O nascimento do Brasil e outros ensaios – OLIVEIRA (Tempo)

OLIVEIRA, João Pacheco de. O nascimento do Brasil e outros ensaios: “pacificação”, regime tutelar e formação de alteridades. Rio de Janeiro: Contracapa, 2016. Resenha de GARCIA, Elisa Frühauf. O nascimento do Brasil e outros ensaios. Tempo, v.24, n.1, Niterói jan./abr. 2018.

Em O nascimento do Brasil e outros ensaios, João Pacheco de Oliveira reúne nove textos elaborados nos últimos anos, originalmente publicados como artigos em coletâneas e periódicos ou apresentados em congressos e afins. Organizados em formato de livro, discutem temas relacionados aos povos indígenas que, em alguma medida, representam a trajetória do autor e suas opções epistemológicas. Professor titular de antropologia do Museu Nacional (UFRJ) desde 1997 e um dos mais influentes antropólogos de sua geração, João Pacheco começou seu percurso profissional realizando pesquisa de campo entre os Ticuna na tríplice fronteira (Brasil, Colômbia e Peru). Dedicou-se também ao estudo de políticas públicas e, desde meados da década de 1990, vem desenvolvendo pesquisas sobre os povos indígenas do Nordeste. Lançado em 2016, o livro recebeu da ANPOCS em 2017 o prêmio de Melhor Obra Científica.

Os capítulos refletem as preocupações que o autor demonstrou já no início de sua trajetória com o estudo da condição indígena a partir do colonialismo e das interações entre os diferentes segmentos sociais. O colonialismo, neste caso, não se restringe ao sentido mais utilizado pelos historiadores, referindo-se ao período no qual o Brasil foi parte do império português. Trata-se de uma discussão mais ampla sobre a relação do Estado com os povos indígenas, marcada por diferentes recursos jurídicos e administrativos que limitavam a capacidade civil dos nativos. Tais dispositivos vigoraram oficialmente até a extinção da tutela pela Constituição de 1988. A implementação da mudança, contudo, encontrou uma série de entraves. Como demonstrado no capítulo 8, “Sem a tutela, uma nova moldura de nação”, os marcos legais não substituem facilmente culturas institucionais arraigadas. Alguns órgãos administrativos, sobretudo a Funai, mantiveram na prática a vigência de categorias e percepções tributárias da tutela.

A análise da atuação dos órgãos relacionados à questão indígena, considerando a legislação vigente, as culturas administrativas e as ações de funcionários orientadas pelo senso comum, nos conduz a uma questão central, a definição de quem é índio. O tema é complexo: a condição indígena no país está marcada não apenas por diferenças culturais dos povos entre si e destes em relação à sociedade envolvente, mas por aspectos históricos. Se o tema perpassa toda a trajetória de João Pacheco, foi com o trabalho sobre os povos indígenas do Nordeste que suas reflexões nesta linha adquiriram maior centralidade e densidade conceitual. O capítulo 5, “Uma etnologia dos ‘índios misturados’? Situação colonial, territorialização e fluxos culturais”, é uma referência imprescindível nos estudos de antropólogos e historiadores sobre a temática indígena. Fruto de uma conferência originalmente apresentada no concurso para professor titular no Museu Nacional e já publicado em outras ocasiões, contribuiu para a construção de um campo de pesquisa que vem se desenvolvendo com bastante vivacidade desde então (Oliveira, 1999 e 2011).

Ao abordar os povos indígenas do Nordeste, João Pacheco enfrentou o desafio teórico-metodológico de trabalhar com uma população cujo contato com a sociedade envolvente remete aos primórdios da construção do Brasil colonial no século XVI. Suas interações com grupos de diversas origens, tanto europeias quanto africanas, foram constantes desde então e eles não se enquadram na definição de índio caracterizada por uma alteridade cultural radical. Com frequência, pesquisadores e agentes estatais alegavam sua condição de “misturados” como desqualificadora de reivindicações políticas e de sua legitimidade como um objeto de pesquisa etnológica. Diante disso, o autor optou por problematizar a trajetória dessas populações. Apresentou os diferentes “momentos de mistura” gerados pelas políticas administrativas implementadas em um primeiro momento pelo Estado colonial português e, já no século XIX, pelo Império do Brasil. Evitou, assim, a condição indígena entendida como uma essência e forneceu os elementos conceituais para que ela fosse percebida em sua historicidade, relacionada a situações específicas.

