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Os cristãos e a política no Brasil contemporâneo: laicidade em disputa, Estado em colapso, religião em efervescência / Revista Brasileira de História das Religiões / 2021
O presente dossiê teve contribuição de treze excelentes textos que nos ajudam a contribuir a atuação intercessão entre cristãos e a política brasileira mais recente. Pode-se dizer que política e religião a cada momento, a cada nova configuração governamental se relacionam de forma distintas tal como narram Judith Butler e Gayatri Spivak (2007) sobre a arena dos diferentes estados nacionais. Agora, nos diferentes estados acaba que se tornou em alguns aspectos, caracterizado pelo questionamento da laicidade por seus atravessamentos.
1 A laicidade e o esboço de suas formas
Assim, uma questão da hora que se coloca sobre as desventuras de religião e política é sobre o aparato caraterizado como “laicidade” no âmbito dos Estados, sobretudo, nas questões da abstenção da religião. Esse sentido e grau de abstenção envolve no âmbito da sociedade uma infinidade de “embates de interpretações envolvidos sobretudo nos nichos promotores e suas diferentes apreensões religiosas” (RICOEUR, 1995, p.313). Esse curto-circuito de intensos conflitos foram apontados em linhas gerais em importante entrevista de Paul Ricoeur de 1995 – um dos raros textos que tratou dessa topografia teórico-social.
A definição de laicidade, as conexões de religião e política no âmbito dos Estados, é primeiro uma variável da conjuntura da gestão governamental do estado. Paul Ricoeur (1995) admite sobre isso que a noção de laicidade é diferente no Egito, na França, Portugal, Gabão e Inglaterra, nisso se alinha com teóricos com Nicos Poullantzas (1976), Judith Butler e Gayatri Spivak (2007) que a interpelação nos estados é uma variável local dependente de cada história social da religião oficial e do conjunto de forças hegemônicas. Por exemplo, Poullantzas (1976) indica que a Inglaterra respeita seu processo de laicidade respaldando os conflitos religiosos internos, mesmo assumindo, a partir a figura da rainha como liderança rainha e dirigente anglicanismo. A laicidade inglesa é descrita por Christian Smith (2003) vai designar de aberta para experiencias de fé, mesmo dando a primazia para o cristianismo de Westminster.
De igual forma Smith (2003) escreve sobre a França emergida no ambiente da Revolução Francesa, prorrogou um critério de laicidade, de retirada de símbolos e expressões religiosas dentro dos gabinetes até o ano de 2018. Por isso, Smith (2003) vai chamar o estado francês de “fechado” as discussões, diálogos e embates das expressões de fé. A partir de 2013, com uma série de campanhas e levantes mulçumanos e de migrantes acarretou na revisão da noção francesa de abolição de símbolos religiosos, até porque ocorriam cobranças das populações mulçumanas por conta das rezas diárias que se fazem na direção de Meca. Essa revisão de décadas da laicidade francesa se deu como uma série de acusações das populações emigradas que se referiram “o racionalismo europeu como racista” (PORTIER, 2019).
2 Laicidade no âmbito da sociedade
A noção de laicidade brasileira é ligada a laicidade portuguesa, uma forma mista das operações dos ambientes ingleses e franceses. Por isso Smith (2003) utiliza a expressão laicidades “mistas”, o que se torna mais desafiadora para as análises, pois admite internamente duplicidades de narrativas e aparentes contradições de argumentos.
Só por isso, afirma-se a importância desta edição da Revista Brasileira de Histórias das Religiões/ANPUH, com a discussão sobre cristãos e política em tempos difíceis.
Ao olhar mais o panorama da sociedade, ainda que sobre as sinalizações dos teóricos franceses, Phillip Portier (2011, p.190-195) indica-se que exista “há a laicidade do Estado, que pode ser referida com uma palavra: abstenção, com conotações restritiva e negativa”. O “Estado laico deve assumir papel de neutralidade em relação à religião e, consequentemente, às instituições religiosas” (PORTIER, 2011, p.195). Logo, seus representantes e estatutos não deveriam privilegiar ou posicionar-se de maneira agressiva em relação a nenhuma manifestação religiosa, o que para Paul Ricoeur (1995) esse caminho seria de uma espécie de “agnosticismo estatal”. Nesse sintagma a separação entre Estado e religião não implica simples ignorância de um em relação ao outro, mas, “há o intento de delimitar de maneira adequada o papel de cada um, de maneira que a religião seja reconhecida pelo Estado como entidade, com regimentos, registro e estatuto público, submetida às leis que regem os demais grupos e agremiações sociais” (RICOEUR, 1997, p.81).
Em termos jurídicos as instituições religiosas não têm o poder centralizador, configurando-se como mais uma associação dentre as outras, portanto, a religião não é “todo o estado, mas parte dele” (PORTIER, 2011, p.196). Paul Ricoeur (1995 p. 181), está convencido de que este conceito de laicização se mostra mais normativo do que efetivo, quando diz: “creio que é preciso ter mais sentido histórico e menos ideológico, para abordar os problemas ligados à laicidade”. O que se quer esmiuçar: os diversos Estados-nação, a partir de sua formação histórica peculiar, há mobilizações próprias sobre as religiões e as instituições estatais.
Junto a esse conceito de laicidade existe outro mais dinâmico. Quando se analisa no âmbito da sociedade civil, a laicidade coloca-se como embate de posicionamentos distintos, como pluralidade e diversidade de perspectivas. Esses conflitos de posicionamentos pressupõe uma sociedade marcada pelo pluralismo de concepções de mundo, de crenças, de ideias, de ideologias, de interpretações e de convicções. Em uma sociedade marcada por esta diversidade, a laicidade assume caráter dinâmico em razão do campo de disputas que se instaura. Esse “conflito de interpretações” não tem por objetivo a harmonização, um consenso. Mas, antes, assume-se que, em muitas questões, a impossibilidade de um acordo é patente. O que não é negativo, desde que se preserve as partes em desacordo. O conflito das interpretações, desde que se preserve os atores e seus argumentos, é uma forma de preservação das liberdades e dos conjuntos.
3 Tensões e questões da laicidade em disputa no Brasil
No Brasil atual, em que cada vez mais se aumentam os atravessamentos entre religião e política, deve-se lembrar que os conflitos de interpretações religiosas são inerentes a formação do Estado republicano (1889) que se mantém neutro, ao menos oficialmente, em relação a instituições religiosas, ou então, deveria ser mantido. Com esses dados sobre religião e política no Brasil podemos vislumbrar incursões dos atores religiosos, em especial católicos e evangélicos, na construção de uma patrulha ideológica nos postos do Estado brasileiro e sua ocupação efetiva, e, todos os níveis, local, regional e federal e se espraiando pelos três poderes. Daí a importância desse dossiê, e sobretudo, que a laicidade brasileira não seja um conceito dado, fixo, mas se encontra em disputa.
É o que se pode perceber, quando o atual Presidente da República, Jair Messias Bolsonaro, afirmou em 2019 no maior evento evangélico do país, a Marcha para Jesus: “O país é laico, mas eu sou cristão”. Está ocorrendo um claro deslocamento da neutralidade do estado, e o se preservando as partes nos conflitos religiosos internos a nossa sociedade (PY, 2020). Por outro lado, isso sempre foi uma ponta de disputa, como por exemplo, com o advento do Estado de 1892, na primeira Carta Constitucional da República, tratou-se sobre a laicidade brasileira, e por conta dela o clero viram a necessidade de tentar “recatolicizar”, e passaram a investir nas novas instituições republicanas, buscando influenciar decisões políticas e sociais por meio da formação de uma elite intelectual católica (SILVEIRA, 2019).
Um dos marcos desse início e reação católica foi a promulgação, em 1916, da Carta Pastoral de Dom Sebastião Leme, arcebispo de Olinda e Recife, tornou-se, mais tarde, arcebispo e cardeal do Rio de Janeiro pelas mãos do Papa Pio XI (SILVEIRA, 2019). A Carta Pastoral fazia parte de um momento que se delineava desde a origem da República Brasileira, quando a Igreja Católica reuniu suas forças para consolidar reformas internas, como o recrutamento de novos membros estrangeiros para as ordens religiosas, a criação de novas dioceses e a consolidação de um discurso e de uma ação mais homogêneos (SILVEIRA, 2019). Assim, o dossiê apresentará uma série de reflexões teóricas e de objetos empíricos, construtos de seus autores e autoras, na forma de treze artigos que brindam os leitores e pesquisadores dos temas do Brasil contemporâneo.
4 Os artigos do dossiê
Logo em seguida, o trabalho intitulado “Pela “família tradicional”: campanha de candidatos evangélicos para a ALEP nas eleições de 2018”, escrito pelos pesquisadores Frank Antonio Mezzomo, Lucas Alves da Silva, Cristina Satiê de Oliveira Pátaro, discutem a partir do material de campanha (coletado nas redes sociais e sites) de alguns candidatos a deputados estaduais no estado do Paraná, seus posicionamentos políticos. Os temas centrais encontrados em geral foram: a defesa da escola sem partido, a luta contra a ideologia de gênero, e debates sobre a reprodução da vida. A preocupação destes candidatos é em geral com temas religiosos e morais.
A pesquisadora-docente Dora Deise Stephan Moreira contribui com o artigo denominado “A trajetória de Marcelo Crivella: de cantor gospel a prefeito da segunda maior cidade brasileira em 2016”. O texto discute as ações adotadas pela Igreja Universal do Reino de Deus (IURD), para eleger inicialmente para o cargo de senador o bispo licenciado Marcelo Crivella, e depois, ao cargo a prefeitura do Rio de Janeiro que foi eleito em 2012. A dança entre a imagem religiosa e a imagem política se complexifica e é utilizada por Crivella de forma instrumental, ao sabor das circunstâncias políticas-eleitorais. Em todas as campanhas disputadas por Marcelo Crivella houve a vinculação da sua imagem com o projeto Nordeste. Projeto este desenvolvido pela IURD para fins sociais. Percebeu-se a associação do referido político com a questão midiática, assistencial, religiosa e moralista.
O próximo texto a ser apresentado e de autoria do docente da Universidade do Estado do Pará Saulo Baptista. O título do seu trabalho é “Os Evangélicos e o Processo Republicano Brasileiro”. No início do seu trabalho, o autor faz uma recapitulação histórica da chegada dos protestantes em terras brasileiras e sua presença pública em contraponto a hegemonia católica. Logo em seguida, contextualiza o surgimento e o desenvolvimento dos pentecostais e dos neopentecostais na política brasileira. O texto termina com uma eximia reflexão a respeito da presença dos evangélicos na atual conjuntura política nacional.
O docente Aldimar Jacinto Duarte e Seabra Vinicius contribuem com este número com o texto chamado “O campo político e o campo religioso a partir dos jovens ligados a International Fellowship of Evangelical Students (IFES) na América Latina”. Muito interessante a reflexão desenvolvida a respeito da postura, aparentemente, apolítica do grupo do IFES. Para chegar a esta conclusão foram aplicados questionário via Google-Forms em vinte países da América Latina, obtendo 228 respostas. A análise dos dados foi feita a partir dos conceitos da teoria de Pierre Bourdieu. Tal grupo é majoritariamente formado por jovens universitários.
Os pesquisadores Ricardo Ramos Shiota e Michelli de Souza Possmozer escreveram o texto denominado “O Brasil cristão da Frente Parlamentar Evangélica: luta pela hegemonia e revolução passiva”, que discute a partir das informações contidas no Facebook da Frente Parlamentar Evangélica (FPE), criada em abril de 2019. Sabemos que a FPE é entusiasta apoiadora do governo Jair Bolsonaro (sem partido), sobretudo pelo alinhamento ideológico na defesa das pautas de costume ou morais, fundamentalismo religioso e defesa de postura vinculadas aos expecto ideológico de extrema direita. Foram analisadas 209 publicações, entre 01 de abril e 31 de outubro de 2019. A teoria escolhida para analisar os dados foram os conceitos desenvolvidos por Gramsci.
Os autores Cézar de Alencar Arnaut de Toledo e William Robson Cazavechia adotaram como título do texto, “As Formas de Adaptabilidade do Neopentecostalismo Brasileiro à Mídia” e discutem a presença do conservadorismo religioso neopentecostal na mídia brasileira. Historicamente os evangélicos tiveram concessão de rádio, tv, criaram páginas de internet, e o uso das redes sociais com o intuito de posicionarem a respeito dos mais variados temas nacionais na perspectiva do fundamentalismo cristão. O texto é instigante e nos mostra como a mídia é bem trabalhada por este grupo religioso no Brasil.
