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Guerras e conflitos em escala global no Tempo Presente | Tempo e Argumento | 2021 (D)
Muitos historiadores que se dedicam a estudos e pesquisas no campo da história militar e da história das guerras e conflitos, concordam que existe após 1945, uma ausência de grandes guerras no mundo ocidental, o que fez com que a relação guerra-Estado se transformasse, mas não que os conflitos deixassem de acontecer; em essência, a sua existência é garantida pela manutenção de forças armadas, de uma indústria bélica consolidada, de grupos armados de feição ideológica, religiosa ou simplesmente de estrutura privada (sem qualquer relação com os mercenários da década de 60 que percorreram as savanas da África subsaariana), e por disputas territoriais de pequena e média escala, mas nenhum conflito global ainda que limitado.
Entende-se que, atualmente, a natureza, a vontade de fazer a guerra e suas razões sofreram considerável modificação, muito embora a existência de ódios ligados a nacionalismos antigos ainda se façam presentes.
Grande parte dos conflitos anteriores a 1975 foram guerras de libertação coloniais contra antigas metrópoles europeias, bem como estavam também ligadas ao período conhecido como Guerra Fria; as mais sangrentas delas aconteceram no Sudeste Asiático, no Oriente Médio e na África, esta última com países recém-emancipados que vivenciaram os primeiros anos de sua independência divididos pelo sectarismo que se desdobrou em guerra civil, e guerras assimétricas, e projetou-se para além do período com uma forte disputa ideológica. Questões ideológicas também nos remetem à América Latina, cuja tensão da Guerra Fria, gerou conflitos silenciosos imersos em um obscurantismo que ainda é perturbador nos dias atuais
A distinção clássica entre guerras internacionais e guerras civis também se tornou ineficaz. Os conflitos que anteriormente eram qualificados como civis existiram ocultamente como uma força em potencial por anos, até décadas, antes de se tornarem internacionais, como o caso da Síria e Ucrânia, que são bem atuais, todos caracterizados pela presença de combatentes não estatais e pelo não cumprimento de regras supostamente vigentes nos conflitos entre Estados. Tais guerras afetam principalmente países cujas estruturas institucionais perderam sua legitimidade por não conseguirem mais garantir o controle de seus espaços, ou pela ação limitada e ineficaz de suas forças coercitivas.
Outros são resultados diretos de construções coevas à Segunda Guerra e pelos desdobramentos subsequentes ao conflito mundial como a questão entre palestinos e israelenses, cuja dificuldade tem levado o Estado israelense à condução da segurança do território através da força para exercer o monopólio da violência legitimamente pautada em um discurso etnocrático.
Nesse cenário, o Estado também levou ao limite o processo de inovação tecnológica em termos de segurança e defesa, no esforço de demonstrar sua superioridade militar. Esse enorme investimento em tecnologia de defesa em tempos de paz exerceu um enorme impacto sobre o caráter da guerra, o que levou a novas formas de lutar, caracterizadas por conflitos de baixa intensidade, com diferentes projeções, com envolvimento de diferentes forças que compõem o Estado, unidades de elite, forças especiais e suas oponentes, incluindo forças guerrilheiras e organizações paramilitares, grupos com evocações político ideológicas ou religiosas e, mais recentemente, instituições empresariais de segurança militar.
As doutrinas militares também sofreram mutação, adaptaram-se com o passar dos anos, superaram as questões ideológicas da Guerra Fria mas, em essência, continuam a servir aos interesses do Estado, e ao nacionalismo vivo que as compõe.
Nos dias atuais, um conflito raramente começa com uma declaração formal de guerra e raramente termina com um tratado que põe fim à violência da noite para o dia, mas no apagar das luzes da década de 80, esse último fenômeno foi vislumbrado na África austral e seus desdobramentos se fazem sentir até hoje.
Fazer a paz é um esforço de longo prazo, porque significa redesenhar os laços sociais e reconstruir o Estado, ou seja, refundar as instituições públicas e reinventar a capacidade de convivência. A compressão desses desdobramentos nos remete também a uma outra guerra, que embora não se relacione diretamente ao mundo bélico, representa um esforço pela manutenção da vida humana e do meio ambiente.
Talvez a nossa maior indagação seja como essas forças que compõem paradoxalmente a vida humana têm atuado ao longo dos anos, e como parte da sociedade não tem consciência suficiente para entender a gravidade da guerra, parafraseando um notório historiador militar1, ao afirmar que, se os homens, realmente, soubessem mais sobre sentido das lições do passado militar, eles não se engalfinhariam com tanta frequência em guerras que, mesmo quando não são catastróficas, não trazem qualquer resultado positivo para os adversários; portanto, eles invariavelmente não se destruiriam tanto. O que aconteceu com as sociedades, com o Estado e com as instituições que as compõem, as forças armadas, e sua relação com a guerra são o objeto dos estudos aqui apresentados. Eles propõem uma compreensão razoavelmente abrangente sobre esse difícil percurso da história do homem na segunda metade do século XX.
Este dossiê procura entender a evolução dos conflitos ocorridos no mundo, particularmente os que se desdobraram pós Segunda Guerra, os que passaram pela Guerra Fria e os que se tornaram efetivos pós Guerra Fria.
O dossiê inicia os seus trabalhos com o fechar das cortinas da Segunda Guerra mundial, com um tema ainda em expansão no campo da história social e se relaciona com a construção simbólica de um esporte popular no Brasil, e no mundo, e que tem uma forte representação durante o conflito. Assim, Vágner Camilo Alves e Adriano de Freixo nos apresentam O Futebol em Tempos de Conflito: os grandes clubes do Rio de Janeiro e a Segunda Guerra Mundial (1942-1945).
No texto seguinte, nos deslocamos para a Argentina, onde temos o trabalho de Maria Valeria Galvan, que em seu artigo Diplomacia cultural socialista en la Argentina y el problema de la identidad nacional desde una perspectiva estatal. Repercusiones de la propaganda de los países socialistas en las políticas represivas locales de los años 50 (1953-1961), discute sobre a questão da identidade nacional na Argentina a partir da ação do Estado, frente à expansão da propaganda de ideias socialistas, e a consequente repreensão do governo argentino nos anos 50 do século XX.
Paulo Fagundes Visentini traça um amplo balanço historiográfico dos conflitos na Ásia e na África, em um processo de transição da independência para a Guerra Fria no texto intitulado Conflitos afro-asiáticos “quentes” da guerra fria: da revolução à guerra (anos 1970 e 1980). No artigo, o autor observa que processualmente tais conflitos estiveram intimamente associados e marcaram profundamente a História Mundial Contemporânea.
Timothy Stapleton, em seu artigo The Creation and Early Development of the Zimbabwe Defense Forces (ZDF) 1980-93 (A Criação e o Desenvolvimento Inicial das Forças de Defesa do Zimbábue (ZDF) 1980-93), apresenta-nos o processo da organização das Forças de Defesa do Zimbabué (ZDF) após a sua independência na década de 1980. O texto mostra como conselheiros britânicos tentaram manter um padrão ligado às tradições inglesas e como foram suplantados por assessores norte-coreanos que ajudaram a criar um exército fortemente politizado.
Os embates decisivos entre Angola, Cuba contra Unita e África do Sul, e a dimensão simbólica da batalha de Cuito Cuanavale, representado pela construção e interpretação de sua narrativa pela historiografia militar, são objetos discutidos por Johny Santana de Araújo em A batalha de Cuito Cuanavale 1987-1988: a guerra pela sua memória.
Domício Proença Júnior, Eugenio Diniz e Marcus Lessa, apresentam um percurso histórico sobre as unidades de tanques de combate da ex-URSS e dos EUA, através do texto A trajetória das divisões pesadas da URSS e Rússia e dos EUA ao início e ao final da Guerra Fria. O estudo tem uma perspectiva comparativa, tendo como enquadramento o momento da Guerra Fria na Europa.