O autor elenca três momentos fundamentais de “mistura”: os aldeamentos promovidos pelo Estado português a partir de meados do século XVI; a aplicação da legislação pombalina iniciada na década de 1750 e a dissolução das aldeias no século XIX. No primeiro momento, os índios foram sujeitos a uma política administrativa que lhes adjudicou um determinado território onde deveriam passar a viver após a inserção na sociedade colonial: as aldeias missionárias. João Pacheco não interpreta tais espaços apenas como ambientes que ameaçavam, ou mesmo extinguiam, a condição indígena a partir da “aculturação”, como então se pensava nos estudos históricos desenvolvidos no país. As aldeias são apresentadas como propulsoras da formação de novas identidades, explicadas a partir da noção de “territorialização”. Conceito-chave para os estudos nessa linha, remete ao processo pelo qual os índios, objeto de uma política colonial que os circunscreve a determinado espaço, se apropriam daquele ambiente, reformulando suas políticas identitárias em uma situação específica. O conceito fez parte das reflexões que possibilitaram uma mudança fundamental na perspectiva sobre as aldeias missionárias no Brasil colonial, cujo trabalho mais influente no âmbito historiográfico foi o de Maria Regina Celestino de Almeida (2003).

Suas reflexões a partir de uma antropologia histórica o levaram também a enfocar a questão indígena em uma perspectiva de longa duração. Para tanto, articula a análise das diversas imagens que hoje manejamos sobre o tema, em geral desencontradas e idealizadas, com seus usos e construções em momentos específicos. Os dois primeiros capítulos, “O nascimento do Brasil: revisão de um paradigma historiográfico” e “As mortes do indígena no Império do Brasil: o indianismo, a formação da nacionalidade e seus esquecimentos”, abordam visões estabelecidas sobre o lugar das populações nativas em nossa história. Retomando os diferentes momentos das relações dos índios com os europeus no século XVI e analisando os processos artísticos do indianismo do século XIX, a ideia é entender e questionar a consolidação de uma percepção da história do Brasil que deliberadamente desconsiderou os povos nativos. Como demonstra o autor, a mudança recente de paradigma, com sua inclusão como agentes importantes, decisivos em vários contextos, é fundamental para explicarmos que foi a apropriação violenta de seus recursos (sua força de trabalho, suas terras e seus conhecimentos) que possibilitou a construção do Brasil. Esse processo, por sua vez, não desencadeou a extinção física e cultural dos índios, mas sua incorporação à sociedade envolvente em uma condição subordinada. Tal lógica não está restrita aos primeiros contatos, ela se reproduziu ao longo do tempo em diferentes situações à medida que se avançava “sertão adentro”.

A expansão da sociedade envolvente sobre os territórios indígenas articula-se a uma noção fundamental para a história do Brasil: a fronteira. Nos capítulos três e quatro, “A conquista do vale amazônico: fronteira, mercado internacional e modalidades de trabalho compulsório” e “Narrativas e imagens sobre povos indígenas e Amazônia: uma perspectiva processual de fronteira”, o autor analisa tal expansão vinculada à extração da borracha. Para tanto, evita a ideia de uma fronteira naturalizada, que refletiria uma determinada realidade. Ao contrário, utiliza o termo como uma categoria analítica para pensar a subordinação daquela região específica a interesses econômicos externos, com grande peso internacional. Enfatiza como as análises anteriores desconsideraram a presença e a perspectiva dos povos indígenas que habitavam aqueles espaços, especialmente sua atuação em determinados tipos de seringais. A proposta é interpretar a história da região partindo das relações concretas que lá existiam, considerando sobretudo os impactos do “apogeu” da extração da borracha nas dinâmicas locais.