O texto publicado foi de autoria dos autores Fabio Lanza, Luiz Ernesto Guimarães, José Neves Jr. e Raíssa Rodrigues, cujo título é “Engajamento político e Renovação Carismática Católica em Londrina-PR (2014-2016)”. O texto discute os posicionamentos políticos dos grupos católicos carismáticos (RCC) na cidade de Londrina inteiro de São Paulo. A partir de visitas de campo e entrevistas semiestruturadas, os autores conseguiram perceber a visão de mundo das lideranças deste universo religioso sobre o atual momento político brasileiro, Em geral, os representantes ou postulantes da RCC a cargo para o poder legislativa ou executivo, defendem pautas conservadoras, são fundamentalistas religiosos e benefícios institucionais para organismos de inspiração carismática católica e outros segmentos da Igreja Católica no Brasil.
Ao discutir o governo Bolsonaro na relação religião e política, a união entre católicos e evangélicos tem evidenciado de forma rotineira. O texto “Entre a articulação e a desproporcionalidade: relações do Governo Bolsonaro com as forças conservadoras católicas e evangélicas” escrito por Marcelo Ayres Camurça Lima e Paulo Victor Zaquieu-Higino tenta compreender se esta aproximação pode ser caracterizada como uma ação ecumênica de extrema-direita, num contramovimento do que no passado caracterizou as tentativas de aproximação entre os diferentes grupos cristãos em torno, por exemplo, da Teologia da Libertação e das lutas sociais na América Latina. Uma forte indagação é feita e discutida ao longo do texto: nessa trama religioso-política de extrema-direita, o catolicismo estaria sendo “eclipsado” e o pentecostalismo destacado? Não tenha dúvida que o atual governo aciona a religião para fundamentar suas ações e visões de mundo na política.
O próximo trabalho a ser apresentado traz como título “Guerras culturais e a relação entre religião e política no Brasil contemporâneo” escrito pelos pesquisadores Roberto Dutra e Karine Pessôa. O texto versa da presença da moralidade na política, provocada pela religião nas eleições de 2018. Os autores recorrem as categorias da sociologia política sistêmica de Niklas Luhmann para analisar o fenômeno religião e política na eleição referida.
O artigo chamado “A ‘governabilidade’ petista” escrito pela pesquisadora Amanda Mendonça é bem interessante e supre lacuna na literatura a cerca religião e política, que versa sobre a relação do Partido dos Trabalhadores (PT) com os pentecostais e os católicos, no período que esteve à frente da presidência do Brasil. A autora mostra que evangélicos e católicos uniram-se em torno da defesa de pautas conservadoras e, ainda que dando alguma sustentação político-partidária, causaram conflitos com a gestão petistas por entenderem que a “essência” do governo era contrária ao seu ideário religioso. Por outro lado, os governos petistas ofereceram alianças, cargos e apoio direto e indireto – subvenção de comunidades terapêuticas religiosas para o tratamento de drogadições, concessões de rádio e TV por exemplo – aos grupos cristãos em nome da governabilidade, essa geringonça feita de modos heteróclitos e que em 2018 entrou em um novo patamar de crise.
Os pesquisadores do campo das relações internacionais Anna Carletti e Fábio Nobre com o texto intitulado “A Religião Global no contexto da pandemia de Covid-19 e as implicações político-religiosas no Brasil”, nos mostra como líderes religiosos no Brasil e no mundo reagiram a pandemia Covid-19. Os pesquisadores André Ricardo de Souza e Breno Minelli Batista contribuem com o trabalho intitulado “Os efeitos políticos no Brasil dos sete anos iniciais do Papa Francisco”, tentando compreender as relações políticas e religiosas do Papa Francisco com o governo Jair Bolsonaro (sem partido). Sabemos que o Papa Francisco assume o papado em 2013, logo após, a renúncia do atual Papa Emérito Papa Bento XVI.
E por fim, o docente Graham McGeoch com o trabalho “Field Notes from Brazil: We don’t believe in Democracy”, faz uma interessante reflexão da presença dos elementos religiosos na atual conjuntura política brasileira, elegendo a eleição e o governo Bolsonaro como tema de análise. Daí, extraímos algumas perguntas: Que tipo de democracia é esta que temos e o porquê ela se enredou em uma trama político-religiosa de extrema-direita? É possível acreditar nesse tipo de democracia? E, por fim, que outra democracia podemos sonhar para sairmos uma relação disfuncional, inflamada e perversa entre cristianismo reacionário e política estatal (um estado de sítio) que a democracia liberal-representativa permitiu vir à luz.
Referências
BUTLER, Judith; SPIVAK, Gayatri. Who sings the Nation-State? Language, Politics, Belonging. New York: Seagull. 2007
POULANTZAS, Nicos (Org.), La Crise de l’État. Paris : Presses Universitaires de France, 1979.
PY, Fábio. Pandemia cristofascista. São Paulo: Recriar, 2020.
RICOEUR, Paul. Phenomenology and the social sciences. In: KOREBAUM, M. (Org.). Annals of Phenomenological Sociology, Ohio: Wright State University, 1977.
RICOEUR, Paul. O conflito das interpretações. Ensaios de hermenêutica. Rio de Janeiro: Imago, 1978.
RICOEUR, P. Leituras 1. Em torno ao Político. São Paulo: Edições Loyola, 1995.
SMITH, Christian. The secular revolution: power, interests, and conflict in the secularization of American public life. Berkeley: University of California Press, 2003.
SILVEIRA, Emerson. J. S. Padres conservadores em armas: o discurso público da guerra cultural entre católicos. Reflexão, PUCCAMPINAS, v. 43, 2019, p. 289-309.
Fábio Py – Professor do Programa de Políticas Sociais da Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Riveiro. E-mail: pymurta@gmail.com. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-7634-8615.
Emerson Sena da Silveira – Doutor em Ciência da Religião, antropólogo, professor do Departamento e do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Religião da Universidade Federal de Juiz de Fora, MG. E-mail: emerson.pesquisa@gmail.com. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-5407-596X.
Marcos Vinicius Reis Freitas – Doutor em Sociologia pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Docente do Curso de Pós-Graduação em História Social pela UNIFAP, Docente do Curso de Pós-Graduação em Ensino de História (PROFHISTORIA). (CEPRES-UNIFAP/CNPq). E-mail para contato: marcosvinicius5@yahoo.com.br. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-0380-3007.
PY, Fábio; SILVEIRA, Emerson Sena da; FREITAS, Marcos Reis. Apresentação – Os cristãos e a política no Brasil contemporâneo: laicidade em disputa, Estado em colapso, religião em efervescência. Revista Brasileira de História das Religiões. Marigá, v.13, n.39, p.5-12, jan. / abr. 2021. Acessar publicação original [IF].
Religião e política no mundo contemporâneo / Revista Brasileira de História das Religiões / 2020
Os cristãos e a política no Brasil contemporâneo: laicidade em disputa, Estado em colapso, religião em efervescência
O presente dossiê teve contribuição de treze excelentes textos que nos ajudam a contribuir a atuação intercessão entre cristãos e a política brasileira mais recente. Pode-se dizer que política e religião a cada momento, a cada nova configuração governamental se relacionam de forma distintas tal como narram Judith Butler e Gayatri Spivak (2007) sobre a arena dos diferentes estados nacionais. Agora, nos diferentes estados acaba que se tornou em alguns aspectos, caracterizado pelo questionamento da laicidade por seus atravessamentos.
1 A laicidade e o esboço de suas formas
Assim, uma questão da hora que se coloca sobre as desventuras de religião e política é sobre o aparato caraterizado como “laicidade” no âmbito dos Estados, sobretudo, nas questões da abstenção da religião. Esse sentido e grau de abstenção envolve no âmbito da sociedade uma infinidade de “embates de interpretações envolvidos sobretudo nos nichos promotores e suas diferentes apreensões religiosas” (RICOEUR, 1995, p.313). Esse curto-circuito de intensos conflitos foram apontados em linhas gerais em importante entrevista de Paul Ricoeur de 1995 – um dos raros textos que tratou dessa topografia teórico-social.
A definição de laicidade, as conexões de religião e política no âmbito dos Estados, é primeiro uma variável da conjuntura da gestão governamental do estado. Paul Ricoeur (1995) admite sobre isso que a noção de laicidade é diferente no Egito, na França, Portugal, Gabão e Inglaterra, nisso se alinha com teóricos com Nicos Poullantzas (1976), Judith Butler e Gayatri Spivak (2007) que a interpelação nos estados é uma variável local dependente de cada história social da religião oficial e do conjunto de forças hegemônicas. Por exemplo, Poullantzas (1976) indica que a Inglaterra respeita seu processo de laicidade respaldando os conflitos religiosos internos, mesmo assumindo, a partir a figura da rainha como liderança rainha e dirigente anglicanismo. A laicidade inglesa é descrita por Christian Smith (2003) vai designar de aberta para experiencias de fé, mesmo dando a primazia para o cristianismo de Westminster.
De igual forma Smith (2003) escreve sobre a França emergida no ambiente da Revolução Francesa, prorrogou um critério de laicidade, de retirada de símbolos e expressões religiosas dentro dos gabinetes até o ano de 2018. Por isso, Smith (2003) vai chamar o estado francês de “fechado” as discussões, diálogos e embates das expressões de fé. A partir de 2013, com uma série de campanhas e levantes mulçumanos e de migrantes acarretou na revisão da noção francesa de abolição de símbolos religiosos, até porque ocorriam cobranças das populações mulçumanas por conta das rezas diárias que se fazem na direção de Meca. Essa revisão de décadas da laicidade francesa se deu como uma série de acusações das populações emigradas que se referiram “o racionalismo europeu como racista” (PORTIER, 2019).
2 Laicidade no âmbito da sociedade
A noção de laicidade brasileira é ligada a laicidade portuguesa, uma forma mista das operações dos ambientes ingleses e franceses. Por isso Smith (2003) utiliza a expressão laicidades “mistas”, o que se torna mais desafiadora para as análises, pois admite internamente duplicidades de narrativas e aparentes contradições de argumentos. Revista Brasileira de História das Religiões. Só por isso, afirma-se a importância desta edição da Revista Brasileira de Histórias das Religiões / ANPUH, com a discussão sobre cristãos e política em tempos difíceis.
Ao olhar mais o panorama da sociedade, ainda que sobre as sinalizações dos teóricos franceses, Phillip Portier (2011, p.190-195) indica-se que exista “há a laicidade do Estado, que pode ser referida com uma palavra: abstenção, com conotações restritiva e negativa”. O “Estado laico deve assumir papel de neutralidade em relação à religião e, consequentemente, às instituições religiosas” (PORTIER, 2011, p.195). Logo, seus representantes e estatutos não deveriam privilegiar ou posicionar-se de maneira agressiva em relação a nenhuma manifestação religiosa, o que para Paul Ricoeur (1995) esse caminho seria de uma espécie de “agnosticismo estatal”. Nesse sintagma a separação entre Estado e religião não implica simples ignorância de um em relação ao outro, mas, “há o intento de delimitar de maneira adequada o papel de cada um, de maneira que a religião seja reconhecida pelo Estado como entidade, com regimentos, registro e estatuto público, submetida às leis que regem os demais grupos e agremiações sociais” (RICOEUR, 1997, p.81).
Em termos jurídicos as instituições religiosas não têm o poder centralizador, configurando-se como mais uma associação dentre as outras, portanto, a religião não é “todo o estado, mas parte dele” (PORTIER, 2011, p.196). Paul Ricoeur (1995 p. 181), está convencido de que este conceito de laicização se mostra mais normativo do que efetivo, quando diz: “creio que é preciso ter mais sentido histórico e menos ideológico, para abordar os problemas ligados à laicidade”. O que se quer esmiuçar: os diversos Estados-nação, a partir de sua formação histórica peculiar, há mobilizações próprias sobre as religiões e as instituições estatais.
Junto a esse conceito de laicidade existe outro mais dinâmico. Quando se analisa no âmbito da sociedade civil, a laicidade coloca-se como embate de posicionamentos distintos, como pluralidade e diversidade de perspectivas. Esses conflitos de posicionamentos pressupõe uma sociedade marcada pelo pluralismo de concepções de mundo, de crenças, de ideias, de ideologias, de interpretações e de convicções. Em uma sociedade marcada por esta diversidade, a laicidade assume caráter dinâmico em razão do campo de disputas que se instaura. Esse “conflito de interpretações” não tem por objetivo a harmonização, um consenso. Mas, antes, assume-se que, em muitas questões, a impossibilidade de um acordo é patente. O que não é negativo, desde que se preserve as partes em desacordo. O conflito das interpretações, desde que se preserve os atores e seus argumentos, é uma forma de preservação das liberdades e dos conjuntos.