A difícil relação entre palestinos e israelenses é a tônica de Conflito, discriminação e segregação na Palestina ocupada: etnocracia como síntese teórica possível, de Fábio Bacila Sahd, que por meio de uma revisão bibliográfica, analisa as práticas de segregação na Palestina ocupada por Israel, a partir de ideias como o nacionalismo, o colonialismo e o capitalismo, tomando o conceito de etnocracia, para mostrar como pragmaticamente Israel exerce sua política de ocupação na região.
Ainda no Oriente Médio, Marcos Alan S. V. Ferreira apresenta-nos Refugiados e a Guerra Civil Síria: análise e perspectivas sobre o acolhimento na Turquia, um panorama da guerra civil na Síria e a difícil problemática do amparo às vítimas civis do conflito na Síria, junto aos países vizinhos, especificamente a Turquia.
Dentro de uma perspectiva ultra contemporânea, Rupturas conceituais de segurança e meio ambiente no antropoceno: os nexos securitários em formação desde o pós-guerra fria, de Hermes Andrade Júnior e Ana Paula Brandão, mostra como a dinâmica do meio ambiente é vista com uma dimensão estratégica, observando o risco ecológico, a partir do pressuposto de “novas” ameaças em um cenário de hostilidades latentes herdadas de guerras do século XX.
Fernando da Silva Rodrigues e Augusto W. M. Teixeira Júnior, no artigo Entre a guerra, a doutrina e a tecnologia: um histórico da evolução doutrinária do Exército dos Estados Unidos (1959-2017), nos mostram como, evolutivamente, a doutrina militar do Exército dos Estados Unidos foi continuamente sofrendo modificações desde a época da Guerra Fria até os dias atuais, e como adaptou-se em diferentes momentos ao longo de 59 anos para atender as diferentes demandas, que se apresentaram àquela força. Em A guerra de Nagorno-Karabakh: as disputas em torno dos conceitos de ‘vítima’ e ‘genocídio’ no tempo presente, os autores Heitor Loureiro e Pedro Bogossian trabalharam a ideia de memória e sua relação com os conceitos de vítima e genocídio dentro da disputa histórica entre Armênia e Azerbaijão pela região de Nagorno-Karabakh.
Tomaz Paoliello, apresenta artigo intitulado Uma genealogia das empresas militares e de segurança privada: a trajetória da empresa DynCorp frente à formação do “mercado da força” nos Estados Unidos No qual apresenta o surgimento e fortalecimento das forças militares privadas como um fenômeno paralelo ao moderno Estado-nação; o estudo dedica sua atenção à trajetória de uma dessas organizações, mostrando toda a dimensão de sua atuação. São 12 artigos escritos por autoridades que nos ajudam a compreender como esse difícil processo que compõe as guerras e conflitos, se processaram e se processam atualmente, com rupturas e permanências ao longo de 70 anos, e com desdobramentos incrivelmente atuais. Os organizadores acreditam que os trabalhos aqui apresentados possam trazer à comunidade de estudiosos desses temas e à sociedade, de um modo geral, um entendimento ainda que limitado da evolução da guerra como um fenômeno da sociedade da qual fazemos parte.
Organizadores
Johny Santana de Araújo. Doutor em História Social pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Professor do Departamento de História, do Programa de Pós-Graduação em História e do Programa de Pós-graduação em Ciência Política da Universidade Federal do Piauí (UFPI). Teresina, PI – BRASIL lattes.cnpq.br/6182725298799980. johnysant@gmail.com
Nuno Severiano Teixeira – Doutor em História pelo European University Institute (EUI). Professor da Universidade NOVA (Lisboa). Investigador do Instituto Português de Relações Internacionais (IPRI). Lisboa – PORTUGAL. fcsh.unl.pt/faculdade/docentes/nst/nst@fcsh.unl.pt.
ARAÚJO, Johny Santana de; TEIXEIRA, Nuno Severiano. Dossiê – Guerras e conflitos em escala global no Tempo Presente. Tempo e Argumento. Florianópolis, v.13, n.32, p.1-7, [jan. / abr.] 2021. Acessar publicação original.
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Cultura e democracia: convergências, conflitos e interesses públicos / Albuquerque: revista de história / 2020
Até ontem a palavra do alto César podia resistir ao mundo inteiro. Hoje, ei-lo aí, sem que ante o seu cadáver se curve o mais humilde. Ó cidadãos! Se eu disposto estivesse a rebelar-vos o coração e a mente, espicaçando-os para a revolta, ofenderia Bruto, ofenderia Cássio, que são homens honrados, como vós bem os sabeis. Não pretendo ofendê-los; antes quero ofender o defunto, a mim e a vós, do que ofender pessoas tão honradas. (Marco Antônio, em Júlio César de William Shakespeare)
O dossiê Cultura e Democracia: convergências, conflitos e interesses públicos, ainda que esteja ligado a temas e problemas temporais próximos ao que estamos vivendo no imediato presente, abrange uma temporalidade mais ampla que envolve os diversos meandros que compõe a estrutura do mundo e do Estado modernos. Desde as revoluções burguesas, que marcaram o surgimento de uma nova sociedade, homens e mulheres em vários espaços geográficos passaram por diferentes tipos de instabilidades políticas, o que gerou muitos debates intelectuais além de lutas e disputas frequentes pelas formas de entendimento sobre o poder de atuação das pessoas no espaço público.
O século XIX, por exemplo, é caracterizado no âmbito do continente europeu por numerosas lutas de trabalhadores que perceberam as possibilidades de transformação de suas condições de sobrevivência e de atuação política inaugurada pelo enredo liberal no final do século anterior. Um dos exemplos mais importantes nesse sentido ocorreu em Paris em 1848 quando a utopia da transformação atingiu inúmeras pessoas que incendiaram e subverteram as ruas da capital. A população invadiu e saqueou o Palácio das Tulherias, então residência do rei Luís Felipe. E antes que um governo provisório fosse formado e a Dinastia dos Orleans perdesse o poder, populares arrastaram o trono pelas ruas e o incendiaram na Bastilha. A força política e simbólica do que ocorreu a partir desse acontecimento foi retratada por imagens e palavras, mas nada mais forte que a análise produzida por Karl Marx em O 18 de Brumário de Luís Bonaparte.
Escrito entre dezembro de 1851 e fevereiro de 1852, Marx elaborou no calor dos acontecimentos uma análise cortante sobre a amplitude da atuação política de setores sociais explorados na vida democrática da França à época. O mesmo país que poucos anos antes havia legado ao mundo o lema “Liberdade, Igualdade e Fraternidade” e a “Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão” utilizou o discurso da democracia para que as subversões e lutas de 1848 fossem acalmadas e conformadas. A derrota imediata dos trabalhadores que ocupavam as ruas de Paris ocorreu a partir de junho de 1848, quando a Assembleia Nacional Constituinte foi formada e começou a elaboração das bases da Segunda República Francesa. O trono queimado de 1848 foi calmamente reconstruído até que, em 1851, o sobrinho imitou o tio e fez do dia 2 dezembro o seu 18 de Brumário.
