partindo por diversas perspectivas. Mostrando o interesse pelo período da ditadura militar no Brasil que não é recente, destacando dois aspectos interessantes: “a facilidade com que a desarticulada conspiração se tornou vitoriosa, no dia 1º de abril de 1964 e o pasmante crescimento da repressão – que prendeu arbitrariamente e torturou desde o primeiro momento, e não somente depois de 1968…” (p.169). Depois temos o relato a partir de fontes de jornais como O Correio da manha e outros, que demonstram variam denuncias sobre as torturas. Essas perspectivas históricas de abordagem são ressaltadas na introdução onde vemos que “existem miudezas que são fundamentais para o entendimento da história , tanto algumas explicações estruturais tendem a claudicar quando confrontadas com os fatos discretos”. (p. 173), onde vemos a importância das fontes em questão.

No tópico seguinte, temos A Espionagem, que relata a experiência de Golbery do Couto Silva, que foi responsável pelo recolhimento de informações anterior ao Golpe militar. Contudo é Costa e Silva que em 1965 com o Ato Institucional nº2, “aumenta o prazo para as cassações e suspensões de direitos políticos” (p.175). Havia vários órgãos responsáveis pela espionagem: O Sisni: Sistema Nacional de Informação; Aesi: Assessoria Especial de Seguranças e Informações; CGI: Comissão Geral de Investigação; Sissegin: Sistema de Segurança Interna, dentre outros. Uma questão relevante abordada é que muitos foram prejudicados, por causa das interpretações que esses órgãos poderiam fazer, pelo fato por exemplo de uma simples pichação em um determinado muro poderia “conter ameaças à segurança nacional” (p.180).

Durante a ditadura, além dos casos óbvios de perseguição, prisão, tortura e morte de militares e quadros organizados, praticados pela polícia política, milhares de pessoas foram espionadas, julgadas e prejudicadas pela comunidade de informações. (FICO, 2007, p.181)

Assim, a espionagem que garantiria a manutenção da ordem no país e o domínio do governo militar, também não estava isento de erros e falhas. Pois cada órgão possuía uma determinada autonomia, contudo estavam interligados.

No tópico Policia Politica o autor destaca “o endurecimento da repressão a partir do Ato Institucional nº5, de dezembro de 1968” (p.181). Esse ato foi motivado pela insatisfação da linha dura, que viam as punições sendo barradas pela justiça, por meio de habeas corpus. O órgão citado acima, Sissegin foi implantado que propunha diretrizes uniformes para cada estado brasileiro. Assim eram criados os Condi: comandos de defesa interna; Codi: Centro de Operações de Defesa Interna; DOI: Destacamento de Operações de Informações; todos sobre o comando do Exercito respectivo, ou ZDI: zona de defesa interna. Mais tarde com a morte do jornalista Vladimir Herzog e Manuel Fiel Filho, que morreram no DOI de São Paulo em 17 de janeiro de 1976, o órgão Sissegin foi se desestruturando.

No tópico Censura, o autor desperta o leitor ao se referir que antes da ditadura já havia censura, onde este afirma: “não se pode falar propriamente no “estabelecimento” da censura durante o regime militar porque ela nunca deixou de existir no Brasil”. (p.187). “A censura estava em todos os lugares” Além da imprensa e mídia, as atividades artísticas, culturais, e recreativas eram reguladas pela ditadura, como o cinema, o teatro, o circo, os bailes musicais, as representações de cantoras em casas noturnas, etc.” (p.189) foram estabelecidas diversas leis de segurança nacional, que abriram margem e fortificadas pelo Ato institucional nº5, para censurar a imprensa. Tudo o que fosse contra a defesa da moral e dos bons costumes, estipulados pela ditadura militar no Brasil, deveria ser censurado.