3 Tensões e questões da laicidade em disputa no Brasil
No Brasil atual, em que cada vez mais se aumentam os atravessamentos entre religião e política, deve-se lembrar que os conflitos de interpretações religiosas são inerentes a formação do Estado republicano (1889) que se mantém neutro, ao menos oficialmente, em relação a instituições religiosas, ou então, deveria ser mantido. Com esses dados sobre religião e política no Brasil podemos vislumbrar incursões dos atores religiosos, em especial católicos e evangélicos, na construção de uma patrulha ideológica nos postos do Estado brasileiro e sua ocupação efetiva, e, todos os níveis, local, regional e federal e se espraiando pelos três poderes. Daí a importância desse dossiê, e sobretudo, que a laicidade brasileira não seja um conceito dado, fixo, mas se encontra em disputa.
É o que se pode perceber, quando o atual Presidente da República, Jair Messias Bolsonaro, afirmou em 2019 no maior evento evangélico do país, a Marcha para Jesus: “O país é laico, mas eu sou cristão”. Está ocorrendo um claro deslocamento da neutralidade do estado, e o se preservando as partes nos conflitos religiosos internos a nossa sociedade (PY, 2020). Por outro lado, isso sempre foi uma ponta de disputa, como por exemplo, com o advento do Estado de 1892, na primeira Carta Constitucional da República, tratou-se sobre a laicidade brasileira, e por conta dela o clero viram a necessidade de tentar “recatolicizar”, e passaram a investir nas novas instituições republicanas, buscando influenciar decisões políticas e sociais por meio da formação de uma elite intelectual católica (SILVEIRA, 2019).
Um dos marcos desse início e reação católica foi a promulgação, em 1916, da Carta Pastoral de Dom Sebastião Leme, arcebispo de Olinda e Recife, tornou-se, mais tarde, arcebispo e cardeal do Rio de Janeiro pelas mãos do Papa Pio XI (SILVEIRA, 2019). A Carta Pastoral fazia parte de um momento que se delineava desde a origem da República Brasileira, quando a Igreja Católica reuniu suas forças para consolidar reformas internas, como o recrutamento de novos membros estrangeiros para as ordens religiosas, a criação de novas dioceses e a consolidação de um discurso e de uma ação mais homogêneos (SILVEIRA, 2019). Assim, o dossiê apresentará uma série de reflexões teóricas e de objetos empíricos, construtos de seus autores e autoras, na forma de treze artigos que brindam os leitores e pesquisadores dos temas do Brasil contemporâneo.
4 Os artigos do dossiê
Logo em seguida, o trabalho intitulado “Pela “família tradicional”: campanha de candidatos evangélicos para a ALEP nas eleições de 2018”, escrito pelos pesquisadores Frank Antonio Mezzomo, Lucas Alves da Silva, Cristina Satiê de Oliveira Pátaro, discutem a partir do material de campanha (coletado nas redes sociais e sites) de alguns candidatos a deputados estaduais no estado do Paraná, seus posicionamentos políticos. Os temas centrais encontrados em geral foram: a defesa da escola sem partido, a luta contra a ideologia de gênero, e debates sobre a reprodução da vida. A preocupação destes candidatos é em geral com temas religiosos e morais.
A pesquisadora-docente Dora Deise Stephan Moreira contribui com o artigo denominado “A trajetória de Marcelo Crivella: de cantor gospel a prefeito da segunda maior cidade brasileira em 2016”. O texto discute as ações adotadas pela Igreja Universal do Reino de Deus (IURD), para eleger inicialmente para o cargo de senador o bispo licenciado Marcelo Crivella, e depois, ao cargo a prefeitura do Rio de Janeiro que foi eleito em 2012. A dança entre a imagem religiosa e a imagem política se complexifica e é utilizada por Crivella de forma instrumental, ao sabor das circunstâncias políticas-eleitorais. Em todas as campanhas disputadas por Marcelo Crivella houve a vinculação da sua imagem com o projeto Nordeste. Projeto este desenvolvido pela IURD para fins sociais. Percebeu-se a associação do referido político com a questão midiática, assistencial, religiosa e moralista.
O próximo texto a ser apresentado e de autoria do docente da Universidade do Estado do Pará Saulo Baptista. O título do seu trabalho é “Os Evangélicos e o Processo Republicano Brasileiro”. No início do seu trabalho, o autor faz uma recapitulação histórica da chegada dos protestantes em terras brasileiras e sua presença pública em contraponto a hegemonia católica. Logo em seguida, contextualiza o surgimento e o desenvolvimento dos pentecostais e dos neopentecostais na política brasileira. O texto termina com uma eximia reflexão a respeito da presença dos evangélicos na atual conjuntura política nacional.
O docente Aldimar Jacinto Duarte e Seabra Vinicius contribuem com este número com o texto chamado “O campo político e o campo religioso a partir dos jovens ligados a International Fellowship of Evangelical Students (IFES) na América Latina”. Muito interessante a reflexão desenvolvida a respeito da postura, aparentemente, apolítica do grupo do IFES. Para chegar a esta conclusão foram aplicados questionário via GoogleForms em vinte países da América Latina, obtendo 228 respostas. A análise dos dados foi feita a partir dos conceitos da teoria de Pierre Bourdieu. Tal grupo é majoritariamente formado por jovens universitários.
Os pesquisadores Ricardo Ramos Shiota e Michelli de Souza Possmozer escreveram o texto denominado “O Brasil cristão da Frente Parlamentar Evangélica: luta pela hegemonia e revolução passiva”, que discute a partir das informações contidas no Facebook da Frente Parlamentar Evangélica (FPE), criada em abril de 2019. Sabemos que a FPE é entusiasta apoiadora do governo Jair Bolsonaro (sem partido), sobretudo pelo alinhamento ideológico na defesa das pautas de costume ou morais, fundamentalismo religioso e defesa de postura vinculadas aos expecto ideológico de extrema direita. Foram analisadas 209 publicações, entre 01 de abril e 31 de outubro de 2019. A teoria escolhida para analisar os dados foram os conceitos desenvolvidos por Gramsci.
Os autores Cézar de Alencar Arnaut de Toledo e William Robson Cazavechia adotaram como título do texto, “As Formas de Adaptabilidade do Neopentecostalismo Brasileiro à Mídia” e discutem a presença do conservadorismo religioso neopentecostal na mídia brasileira. Historicamente os evangélicos tiveram concessão de rádio, tv, criaram páginas de internet, e o uso das redes sociais com o intuito de posicionarem a respeito dos mais variados temas nacionais na perspectiva do fundamentalismo cristão. O texto é instigante e nos mostra como a mídia é bem trabalhada por este grupo religioso no Brasil.
O texto publicado foi de autoria dos autores Fabio Lanza, Luiz Ernesto Guimarães, José Neves Jr. e Raíssa Rodrigues, cujo título é “Engajamento político e Renovação Carismática Católica em Londrina-PR (2014-2016)”. O texto discute os posicionamentos políticos dos grupos católicos carismáticos (RCC) na cidade de Londrina inteiro de São Paulo. A partir de visitas de campo e entrevistas semiestruturadas, os autores conseguiram perceber a visão de mundo das lideranças deste universo religioso sobre o atual momento político brasileiro, Em geral, os representantes ou postulantes da RCC a cargo para o poder legislativa ou executivo, defendem pautas conservadoras, são fundamentalistas religiosos e benefícios institucionais para organismos de inspiração carismática católica e outros segmentos da Igreja Católica no Brasil.
Ao discutir o governo Bolsonaro na relação religião e política, a união entre católicos e evangélicos tem evidenciado de forma rotineira. O texto “Entre a articulação e a desproporcionalidade: relações do Governo Bolsonaro com as forças conservadoras católicas e evangélicas” escrito por Marcelo Ayres Camurça Lima e Paulo Victor Zaquieu-Higino tenta compreender se esta aproximação pode ser caracterizada como uma ação ecumênica de extrema-direita, num contramovimento do que no passado caracterizou as tentativas de aproximação entre os diferentes grupos cristãos em torno, por exemplo, da Teologia da Libertação e das lutas sociais na América Latina. Uma forte indagação é feita e discutida ao longo do texto: nessa trama religioso-política de extrema-direita, o catolicismo estaria sendo “eclipsado” e o pentecostalismo destacado? Não tenha dúvida que o atual governo aciona a religião para fundamentar suas ações e visões de mundo na política.
O próximo trabalho a ser apresentado traz como título “Guerras culturais e a relação entre religião e política no Brasil contemporâneo” escrito pelos pesquisadores Roberto Dutra e Karine Pessôa. O texto versa da presença da moralidade na política, provocada pela religião nas eleições de 2018. Os autores recorrem as categorias da sociologia política sistêmica de Niklas Luhmann para analisar o fenômeno religião e política na eleição referida.
O artigo chamado “A ‘governabilidade’ petista” escrito pela pesquisadora Amanda Mendonça é bem interessante e supre lacuna na literatura a cerca religião e política, que versa sobre a relação do Partido dos Trabalhadores (PT) com os pentecostais e os católicos, no período que esteve à frente da presidência do Brasil. A autora mostra que evangélicos e católicos uniram-se em torno da defesa de pautas conservadoras e, ainda que dando alguma sustentação político-partidária, causaram conflitos com a gestão petistas por entenderem que a “essência” do governo era contrária ao seu ideário religioso. Por outro lado, os governos petistas ofereceram alianças, cargos e apoio direto e indireto – subvenção de comunidades terapêuticas religiosas para o tratamento de drogadições, concessões de rádio e TV por exemplo – aos grupos cristãos em nome da governabilidade, essa geringonça feita de modos heteróclitos e que em 2018 entrou em um novo patamar de crise.
Os pesquisadores do campo das relações internacionais Anna Carletti e Fábio Nobre com o texto intitulado “A Religião Global no contexto da pandemia de Covid-19 e as implicações político-religiosas no Brasil”, nos mostra como líderes religiosos no Brasil e no mundo reagiram a pandemia Covid-19. Os pesquisadores André Ricardo de Souza e Breno Minelli Batista contribuem com o trabalho intitulado “Os efeitos políticos no Brasil dos sete anos iniciais do Papa Francisco”, tentando compreender as relações políticas e religiosas do Papa Francisco com o governo Jair Bolsonaro (sem partido). Sabemos que o Papa Francisco assume o papado em 2013, logo após, a renúncia do atual Papa Emérito Papa Bento XVI.
E por fim, o docente Graham McGeoch com o trabalho “Field Notes from Brazil: We don’t believe in Democracy”, faz uma interessante reflexão da presença dos elementos religiosos na atual conjuntura política brasileira, elegendo a eleição e o governo Bolsonaro como tema de análise. Daí, extraímos algumas perguntas: Que tipo de democracia é esta que temos e o porquê ela se enredou em uma trama político-religiosa de extrema-direita? É possível acreditar nesse tipo de democracia? E, por fim, que outra democracia podemos sonhar para sairmos uma relação disfuncional, inflamada e perversa entre cristianismo reacionário e política estatal (um estado de sítio) que a democracia liberal-representativa permitiu vir à luz.
Referências
BUTLER, Judith; SPIVAK, Gayatri. Who sings the Nation-State? Language, Politics, Belonging. New York: Seagull. 2007.
POULANTZAS, Nicos (Org.), La Crise de l’État. Paris : Presses Universitaires de France, 1979.
PY, Fábio. Pandemia cristofascista. São Paulo: Recriar, 2020.
RICOEUR, Paul. Phenomenology and the social sciences. In: KOREBAUM, M. (Org.). Annals of Phenomenological Sociology, Ohio: Wright State University, 1977.
RICOEUR, Paul. O conflito das interpretações. Ensaios de hermenêutica. Rio de Janeiro: Imago, 1978.
RICOEUR, P. Leituras 1. Em torno ao Político. São Paulo: Edições Loyola, 1995.
SMITH, Christian. The secular revolution: power, interests, and conflict in the secularization of American public life. Berkeley: University of California Press, 2003.
SILVEIRA, Emerson. J. S. Padres conservadores em armas: o discurso público da guerra cultural entre católicos. Reflexão, PUCCAMPINAS, v. 43, 2019, p. 289-309.