Esse é apenas um exemplo onde os temas da democracia e da cultura estiveram fortemente imbricados em um “momento de perigo” do século XIX. Nele podemos observar muitas coisas e tirar diversas conclusões, mas o mais importante é perceber que o discurso democrático, por si mesmo, não garante a ampla e profunda participação política de diferentes estratos sociais. Aqui é desnecessário realçar a habilidade de Marx em tratar desse tema, inclusive porque O 18 de Brumário é inquestionavelmente um clássico, mas é impressionante perceber que desde 1852, quando ele foi publicado, temos condições de desdobrar essa discussão principalmente para entender que a democracia não é um bem em si, mas um constructo social que depende de variáveis históricas e, portanto, de condições sociais que precisam ser cotidianamente pensadas e, claro, reescritas. Inclusive o próprio Marx nas linhas iniciais de seu texto chama a atenção para o fato de que “Os homens fazem a sua própria história; contudo, não a fazem de livre e espontânea vontade, pois não são eles quem escolhem as circunstâncias sob as quais ela é feita, mas estas lhes foram transmitidas assim como se encontram” (MARX, 2001, p. 25). A participação política requer responsabilidade de todos. As noções de cidadania, igualdade e direitos, entre outros, como todos os aparatos discursivos, possuem correspondentes na prática. O autor alemão nos mostrou no século XIX, que quando alguns grupos colocam em prática a igualdade, outros reagem, inclusive no campo do discurso lançando mão do vocabulário de participação política inaugurado pelas revoluções burguesas.
Tomando essa reminiscência do século XIX como referência, podemos buscar outras no século posterior. O que nos motiva nesse caminhar é o vocabulário político do Estado Moderno, lembrando sempre que nosso escopo são as convergências entre democracia e cultura.
Ao longo do século XX, as duas guerras mundiais foram acontecimentos que alteraram profundamente os debates sobre democracia. Se antes de começar, o primeiro conflito fora saudado em prosa e verso por inúmeras pessoas embaladas pelo nacionalismo e o imperialismo de fins de século na Europa, 1918 apresentou um quadro muito distinto. Além dos problemas econômicos decorrentes da guerra e do novo quadro de forças políticas mundiais, o nacionalismo adquiriu cada vez mais traços xenófobos e chauvinistas. Isso sem contar o peso que a Revolução Russa de 1917 teve para os debates ideológicos da época bem como a acentuada gravidade do processo de exploração do continente africano para a política internacional. Não por acaso, as derrotas mais duras para o campo democrático não tardaram a chegar. Em 1922, Benito Mussolini promoveu a conhecida Marcha sobre Roma, com isso o fascismo entrava triunfal na cena pública contemporânea e, em 1933, Adolf Hitler foi nomeado chanceler da Alemanha pelo presidente Paul von Hindenburg. Daí até a Segunda Guerra Mundial foi uma questão de tempo e novamente o mundo se viu diante de inúmeros debates sobre a questão democrática.
Muitos autores se dedicaram à discussão sobre democracia e espaço público nesse amplo contexto que abarca também o período posterior a 1945, quando inclusive se coloca em prática no ambiente europeu o Estado de bem estar social. Uma das reflexões mais marcantes da época surge das letras da filósofa Hannah Arendt, em especial por ela entender que o espaço da ação política é o espaço da ação pública por excelência. A política se efetiva onde os Homens se unem aos seus iguais, são capazes de assumir posicionamentos, persuadem, sofrem e aceitam derrotas.
Arendt se dedicou, desde As Origens do Totalitarismo (1951), amplamente às reflexões que envolvem “ação” e “pensamento” no ambiente dos autoritarismos inaugurados no século XX. Os leitores atentos encontram nos seus livros análises primorosas sobre as incongruências que o tema da democracia carrega, entre eles Sobre Revolução (1963), Entre o passado e o futuro (1968) e Crises da República (1969). Nesse último, tratando especificamente da realidade dos Estados Unidos, país que acolheu a autora quando ela fugira do Nazismo, a análise se volta para a revisão da ideia de representatividade política frente às questões da liberdade pública:
Queremos participar, queremos debater, queremos que nossas vozes sejam ouvidas em público, e queremos ter uma possibilidade de determinar o curso político do nosso país. Já que o país é grande demais para que todos nós nos unamos para determinar nosso destino, precisamos de um certo número de espaços públicos dentro dele. As cabines em que depositamos as cédulas são, sem sombra de dúvida, muito pequenas, pois só têm lugar para um. Os partidos são completamente impróprios; lá somos, quase todos nós, nada mais que o eleitorado manipulado. Mas se apenas dez de nós estivermos sentados em volta de uma mesa, cada um expressando a sua opinião, cada um ouvindo a opinião dos outros, então uma formação racional de opinião pode ter lugar através da troca de opiniões. (ARENDT, 2010, p. 200)
É perceptível pela ótica da autora, entre outras coisas, que a participação democrática ampla depende de fatores que vão além do depósito do voto nas urnas e inclui a ampliação dos espaços públicos, a capacidade de diálogo, o processo formativo cultural e educacional, daí a importância do ambiente escolar e da escolarização, discutidos de maneira tão contundente no texto A Crise na Educação. Ninguém nasce em um mundo livre de construções humanas, por isso cada nova geração tem responsabilidade com o passado e com o futuro. Portanto, sem o processo educacional, corremos o risco de ignorar o que as gerações anteriores construíram e, com isso, desprezamos os perigos autoritários inaugurados no passado. E isso, infelizmente, é possível sem o diálogo frequente e a expansão da esfera pública.
Com tantos e profundos autoritarismos no século XX percebemos, lendo autores diferentes e refletindo sobre momentos e sociedades distintas, que é impossível não ser constantemente vigilantes com o processo formativo das pessoas. É ele que minimamente pode garantir um debate mais consistente sobre os meandros democráticos e, principalmente, condições de sobrevivência onde existam conflitos e convergências de interesses públicos.
Apesar de termos percorrido apenas vinte anos do século XXI, está claro que a força autoritária recrudesce imensamente no mundo e no Brasil nos últimos anos. Há inclusive uma extensa bibliografia sobre o tema que vem colocando acentos interpretativos distintos e importantes sobre a ideia de democracia. Desde a publicação de Como as democracias morrem (2018), de Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, temos acesso no Brasil aos livros Como a democracia chega ao fim (2018), de David Runciman; O povo contra a democracia (2019), de Yascha Mounk; Na contramão da liberdade (2019), de Timothy Snyder, entre outros. Já entre autores e pesquisadores brasileiros a situação não é diferente e merece destaque o livro do sociólogo Leonardo Avritzer, O pêndulo da democracia (2019).
Levando em conta toda essa discussão e entendendo, desde os escritos mais contundentes do século XIX, que a democracia é um tema sempre a ser discutido, construído e cultivado que estruturamos a proposição deste dossiê. Assim, a articulação entre Cultura e Democracia não é apenas um jogo de palavras que diz respeito às urgências intelectuais da época em que vivemos, mas é um retorno ao passado carregado de historicidade e de respeito aos contínuos movimentos das lutas de homens e mulheres que formaram nossa sociedade ao longo do tempo. Está também relacionada à constatação de que o conhecimento acadêmico é fundamental para uma época que despreza a ciência e a racionalidade como sintoma de autoritarismos políticos e sociais que desprezam a vida e a multiplicidade humana.
Abrindo o dossiê, Durval Muniz de Albuquerque Júnior no texto Narrar vidas, sem pudor e sem pecado: as carnes como espaço de inscrição do texto biográfico ou como uma biografia ganha corpo problematiza a noção de biografia histórica, trazendo à tona como o ato de escrever biografias maneja a dimensão temporal e carnal da existência. Para tanto, o historiador lança mão da obra Roland Barthes por Roland Barthes (2017) e permite que os leitores compreendam que o ato de narrar e ler sobre vidas é carregado de significados variados. No campo do debate sobre democracia, o texto adquire singularidade por nos permitir compreender que quando lidamos com agentes do passado por meio de biografias estamos diante de uma “potência carnal que corporifica a escrita biográfica”.