A ausência dos índios nas narrativas históricas, apresentados como meros “remanescentes” que seriam inexoravelmente “extintos” pela expansão da sociedade envolvente, ou seja, não teriam um futuro como um grupo diferenciado dentro da “nação” brasileira, foi questionada pelos resultados dos últimos censos. Verificou-se, especialmente a partir do realizado no ano 2000, um crescimento do número de índios muito superior aos demais segmentos da população (IBGE, 2005). Porém, como demonstrado no capítulo seis, “Mensurando alteridades, estabelecendo direitos: práticas e saberes governamentais na criação das fronteiras étnicas”, os resultados dos últimos recenseamentos devem ser interpretados em perspectiva histórica. Longe de serem um mero reflexo da composição demográfica do Brasil, refletem paradigmas e configurações de poder específicos. A mudança nas últimas contagens espelha, entre outros aspectos, as disputas no campo indigenista e as iniciativas desenvolvidas pelos próprios índios. Em grande parte, foram seus vínculos identitários e suas ações políticas que questionaram os prognósticos sobre seu “desaparecimento” iminente. Relacionam-se, também, à disputa por direitos, pois os dados oficiais são documentos fundamentais na elaboração de políticas públicas e na distribuição de recursos.

O livro termina com a abordagem de uma categoria muito empregada em diferentes contextos na relação do Estado com as populações indígenas: a “pacificação”. A reflexão foi ocasionada pelas políticas de segurança pública desenvolvidas no Rio de Janeiro a partir de 2008. Na ocasião, uma operação militar na comunidade Santa Marta era apresentada como o início de uma “nova” presença do Estado nestes espaços, com promessas de combate ao tráfico e do estabelecimento de uma série de serviços de atendimento à população. O autor parte de um desconforto compartilhado por todos aqueles que conhecem minimamente a longa e controversa história da categoria “pacificação”, utilizada em diferentes contextos, desde o período colonial, para lidar com a alteridade indígena de maneira subalterna. A opção por sua recuperação na contemporaneidade em um contexto urbano revela a permanência de um paradigma estigmatizador das populações que habitam as comunidades na construção das políticas públicas de segurança. Denota ainda a presença de antigas práticas como referencial para iniciativas apresentadas como “novas” e nos leva a suspeitar em que medida elas representam de fato uma ruptura com um passado desairoso.

Os capítulos, produzidos em diferentes ocasiões, como já mencionado, foram articulados por um prefácio esclarecedor, no qual o autor retoma suas principais preocupações e contextualiza a leitura. Trata-se de uma publicação que deve ser lida por todos aqueles interessados na história no Brasil. Os temas tratados e a metodologia utilizada nos recordam que a história não é linear desde nenhuma perspectiva. Os povos indígenas do Brasil não têm uma trajetória única, e o que eles são hoje se vincula à maneira como se relacionaram, e foram afetados, pelas políticas estatais e pelas ações de diferentes agentes sociais. Vincula-se, ainda, às suas expectativas de futuro e às possibilidades apresentadas pelo tratamento que o Estado e a sociedade civil dão ao tema. Afinal, como João Pacheco enfatiza ao longo do livro, a questão indígena está intrinsecamente relacionada às discussões sobre a formação da “nação brasileira” e de suas hierarquias sociais. Ao não nos questionarmos sobre as origens das interpretações e das categorias que utilizamos, corremos o risco de naturalizarmos os projetos e sentidos daqueles que, baseados em seus próprios interesses e convicções, desenharam uma história do Brasil ancorada no eurocentrismo.

Referências

ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. Metamorfoses indígenas: identidade e cultura nas aldeias coloniais do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2003. [ Links ]

INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA (IBGE). Tendências demográficas: uma análise dos indígenas com base nos resultados da amostra dos Censos Demográficos 1991 e 2000. Rio de Janeiro, 2005. [ Links ]

OLIVEIRA, João Pacheco (Org.). A viagem da volta: etnicidade, política e reelaboração cultural no Nordeste indígena. Rio de Janeiro: Contracapa, 1999. [ Links ]

OLIVEIRA, João Pacheco (Org.). A presença indígena no Nordeste: processos de territorialização, modos de reconhecimento e regimes de memória. Rio de Janeiro: Contracapa , 2011. [ Links ]

Elisa Frühauf Garcia – Instituto de História, Universidade Federal Fluminense (UFF) – Niterói (RJ) – Brasil. E-mail: elisa.fruhauf.garcia@gmail.br.

História, teoria e variações – NEVES (EH)

NEVES, Guilherme Pereira das. História, teoria e variações. Rio de Janeiro: Contracapa, 2011. 328 p. Resenha de: SANTOS, Antonio Cesar de Almeida. Sobre hermenêutica e perspectivas historiográficas. Estudos Históricos, v.25 n.50 Rio de Janeiro July/Dec. 2012.