Fábio Py – Professor do Programa de Políticas Sociais da Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro. E-mail: pymurta@gmail.com ORCID: https: / / orcid.org / 0000-0002-7634-8615
Emerson Sena da Silveira – Doutor em Ciência da Religião, antropólogo, professor do Departamento e do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Religião da Universidade Federal de Juiz de Fora, MG. E-mail: emerson.pesquisa@gmail.com ORCID: https: / / orcid.org / 0000-0002-5407-596X
Marcos Vinicius Reis Freitas – Doutor em Sociologia pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Docente do Curso de Pós-Graduação em História Social pela UNIFAP, Docente do Curso de Pós-Graduação em Ensino de História (PROFHISTORIA). (CEPRES-UNIFAP / CNPq). E-mail: marcosvinicius5@yahoo.com.br ORCID: https: / / orcid.org / 0000-0002-0380-3007
PY, Fábio; SILVEIRA, Emerson Sena da; FREITAS, Marcos Vinicius Reis. Apresentação. Revista Brasileira de História das Religiões. Maringá, v.13, n.39, jan. / abr. 2020. Acessar publicação original [DR]
Religiosidades e Intolerâncias: reflexões e problemáticas do mundo Moderno à contemporaneidade / Escritas do Tempo / 2019
O recente filme do italiano Alberto Fasulo traz à tona um dos personagens que melhor retratam o problema da intolerância nos primórdios da Modernidade: Menocchio (Itália e Romênia/2018), reconstrói pela linguagem cinematográfica o drama do moleiro Domenico Scandella, que viveu na vila de Montereale, região das colinas do Friuli no século XVI, preso e processado duas vezes pela Inquisição por conta da sua visão de mundo e crenças vistas como ameaça à pureza da Igreja Católica. Sua história foi divulgada por Carlo Ginzburg no magistral O Queijo e os Vermes, de 1976. Menocchio, por sinal, não foi o único a ler a cosmogonia com outros olhos: no Brasil do Setecentos, em épocas de mineração, um certo Pedro Rates de Ranequim também criou sua visão de um catolicismo mestiço, em que os elementos sagrados eram identificados um pouco por todo o lado no trópico, a ponto de eleger a banana como verdadeiro fruto proibido, ao invés da maçã bíblica que teria, segundo o Gênesis, levado Adão e Eva e todos os seus descendentes à desventura eterna.
Da maçã aos nossos dias, as relações do homem com a fé nunca foram as mesmas: Deus já foi entendido e apresentado como uma figura vingativa, impositor de dogmas, que castigava seus filhos pelos mais variados motivos, ou, no caminho oposto, como o que é pleno de misericórdia, definição estrita do mais puro amor. As religiões imputaram sua visão de sagrado, de pecado, de salvação. Para as ciências das religiões, pontua Dix Steffen (2007, p. 27), por não ser possível identificarmos grupos religiosos essencialmente fechados, a saída do pesquisador consistiria em partir para a interdisciplinaridade e, assim, “tornar legíveis as actividades ou os actos religiosos”. Assim, a sociologia, antropologia e a linguística possibilitam a ampliação dos caminhos para os pesquisadores compreenderem a história religiosa e as suas complexidades (JULIA, 1976, p. 117).
Ainda hoje mata-se (supostamente) em nome de Deus. Em vários países, os interesses religiosos se fizeram e fazem presentes em governos, em políticas de saúde, em justificativa de violências. Guerras são travadas, atentados são reivindicados pela disposição em destruir o outro, entendido como aquele que não crê igual. O desfile da Estação Primeira de Mangueira no Carnaval do Rio de Janeiro em 2020 mostra como, para o bem e para o mal, o Divino, as Igrejas e a crenças estão no olho do furacão do mundo caótico em que vivemos, justificando violências ou pedindo paz. É o que mostra a Mangueira quando apresenta um Jesus da Gente, negro, indígena, mulher, pobre, e afirma, numa clara referência ao triste desvelar dos autoritarismos no Brasil de hoje, que “Não tem futuro sem partilha / Nem Messias de arma na mão”. Religião como justificativa para tudo aquilo que, no âmago, ela não prega, seja qual delas for.
Este dossiê que aqui se apresenta tem como objetivo refletir sobre as religiões e religiosidade desde a Época Moderna aos tempos em que vivemos hoje. Neste sentido, reunimos aqui trabalhos que discutem estes temas em diferentes espaços, temporalidades e sentidos, partindo da tolerância ou mesmo da intolerância como chaves de leitura e análise. A Escritas do Tempo ratifica seu interesse em ouvir múltiplas vozes no intuito de procurar entender, sob a lente da História, o papel que o mundo religioso exerce sobre os homens e mulheres, e sobre como esses indivíduos reagem às estruturas da fé que, aliás, também demarcam as relações de poder.
Diante das inquietações aqui sublinhadas, bem como da crescente problemática referente ao binômio tolerância/intolerância no campo das religiões e religiosidades, a Escritas do Tempo, através dos seus organizadores, apresenta ao público leitor os 10 (dez) artigos que compõem esse número, além de 2 (duas) entrevistas que dialogam diretamente com a proposta em questão.
A historiadora Ana Margarida Pereira apresenta uma importante reflexão sobre a atuação histórica da Igreja Católica, desde os primórdios do cristianismo, acerca da escravidão. Seu artigo intitulado “A escravidão na doutrina da Igreja: temas e questões em debate da Antiguidade à época moderna” defende a ideia de que as discussões teológicas e doutrinárias encabeçadas pelos representantes do catolicismo foram conciliadas aos interesses econômicos e políticos dos próprios religiosos e dos Estados Nacionais ao longo da modernidade. Assim, sem questionar profundamente a estrutura escravista, muitas das reflexões produzidas pelos tratadistas do período foram resultado dessa conciliação em prol de articular os interesses materiais com a prática espiritual e religiosa da Igreja.
Também interessado em analisar os discursos religiosos presentes na Época Moderna, o trabalho de Bento Machado Mota, cujo título é “O além dos que estão alémmar: o problema da salvação dos índios em Francisco Suárez”, parte do conceito de ignorância invencível para discutir sobre a problemática da salvação dos gentios. Para isso, o foco das suas análises consiste na teologia construída por Francisco Suárez, jesuíta e, segundo o autor, “o maior expoente do pensamento jesuítico do século XVII”. Inserido no contexto da contrarreforma, o pensamento de Suárez influenciou largamente nas políticas de conversão realizadas no Novo Mundo, principalmente entre os religiosos interessados em ampliar os limites desse conceito.
O artigo de Luzia Tonon da Silva, “Cristianização e Inquisição em Goa: a confessionalização portuguesa e católica no Estado da Índia no século XVI” também está direcionado, de certo modo, ao contexto normativo referente à conversão. Nesse caso, o foco da autora consiste em avaliar a problemática da conversão ao catolicismo vivenciada por homens e mulheres asiáticos no Estado da Índia. Para isso, foram analisadas as provisões e documentos oficiais produzidos pelo Santo Ofício estabelecido em Goa, de modo a mapear a atuação das autoridades nesse espaço.
Igualmente situada nos primeiros momentos da Época Moderna, a historiadora portuguesa Isabel Drumond Braga, com o artigo intitulado “Religiosidade, cultura material e arte: para o estudo dos ex-votos portugueses da Época Moderna ao presente”, apresenta uma importante contribuição sobre a história religiosa de Portugal. Trata-se de um estudo interessado em compreender a importância do ex-voto na composição da religiosidade e da cultura material presentes nesse espaço.
O século XVII também foi contemplado neste dossiê, sendo alvo das reflexões propostas por Regina de Carvalho Ribeiro da Costa, além do trabalho conjunto de Daniela Cristina Nalon e Carla Maria Carvalho de Almeida. Em “Entre dois Manoéis, Moraes e Calado: o libelo dos sacerdotes no Brasil holandês”, as análises de Regina da Costa partem da tolerância como chave de leitura. Situada no período de dominação neerlandesa nas capitanias do Norte, a proposta da autora parte dos Cadernos do Promotor para examinar a atuação inquisitorial nesse espaço e a relação entre os holandeses e o clero católico presente na região. Já em “A trajetória dos cristãos-novos Diogo Correia do Vale e Luis Miguel Correia de Vila Real ao Auto da Fé de 6 de julho de 1732 (1670-1732)”, as historiadoras Daniela Nalon e Carla Almeida se enveredam pela ampla temática cristã-nova. Ao se debruçarem nos processos inquisitoriais de Diogo Correia do Vale e Luis Miguel Correia de Vila Real, ambas as autoras desvendam o cotidiano das Minas Gerais, as relações econômicas e políticas protagonizadas pelos cristãos-novos, sem desconsiderar o ambiente de intolerância religiosa cuja presença do Santo Ofício foi fundamental para a sua sustentação.
A problemática dos judeus convertidos forçadamente ao catolicismo em 1497, bem como dos seus descendentes, foi igualmente discutida no trabalho de João Antônio Lima. Em ““Não há pessoa alguma por pequena que seja que não saiba”: uma família e sua fama de “cristã-novice” no Maranhão setecentista”, o recorte do autor está inserido no Maranhão do século XVII, também ancorados nos estudos influenciados pela microhistória. Nesse caso, a trajetória analisada é a da família de Felipe Camello Brito, investigado pela Cúria diocesana e pelas autoridades inquisitoriais residentes no Maranhão. Também articulando os estudos sobre a Inquisição portuguesa aos pressupostos da micro-história italiana, o historiador Philippe Delfino Sartin, em ““Pera que os bons se nam contaminem com os maos costumes, e vida dos depravados”: o medo das bruxas em São João do Peso (Portugal, século XVIII)”, analisa o desenvolvimento da feitiçaria no bispado da Guarda, em Portugal.
O Pará é espaço de reflexões no artigo de Allan Azevedo de Andrade, intitulado “A evangelização dos “bárbaros da floresta”: D. José Afonso e a cristianização dos índios na diocese do Pará (1844-1857)”. Seu trabalho é uma importante contribuição, quando comparado aos demais trabalhos desse dossiê, pois indica como problema da evangelização das populações indígenas no Novo Mundo foi elemento sensível para as autoridades seculares e religiosas ao longo da Época Moderna. Situado na trajetória do bispo d. José Afonso, que atuou na diocese entre os anos de 1844 a 1857, o autor analisa o contexto dos embates entre os ultramontanos e a tentativa do Estado em submeter a vida religiosa aos seus próprios interesses.
Resultado das suas pesquisas realizadas entre o povo indígena Akwẽ-Xerente, o trabalho de Valéria Moreira Coelho de Melo, “Xamanismo e Cristianismo entre os Akwẽ-Xerente (TO)”, discute, como o próprio título indica, a presença do xamanismo indígena e as suas reelaborações a partir das relações com o cristianismo. De um lado, a autora percebe como o cristianismo possibilita “um meio de democratização” de uma série de atributos tradicionalmente vinculados aos xamãs. Por ouro lado, o xamanismo aparece diluído nas mais diversas práticas dos Akwẽ, não somente sob um caráter religioso, mas, também, na vida cotidiana e nas decisões políticas desse povo.
As manifestações religiosas na contemporaneidade também são abordadas por Ellen Cirilo e Manoel da Silva no trabalho intitulado “Entre batuques e bandeiras de luta: a juventude alagoana nos terreiros de axé”. A proposta do artigo consiste em analisar a formação política e religiosa de alguns adolescentes pertencentes à Juventude de Terreiro chamada “Àbúró N’ilê- RJT/AL”, cuja sede fica em Alagoas.
Na seção de entrevistas, os organizadores deste dossiê entrevistaram a historiadora Laura de Mello e Souza (Lettres Sorbonne Université), pioneira dos estudos sobre religiosidade no Brasil e uma das principais referências sobre o Império português e a sua atuação no Brasil. Trata-se não somente de um testemunho pessoal acerca da sua formação, das principais influências historiográficas, mas, também, uma importante reflexão sobre o ofício do historiador em tempos de intolerância. O historiador Ronaldo Vainfas (UFF) também gentilmente concedeu uma entrevista à Escritas do Tempo. Juntamente com Laura de Mello e Souza, os estudos de Vainfas têm sido desde a década de 1980 referências para a historiografia das religiosidades e das instituições no Brasil-Colônia.