Na sequência, disponibilizamos as reflexões de Rosangela Patriota sobre as incertezas contemporâneas em torno de práticas democráticas, por meio do artigo A questão democrática em tempos de incertezas. Com essa preocupação, a autora realiza um mergulho no cenário político internacional das últimas décadas para, posteriormente, discutir o tema do antissemitismo em sociedades contemporâneas, a partir do revisionismo na historiografia do Holocausto e por intermédio da peça teatral Praça dos Heróis de Thomas Bernhard. Articulando diálogos entre passado / presente, Patriota problematiza dúvidas e impasses de nossa história imediata.
Ainda no contexto de elaboração de narrativas históricas, cabe destacar o artigo do historiador Antonio de Pádua Bosi, Trabalho, Imigrantes e Política em “Greve na Fábrica”: o maio de 68 para Robert Linhart. Homem público francês, que viveu um dos momentos mais intensos dos debates democráticos da segunda metade do século XX, Linhart produziu um texto revelador sobre identidades culturais e experiência de trabalho industrial a partir da vivência de operários de diferentes nacionalidades na linha de montagem da Citroën, em 1969. Bosi recupera esses escritos e dá dimensão histórica e crítica ao livro do autor francês. Ler o artigo nos ajuda a perceber o quanto a dinâmica do trabalho e o debate sobre democracia se alterou ao longo do tempo, ao mesmo tempo que trouxe consequências marcantes para a vida e a luta dos operários.
Caminhando para a compreensão das discussões da democracia no Brasil, o artigo Paulo Freire: el método de la concientización, em la educación, para analizar y compreender el contexto actual de la Globalización, escrito por José Marin Gonzáles, traz para o debate sobre democracia o tema da educação por meio do método de Paulo Freire no atual contexto de Globalização. O texto é fundamental para um momento em que muito se critica o educador brasileiro sem nenhum tipo de fundamentação acadêmica e mais ainda quando o processo educacional é pensado prioritariamente como corpo que oferece aos sujeitos, desvinculados de quaisquer coletividades, ferramentas exclusivas para o mercado de trabalho. Freire é um chamamento à coletividade, à noção de educação voltada para o bem comum e principalmente para a justiça social, temas caros às experiências democráticas.
Entrando especificamente no diálogo com linguagens artísticas no Brasil dos últimos anos, o dossiê conta com quatro artigos. Em O homem de La Mancha: aspectos da utopia no teatro musical brasileiro da década de 1970, André Luis Bertelli Duarte promove importantes discussões sobre o teatro brasileiro nos duros anos da repressão política brasileira, com destaque para as possibilidades do debate democrático promovido pela encenação musical de O homem de la mancha (Dale Wasserman, 1965), produzido por Paulo Pontes, sob a direção de Flávio Rangel, em 1972-1973. No ambiente de autoritarismos diversos e em especial contra a figura de artistas e intelectuais, a releitura de Quixote se apresentava como ideal de justiça e liberdade.
Ainda dialogando com o campo teatral, Rodrigo de Freitas Costa promove no artigo O teatro de rua e sua expressão política: os primeiros anos do Grupo Galpão de Belo Horizonte (1982-1990) reflexões sobre o teatro de rua no período logo após o processo de abertura política, tendo por referência o trabalho desenvolvido pelo conhecido grupo teatral da capital mineira. O texto contribui para a discussão sobre democracia e cultura no Brasil especialmente por problematizar e questionar a ideia de “vazio cultural” desenvolvida por inúmeros críticos teatrais que tratam da produção nacional pós Estado Autoritário. Nesse sentido, as primeiras peças escritas e encenadas pelo Galpão são o mote para compreender parte da complexidade do processo cultural brasileiro e a amplitude do teatro político nos anos 1980.
Já sobre a relação entre Cinema, Democracia e História, o artigo de Rodrigo Francisco Dias, Autoritarismo e democracia nos filmes “Jânio a 24 Quadros” (1981, de Luís Alberto Pereira) e “Jango” (1984, de Silvio Tendler), permite ao leitor compreender como os temas do autoritarismo e da democracia são reelaborados nos documentários de Luís Alberto Pereira e Silvio Tendler no início da década de 1980. Abordando aspectos formais, o autor mostra como as configurações estéticas carregam posicionamentos históricos e políticos. Com isso, une forma e conteúdo por meio da historicidade e promove considerações importantes capazes de elucidar as dinâmicas do debate democrático dos anos finais da Ditadura Militar.
Por fim, o dossiê se encerra com uma discussão sobre financiamento cultural nos dias atuais. Essa discussão é fundamental para o Brasil de hoje, onde a arte é menosprezada e diversos artistas e intelectuais são hostilizados publicamente. Em um país que investe pouco em educação e cultura, sabemos que as discussões democráticas são frágeis e que os espaços públicos são minados por discursos surdos e preconceituosos. O artigo Democracia e Arte: as percepções da Lei Rouanet e o financiamento da cultura de Jacqueline Siqueira Vigário e Anna Paula Teixeira Daher promove reflexões importantes recolocando essa discussão em bases acadêmicas inicialmente analisando a lei de incentivo à cultura e, por fim, utilizando como exemplo o caso da exposição “Queermuseu: Cartografia da diferença na arte brasileira” (2017).
Como parte do dossiê para este este número de albuquerque: revista de história, há uma entrevista da Professora Doutora Maria Helena Rolim Capelato. Historiadora atuante na esfera pública, árdua defensora do conhecimento histórico cientificamente elaborado e produtora de reflexões importantes sobre História e Imprensa no Brasil do século XX. Na entrevista, a professora fala de sua formação ainda na Ditadura Militar, destaca os principais debates que dizem respeito à sua pesquisa sobre imprensa no Brasil e na América Latina e, por fim, reflete sobre temas políticos brasileiros contemporâneos.
Esperamos que os leitores aproveitem as reflexões que o dossiê traz e que possam cada vez mais entender e divulgar que a democracia não é um bem em si, mas um processo que precisa constantemente ser reelaborado, inclusive quando o objetivo é favorecer o humanismo em tempos sombrios.
Referências
ARENDT, Hannah. Crises na República. Tradução de José Volkmann. 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 2010.
AVRITZER, Leonardo. O pêndulo da democracia. São Paulo: Todavia, 2019.
LEVITSKY, Steven; ZIBLATT, Daniel. Como as democracias morrem. Tradução de Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Zahar, 2018.
MARX, Karl. O 18 de Brumário de Luís Bonaparte. Tradução de Nélio Schneider. São Paulo: Boitempo, 2011.
MOUNK, Yascha. O povo contra a democracia. Tradução de Cássio de Arantes Leite e Débora Landsberg. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.
RUNCIMAN, David. Como a democracia chega ao fim. Tradução de Sérgio Flaksman. São Paulo: Todavia, 2018.
SNYDER, Timothy. Na contramão da liberdade: a guinada autoritária nas democracias contemporâneas. Tradução de Berilo Vargas. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.
Rosangela Patriota (Universidade Presbiteriana Mackenzie / CNPq)
Rodrigo de Freitas Costa (Universidade Federal do Triângulo Mineiro)
Thaís Leão Vieira (Universidade Federal de Mato Grosso)
Organizadores
PATRIOTA, Rosangela; COSTA, Rodrigo de Freitas; VIEIRA, Thaís Leão. Apresentação. Albuquerque: revista de história, Mato Grosso do Sul, v.12, n.24, 2020. Acessar publicação original [DR]
História, Conflitos e Experiências Agrárias / Manduarisawa / 2019
O presente dossiê da Revista Manduarisawa intitulado “História, Conflitos e Experiências Agrárias”. O mesmo foi organizado em parceria com o Professor Me. Prof. Luiz Antonio Nascimento de Souza1 e reúne um conjunto de artigos compostos por pesquisadores (as) de todo o país. A seguinte temática visa reunir debates entorno da questão agrária em suas múltiplas dimensões, destacando a história das lutas pela terra, os conflitos fundiários em suas dimensões latino-americanas, nacionais, regionais e locais. As vivências nesses espaços incluem as lutas pela manutenção e preservação dos costumes e modos de vida por parte das populações ribeirinhas, quilombolas e indígenas, bem como relatos de experiências peculiares que têm o mundo rural e agrário como tecido social.