Ao olhar a capa de História, teoria e variações, pensei: é bem a cara do autor do livro. Alguns dias depois, lendo um dos textos da coletânea, minha “abdução peirceana” mostrou-se correta. Minha hipotética afirmação foi confirmada com a leitura do capítulo intitulado “História e método”. Nele, o autor, Guilherme Pereira das Neves, explica sua predileção pela pintura Gilles, de Jean-Antoine Watteau – a imagem da capa do livro -, contrapondo-a ao desenho de Paul Klee, Angelus Novus, que Walter Benjamin escolheu para ilustrar sua conhecida tese de número nove “sobre o conceito da História”. Após referir-se ao “respeito que a trajetória e a obra de Benjamin merecem” – com o que concordamos -, Guilherme Pereira das Neves confessa a sua “dificuldade para enxergar” o que Benjamin vê no desenho de Klee para, em seguida, afirmar que, “num certo sentido, a perspectiva que [Benjamin] expõe sobre a história encontra-se na contramão daquela a favor da qual gostaria de aqui argumentar” (p. 104).

Ainda que viéssemos acompanhando a perspectiva “sobre a história” adotada pelo autor de História, teoria e variações, ele declara estar em busca da compreensão de “nossa consciência histórica” (grifos no original), por intermédio da qual nós nos esforçamos para “encontrar um significado para as vidas que levamos no mundo desencantado que é o nosso” (p. 123). Guilherme Pereira das Neves deixa, assim, explícito seu interesse pela proposta hermenêutica de Hans-Georg Gadamer, com a qual concilia a história das linguagens políticas e a história dos conceitos.

Contudo, é conveniente olharmos para a estrutura do livro, dividido em duas partes e com 12 capítulos que nos permitem acompanhar sua trajetória intelectual e nos convidam ao exercício de uma necessária reflexão sobre a prática da história e o papel do historiador. A primeira parte do livro tem um viés mais teórico e recebeu o nome de “O caminho da reflexão”. A divisão, contudo, não é rigorosa, e a segunda parte – “O caminho da aplicação” – traz um conjunto de textos que “procuram girar não só em torno de um certo tipo de história que o autor tem aprendido a praticar, como das dificuldades que encontrou para fazê-lo” (p. 12); quer dizer, a todo o momento, a prática e a reflexão sobre a prática se entrelaçam: o livro é um exercício de teoria e de historiografia.

A trajetória intelectual do autor – expressa na sequência dos capítulos, que seguem uma relativa ordem cronológica – permite perceber como ele fez suas escolhas historiográficas. Nesse percurso, ele mostra – e nós podemos acompanhar – os momentos de crise e de perplexidade que viveu com a disciplina, suas insatisfações e, principalmente, os esforços do pesquisador comprometido em “dominar a teoria e a metodologia da história”, que ensina em sua atividade de professor do Departamento de História da UFF desde 1977 (p. 13).

Como mencionado, História, teoria e variações é um convite para refletirmos sobre a prática historiográfica; ao mesmo tempo, apresenta bons textos sobre o Antigo Regime português, sobre a Ilustração luso-brasileira, sobre a constituição do Império e a formação da nação brasileira. São textos que abordam a “cultura e a política no mundo luso-brasileiro”, a trajetória de “letrados”, o funcionamento de instituições políticas e também discussões sobre “processos educacionais” inseridos entre a segunda metade do século XVIII e as décadas iniciais do século XIX. Todos esses temas são discutidos, como indicamos, a partir de algumas abordagens recentes que, infelizmente, são pouco (e/ou mal) exercitadas entre nós: a história das linguagens políticas e a história dos conceitos. Ressalte-se não ser este o caso aqui, pelo contrário.

Também é preciso dizer que os textos desta coletânea, que cobrem um período que vai da década de 1980 aos dias de hoje, não são todos inéditos. Apenas dois deles ainda não haviam sido dados a público. A providência de agrupar essa produção antes dispersa permite dirigir uma visada sobre parcela importante de um trabalho historiográfico que merece ser melhor conhecido e debatido. Além de uma bem cuidada revisão dos textos, o autor buscou dar ao conjunto a necessária unidade, que está evidenciada, por exemplo, na complementaridade entre o primeiro e o quinto trabalhos: “História: a polissemia de uma palavra”, dos anos iniciais da década de 1980, traz uma discussão sobre o confronto entre uma “história-narrativa” pré-Annales e a “história-problema”; “Aquém da história: os Annales aos 80 anos”, de produção recente, desenvolve o contexto historiográfico surgido com a “história-problema”, avançando sua análise até as novas gerações, quando se buscou introduzir “novamente o estudo da singularidade dos eventos e das personagens, em oposição à presença exclusiva das vastas forças anônimas e impessoais” (p. 100).