Além do dossiê temático, o atual número da Escritas do Tempo também possui a seção de artigos que acolheu os trabalhos de Andrea Ciacchi e Igor Bruno Cavalcante dos Santos. O primeiro, em “Botânico, ma non solo: a viagem de Luigi Buscalioni na Amazônia em 1899”, se debruça na trajetória de Luigi Buscalioni, reconhecido médico e botânico italiano que, em 1899, foi responsável por uma viagem de pesquisa realizada na Amazônia. Já em “A História da Família como um campo plural de compreensões e de possibilidades na comarca do Rio das Velhas no século XVIII”, o historiador Igor dos Santos articula os pressupostos teóricos e metodológicos presentes no campo da História da Família para investigar a prática do concubinato na Comarca do Rio das Velhas.
Referências
DIX, Steffen. O que significa o estudo das religiões: uma ciência monolítica ou interdisciplinar? Revista lusófona de ciência das religiões, ano VI, n. 11, p. 11-31, 2007.
JULIA, Dominique. “A religião: História religiosa”. In: LE GOFF, Jacques; NORA, Pierre. História: novas abordagens. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves Editora, 1976. p. 106-131.
Marcus Vinicius Reis – Docente da Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará (Unifesspa). Doutor em História pela UFMG. Editor da Revista Escritas do Tempo.
Angelo Adriano Faria de Assis – Docente da Universidade Federal de Viçosa (UFV). Doutor em História pela UFF.
REIS, Marcus Vinicius; ASSIS, Angelo Adriano Faria de. Apresentação. Escritas do Tempo, Pará, v.1, n.3, 2019. Acessar publicação original [DR]
Protagonismos indígenas: diálogos entre História & Ciências Sociais em diferentes tempos e espaços contemporâneos / Revista Brasileira de História & Ciências Sociais / 2018
Em continuidade à primeira parte deste dossiê, abordamos neste número da Revista Brasileira de História & Ciências Sociais – RBHCS um abrangente leque de trabalhos – seja do ponto de vista da periodicidade seja do ponto de vista das regiões sobre os quais se voltam – que conferem visibilidade aos processos que envolvem os indígenas enquanto protagonistas na história do Brasil e de outras regiões da América Latina.
Ao concluir este volume, percebemos como a área de conhecimento relativa aos indígenas na história permanece apresentando lacunas que os estudos já realizados permitem vislumbrar. Neste sentido, abordagens nos campos da demografia social e do meio ambiente na história indígena constituem propostas relativamente inovadoras aqui desenvolvidas.
Conhecer os povos indígenas na história traz ainda o desafio e a perplexidade de compreender que muitos dos aspectos do “passado” neles representado parece, de fato, ainda não ter “passado”, já que muitas de suas formas podem ser percebidas ainda nas trágicas situações contemporâneas que presenciamos hoje, após 30 anos de celebrada a Constituição Cidadã.
Dos nove artigos deste dossiê, a maior parte se volta para o exame de contextos referentes ao Século XIX – cinco deles no Brasil e um na Argentina. Dois dos outros artigos referem-se a contextos estudados ao longo do Século XX e um, último, contemporâneo.
O século XIX foi bastante variado em relação aos regimes políticos nacionais no Brasil, pois inicia como colônia (1500-1822), atravessa mais de seis décadas como Império independente (1822-1889) e termina como República. Entre as legislações que afetaram diretamente os povos indígenas e seus territórios ao longo daquele século no Brasil, especialmente considerando o Segundo Reinado (1845-1889), destacam-se o Regulamento das Missões, de 1845, e a Lei de Terras, de 1850. Neste período além do tráfico negreiro, foi também abolida a escravidão (1888), cujos significados se estendem aos indígenas, muitas das vezes considerados pelas elites como mão-de-obra disponível para substituir a força de trabalho africana.
Seguindo uma ordem cronológica, o presente número do Dossiê inicia com o artigo a quatro mãos das historiadoras Ana Carollina Gutierrez Pompeu e Alessandra González Seixlack, intitulada “Juan Calfulcurá e os crioulos. Protagonismo indígena no Pampa argentino na primeira metade do século XIX”. O artigo aborda a ocupação das áreas indígenas do Pampa pelo Estado argentino, marcada por conflitos e pela negociação. Conhecida como “Negócio Pacífico de Índios”, essa forma de negociação entre indígenas e exército argentino caracterizou-se pelo uso de diplomacia interétnica que fortaleceu personagens como Juan Calfulcurá, durando até a década de 1870, quando o Estado argentino passou a incorporar os territórios antes negociado com os indígenas do Pampa.
O segundo artigo, do historiador André de Almeida Rego analisa a trajetória do índio João Baitinga, que viveu na aldeia de Pedra Branca e no Ribeirão (atuais municípios de Santa Terezinha e Amargosa, na Bahia), no Período Imperial. O artigo intitulado “João Baitinga: análise sobre protagonismo histórico, a partir da trajetória de um índio (Bahia, 1804-1857)”, examina, por meio de sua trajetória biográfica as perdas de direitos experimentadas pelos indígenas ao longo dos processos de formação do Estado brasileiro.
A historiadora Soraia Sales Dornelles apresenta em seu artigo questões resultantes de sua análise sobre a construção de dados estatísticos sobre as populações indígenas na segunda metade do século XIX, com base a província de São Paulo. A autora encara o desafio de interpretar a estratégia da descaracterização identitária sofrida pela população indígena na produção dos dados demográficos presentes ou ausentes nos Relatórios oficiais, que, deste modo, invisibilidade e oficializavam o desaparecimento dos indígenas e de seus descendentes. Seu artigo “A produção da invisibilidade indígena: sobre construção de dados demográficos, apropriação de terras e o apagamento de identidades indígenas na segunda metade do XIX a partir da experiência paulista” dialoga perfeitamente com o de autoria da também historiadora Ana Paula da Silva, que aborda as tessituras do processo de invisibilização da população indígena do Rio de Janeiro oitocentista, por meio da análise dos recenseamentos realizados na Província fluminense. A autora de “Demografia e Povos Indígenas no Rio de Janeiro Oitocentista” coteja ainda as informações censitárias aos relatórios dos presidentes da província e às correspondências oficiais de juízes de órfãos de modo, revelando o discurso oficial do „desaparecimento‟ indígena na prática das autoridades e de políticos interessados nos patrimônios indígenas.
O artigo a seguir, de autoria da antropóloga Izabel Missagia de Mattos aborda, por meio de um exercício histórico-etnográfico espacialmente situado, o ambiente e suas transformações ao longo da história da ocupação de uma região de fronteira nos altos dos rios Doce, Mucuri, Jequitinhonha e São Mateus, acompanhando os indígenas em suas relações com os adventícios, naquele contexto de transição para a República e de formação da nacionalidade brasileira. A categoria teórico-metodológica assume um caráter de centralidade no artigo intitulado “Povos dos Altos Rios Doce, Jequitinhonha, Mucuri e São Mateus (Minas Gerais): paisagens de “perigos” e “pobreza”, transformações e processos identitários”.
No artigo a seguir, o historiador Giovani José da Silva busca reconstituir as memórias de anciãos do povo Kadiwéu a partir das narrativas recolhidas por antropólogos ao longo do século XX e XXI. Em “Protagonismos Indígenas em Mato Grosso (Do Sul): Memórias, Narrativas e Ritual Kadiwéu Sobre a Guerra (Sem Fim) Do Paraguai”, o autor demonstra como, para os indígenas daquele povo, a Guerra do Paraguai jamais seria encerrada. Com efeito, por meio de rituais e outras técnicas mnemônicas, por sucessivas gerações e a despeito de transformações vividas, a memória social Kadiwéu continua a produzir e a reproduzir aquele evento histórico, pleno de significados identitários.
Adentrando o século XX, Cleube Alves Silva, em seu artigo “E os índios corriam por aí – Das lutas pela terra e de um povo indígena no norte de Goiás (1900- 1971)” descreve e discute a dinâmica de ocupação espacial dos Xerente desde os primeiros contatos com os colonizadores até o final do século XX. Procuramos ver a partir de quais contextos o povo Xerente foi se reconfigurando socioculturalmente para manter-se como grupo étnico portador de uma cultura e destinatário de um território.
Por meio de uma parceria interdisciplinar, o jurista João Mitia Antunha Barbosa e o historiador Marcelo Gonzalez Brasil Fagundes procederam, no artigo “Uma revoada de pássaros: o protagonismo indígena no processo Constituinte”, uma revisão bibliográfica sobre os movimentos indígena e indigenista brasileiros na década de 1970, visando a compreender o jogo de forças políticas atuantes no campo do indigenismo ao longo do processo que culminou com a Assembleia Nacional Constituinte e o texto da Constituição Federal de 1988.
E, encerrando o dossiê, o educador e historiador Roberto Kennedy Gomes Franco enfoca em seu artigo “A Experiência Histórico-Educativa entre Docentes Indígenas no Ceará / Brasil (1988-2018)” as reivindicações dos professores e professoras das escolas indígenas do Estado do Ceará, no Nordeste brasileiro. Tais reivindicações de uma escola “com os índios”, em contraste com uma escola “para os índios” encontram-se, por sua vez, relacionadas aos contextos contemporâneos de ameaça de genocídios e etnocídios que exigem uma educação escolar indígena posicionada na defesa dos direitos indígenas por território, trabalho, educação, saúde, entre outros meios mínimos necessários à produção da vida e da cultura.
Os artigos reunidos nos dois volumes do dossiê evidenciam – não apenas quantitativa, mas, sobretudo, qualitativamente – o crescimento da História Indígena no Brasil nos últimos 25 anos. Se em 1995 o saudoso John Manuel Monteiro escrevia a respeito dos desafios da pesquisa sobre a temática no país, alertando para as dificuldades de se encontrar fontes históricas e, ao encontrá-las, de se realizar uma leitura antropológica das mesmas, os percalços no tempo presente são outros. Em um momento histórico em que há a negação, oriunda de determinados setores conservadores e reacionários da sociedade brasileira, de direitos conquistados pelas populações indígenas localizadas em todos os recantos do país e consagrados pela Constituição Federal de 1988, nada mais urgente e necessário é a publicação de estudos que revelem o passado e o presente indígenas nas Américas. Afinal, não se pode falar em História do Brasil e / ou História da América sem se referirar presenças indígenas como protagonistas dessas trajetórias espaço-temporais. Trajetórias dolorosamente entrelaçadas e que não podem ser compreendidas encerradas em si mesmas…
Boas leituras!
Giovani José da Silva – Professor Doutor (UNIFAP)
Izabel Missagia de Mattos – Professora Doutora (UFRRJ)
Organizadores
SILVA, Giovani José da; MATTOS, Izabel Missagia de. Apresentação. Revista Brasileira de História & Ciências Sociais. Rio Grande, v.10, n. 20, jul. / dez., 2018. Acessar publicação original [DR]
Entre a Modernidade e a Contemporaneidade | ArtCultura | 2016
Para nós, a edição n. 33 de ArtCultura: Revista de História, Cultura e Arte se reveste de especial importância. Quando mais não seja, ela assinala a entrada em cena, como componente de nosso rol de colaboradores, de um dos mais notáveis sociólogos portugueses, José Machado Pais. Ele não só passa a integrar o nosso conselho consultivo como, logo de cara, já nos oferece o texto de abertura deste número, “Tessituras do tempo na contemporaneidade”, tema da conferência que proferiu em Uberlândia ao participar, em setembro deste ano, como convidado de honra, do IV Seminário Internacional do Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais e da XVI Semana de Ciências Sociais promovidos pelo Instituto de Ciências Sociais da UFU.
Investigador coordenador do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa (ICS/UL), José Machado Pais foi professor visitante de várias universidades europeias e latino-americanas. De seu vasto currículo, pode-se destacar sua atuação como consultor da União Europeia e do Conselho da Europa, tendo sido ainda vice-presidente do Youth Directorate of the Council of Europe. Com presença marcante na área editorial, ele ocupa atualmente a função de diretor da Imprensa de Ciências Sociais da UL. Publicou cerca de 40 livros – mais de 20 de autoria solo –, entre os quais A prostituição e a Lisboa boémia, Artes de amar da burguesia, Culturas juvenis, Consciência histórica e identidade, Sociologia da vida quotidiana e Sexualidade e afetos juvenis, além de um sem-número de artigos em diferentes partes do mundo, inclusive no Brasil. Por todas essas razões, sem falar de seu fino trato, nós nos sentimos orgulhosos em contar com sua contribuição que sela nossas afinidades transatlânticas. Leia Mais
Revoltas Populares Contemporâneas numa Perspectiva Comparada / Estudos Ibero-Americanos / 2015
A realidade é uma hipótese repugnante / fora de mim,
entrando por mim a dentro Solidão errante / órfã de centro.