Neste sentido este dossiê tem objetivo de busca ao debate, análises de assuntos relacionados as questões agrárias, não se pode pensar em ruralidades sem se levar em conta as suas dimensões conflitivas em torno de todo o país, o embate secular pela luta pela terra, os conflitos agrários, a expulsão de centenas de famílias de suas terras provocadas pela expansão da fronteira agrícola e a violência no campo que em dez anos provocou o assassinato de mais de mil e novecentas pessoas, em sua maioria absoluta lideranças sociais, lideranças indígenas, assessores e defensores dos direitos humanos no campo.
Os artigos presentes na edição “História, Conflitos e Experiências Agrárias” começam com os artigos da temática do Dossiê, entre eles: “Disputas no interior da questão agrária no Brasil” por Émerson Dias de Oliveira; “O princípio da função social no Estatuto da Terra e o processo de desapropriação da Fazenda Annoni, no Norte Sul Rio-Grandense” por Simone Lopes Dickel; “Cultura política indígena e violência no alto Solimões: o caso do massacre do capacete (1988-2001)” por Tamily Frota Pantoja e “A etnia tenharim e a retomada dos direitos usurpados: uma leitura sobre os antagonismos entre a etnopolítica e os interesses capitalistas” por Jainne de Castro Bandeira.
Este dossiê também é composto por artigos livres, entre eles: “Civilização, Ocidente, “clássicos” e eurocentrismo: é possível uma ecologia de saberes para a História da Historiografia e a Teoria da História?” por Matheus Vargas de Souza; “O projeto civilizador de Pombal: uma discussão sobre a imposição do vestuário às sociedades indígenas da Amazônia em meados do século XVIII” por Caroline Almeida Gaspar; “Embates pela Igreja: Clero regular e clero secular no espaço luso-amazônico” por Isabela Cristina Botelho Senna Albuquerque; “Anjinhos inocentes: A morte infantil no Amazonas entre os séculos XIX e XX” por Fábio Augusto de Carvalho Pedrosa e “A implementação do juizado de menores no Amazonas (1930-1950)” por Maria Vitória Castro Brasil.
Agradecemos a participação de todos os pesquisadores e pareceristas envolvidos neste Dossiê e enfatizamos que a Revista Manduarisawa disponibiliza de um espaço aberto para divulgação e interação de vários estudos, com intuito de enriquecimento da historiografia.
Desejamos uma ótima leitura para todos (as)!
Nota
1. Professor Adjunto e doutorando do Curso de História Social da Universidade Federal do Amazonas.
Cordialmente,
Conselho Editorial – Revista Manduarisawa.
CONSELHO EDITORIAL. Apresentação. Manduarisawa, Manaus, v.3, n.2, 2019. Acessar publicação original [DR].
Diversidade: percepções e conflitos / Revista Eletrônica História em Reflexão / 2016
Uma coletânea de discursos que primam por olhares sobre ações humanas num tempo social eivado de experiências que nos chegam neste mundo de incertezas e guinadas direitistas ultraliberais globais. Resistir é preciso e que seja pela escrita também! Nos textos demonstra-se que não estamos atônitos, pois vemos na história e em nosso cotidiano das ruas e redes sociais movimentos identificados com pequenas resistências vindos de trabalhadores, feminismos, lutas contra o racismo e pelos direitos de outras minorias despojadas de uma existência digna. As percepções e conflito geracionais e educacionais bem como o mundo dos trabalhadores arrazoam por novas possibilidades de estar no mundo. Neste sentido se inserem os escritos do dossiê cuja temática se espraia sobre as questões da diversidade. Cláudio José Piotrovski Dias nos alude sobre a experiência do militante Herbert Daniel tangenciando olhares sobre democracia, direitos homossexuais e a resistência à normatividade a partir dos discursos sobre a doença e a homossexualidade. Este autor optou pelo uso dos conceitos “making up people / looping effect” propostos por Ian Hacking, para entender como ocorre o relacionamento entre indivíduo e as categorizações sociais.
Na sequência, o pesquisador italiano Enrico Bocciolesi nos brinda como uma análise sobre as lacunas educacionais em relação aos processos comunicacionais relacionadas às identidades e alteridades. Para este autor, o fato de não haver interseções entre o real e o virtual nos leva a impossibilidade de um encontro. Daí deriva a necessidade de investigações para novas posições frente ao espaço real.
As contribuições estrangeiras têm sido uma constante tanto na publicação de textos quanto na composição do conselho consultivo da revista, como por exemplo, o professor Anibal Herib Caballero (fez apresentação da edição n° 9, v. 18), o professor Enrico Bocciolesi, com um texto nessa edição, assim como o professor Robert Wilcox e a professora Encarnacion Medina, que integram o conselho consultivo da revista. A parceria internacional no campo histórico tem se tornado uma ambiência interdisciplinar importante para pesquisadores, instituições e, sobretudo para os leitores.
Nesta edição Carlo Guimarães Monti prima por um olhar sobre “concessão de alforrias em época da diminuição da produção aurífera em Nossa Senhora do Carmo entre 1750 e 1779, atual cidade de Mariana”, observando, através de fontes como: cartas de alforria, testamentos e inventários dos senhores que alforriaram no período; como houve uma influência da situação aurífera na concessão dessas cartas de liberdade. Além disso, Monti destaca que o processo de concessão de alforrias demonstrou uma complexidade que ultrapassa o âmbito econômico.
Na perspectiva econômica temos um texto de Ivo dos Santos Farias sobre a atuação de uma fábrica de fiação e tecelagem em Maceió, Alagoas no processo de modernização brasileira. Ao estudar a atuação do grupo os relaciona com a formação da burguesia nacional e o processo de desenvolvimento da indústria têxtil. O autor ainda parte do pressuposto de que o processo de modernização brasileira esteve articulado a um conjunto de práticas, pensamentos e ideologias que atrelavam a burguesia nacional ao mercado mundial.
Com foco no medievo Andréia Rosim Caprino perscruta a formação de identificações na península ibérica medieval. A autora ainda nos alude que a questão das identidades e fronteiras se espraiam espacialmente e não possuem temporalidade definida, sendo possível tecer relações com o momento histórico contemporâneo. Na temática de conflitos e interditos segue uma análise de Edson Silva sobre a ação normatizadora de combate ao hábito da população citadina de Jacobina, Bahia (1955-1959), em criar animais como jegues, cabras, porcos e vacas em quintais ou soltos nas ruas da cidade. Observa-se neste texto que houve um processo de recrudescimento no combate a criação de animais no perímetro urbano, porém processos de resistência na cidade se configuravam em novas correlações de força, permitindo dobras e ranhuras frente a desejada submissão ao ordenamento e a estética do desenho urbano.
Mario Teixeira de Sá Junior analisa o lugar de africanos e seus descendentes na nossa história através de uma incursão no processo de mineração e o uso de tecnologias próprias no Mato Grosso do século XVIII. Estes escritos são corroborantes da ideia de que os conhecimentos africanos foram fundamentais para a construção do Brasil através de suas tecnologias e não tão somente de sua mão de obra.