No tópico Propaganda, temos a exaltação do Brasil, como o país que ia pra frente no desenvolvimento graças à politica militar. Contudo, essa propaganda era negada pelos militares, mas era formada pelo jargão: “motivar a vontade coletiva para o esforço nacional de desenvolvimento” (p.196). “Na verdade, Otávio Costa negava, em entrevistas aos jornais da época, que estivesse fazendo divulgação do governo ou propaganda politica: estava, apenas, estimulando a “vontade coletiva para o fortalecimento do caráter nacional”. (p.196). A televisão passava por uma grande fase de desenvolvimento no País, e Otavio Costa a utilizou com pequenos filmes que eram divididos em: “natureza educativa e caráter ético-moral” (p.197) enaltecendo assim o governo militar da época.

Na Conclusão o autor destaca que os sistemas que compunham o aparato da ditadura militar não foram inventados no regime militar no Brasil, mas que foram reinventados, de tal maneira que foram até copiados fora do Brasil. Esse aparato não foi harmônico nem integrado, onde “os setores estavam que praticavam a tortura e o assassinato politico estavam bastante cingidos aos DOIs e aos Dops” (p.199), mas claro que os órgãos reinventados não estavam também sobre completa autonomização. O autor ressalta que “a anistia de 1979 foi reciproca, isto é, os torturadores também foram anistiados.” (p.200) também interessante destacar que alguns órgãos permanecem hoje, como por exemplo o SNI, sistema Nacional de Informação, hoje é a ABIN que é a Agencia Brasileira de Inteligência, sendo “ainda mal estruturada, não havendo mecanismos sociais de controle efetivo, através do Congresso Nacional, de suas atividades, e, de tempos em tempos, temos noticias de atividades escusas de espionagem no país” (p.200).

Concluímos portanto que o presente texto se faz de fundamental importância para compreendermos o sistema politico brasileiro, dado pelo regime militar de 1964 a 1985, observando novas perspectivas abordadas pelo autor Carlos Fico, alargando assim a nossa zona de conhecimento do processo histórico em questão. Percebendo que os órgãos criados, mesmo assim eram falhos, onde como exemplo, podemos citar: O caso do Maranhão onde em 9 de abril de 1969 José Sarney assume o governo, e logo o capitão de infantaria Marcio Viana Pereira entrega ao seu comandante direto um dossiê de 17 paginas com 25 documentos anexados, com o título “Corrupção na área do estado”. Esse documento foi enviado para a base do Comando Geral de Investigação , onde foi apenas arquivado. Os órgãos de combate a corrupção haviam sido criados, contudo ainda existia corrupção politica. Mas não cabe o historiador julgar os fatos e sim analisá-los.

Ricardo de Moura Borges – Graduado em Licenciatura Plena em História pela Universidade Federal do Piauí. Graduando em Licenciatura em Filosofia pelo Instituto Católico de Estudos Superiores do Piauí, ICESPI.


FICO, Carlos. Censura e propaganda: os pilares básicos da repressão. FERREIRA, Jorge; DELGADO, Lucília de Almeida Neves (Orgs). O tempo da ditadura: regime militar e movimentos sociais em fins do século XX. 2. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007. (p. 167 – 201). Resenha de: BORGES, Ricardo de Moura. Contraponto. Teresina, v.2, n.2, jan./dez. 2013. Acessar publicação original [DR]

O desafio biográfico: escrever uma vida | François Dosse

François Dosse (1950- ) a partir de 1989 questiona radicalmente suas próprias concepções de história. Após a queda do muro de Berlim (e, com ele, o “socialismo real” e parte dos horizontes de expectativa do Ocidente), mais a descoberta da obra de Ricoeur, passa a perceber, nas ciências humanas, o social e o político segundo uma perspectiva hermenêutica e pragmática. Elemento mais ou menos ativo da geração de 1968, afirma que esta parece ter encontrado as ferramentas para exprimir aquilo que considera o ponto comum entre os que trabalham pela renovação nas ciências humanas: a vontade de fazer “sentido” (sem teleologia), o resgate da historicidade (sem historicismo) e o gosto pelo agir (sem ativismo). O novo paradigma próprio das ciências humanas permite, assim, repensar um novo horizonte de expectativas (DOSSE, 2004: 11-61).