(Manuel António Pina em La fenêtre éclairée)
O século XXI nasceu sob o signo da insurreição. Num mundo em desassossego, e um pouco por todo o lado, a ideia de que “nada será como dantes” parece ter vindo para ficar. As palavras cansam-se na tentativa de definir uma realidade que, de tão apressada, parece tropeçar sobre si mesma. Protestos, tumultos, revoltas, revoluções, contrarrevoluções sucedem-se, trocam de lugar, aparecem, desaparecem, teimosamente resistem, ou transformam-se em sombras que inspirarão num futuro que cada vez mais se confunde com um longo presente, outros protestos, outros tumultos, e outras revoltas. E a cabeça do ser humano neste nosso ainda jovem século roda, e gira, vertiginosamente à procura de um centro, de uma orientação, de um eixo, para um mundo que parece ter saído dos eixos.
A geografia da crise não tem um centro difusor, e ela, nas suas várias manifestações, tanto pode ser econômica, financeira, política, social, cultural ou todas ao mesmo tempo. A Oriente, ditaduras foram combatidas nas ruas, e enquanto umas caíram, outras resistiram, transformaram-se, ou revigoraram-se. A Ocidente, movimentos estudantis e sociais desafiam o Estado, a democracia-liberal, e a globalização capitalista, e muitos proclamam que um “outro mundo” não só é possível, como inevitável. E toda esta onda de protesto rebentou nas ruas, nas calçadas, nas avenidas, e nas praças, nas televisões, na Internet e nas redes sociais, lugares físicos e virtuais, onde se mobilizaram desejos e se celebraram indignações, inconformismos, e a rejeição do mundo tal como ele é. E no meio da ebulição, também irromperam guerrilhas urbanas, fizeram-se pilhagens e destruiu-se propriedade, surgiram terroristas e lobos solitários, e aperfeiçoaram-se técnicas avançadas de controlo, vigilância, e repressão de protestos por parte do poder público, sempre reforçando essa “lei” não escrita da História que nos diz que qualquer procura de emancipação popular tem sempre como hipótese latente, como via possível, a violência, seja de manifestantes, seja da ordem estabelecida.
Nesta geopolítica contemporânea do protesto, a força propulsora do ativismo deriva, mais do que de teorizações complexas, ou de programas detalhados para se revolucionar a sociedade, do fato desse mesmo ativismo ser visto, sentido, e experimentado, como um combate de todos aqueles que se encontram “em baixo” contra a minoria dos que se encontram “em cima”. Independentemente do contexto, o alvo a abater são sempre as elites; que podem ser personalizadas por tiranos, claro, mas também pelas oligarquias políticas e financeiras das democracias, por famílias todo-poderosas, pelos governantes, pela classe política, por grupos de media, e por toda uma rede de interesses e mecanismos, nacionais e transnacionais, que sustenta o poder e a soberania destes “príncipes” enquanto perpetua a destituição da “plebe”. Tudo isto é ainda mais notável quando se sabe, na senda dos trabalhos sobre protestos políticos de Charles F. Andrain e David Apter, que, ao longo dos tempos, a maioria das pessoas escolhem aceitar passivamente, e por razões pragmáticas, os regimes existentes e estabelecidos. A confrontação implica sempre custos, pessoais, familiares, profissionais, que fazem dela apanágio, sobretudo, de minorias. Mas hoje em dia, esta tendência para a resignação não parece ser suficientemente forte para impedir, em muitos países, a oposição mais vasta a regimes que, por uma miríade de razões, são vistos como ilegítimos.
Para muitos destes indivíduos, grupos, e movimentos de contestação, a avaliação sobre os males do mundo não deixa margem para dúvidas. O diagnóstico é pessimista. Mas isso não é desculpa para a inação. Esse desencanto é contrabalançado pela crença que os atuais sistemas político-econômicos podem ser superados, que a democracia pode ser revitalizada, e que a opressão, a injustiça e a desigualdade podem e devem ter um fim. Em suma, através da mobilização e do voluntarismo é possível provar como falsa a ideia que durante muito tempo foi corrente, sobretudo no Ocidente, de que “não há alternativa” para o mundo atual e que este é o melhor dos mundos possíveis. Não é assim de estranhar que muitos destes ativistas do século XXI falem de novo em palavras como “revolução” e “utopia”; e fazem-no sem vergonha ou inibição, mas com a consciência que o resgatar desta imaginação radical constitui um necessário primeiro passo para a transformação das nossas sociedades. Para muitos grupos, no fundo, é como se combatessem entre dois mundos, um no crepúsculo, e outro na aurora.
É assim o mundo de hoje: em fluxo, em movimento, e também imprevisível. E de uma maneira geral toda esta turbulência contemporânea apanhou as pessoas de surpresa. É verdade que pode-se afirmar que estamos perante a História como ela realmente é, e como sempre foi. Ou seja, como a emergência do novo, do nunca visto, daquilo que nunca se pensou que pudesse acontecer, do que causa espanto, horror, ou maravilha. Mas importa dizer que num passado não muito distante, ou seja, durante boa parte da segunda metade do século XX, e por razões históricas concretas, esta interpretação da História como devir permanente era vista com muito mais cautela, contenção e ceticismo. Afinal de contas, o século XX despertou com uma sucessão de tentativas de aplicação na prática de impulsos utópicos e de projetos de transformação coletiva que, cada um a sua maneira, tinha como fim libertar o ser humano das alienações e misérias da História. Assim, o mundo assistiu à tentativa soviética de fazer do ideal comunista uma realidade viva, ao projeto fascista de iniciar uma nova História (um “novo começo”) e de purgar a civilização da sua decadência (seja através da nação, seja através da raça), e mesmo muitos movimentos coloniais de libertação assentaram numa esperança radical de inaugurar não apenas um Estado-nação mas o começo de uma nova época na História (o revolucionário anticolonialista Frantz Fanon apontou mesmo como finalidade da descolonização “a substituição de uma espécie humana por outra… o mundo virado ao contrário, os últimos transformam-se em primeiros”). E no horizonte os amanhãs cantavam.
Mas esta narrativa de revolução e emancipação esbarrou contra um obstáculo. Algo correu mal. E esse “algo” foi a própria realidade. Desta forma, o programa de libertação marxista acabou por servir de justificação ideológica para regimes totalitários, o projeto fascista tornou-se sinônimo de brutalidade humana e extermínio, e mesmo regimes de Estados pós-coloniais, não obstante as esperanças de muitos, na prática foram durante muito tempo exemplos de exploração, repressão e guerras sem fim. A conjugação destas experiências falhadas, e as suas consequências (guerras mundiais e civis) provocaram uma hecatombe nos meios intelectuais e culturais da época. Na altura, e como sinal desse terremoto, foi lançado um livro por dissidentes comunistas, publicado nos anos 50, com o elucidativo titulo “O Deus que falhou”, testemunhando essa transformação de sonhos infalíveis em pesadelos reveladores da falibilidade humana. É exatamente neste contexto que se levanta todo um movimento intelectual contra os males das ideologias, contra o utopianismo e contra as tentativas irrealistas e perigosas de encontrar alternativas totalizantes para o estado das coisas, seja nas sociedades, seja nas nações, seja no mundo. A lógica, apoiada na experiência de tragédias recentes, parecia ser um prolongamento do senso-comum. Ou seja, mais valia manter as coisas como estavam, ou, no máximo, fazer mudanças progressivas e equilibradas, do que lançar-se em quimeras de transformação coletiva que inevitavelmente iriam deixar o mundo em pior estado.
Intelectuais antiutópicos do pós-guerra, de todos os quadrantes ideológicos, repudiaram qualquer possibilidade de emancipação coletiva. À direita, Karl Popper, o filósofo da sociedade aberta e uma das grandes referências do pensamento liberal, retratou projetos utópicos como inevitavelmente perigosos, perniciosos e autodestrutivos. Sociedades ideais emergem “apenas a partir de nossos sonhos e dos sonhos dos nossos poetas e profetas. Elas não podem ser discutidas, apenas proclamadas em cima dos telhados. Elas não apelam para a atitude racional do juiz imparcial, mas para a atitude emocional do pregador apaixonado”. A partir da esquerda, Hannah Arendt perguntou: “E o que mais, enfim, é este ideal [de emancipação] de sociedade moderna, senão o velho sonho dos pobres e miseráveis, que pode ter um charme próprio, desde que ele é um sonho, mas que se transforma em um paraíso dos tolos, assim que é realizado?” Aleksndr Solzhenitsyn, que teve experiência íntima com um desses “paraísos” (conheceu o Gulag soviético, e esteve oito anos em campos de trabalhos forçados) sabia de quem era a culpa: “Graças à ideologia, o século XX experimentou a maldade humana numa escala nunca vista. Isto não pode ser negado, não pode ser ignorado, não pode ser suprimido”. E a “lição” não foi esquecida.
Como consequência vai-se assistir a uma defesa vigorosa, sobretudo na Europa e na América do Norte, da política do equilíbrio, orientada para a gestão do real, fazendo ajustes e mudanças importantes no sistema político e social, mas sem impulsos de transformação total e potencialmente destrutiva. Em suma, uma política desprovida de excessos ideológicos e sem febres utópicas. O pensador francês Raymond Aron aplaudia este novo estado de espírito. Tinha chegado a hora de “desafiar os profetas da redenção” e de “celebrar a chegada dos cépticos”. É verdade que esta narrativa do “ fim das ideologias” foi contestada nos anos 1960 e 1970 por teologias da libertação, hippies, guerras de libertação nacional, lutas anti-imperialistas, subculturas alternativas, cruzadas pelos direitos civis, o ativismo antiguerra, protestos feministas e várias forças sociais de uma “nova esquerda” empenhada em derrubar o “sistema” e alcançar uma total transformação do mundo moderno. O conteúdo da sonhada utopia divergia em seus detalhes, mas geralmente incluía, entre outros elementos, a eliminação de tabus sexuais, o fim da violência, o estabelecimento de uma igualdade completa, a ascensão de comunidades abrangentes de amor e de partilha e o imaginário da emancipação. Contudo, para muitos intelectuais, a suspeita de que não havia possíveis alternativas positivas para o status quo permaneceu. Movimentos utópicos seriam apenas aberrações, que em breve seriam englobados na marcha inevitável em direção a um futuro racional. Essa perspectiva receberia seu aval com a desintegração da União Soviética, cujo colapso foi visto como evidência convincente de que o previsto “fim” da história havia de fato chegado, bem como o fim das ideologias e o fim da revolução. O historiador François Furet termina o seu livro “O passado de uma ilusão” com uma frase que é testemunho de toda uma mentalidade: “Aqui estamos nós, condenados a viver no mundo tal como ele é”. “Condenados”, portanto, a não haver alternativa.
Na verdade, parecia que o mundo ocidental tinha entrado em um período de endism (ou o período dos “fins”), em que as utopias de transformação já não podiam ser imaginadas, muito menos propostas. O racionalismo burocrático e uma suposta “tecnificação da política”, ao que parecia, tinha esmagado todos os rivais; a democracia representativa saía vitoriosa e o capitalismo era o triunfador. Os conflitos tormentosos sobre os sistemas políticos e económicos (para não mencionar os espirituais), que deviam reger os assuntos humanos, haviam sido, com uma ou outra exceção, resolvidos. Este sentimento era difuso na época e manifestava-se de várias formas. Havia até um triunfalismo sobre a globalização liberal-capitalista, como um quebrar definitivo de barreiras, e de fronteiras. E os próprios Estados-nação, para alguns, poderiam desaparecer debaixo desse magma do globalismo. E isto de certa forma também se relaciona com o entusiasmo de muitos estudos na década de noventa do século passado sobre a globalização, como uma Nova Ordem Mundial, assente na expansão por todo o globo de uma “democracia cosmopolita”, como inevitável, e em benefício das relações internacionais. Em suma, o melhor dos mundos possíveis.
Aliás, a própria transformação dos partidos políticos em “máquinas” de angariação de votos, dedicados a objetivos limitados e estreitos, de curto prazo, com o único objetivo de vencer eleições, revela esta dinâmica avassaladora do pragmatismo. Ao contrario dos partidos de massa de antigamente, que eram autenticas escolas de doutrinação e refúgio espiritual, e que tinham um numero enorme de militantes, nos partidos contemporâneos a militância é cada vez menor, e guiada mais pelo interesse e carreirismo do que, francamente, pelo entusiasmo. A política, desligada cada vez mais dos grandes projetos mobilizadores de transformação da sociedade, foi-se progressivamente desencantando. Dai que a apatia, o desinteresse, e a abstenção, surjam quase como consequências naturais, e ainda sentidas, da política partidária de hoje.