Na seção de artigos livres contamos com um texto que vislumbra uma batalha de palavras pela “periodização” da história do Brasil, cujo século XIX pareceu ser um paradigma, tanto na obra de Alfredo Ellis Jr., quanto na de Sérgio Buarque de Holanda. Este artigo é de Diogo da Silva Roiz sendo o mais extenso da edição, porém mantido dado a pertinência do debate e da temática em questão. O próximo texto de Max Lanio Martins Pina nos alenta para a linha investigativa em educação histórica como possibilidade inovadora no ensino de história. No artigo apresenta-se a historicidade desse modelo bem como se observa os pressupostos já alcançados pelos estudos que foram efetuadas nesse campo e também aponta para os mais importantes projetos desenvolvidos na Europa e no Brasil. Por fim temos uma aproximação entre a história regional e a história ambiental de autoria de Débora Nunes de Sá cujo espaço referenda a floresta nacional de Passo Fundo (FLONA PF), Unidade de Conservação de Uso Sustentável, inserida no Bioma Mata Atlântica e localizada no município de Mato Castelhano no Rio Grande do Sul.
Pesquisadoras e pesquisadores contribuíram de forma singular nesta edição preocupad@s com temas e problemáticas que também atentam para indagações do presente. Os textos são corroborantes da assertiva múltipla do fazer-se humano com suas infindáveis experiências a espera do olhar profissional de historiadores. Mediações são necessárias para novos fios de esperança pela partilha da economia, o cuidado com o ambiente e com a cultura reivindicando o direito de nos expressarmos e criarmos. Ao visibilizar o passado com suas conexões presentistas seremos semeadores de futuro também!
Tânia Regina Zimmermann – Professora de História da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul.
ZIMMERMANN, Tânia Regina. Apresentação. Revista Eletrônica História em Reflexão. Dourados, v. 10, n. 19, jan. / jun., 2016. Acessar publicação original [DR]
O “Grande Norte”: interações, relações e conflitos na Europa Setentrional Medieval / Brathair / 2015
Grande Norte: Interações – Relações – Conflitos na Europa Setentrional Medieval / Brathair / 2015
É inegável o enorme crescimento, tanto quantitativo quanto qualitativo, das pesquisas brasileiras focadas no Medievo nas últimas duas décadas. É mesmo empolgante testemunhar e participar ativamente deste movimento: graduandos, pós-graduandos e titulados de, praticamente, todas as unidades da federação desenvolvem pesquisas sobre a Idade Média, situação que levou à constituição e multiplicação de Grupos, Núcleos e Laboratórios de pesquisa na área o que, por um lado, é muito salutar ao criar estruturas de pesquisa e orientação, facilitando, em teoria, a difusão dos estudos.
Por outro lado, em termos negativos, houve a constituição de um fenômeno de “isolamento” das pesquisas, com a maior parte dos grupos privilegiando explícita ou implicitamente recortes cada vez menores em suas circunscrições espaço-temporais, tratando-os como ilhas distantes de outros contextos vividos pelas mesmas populações em temporalidades diferentes e pouco considerando as relações matizadas por todos os tipos de interações com outras culturas (próximas ou distantes).
Essas abordagens exclusivistas também trazem em si a ameaça da formação de nichos particulares (verdadeiras “reservas de mercado”), em evidente contramão ao movimento de expansão das pesquisas, além dos cerceamentos (muitas vezes extremos e afastados da racionalidade) na escolha do objeto a ser estudado por neófitos na área. Todos sabem que o conhecimento científico só se constrói com projetos estruturados, circulação e debates construtivos, ou seja, em última instância, através da colaboração.
Assim, propomos uma abordagem mais ampla na confecção de nosso dossiê, que denominamos como perspectiva “hiperbórea”, inspirada na Hiperbórea, o além-norte dos gregos. O uso é proposital, uma vez que há uma tradição regional neste sentido: muitos eruditos tentaram encontrar as origens da humanidade e / ou da cultura greco-romana no Norte Europeu, ou ao menos tentaram equiparar o legado nórdico aos vizinhos meridionais e incluir sua importância na História do mundo. Tal tendência, denominada “Escola Hiperbórica”, foi fundamental, por exemplo, para o desenvolvimento do Goticismo na Suécia (Bandle et alii, 2002: 358).
Os problemas destas leituras, porém, já foram amplamente denunciados; Assim, aproveitaremos o termo, mas, diferente dos nossos predecessores, propomos um olhar relacional, ou seja, pautado no estudo de interações, relações e conflitos na Europa Setentrional sem buscar origens, aclamar superioridade de raças, culturas, nações ou nacionalismos. Para nós, este complexo espacial abrigou inúmeras culturas e hibridismos culturais, problemas mais relevantes que discussões particularistas e ultrapassadas.
No bojo da questão, Kilbride condenou termos como “sincretismo” e “hibridismo” porque eles pressupõem um compromisso entre dois estados básicos (neste caso, cristianismo e paganismo) e negam a fluidez entre os dois (2000: 8). Porém, Aleksander Pluskowski e Philippa Patrick revalidaram o termo “hibridismo” sobre outras bases, i.e., para se referir a qualquer situação intermediária entre os dois paradigmas contrastantes, sem ignorar, contudo, as variedades de paradigmas “pagãos” e “cristãos” identificáveis a partir da cultura material (2003: 30-31).
Seria possível aplicar o mesmo instrumental para a Europa Setentrional: apenas nas ilhas Britânicas teríamos a Hiberno-latina, a Hiberno-escandinava, a Anglo-latina, a Anglo-escandinava, a Anglo-normanda, a Anglo-manx, dentre outras igualmente importantes, revelando uma realidade tão fértil quanto as interações que transformaram o Mediterrâneo em um cadinho civilizacional por excelência. Trata-se de uma proposta inclusiva que não refuta as abordagens exclusivistas, mas que conclama à sua integração frente às perspectivas mais amplas, que prometem trazer frutos que poderão impulsionar o futuro de muitos ramos da Medievística brasileira.
Portanto, é com imenso prazer que trazemos a lume o novo número da já tradicional revista Brathair, incluindo algumas novidades em sua programação visual. Sem mais delongas, este número apresenta em seu dossiê os seguintes artigos: de Michael J. Kelly (doutor pela Universidade de Leeds) nos cedeu a publicação em Língua Portuguesa de sua conferência (ministrada da USP dia 05 / 10 / 2015) “Quem lê Pierre Pithou?: O impacto da Renascença francesa na história Visigótica e nas modernas representações do passado medieval inicial”. Lukas Gabriel Grzybowski (doutor pela Universidade de Hamburgo) com “Virtudes e política: Bernardo de Clairvaux e Otto de Freising sobre temperantia e moderatio”, André Szczawlinska Muceniecks (Doutor pela Universidade de São Paulo) com “Ritos de passagem na Ọrvar-Odds Saga – o caso do Homem-Casca” e Isabela Dias de Albuquerque (Doutoranda pelo PPGHC – UFRJ) com “O Massacre do Dia de São Brício (1002) e o reinado de Æthelred II (978-1016): uma introdução a novas possibilidades de análise sobre as relações identitárias na Inglaterra anglo-escandinava”.
A seção de artigos livres conta com os textos de Juan Antonio López Férez (Los celtas en las Vidas de Plutarco, Benito Márquez Castro (Los Hérulos en la Crónica del obispo Hidacio de Aquae Flaviae, mediados de s.V), Dominique Santos & Leonardo Alves Correa (Peregrinatio et Penitentia no livro I da Vita Columbae de Adomnán, séc. VII), Ana Rita Martins (Morgan le Fay: The Inheritance of the Goddess) e Solange Pereira Oliveira (Valores e crenças no mundo pós-morte nos relatos de viagens imaginárias medievais). Finalmente, contamos também com a resenha de José Pereira da Silva, acerca da obra A Fraseologia Medieval Latina, de autoria de Álvaro Alfredo Bragança Júnior.