Ultrapassada a primeira parte do livro, tem-se contato, de modo mais sistemático, com a prática historiográfica do autor. Especificamente no que diz respeito à aplicação de sua perspectiva sobre a história, exposta em maior detalhe no capítulo sexto – “História e método” -, deve-se destacar que, se entendermos que os argumentos teóricos apresentados poderiam mostrar-se áridos, os textos da segunda parte do livro demonstram, com rara felicidade, as possibilidades de uma abordagem que concilia a hermenêutica de Gadamer com as linguagens políticas e a história dos conceitos.

Para avaliarmos em que medida a hermenêutica constituiu-se nessa atitude metodológica tão valorizada por Guilherme Pereira Neves, precisamos considerar que ela, ao mesmo tempo em que nos concede acesso ao outro, oferece a possibilidade de construirmos nossa própria consciência histórica, ou seja, dá-nos a capacidade de perceber a historicidade dos outros e de nós mesmos. Nesse aspecto, todos os seis últimos textos, fruto dessa atitude, merecem leitura atenta, como a “reflexão” que os precede. Podemos, contudo, destacar os capítulos 11 e 12. Em “O Rio de Janeiro de 1794 no Tribunal das Luzes de Reinhart Koselleck”, o autor deixa mais explícito o recurso “à concepção de linguagens políticas, […] como também ao que se conhece como história dos conceitos” (p. 256). A hermenêutica de Gadamer também está presente nesse estudo que discute a “irradiação das Luzes” e busca uma “compreensão dos universos mentais em que estavam inseridos naturais do Brasil e de Portugal” (idem). Em “Independência e liberdade sem liberalismo: Brasil, c.1777-1870” (texto inédito, escrito em parceria com Lúcia Bastos Pereira das Neves), encontramos outro bem acabado exercício de aplicação da Begriffsgeschichte de R. Koselleck, ou melhor, da construção e do uso de uma dada terminologia nos debates em torno da formação ideológica do Império brasileiro. Aliás, não obstante os intensos debates sobre os sentidos de liberdade e de independência, conclui-se que “a experiência dos brasileiros continuava ainda a carecer, quase ao final do século XIX, daqueles processos de politizaçãoideologizaçãodemocratização e temporalização que viabilizaram para outras regiões o ingresso no mundo moderno” (p. 311, grifos no original).

Voltemos a Gilles, a imagem que está na capa do livro e que serve para ilustrar a perspectiva histórica com que Guilherme Pereira das Neves se identifica. Para ele, “o uso do passado já não serve para projetar um futuro para todos”; ao contrário, importa a possibilidade de construirmos a “consciência histórica” de um mundo (revelado pela pintura) que, produto de nossas vidas, é representado por “meio dos eventos e desencontros à nossa volta”. Assim, com o exercício consciente da “reflexão histórica”, poderemos compreender que, “mesmo no mundo fragmentado que é o nosso, é mais comum a compreensão do que a incompreensão” (p. 122-123).

Antonio Cesar de Almeida Santos – Antonio Cesar de Almeida Santos é professor do Departamento de História da UFPR (acsantos@ufpr.br)

A escola na ótica dos Ava Kaiowá: impactos e interpretações indígenas – BENITES (H-Unesp)

BENITES, Tonico. A escola na ótica dos Ava Kaiowá: impactos e interpretações indígenas. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2012, 120 p. Resenha de: ZIMMERMANN, Tânia Regina. História [Unesp] v.32 no.1 Franca Jan./June 2013.

Tonico Benites pertence à etnia Kaiowá, da aldeia Jaguapiré, município de Tacuru. É graduado em Pedagogia pela Universidade Estadual do Mato Grosso do Sul, mestre em Antropologia Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) – com a dissertação intitulada: “A escola na ótica dos Ava Kaiowá: impactos e interpretações indígenas” – e concluiu o doutorado na mesma instituição. Benites foi professor de Psicologia da Educação na Universidade Estadual do Mato Grosso do Sul.