Atualmente, portanto, a disciplina histórica parece se ressentir da necessidade da recomposição do sentido. François Dosse, após o estudo do vazio deixado pela crise dos grandes paradigmas (marxismo e estruturalismo) e a crítica dos Annales em A História em Migalhas (1987), fala em uma “virada historiográfica”: refere-se a um voltar-se dos historiadores a pensar, em diálogo com a filosofia, os conceitos de que se utiliza em sua operação profissional. A guinada hermenêutica e pragmática defende “a emergência de um espaço teórico próprio aos historiadores, reconciliados com seu nome próprio e a definição da operação histórica pela centralidade do humano, do ator, da ação” (DOSSE, 2004: 48).

Entre 1994 e 1997, Dosse trabalhou na elaboração da biografia intelectual de Paul Ricoeur. Paul Ricoeur: les sens d’une vie (ainda não traduzida para o português) é uma biografia intelectual situada na contramão das biografias tradicionais. Não busca uma história total, nem pretende solucionar mistérios psicológicos que ajudariam a compreender melhor a obra do filósofo. Dosse procede, ao contrário, a uma pesquisa plural dos diversos modos de apropriação do sujeito biografado. Deixa de lado a tradicional oposição entre verdadeiro e falso por uma busca constante de contextualização e recuperação das redes de sociabilidade intelectual. Abstém-se de qualquer pretensão de esgotar o significado de seu relato de vida para narrá-lo no plural, atento à recepção do biografado e de sua obra, sempre diversa, de acordo com o momento considerado. A biografia de Ricoeur está afeita, portanto, à maneira pela qual o próprio filósofo entende a construção de uma identidade pessoal, que se deixa observar através da pluralidade (DOSSE, 2009).

Em 2009, surge no cenário acadêmico brasileiro a tradução de Le Pari biographique: Écrire une vie, lançado na França em 2005. Publicado no Brasil pela Editora da Universidade de São Paulo (EDUSP), com apoio do Ministério Francês das Relações Exteriores, por ocasião do ano da França no Brasil, O desafio biográfico é uma história do gênero biográfico, desde Plutarco até a inflexão do gênero a partir dos anos 1980, de acordo com a guinada hermenêutica e pragmática referida anteriormente.

Neste estudo da evolução das biografia, Dosse diferencia três modalidades de abordagem biográfica: a idade heroica, a idade modal e, por fim, a idade hermenêutica: “se conseguirmos detectar uma evolução cronológica entre essas três idades, veremos claramente que os três tipos de tratamento da biografia podem combinar-se e aparecer no curso de um mesmo período” (DOSSE, 2009: 13).

De início, destaca o caráter híbrido do gênero biográfico, tensionado entre o viés científico e a aspiração à verdade e o elemento ficcional e uso da imaginação histórica no suprimento de carências documentais:

A dificuldade de classificá-lo numa disciplina organizada, a pulverização entre tentações contraditórias – como a vocação romanesca, a ânsia de erudição, a insistência num discurso moral exemplar – fizeram dele um subgênero há muito sujeito ao opróbrio e a um déficit de reflexão (DOSSE, 2009: 13).