E é neste contexto que a narrativa do “fim das ideologias” vai ser levada para um outro patamar, mais além: Francis Fukuyama foi o portavoz mais conhecido da ideia do “Fim da História”. Logo em 1989 ele melancolicamente observou que “o fim da história será um momento muito triste”. No entanto, a luta ideológica mundial que apelava para a ousadia, a coragem, a imaginação, a criatividade e o idealismo era uma coisa do passado. Havia sido “substituída pelo cálculo econômico, a resolução interminável de problemas técnicos, as preocupações ambientais e a satisfação das exigências dos consumidores mais sofisticados”. O seu livro chamar-se-á “O fim da História e o último Homem”. E quem é o “último Homem”? É o homem liberal. E é a sua política do pragmatismo, do real contra a abstração, da moderação, do debate razoável e racional e da gestão de interesses. Numa política que é esvaziada de antagonismo, de intensidade e de paixão. É por isso que, como nos avisa o filósofo político americano Michael Walzer, para um liberalismo que assenta a sua razão de ser na domesticação das paixões (vistas como irracionais, e abstratas) o excesso de entusiasmo na política é potencialmente subversivo, e leva facilmente ao que é visto como o inimigo mortal do liberalismo: o fanatismo, seja de esquerda, seja de direita. Não estranha portanto, que, na passagem do século XX para o século XXI o sociólogo Zygmunt Bauman reclamasse que estávamos todos a viver numa vergonhosa era “pós-ideológica” e “pós-utópica”, sem grandes projetos, exceto para o indivíduo (o centro absoluto do liberalismo), e a busca incessante do autointeresse e da felicidade individual.
Mas, quando caminhamos para a terceira década do século XXI, terá esta “acusação” razão de ser? Os movimentos sociopolíticos renunciaram mesmo aos elementos utópicos em seus modos de vida e imaginários? Não existem projetos, lúcidos ou não, de transformação da sociedade? Os “grandes” sonhos e a ousadia de imaginar, e tentar por em prática, o mundo imaginado não estarão de volta (assumindo como verdadeira a ideia improvável de que alguma vez desapareceram)? Qualquer observador, por mais desatento que esteja, sabe qual a resposta a dar a estas interrogações. A verdade é que o Zeitgest (essa palavra alemã que significa “o espírito dos tempos”) da nossa época é decididamente menos conformado, mais combativo, e acima de tudo, com uma crença difusa da insustentabilidade de muitos dos arranjos políticos, econômicos, sociais e até culturais do mundo de hoje. A mobilização popular, seja quais forem as razões, e em contextos geográficos e culturais diferentes, encontra-se em alta no mundo. Uns fazem-no para derrubar ditaduras ou regimes vistos como ilegítimos, outros para por um fim à exploração econômica das elites sobre as massas, contra a austeridade, por educação e transportes gratuitos, pela defesa da qualidade de vida ou simplesmente (e muitas vezes paralelamente) por uma nova política, uma nova democracia, uma nova sociedade. Se há pouco tempo imperava a ideia do fim, agora muitos destes grupos de contestação são galvanizados pela ideia de começo (início de novas relações políticas, sociais, humanas, e de novas experiências). Da ideia de que “não há alternativa” para as sociedades liberais-capitalistas passou-se, em muitos casos, para a ideia que não existe outra alternativa senão imaginar, e lutar, por um status quo distinto do de hoje.
O sociólogo Daniel Bell, um dos antigos defensores da ideia do “fim das ideologias”, deu uma marcha-ré no ano 2000, reconhecendo que talvez esse paradigma se tenha esgotado e que o “recomeço da história” se tenha iniciado. É sobre esta mudança de paradigma, e sobre este “recomeço”, que este dossiê encontra a sua razão de ser no início do século XXI.
A Estrutura do Dossier
Através da discussão dos seus episódios mais marcantes, das ideias, formas de pensamento, quadros mentais, ações coletivas, e propostas, assim como das suas possíveis consequências, a ideia deste dossiê é a de mapear, percorrer e dar uma visão abrangente – ainda que obviamente limitada a um número concreto de exemplos – deste ciclo global de protestos. Não há, nem pode haver uma única narrativa para capturar uma onda de protestos que é diversa, e que não obedece a um único guião. Todos os protestos dependem de contextos nacionais, e de especificidades próprias. Não há, aliás, um único movimento, mas vários que, contudo, obedecem a um mesmo fio condutor, ou seja, a ideia de protesto, e a sua rejeição do status quo através da intensa mobilização nas ruas e, também nalguns casos, através do ciberativismo. Este dossiê reflete essa ausência de uma interpretação unívoca. Optimismo e pessimismo percorrem, em igualdade, as suas páginas. Se estamos ou não numa mudança de paradigma civilizacional ainda esta por confirmar, mas os contributos deste dossiê tem em atenção tanto a influencia da hegemonia dos velhos hábitos de pensar e de fazer a política, como as novas esperanças, experiências, e quem sabe, futuras hegemonias que se avistam no horizonte.
Revoltas populares contemporâneas numa perspectiva comparada está dividido em duas partes. A primeira, constituída por seis artigos, centra-se sobre as lições mais gerais – e de vários contextos geográficos – que se podem tirar deste ciclo global de protestos. Partindo do exemplo da América do sul, Carlos de la Torre descreve a ascensão da “política das ruas”, e da ideia, cada vez mais difundida, de que a “verdadeira” democracia é direta, comunal e nos antípodas da democracia representativa. Ele descreve as dinâmicas desta visão, assim como os seus perigos. Importante também notar que este ciclo de protestos populares não é exclusivo de países com economias em queda, ou em dificuldade. Por exemplo, novas potências económicas como a Turquia e o Brasil também foram abaladas por uma massiva onda de contestação. Para Bulent Gokay e Farzana Shain, os protestos turcos de 2013 foram acima de tudo uma reivindicação de melhor qualidade de vida nos centros urbanos, contra a privatização dos espaços comunitários, num ambiente político progressivamente repressivo e antidemocrático. Muitas destas revoltas foram estudantis, tornando-se símbolos de mobilização popular, nas ruas, por um futuro diferente para a educação. No Québec, como retrata Cayley Sorochan, assistiu-se a mais longa greve estudantil na história do Canadá, com o sindicalismo estudante a clamar, através de uma greve geral, e da desobediência cívica, pelo fim do aumento dos custos da educação para os alunos. Se uma característica fundadora destes protestos global é a contraposição permanente entre o povo e as elites, a inclusão do Tea Party neste volume não deve causar estranheza. Como refere George Michael, o Tea Party procura uma renovação conservadora da cultura política americana, em termos fiscais, mas também culturais, e a sua ação coletiva, a sua política das ruas, o seu ativismo na Internet, refletem o desejo de tomar de assalto um sistema visto como injusto e não-representativo dos interesses dos “verdadeiros” americanos. De certa forma, tem-se assistido a revoltas contra o Estado. Na forma dos tumultos ingleses de 2011, por exemplo, em que a destruição, os saques, e as pilhagens são um sintoma, como escreve Daniel Briggs, de exclusão social e, ao mesmo tempo, de excessiva dependência de uma cultura de consumo como a única capaz de dar identidade a vidas sem sentido. A contestação popular também emergiu fortemente (e mediaticamente) no movimento espanhol dos Indignados, e Carlos Taibo refere que o movimento de 15 de Maio (a denominação preferida dos ativistas) criou uma nova “identidade contestatária” (primariamente anticapitalista) em Espanha assim como novas experiências de fazer política através de assembleias populares e espaços autónomos.
Já a segunda parte do dossiê foca o caso português e, numa perspectiva histórica e contemporânea, aborda as dinâmicas de contestação popular desde as ultimas décadas do século XX à segunda década do século XXI. Tiago Fernandes argumenta que a democracia portuguesa – que teve a sua origem numa revolução social – revela maiores índices de mobilização da sociedade civil (como organizações de base popular, associações e partidos) do que as democracias (como a espanhola) que resultaram de uma trajetória de reforma política. Mas também Portugal, como retratado por Guya Accornero e Pedro Ramos Pinto, conheceu um ciclo de protestos populares (e um movimento de Indignados), nomeadamente com os protestos da Geração à Rasca em 2011, que mobilizaram e depois desmobilizaram. Para estes autores, no entanto, existiram consequências no mapa político: a emergência de novos atores políticos e de possíveis colaborações entre eles e atores tradicionais na esquerda do espectro político. Finalmente, Riccardo Marchi, mostra como esse impulso revolucionário não é exclusivo da esquerda mais à esquerda, persistindo e manifestando-se também na direita radical, sobretudo na sua versão contemporânea de um nacionalismo étnico e exclusivista. Ela visa tirar partido das contradições das democracias modernas, mas, em termos eleitorais, continua sem conseguir, em Portugal, os mesmos resultados dos populismos identitários em voga noutros países europeus. O dossier fica completo com a entrevista aos historiadores António Manuel Hespanha e Ernesto Castro Leal, centrada exatamente nesse temática do “Poder e Resistência na História de Portugal: do Antigo Regime à Primeira República”, mostrando a evolução das manifestações de resistência aos poderes instituídos, assim como a sua repressão, num período histórico alargado. Finalmente, na resenha ao livro Presos Políticos e perseguidos estrangeiros na Era Vargas (Rio de Janeiro: Mauad X; Faperj), Maurício Parada, releva como seu grande mérito a sua chamada de atenção para a tradição autoritária do Estado brasileiro, que no caso da Era Vargas, se manifestou numa política acentuada de repressão da (variada) oposição.
Referências
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BELL, Daniel. The end of ideology: on the exhaustion of political ideas in the fifties. Revista. Cambridge, MA: Harvard University Press, 2000.
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WALZER, Michael. Politics and passion: toward a more Egalitarian Liberalism. New Haven, CT: Yale University Press, 2004.
José Pedro Zúquete – Organizador. Investigador no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa (ICS / UL). Tem experiência na área de História Contemporânea e Ciência Política, atuando principalmente nas pesquisas sobre nacionalismo, assim como aos estudos sobre antiglobalização e geopolítica. Doutor em Política Comparada pela University of Bath, possui pós-doutoramento na Harvard University. Faz parte da rede europeia COST sobre populismo. Autor de vários artigos científicos, publicou os livros Missionary Politics in Contemporary Europe (Syracuse University Press, 2007) e The Struggle for the World (Stanford University Press, 2010). Coeditou também A vida como um filme (Leya, 2011) e Grandes Chefes na História de Portugal (Leya, 2013), além de ter colaborado na obra Dimensões do poder: história, política e relações internacionais (EdiPUCRS, 2015).
António Costa Pinto – Coorganizador. Investigador Coordenador no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa (ICS / UL) e Professor Convidado no Instituto Universitário de Lisboa (ISCTE). Doutorado pelo Instituto Universitário Europeu e Agregado pelo ISCTE. Foi Professor Convidado na Universidade de Stanford e Georgetown, Investigador Visitante na Universidade de Princeton e na Universidade da California – Berkeley. Entre 1999 e 2003 foi regularmente Professor Convidado no Institut D’Études Politiques de Paris. As suas obras têm incidido sobretudo sobre o autoritarismo e fascismo, as transições democráticas e a “justiça de transição” em Portugal e na Europa. A longevidade do Estado Novo português levou-o inicialmente ao estudo comparado dos sistemas autoritários. Mais recentemente dedicou-se ao estudo do impacto da União Europeia na Europa do Sul. Outro tema a que se tem dedicado é o das elites políticas e as mudanças de regime. É autor de dezenas de artigos em revistas académicas portuguesas e Internacionais, publicou vários livros, dentre os quais destacam-se: Os camisas azuis: Rolão Preto e o Fascismo em Portugal (EdiPUCRS, 2015).
ZÚQUETE, José Pedro; PINTO, António Costa. Apresentação. Estudos Ibero-Americanos. Porto Alegre, v. 41, n. 2, jul. / dez., 2015. Acessar publicação original [DR]
Indústria Cultural e Contemporaneidade / História e Cultura / 2013
A indústria cultural é um dos elementos que identificam a contemporaneidade. Toda a vida humana está hoje permeada por imagens, símbolos, sons, textos que foram produzidos em seu âmbito. Nossas subjetividades, a maneira como vemos o mundo, os desejos que expressamos estão sempre em diálogo, mais ou menos contraditório, com bens culturais produzidos de forma massiva e mercantilizada.