A obra que aqui apresentamos é resultado de suas pesquisas etnográficas nas aldeias Kaiowá de Sassoró e Jaguapiré, Mato Grosso do Sul. Ao longo dos três capítulos que compõem a obra, o autor centralizou seus estudos na escolarização promovida por órgãos públicos nas aldeias e nos impactos deste processo na educação escolar tradicional das famílias Kaiowá; seguem-se análises sobre a construção da educação indígena a partir do olhar de muitas famílias extensas, incluindo-se discursos de líderes religiosos e das novas gerações escolarizadas.

No primeiro capítulo, Benites pontua as tradições de conhecimento nas aldeias e a história de formas de dominação, desde a conquista europeia até a Guerra do Paraguai. Para o autor, os Guaranis são um povo resistente, pois, apesar dos contatos com os grupos colonialistas dominadores, eles mantêm até o tempo presente um modo comum de ser, viver e falar sua língua materna. Neste processo colonialista são analisados os trabalhos nos ervais, o sistema de aldeamento e a ação missionária. Para o autor, historicamente, os povos indígenas foram expulsos e desvinculados pelo Estado brasileiro de seus territórios antigos, que foram comercializados mediante leis que favoreciam principalmente os latifundiários. O Estado passou a considerar os indígenas, jurídica e socialmente, seres não civilizados, que estariam ainda em processo de evolução humana. Para Benites, a postura do governo brasileiro contribuiu para acentuar a discriminação e a manutenção de estigmas contra os indígenas.

Segundo Benites, os espaços territoriais conhecidos como reservas indígenas, nos quais os índios devem viver, são sítios de confinamento, nos quais os Guaranis e Kaiowás limitam seus modos autônomos de vivência e às vezes passam fome, miséria e perdem referências e tradições culturais.

Ainda neste capítulo, o autor analisa a constituição histórica das aldeias Kaiowá de Sassoró e Jaguapiré, nas bacias do rio Iguatemi, de Mato Grosso do Sul e os conflitos e divergências em relação à interferência do Estado ao impor um modelo de educação escolar denominada escola polo indígena municipal.

No capítulo seguinte, “Organização social e transmissão de conhecimentos entre os Ava kaiowá”, Benites nos brinda com uma análise da organização política e doméstica na perspectiva familiar e geracional e segue contemplando os rituais, normas, comportamentos, namoro-casamento, interferências religiosas externas e conflitos intra e intercomunitários. O autor finaliza o capítulo com a explicação do processo de educação de jovens e crianças pela família e comunidade, com ênfase nos espaços, e das técnicas e rituais de transmissão de conhecimento em práticas cotidianas. Para Benites, as crianças e jovens aprendem como devem viver e se comportar, de acordo com as práticas de cada família extensa.

No último capítulo, “Os Ava em face da educação escolar”, o autor aborda algumas lógicas e práticas escolares, religiosas e governamentais nas aldeias. Benites inova ao interpretar a educação escolar formal a partir do olhar dos Ava Kaiowá, ou seja, das famílias e dos líderes religiosos. O autor também enfatiza que há um entendimento de algumas famílias de que o ensino da escrita e a educação formal são fonte de diversos saberes, prestígio e poder político dos não indígenas. Para muitas famílias, a escola constitui uma instituição externa, que complementa sua educação tradicional. Por fim, Benites analisa o movimento indígena Kaiowá, que reivindicou a especialização de professores indígenas a partir da década de 90; esse projeto foi denominado “Ara Verá”. O autor conclui que, mesmo com o movimento, as atividades educativas nas aldeias permaneceram sob o domínio dos missionários da missão Evangélica Caiuá.

Eis o conjunto de interpretações produzidas pelo antropólogo Benites que constitui uma importante referência para pessoas ávidas por um saber aberto para a construção do novo, para o respeito ao diferente, ou seja, conforme as palavras do próprio autor: “[…] entende-se que esta escola indígena nas aldeias deve […] estar a serviço da diversidade de ser e de viver de cada família extensa contemporânea, o Ava kuera reko reta (‘modo de ser múltiplo’)”.

Tânia Regina Zimmermann – Professora Doutora do Curso de História da Universidade Estadual do Mato Grosso do Sul, unidade de Amambai. E-mail: zimmermanntania@hotmail.com.