No texto de Kelly, o autor começou a esboçar a influência de Pierre Pithou sobre o passado medieval visigodo. A ideia do artigo é rever as bases do pensamento moderno sobre a Idade Média, no intuito de entender como o conhecimento desse recorte temporal foi forjado. Esse impacto pode ser sentido não só na historiografia da época, mas também nas leituras contemporâneas e no método empregado pelos historiadores atualmente.
No texto de Muceniecks é possível notar a utilização de uma “saga legendária” e das descrições de regiões míticas como pano de fundo para a constituição de espaços liminares e ritos de passagem no Leste europeu medieval. Albuquerque, no extremo oposto, usou o famoso Massacre do Dia de são Brício (1002) e a organização espacial nas ilhas como parâmetro de observação das relações entre saxões e escandinavos na Inglaterra.
Grzybowski, por sua vez, usou Bernardo de Clairvaux e Otto de Freising como pontos de vista sobre as discussões acerca das virtudes políticas e o exercício político ideal. A análise das epístolas, gênero específico, demonstrou como as condições da época e a experiência monacal ajudaram a moldar as conclusões sobre a política no século XII.
O artigo de Santos & Correa desnudou os conceitos de peregrinação e penitência à luz das concepções usadas durante a Early Christian Ireland. Os autores usaram o primeiro livro da Vita Columbae de Adomnán de Iona (séc. VII) para retomar as condições de peregrinação no contexto irlandês e, nestes termos, recobrar o sistema teológico construído pelo autor da Vida de Columbano.
No texto de Martins, nota-se a preocupação com personagens do mito arturiano e as associações ora benignas, ora malignas, conforme o gênero do personagem. Com o incremento do cristianismo na Matéria da Bretanha, a mágica e as mulheres foram ligadas e formaram um amálgama de teor negativo. Nestes termos, Morgana poderia estar conectada com uma deusa “céltica” ou com a demonização pura e simples de deuses pagãos, tidos como aliados de Satã.
Solange Pereira Oliveira ofereceu ainda um arguto olhar sobre as crenças post morteem nos relatos de viagens imaginárias da Idade Média, que serviam, entre outros fatores, como guias de ensinamentos religiosos e mecanismos evangelizadores dos homens da Igreja; Juan Antonio López Férez, por fim, partiu das Vidas de Plutarco para comentar as diferentes referências aos celtas neste texto, com amplas traduções para a língua espanhola.
Brindamos nossos leitores com essas referências e aguardamos um crescimento ainda maior das produções voltadas para o Setentrião europeu medieval, sobretudo das próximas gerações de pesquisadores.
Referências
BANDLE et alii. The Nordic Languages: An International Handbook of the History of the North Germanic Languages. Vol.1. Berlin: Walter de Gruyter, 2002.
KILBRIDE, William G. Why I feel cheated by the term ‘Christianisation’. Archaeological Review from Cambridge, v. 7, n. 2, pp. 1-17, 2000.
PLUSKOWSKI, Aleksander & PATRICK, Philippa. ‘How do you pray to God?’ Fragmentation and Variety in Early Medieval Christianity In: CARVER, Martin (Ed.). The Cross Goes North: Processes of Conversion in Northern Europe, AD 300-1300. Woodbrigde: Boydell, 2002, pp. 29-57.
Vinicius Cesar Dreger de Araujo – Professor de História na Universidade Estadual de Montes Claros (UNIMONTES). E-mail: viniciusdreger@yahoo.com.br
Renan Marques Birro – Professor de História na Universidade Federal do Amapá (UNIFAP). E-mail: rbirro@gmail.com
Elton O. S. Medeiros – Professor de História na Faculdade Sumaré (SP). E-mail: eosmedeiros@hotmail.com
ARAUJO, Vinicius Cesar Dreger de; BIRRO, Renan Marques; MEDEIROS, Elton O. S. Editorial. Brathair, São Luís, v.15, n.1, 2015. Acessar publicação original [DR]
Terra: relações, conflitos e movimentos sociais / Tempos históricos / 2014
Os estudos relacionados à história rural no Brasil e na América Latina, na atualidade, revelam relações sociais conflitivas e diversificadas; modos de vida; memórias acerca de experiências de ocupação da terra e do trabalho rural; disputas judiciais pela posse da terra e disputas de trabalhadores rurais por direitos trabalhistas; formas individuais e coletivas de luta pela terra e contra a construção de usinas hidrelétricas, bem como modos diversos de conceber a posse, o uso e as relações com a terra e o meio ambiente.
Este universo rural plural, desigual e conflitivo visualiza-se nos problemas abordados em artigos, publicados em grande número no passado recente, o que demonstra a vitalidade da história rural, que para além de problematizar tradicionais temas, como o dos movimentos sociais, incorporou e abriu novas frentes de análise. Também possibilitou a voz e conferiu movimento às práticas dos sujeitos sociais a partir de um leque diversificado de fontes, entre as quais as narrativas orais.
A multiplicação de estudos sobre a vida rural vem propiciando a revisão das historiografias construídas tradicionalmente, elaboradas e problematizadas nos centros urbanos, ao destacar a homogeneização que elas supõem. A irrupção de análises com estas características nos permite resignificar concepções de mundo, pleitear a necessidade de um desenvolvimento que interpretamos como humano e social e não meramente econômico, bem como consolidar um olhar mais amplo para a relação entre sociedade e natureza, no âmbito do pensamento holístico.
Tal configuração se verificou também na organização do presente Dossiê “Terra: relações, conflitos e movimentos sociais”. Os organizadores receberam dezenas de artigos, versando sobre múltiplas temáticas, o que também se têm nos artigos que compõem o Dossiê. Eles retratam questões situadas em diferentes espaços e tempos históricos em diversos países da América Latina (Brasil, Argentina, México e Peru) e com perspectivas teóricas, abordagens e fontes diversas, entre as quais: matérias de jornal impresso, entrevistas orais, índices estatísticos, leis, entre outras.
A problematização das leis agrárias, do direito da / à terra e do direito do / ao trabalho, permeia os seis primeiros artigos do Dossiê. Neles emergem disputas entre diferentes sujeitos sociais – indígenas, pequenos agricultores e grandes proprietários rurais – pela posse da terra. Neste terreno movediço e conflituoso, no questionamento do Direito e, ou, na busca da justiça por meio dele, bem como na forma de movimentos sociais, evidencia-se a constituição de sujeitos como portadores de direitos; a recriação de representações sociais; políticas públicas, leis agrárias e confrontos em torno delas.
Tematizando a Lei Hipotecária de 1964, Pedro Parga Rodrigues questiona se esta lei originou a propriedade privada no Brasil, confrontando a interpretação da criação da propriedade privada no Brasil pelas normas jurídicas.
O paper de Vânia Maria Losada Moreira nos chama atenção para o Direito como uma das dimensões centrais na luta índios pela posse e uso de suas terras, “discutido a obliteração dos índios como sujeitos portadores de direitos na historiografia clássica sobre a formação territorial brasileira”, bem como, a partir de estudo de caso, como a recorrência ao Direito e “busca da Justiça foram os dois principais instrumentos mobilizados pelos índios para assegurar a posse e controle sobre suas terras”.
Fábio Baião, por sua vez, nos convida à reflexão sobre as estratégias de luta coletiva do Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN), movimento armado e constituído em sua maioria por indígenas do sul do México. O autor problematiza os usos de representações sociais pretéritas pelo EZLN, como ferramenta de combate e legitimação, numa conjuntura neoliberal, de ameaça da perda da terra e das tradições.