Outro problema recorrente envolvendo a biografia é que “a ânsia de dar sentido, de refletir a heterogeneidade e a contingência de uma vida para criar uma unidade significativa e coerente traz em si boa dose de engodo e ilusão” (DOSSE, 2009: 14). Trata-se da “ilusão biográfica”, sobre a qual alertava o sociólogo Pierre Bourdieu, para quem a narrativa biográfica pressupõe que a vida constitui um conjunto coerente e orientado que pode e deve ser apreendido como expressão unitária (BOURDIEU, 1996). A crítica radical de Bourdieu à ilusão biográfica, através da qual inclusive afiança o sujeito como entidade não-pertinente, certamente despertou inúmeras interrogações. Dosse, em resposta, vai além ao asseverar, com Roger Dadoun, a necessidade dessa ilusão e a questão da opacidade entre biógrafo e biografado (DOSSE, 2009). Em consequência da empatia com o tema, o biógrafo acaba possuído e modificado pela relação que estabelece com seu biografado. Ancorado em Ricoeur, Dosse afirma que “a escrita biográfica está bem próxima do movimento em direção ao outro e da alteração do eu rumo à construção de um Si transformado em outro” (DOSSE, 2009: 14). Para se evitar os riscos do descrédito, o biografado deve expor com frequência os elementos componentes do “contrato de leitura” com seus leitores. O pacto biográfico distingue o trabalho de pesquisa da ficção pela verificação dos métodos e critérios de cientificidade. De todo modo, enfatiza a tensão do gênero como desafio ao defini-lo como “gênero impuro”: “O domínio da escrita biográfica tornou-se hoje um terreno propício à experimentação para o historiador apto a avaliar o caráter ambivalente da epistemologia de sua disciplina, apanhada na tensão entre seu polo científico e seu polo ficcional” (DOSSE, 2009: 18).

Na Idade heroica da biografia (da Antiguidade à época moderna, de acordo com as divisões perpetradas por Dosse), ela prestou-se ao discurso das virtudes e, como tal, erigiu modelos moralizantes: “inscreve-se, nesse longo período, no respeito absoluto a uma tradição” (DOSSE, 2009: 123). Na Antiguidade, a tradição dos valores heroicos; após a cristianização, os valores religiosos. Ambos têm por modelo as vidas exemplares.

Plutarco foi um dos maiores nomes do gênero biográfico da antiguidade clássica. Pelo modelo de seu trabalho foi que o gênero biográfico iniciou a sedimentação de sua especificidade. “O objetivo capital do projeto de Plutarco é revelar os traços de destaque de um caráter psicológico em sua ambivalência e complexidade, inaugurando assim o gênero da vida exemplar com tons moralizantes” (DOSSE, 2009: 127). No medievo, a hagiografia – gênero literário que privilegia as encarnações humanas do sagrado e ambiciona torná-las exemplares para o resto da humanidade – toma o lugar na direção das “vidas exemplares”. “A reforma gregoriana acompanhou uma mudança radical na natureza dessas hagiografias, que se transformaram para os clérigos em exemplos de vida, em modelos a imitar” (DOSSE, 2009: 144).

No século XIX, a biografia é vista como subgênero, um modo de escrita da história relegado ao plano auxiliar: “Se o século XIX aparece às vezes como a idade de ouro da biografia, isso acontece porque nos esquecemos de que ele é, acima de tudo, o século da história” (DOSSE, 2009: 171-2). Entre os séculos XIX e XX, a biografia sofre então um “demorado eclipse, porque o mergulho da história nas águas das ciências sociais, graças à escola dos Annales, […] contribuiu para a radicalização de seu desaparecimento em proveito das lógicas massificantes e quantificáveis” (DOSSE, 2009: 181).

Esse longo eclipse Dosse define como o tempo da Biografia modal. Neste segundo tempo da escrita biográfica (a que corresponde um momento histórico e uma forma de abordagem), pretende-se deslocar o foco de interesse da singularidade do indivíduo biografado para enxergá-lo como ilustração da coletividade. O contexto prevalece e o indivíduo é seu mero reflexo. Ou seja, “a biografia modal visa, por meio de uma figura específica, ao tipo idealizado que ela encarna” (DOSSE, 2009: 195). Um bom exemplo são as obras de Lucien Febvre sobre Rabelais e Lutero. “Quando Lucien Febvre escreve sobre Rabelais, não é tanto a singularidade deste último que o interessa, mas, sim, o aparelhamento mental de sua época” (DOSSE, 2009: 215).