O conceito de indústria cultural foi trazido ao debate sobre a natureza do capitalismo no Pós-Guerra por Theodor Adorno e Max Horkheimer. Era o ano de 1947, no qual se definia a Guerra Fria e época em que os horrores do extermínio ainda povoavam intensamente corações e mentes. Em Dialética do Esclarecimento (Dialektik der Aufklärung), os autores criticavam a razão iluminista, capaz de tornar o massacre racional, e viam na indústria cultural sua perpetuação. Em oposição ao termo “cultura de massas”, que pode significar uma produção cultural produzida por ou para as “massas”, o conceito de indústria cultural põe a nu a lógica da cultura mercantilizada. Nesta, as “massas” seriam apenas objetos e jamais sujeitos. Os bens culturais produzidos como mercadorias se destinam ao consumo e, por meio deste, a um controle social fabricado pela alienação. Ao mesmo tempo similares a quaisquer mercadorias produzidas sob o capitalismo, esses bens se distinguiam pela sua capacidade de gerar conformismo e aquiescência, capturando subjetividades para a legitimação da ordem do capital.
Muitos foram os autores que debateram essa concepção, seja para negá-la radicalmente e celebrar a “liberdade de escolha” da audiência, seja para perceber nesse sistema de dominação brechas e contradições capazes de permitir a produção de contrahegemonias. Assim, tomando como horizonte a gênese de tal conceito, o dossiê “Indústria Cultural e Contemporaneidade” reuniu diferentes textos, divididos em: 10 artigos, 01 resenha e 01 entrevista que lançam olhares diversos sobre expressões culturais e seus contextos históricos.
Os primeiros artigos focam mais diretamente nas reflexões conceituais acerca da indústria cultural e seus desdobramentos. Em seguida, passamos para análises mais específicas de produtos e / ou manifestações culturais que dialogam com o referido conceito.
Música, turismo, produção audiovisual, novas tecnologias de informação e comunicação, movimentos sociais, foram temas escolhidos para problematizar o papel da indústria cultural no mundo contemporâneo. Selecionamos ainda uma entrevista de Armand Mattelart, sociólogo belga, co-autor do livro Para ler o Pato Donald, na qual ele reflete, entre outros temas, sobre o papel da indústria cultural no golpe que derrubou o presidente chileno Salvador Allende. Realizada pelo historiador Ivan Gomes, a entrevista traz uma contribuição fundamental para o aniversário dos 40 anos do golpe civil-militar no Chile. Por fim, Lia Rocha apresenta resenha que aborda a “moda” do turismo nas favelas, parte de um processo mais amplo de ordenamento urbano e de comoditização da cidade que está em curso no Rio de Janeiro, sede de megaeventos nos próximos anos.
“O Apocalipse é uma obsessão do dissenter, a integração é a realidade concreta dos que não dissentem.” A célebre frase de Umberto Eco, em seu livro Apocalípticos e Integrados, pode ser tomada como epígrafe deste dossiê. Nossa intenção foi, a partir de abordagens diferentes, desnaturalizar o senso comum, incentivando estudos culturais críticos que compreendam a História como processo. Pode-se perceber, assim, as mediações produzidas na dinâmica da indústria cultural, arena de conflitos e disputas entre um poderoso status quo que busca se perpetuar eternamente e um campo contrahegemônico que busca construir, de modos diversos, um novo horizonte histórico.
Adriana Facina – Professora do PPGAS / Museu Nacional / UFRJ, com pós-doutorado em Antropologia Social.
Pâmella Passos – Professora do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio de Janeiro (IFRJ). Doutora em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e pesquisadora do Grupo de Pesquisas “Observatório da Indústria Cultural (Oicult).
Organizadoras do Dossiê Indústria Cultural e Contemporaneidade
FACINA, Adriana; PASSOS, Pâmella. Apresentação. História e Cultura. Franca, v.2, n.2, 2013. Acessar publicação original [DR]
Religiões: história, política e cultura na era contemporânea / História – Questões & Debates / 2011
Neste presente volume da revista História: Questões & Debates apresentamos o dossiê “Religiões: História, Política e Cultura na Era Contemporânea”, reunindo nove artigos de historiadores brasileiros e estrangeiros que examinam diversas expressões do cristianismo em seus conflitos e redes de solidariedade. Além disso, o dossiê traz considerações sobre como a História das Religiões vem se constituindo como campo de estudos no mundo ocidental em decorrência de transformações no próprio status da religião no período contemporâneo.
O artigo de Karina Kosicki Bellotti (Universidade Federal do Paraná), “História das Religiões: conceitos e debates na era contemporânea”, explora a historicidade do conceito de religião, que se dessacralizou aos olhos da ciência para se tornar objeto de pesquisa desde meados do século XIX na Europa. Esse trabalho aponta para novos campos de estudos e novos objetos que a História Cultural das Religiões vem constituindo nos últimos anos, tomando por abordagem cultural tanto produções artísticas como de cultura de massa e de modos de viver na contemporaneidade. Por sua vez, o artigo de Elton Nunes (PUC-SP), “Teoria e metodologia em História das Religiões no Brasil: o estado da arte”, discute as produções mais recentes na área de História das Religiões no Brasil nas últimas décadas, explicando as razões pelas quais o tema das religiões em suas diferentes interfaces atrai cada vez mais historiadores, em contraste com um período extenso de nossa história acadêmica em que pouca atenção lhe foi dispensada.
Em seguida, há quatro artigos que abordam diferentes embates políticos e culturais enfrentados pelo catolicismo nos séculos XIX e XX: primeiramente, o artigo de Antonio Moliner Prada (Universidad Autónoma de Barcelona), “Clericalismo y anticlericalismo en la España Contemporánea”, que discute as configurações do anticlericalismo e da irreligiosidade na Espanha dos séculos XIX e XX, apontando para o jogo de forças e embates políticos e religiosos em torno de projetos de modernidade cultural e política. O escasso desenvolvimento do catolicismo liberal e a divisão interna dos católicos motivaram o auge do clericalismo e o aparecimento do anticlericalismo violento em diferentes momentos entre o início do século XIX até a Guerra Civil Espanhola (1936-1939).
Seu artigo aponta para os problemas dos conflitos religiosos, mostrando a importância do desenvolvimento de um diálogo inter-religioso em um mundo multicultural. O artigo de Euclides Marchi (Universidade Federal do Paraná), “Igreja e povo: católicos? Os olhares do padre Júlio Maria e de Dom Sebastião Leme da Silveira Cintra sobre a catolicidade do brasileiro na passagem do século XIX para o XX”, analisa os textos publicados pelo Padre Júlio Maria de Morais Carneiro e por Dom Sebastião Leme da Silveira Cintra em 1898 e 1916, respectivamente, os quais expressavam sua visão de Igreja e dos católicos no final do século XIX e nas primeiras décadas do século XX. Ao fazer o diagnóstico dos males que afetavam a sociedade e a Igreja, ambos apontavam remédios e soluções para adequar a catolicidade aos parâmetros exigidos pela implantação das reformas romanizadoras adotadas desde a segunda metade do século XIX e pela contundência dos problemas que afetavam a sociedade mundial e brasileira.
O texto de Marcos Gonçalves (Universidade Estadual do Paraná – Unespar), “Nostalgia e exílio: o intelectual católico Galvão de Sousa e a ideia de ‘hispanidade’”, discute a noção de uma identidade hispânica desenvolvida em parte da reflexão do intelectual católico José Pedro Galvão de Sousa (1912-1992). Requisitado nos círculos católicos tradicionalistas, monárquicos e integristas de ambientação ibérica, Galvão de Sousa é um dos difusores desse pensamento no Brasil. Nostálgico dos regimes monárquicos e teórico do corporativismo, o intelectual em questão busca lugar para uma concepção de mundo que se defronta perante um amplo cenário de mudanças ideológicas e doutrinárias estabelecidas nas décadas de 1960-70: o avanço da teologia da libertação, o Concílio Vaticano II e, num contexto histórico mais imediato, a ditadura militar brasileira.
Em “A Liga Eleitoral Católica e a participação da Igreja Católica nas eleições de 1954 para a Prefeitura de Curitiba”, Renato Augusto Carneiro Junior (Unicuritiba-Museu Paranaense) analisa as relações entre o Estado brasileiro e a Igreja Católica, enfocando as atividades da Liga Eleitoral Católica (LEC) nos primeiros anos da década de 1950, em Curitiba, analisando como a Igreja Católica, por meio da LEC, buscava influenciar o resultado das eleições para a Prefeitura de Curitiba, em 1954, participando do jogo político ao indicar de forma clara os candidatos que poderiam ser apoiados pelos católicos.
O artigo de Eduardo Gusmão Quadros (Universidade Estadual de Goiás e PUC-GO), “O vírus protestante e a ação profilática de um bispo de Goiás”, enfoca o conflito entre católicos e protestantes no início do século XX a partir de um estudo de caso. No ano de 1918, o bispo de Goiás, D. Prudêncio Gomes da Silva, publicou a carta pastoral “Sobre o protestantismo”, contra a presença protestante que se iniciava naquele Estado. O historiador analisa o conjunto de representações, valores e estratégias evocados naquela carta para o combate ao protestantismo, mostrando os pontos em comum entre o catolicismo romanizado e a pregação protestante.
Em tais artigos, observamos a multiplicidade de expressões do catolicismo, envolvido em embates internos e externos. Os agentes dessa história são tanto lideranças quanto leigos, em um período em que a hegemonia católica no Brasil e na Espanha se vê enfraquecida diante do processo de modernização e competição religiosa – e irreligiosa – em curso desde o século XIX na sociedade ocidental como um todo. Nesse caso, história, política e cultura se entrecruzam para mostrar os diferentes papéis que a religião passa a assumir no período contemporâneo.
Por fim, dois artigos internacionais trabalham com fenômenos de transnacionalização – os caminhos da Teologia da Prosperidade no Brasil e na América Latina são o tema do artigo de Virginia Garrard-Burnett (University of Texas at Austin), “A vida abundante: a teologia da prosperidade na América Latina”, que demonstra os sentidos adquiridos por essa crença e prática religiosa desde a sua gênese norte-americana no século XIX até a evangelização empreendida pela Igreja Universal do Reino de Deus nos Estados Unidos, África e Europa, além da atuação de outras igrejas da Ásia e África, que miram ao bem-estar de seus fiéis neste mundo. Fechamos com o esmerado estudo de R. Andrew Chesnut (Virginia Commonwealth University) sobre a popularização do culto de Santa Muerte no México e nos Estados Unidos desde o início dos anos 2000, entre diferentes estratos da população hispânica nos dois lados da fronteira. Reunindo entrevistas, depoimentos e estudos sobre santos populares não reconhecidos pela Igreja Católica, Chesnut explora as intersecções entre religião, mercado, devoção e circulação cultural para mostrar as diferentes faces da Santa Morte, que responde a diversas demandas de seus fiéis em um período de crescente recessão econômica e violência urbana endêmica.
Além do dossiê, o volume conta com o artigo “Cinema, esporte e Apartheid: considerações balizadas pelo filme ‘No futebol, nasce uma esperança’”, de André Mendes Capraro, Riqueldi Straub Lise e Natasha Santos, que analisa o filme No futebol, nasce uma esperança (originalmente More than just a game), cujo foco está na prática do futebol por prisioneiros políticos sul-africanos, durante o regime Apartheid. Tendo em pauta esta temática, questiona-se: seria o futebol realmente um meio propício para manifestações políticas contrárias ao sistema vigente na África do Sul – o regime Apartheid? Qual o significado da modalidade, naquele contexto específico, e como foi representado artisticamente na obra? Para responder a essas questões, adotou-se o procedimento metodológico denominado por Carlo Ginzburg (1996) de “paradigma indiciário”, a fim de identificar pistas e indícios que levassem a compreender a concepção histórica manifesta no filme.
Na sessão de resenhas, contamos com três textos: a resenha de Antônio César de Almeida Santos (Universidade Federal do Paraná) sobre a obra de Quentin Skinner, Visões da política: sobre os métodos históricos; as considerações de Naira de Almeida Nascimento (Universidade Tecnológica Federal do Paraná) sobre o livro Joana d’Arc, de Colette Beaune; e o texto de Diogo da Silva Roiz (doutorando da Universidade Federal do Paraná) sobre A Europa diante do espelho, de Josep Fontana.
Karina Kosicki Bellotti
Curitiba, dezembro de 2011
BELLOTTI, Karina Kosicki. Apresentação. História – Questões & Debates. Curitiba, v.55, n.2, jul./dez., 2011. Acessar publicação original [DR]