Na Idade hermenêutica, dos tempos mais recentes e terceiro tempo da história do gênero biográfico, François Dosse ainda opera uma divisão: a unidade dominada pelo singular e a pluralidade das identidades. Na idade hermenêutica, de reflexividade, há uma verdadeira retomada do gênero biográfico e até mesmo uma febre editorial no mercado de biografias. Diversos estudiosos, de historiadores a antropólogos, após a queda dos paradigmas estruturantes, rompem com os interditos que cercavam a biografia, ao se lançarem às questões do sujeito e da subjetividade. Nas palavras de Dosse, “A intrusão do biográfico nas ciências sociais sacode alguns postulados “científicos” […], pois os relatos se situam num espaço entre a escrita e a leitura literárias ou entre escrita e leituras científicas” (DOSSE, 2009: 242). Insatisfeitos diante das realizações biográficas próximas dos tipos ideais ou animadas pela vontade de demonstrar alguma coisa a priori, os historiadores e demais cientistas sociais sentiramse atraídos, nos anos 1970/80, pelas teses da microstoria, que preconizou uma abordagem bem diversa. É o que Dosse chama de ideia do “excepcional normal”: “Em vez de partir do indivíduo médio ou típico de uma categoria socioprofissional, a microstoria […] ocupa-se de estudos de caso, de microcosmos, valorizando as situações-limite de crise” (DOSSE, 2009: 254).

Atualmente, na era da reflexividade hermenêutica, o campo de estudos biográficos tornou-se privilegiado como campo de experimentação para o historiador: “Os estudos atuais se caracterizam pela variação do enfoque analítico […]. O quadro unitário da biografia foi desfeito, o espelho se quebrou para deixar aflorar mais facilmente […] a pluralidade das identidades, o plural dos sentidos da vida” (DOSSE, 2009: 344). A heterocronia complexa sugerida pelas relações entre história e psicanálise questiona a todo momento as noções lineares tradicionais de sucessividade e sequencialidade e, assim, ajuda a evitar as ilusões biográficas. A linearidade da biografia tradicional é questionada, portanto, e até mesmo suas balisas temporais clássicas, a vida biológica e o ciclo de nascimento e morte. Há condicionamentos que se impõem ao indivíduo antes de nascer, bem como há metamorfoses do sentido de sua vida após seu desaparecimento.

A “biografia intelectual” visa ao estudo dos escritores, filósofos e homens de letras em geral: “por definição, o homem de ideias se deixa ler por suas publicações, não por seu cotidiano” (DOSSE, 2009: 361). Dosse salienta a importância da vida e obra serem retomadas em conjunto, porém, em seus respectivos recortes. Uma via original de abordagem do sujeito biografado não se reduz à via clássica da contextualização, mas é a busca da coerência de seu gesto singular. Defende o que o vínculo entre o existir e o pensar deve ser retomado a esta nova luz. A biografia intelectual se caracteriza pelo aspecto de abertura a interpretações distintas e inesgotáveis: considerando que o significado de uma vida nunca é unívoco, ela aponta a importância da recepção do sujeito biografado no tempo e pelos seus pares e leitores. François Dosse assevera ser impossível saturar o sentido de uma vida, que pode – e mesmo deve – ser constantemente reescrita.

A história, como a biografia, é constantemente reescrita, reinterpretada; não admite um conhecimento imediato, total, definitivo sobre o passado. Isso pela especificidade própria de seu objeto de conhecimento: as sociedades humanas e os homens em um processo temporal. O próprio conhecimento histórico constantemente se transforma, acompanhando as mudanças da história e da disciplina histórica. Não há, portanto, um passado fixo a ser extenuado pela história. As experiências e expectativas futuras alteram a compreensão do passado. Para Reinhardt Koselleck, conhecer um determinado contexto histórico é saber como, nele, se relacionaram as dimensões temporais do passado e do futuro (KOSELLECK, 2006). Na expressão de Dosse, “um diálogo sobre o passado aberto para o futuro, a ponto de se falar cada vez mais de futuro do passado” (DOSSE, 2009: 410).

Aberto ao devir, o regime de historicidade não se pretende mais fechado sobre si mesmo. O caso das pesquisas biográficas e as questões levantadas por Dosse no seu Desafio biográfico colocam em xeque as pretensões totalizantes de escrita da história, mesmo sobre a escrita da vida de um único indivíduo. A abordagem hermenêutica, reflexiva/interpretativa, opõe obstáculos aos determinismos e causalidades rigorosas. Humanizando-se, as ciências humanas despem-se de resquícios do modelo das ciências naturais. Destarte, o trabalho de François Dosse sobre o gênero biográfico é, também, uma verdadeira exposição e problematização dos aspectos mais recentes e complexos em que se confrontam as ciências humanas e a teoria da história. Em diálogo aberto com a filosofia, a história volta-se para o humano, ao sujeito e à ação. No seu centro, a noção de sentido (existencial).

Referências

AVELAR, A. S. A biografia como escrita da história: possibilidades, limites e tensões. Dimensões, Vitória, v.24, p. 157-72, 2010.

BOURDIEU, P. A ilusão biográfica. In: AMADO, J.; FERREIRA, M. M. (Orgs.) Usos e abusos da história oral. Rio de Janeiro: FGV, 1996, p. 183-191.

DOSSE, F. Ensaio de Ego-História: percurso de uma pesquisa. In: DOSSE, F. História e Ciências Sociais. Bauru, SP: EDUSC, 2004, p. 11-61.

KOSELLECK, R. Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: PUC/Contraponto, 2006.

Raphael Guilherme de Carvalho – Mestrando em História Universidade Federal do Paraná. E-mail: raphaelguilherme09@hotmail.com


DOSSE, François. O desafio biográfico: escrever uma vida. Trad. Gilson César Cardoso de Souza. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2009. Resenha de: CARVALHO, Raphael Guilherme de. Contraponto. Teresina, v.1, n.1, p.129-134, jan./dez. 2011. Acessar publicação original [DR]

Contraponto | UFPI | 2011

Contraponto UFPI Contraponto

A Revista Contraponto (Teresina, 2011-) é uma publicação do Departamento de História e Programa de Pós Graduação em História do Brasil da Universidade Federal do Piauí. A linha editorial desta revista tem o objetivo de contemplar uma dupla demanda. Por um lado pretende-se abrir espaço para a necessária difusão da produção acadêmica desenvolvida no âmbito da História no estado do Piauí.

Nesse sentido, vale destacar que a UFPI já conta com um programa de pós-graduação consolidado na área de História do Brasil. Dezenas de dissertações de mestrado já foram elaboradas nos últimos anos e pretende abrir espaço para levar ao conhecimento de um público mais amplo essa produção acadêmica. Da mesma forma, a revista está franqueada aos demais professores e pesquisadores que atuam na Universidade Estadual do Piauí e também em outras instituições. Esta publicação especializada na área de história é um instrumento através do qual a produção acadêmica piauiense será veiculada e compartilhada com o público interessado nesse campo de estudos.

Por outro lado, a Revista Contraponto é espaço de interlocução que extrapola as fronteiras do Piauí e acolhe artigos e contribuições de pesquisadores de todo o Brasil e do exterior. Desta forma, a revista representa uma ponte entre a pesquisa acadêmica realizada na região – mas não apenas aquela que aborda temas específicos sobre o estado e o nordeste – e a produção historiográfica mais recente desenvolvida em outros estados e também em outros países.

Vale destacar que o esforço ora empreendido é especialmente revelador do interesse dos pesquisadores em História da UFPI no sentido de se inserir no campo da produção historiográfica e participar dos debates contemporâneos deste vasto campo de estudos.

Periodicidade semestral

Acesso livre

ISSN 2236 6822

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