Os professores Henrique Kujawa e João Carlos Tedesco abordam os conflitos entre indígenas e pequenos agricultores, engendrados pelas políticas públicas relacionadas às demarcações de terras indígenas no Norte do Rio Grande do Sul e os conflitos territoriais na atualidade.
O artigo de Silvia Lázzaro analisa a política agrária peronista, na década de 1970, explicitando como a Lei Agrária foi inviabilizada pela confrontação tecida pelas corporações dos grandes proprietários, bem como de fissuras internas ao governo peronista.
Em “Sobre a lei do trabalho infantil no agro argentino”, Ignacio Rullansky aborda as “diretrizes gerais que servem de base para o aprofundamento da análise histórica do direito do trabalho na agricultura argentina e do trabalho infantil”.
Os artigos que se seguem abordam diferentes dimensões da questão agrária no Brasil e na Argentina. São temas: a apropriação privada da terra, os conflitos e a sujeição do trabalho e dos trabalhadores engendrados por este processo; o acesso a terra pelos trabalhadores rurais, a reforma agrária e as alterações da vida no campo contemporâneo.
A questão agrária, dimensionada pela apropriação privada da terra, pelos conflitos e territorialidades em áreas de colonização, é objeto de análise dos artigos de José Carlos Radin, em “Questão agrária na fronteira catarinense” e de Carlo Romani, César Martins de Souza, Francivaldo Alves Nunes, em “Conflitos, fronteiras e territorialidades em três diferentes projetos de colonização na Amazônia”.
Christine Rufino Dabat analisa a trajetória de acesso a terra dos trabalhadores rurais da zona canavieira de Pernambuco, entre 1960 e 1980, concluindo que a “brecha camponesa, sob a forma de sítio / roçado, permitiu, após a abolição, a manutenção da sujeição da força de trabalho rural”, na forma da relação de trabalho assalariada.
A “modernização agrícola”, como discurso político a partir de um estudo de caso em Minas Gerais, Brasil, é tema do artigo de Auricharme Cardoso de Moura. As alterações da vida no campo no Oeste do Paraná, na segunda metade do século XX, por sua vez, dimensionadas por meio da análise da desestruturação ambiental, ocasionada em grande medida pela utilização de agrotóxicos, são problematizadas por Carlos Meneses de Sousa Santos e Sheille Soares de Freitas.
Na sequência há cinco artigos que têm como objeto de análise as experiências e memórias da luta pela reforma agrária no Peru e no Brasil. Também são temas abordados: a trajetória social, as condições de vida e a resistência de assentados rurais na terra e na relação com o coletivo, proposto pelo MST como forma de organização na terra, na contraposição a “terra de trabalho”.
Vanderlei Vazelesk Ribeiro aborda o processo de reforma agrária no Peru, entre 1969 e 1993, desde as cooperativas sob intervenção militar à parcelação de terras de corte neoliberal, apontando as contradições desse processo.
O artigo de Leandra Domingues Silvério analisa condições de vida e de trabalho de assentados da reforma agrária na contemporaneidade a partir “de narrativas construídas por eles no ato de lembrar-se de suas histórias e de suas lutas, trazendo à tona a complexidade de se viver no campo”.
Fabiano dos Santos Rodrigues focaliza em seu texto a trajetória social e as formas de resistência de trabalhadores rurais do assentamento Califórnia em AçailândiaMA diante de um conflito ecológico, engendrado pelo avanço do cultivo de grandes áreas com plantações de eucalipto em áreas ao entorno do assentamento.
Em seu paper, Pere Petit, Airton Pereira, Fábio Pessôa abordam o confronte entre camponeses e fazendeiros pela posse da terra no Sul e no Sudeste do Estado do Pará, durante a segunda metade do século XX, na relação, em especial, com setores ligados à Teologia da Libertação.
As lutas camponesas do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) no Pontal do Paranapanema, São Paulo, Brasil, é temática abordada por Maria Celma Borges. A autora problematiza as práticas camponesas, priorizando “trama vivida entre a Organização (dirigentes e militantes) e os demais personagens, com destaque para a necessidade de superação dos termos “massa” e “vanguarda” na compreensão das ações deste movimento social”.
No seu conjunto, os artigos do Dossiê explicitam temas e preocupações relevantes para o debate no âmbito da história rural, ao evidenciarem as disputas pela terra, os modos de viver nela e as memórias dos sujeitos sociais, não como meras manifestações ou decorrentes do econômico, mas permeadas e engendradas igualmente por diferentes dimensões do social, como a da cultura, da política e do jurídico.
A partir deste escopo, o Dossiê pretende contribuir com o debate no âmbito da história rural acerca das disputas de diferentes sujeitos pela terra, do trabalho, dos modos de viver e das memórias dos trabalhadores da terra, das relações, dos conflitos e dos movimentos sociais.
Davi Félix Schreiner – Doutor em História Social pela Universidade de São Paulo (USP). Professor Associado do Curso de História e do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE).
Mónica Gatica – Doutora em História pela Universidad Nacional de La Plata. Professora da Universidad Nacional de la Patagonia San Juan Bosco, Argentina, (UNPSJB).
Os organizadores.
SCHREINER, Davi Félix; GATICA, Mónica. Introdução. Tempos Históricos, Paraná, v.18, n.2, 2014. Acessar publicação original [DR]
Guerras, Conflitos e Tensões / Cantareira / 2012
A Revista Cantareira tem a satisfação de apresentar sua 17ª edição com o dossiê intitulado “Guerras, Conflitos e Tensões”. A história da humanidade foi constantemente marcada por esses três elementos. Buscando explorá-los em suas múltiplas possibilidades, a Revista apresenta artigos que contribuem para o seu conhecimento histórico no âmbito mais convencional, a partir das relações entre Estados, assim como produções acadêmicas que privilegiam as tensões sociais num sentido mais amplo, tais como conflitos étnicos e religiosos. Os temas presentes nesse Dossiê abrangem variados períodos históricos, desde o Brasil Colônia, passando pela Guerra do Vietnã, até chegarmos a Guerra Cibernética, expressão dos conflitos do “tempo presente”. Numa tentativa de tornar mais claras as definições teórico-metodológicas sobre o tema do dossiê, publicamos também uma entrevista exclusiva com o professor Francisco Carlos Teixeira. Através de sua leitura podemos aprender mais profundamente as distinções conceituais entre Guerra, Conflito e Tensão, além de passearmos ao longo da história do Tempo Presente com um dos mais destacados historiadores brasileiros da área.
[Guerras, Conflitos e Tensões]. Apresentação. Revista Cantareira, Niterói- RJ, n.17, jul / dez, 2012. Acessar publicação original [DR] Observação: A apresentação dessa edição está no número 18.
Terra, trabalho e conflitos | Mundos do Trabalho | 2012
Em 1981, foi publicado o livro História da agricultura: combates e controvérsias, de autoria de Maria Yedda Leite Linhares e Francisco Carlos Teixeira da Silva, que se tornou um divisor de águas nos estudos sobre a história agrária no Brasil. A obra era o resultado de um projeto de pesquisa sobre a história da agricultura brasileira desenvolvido por Linhares, a partir de 1976, no curso de Pós-Graduação em Desenvolvimento Agrícola da Fundação Getúlio Vargas. Na década do período mais difícil da Ditadura, Linhares havia instituído um programa de estudos acerca da realidade agrária do país. A publicação de História da agricultura, em 1981, coincidiria com o início do processo de abertura política, durante o governo do último presidente militar, João Figueiredo. O livro era, assim, o resultado de uma trajetória marcada pelo engajamento político e por um otimismo manifesto em relação às questões que envolviam o problema agrário do país. Linhares e da Silva buscavam mostrar as múltiplas possiblidades de investigar o campo brasileiro, ajudando o leitor com informações – hoje tão acessíveis – sobre as características e as possibilidades de pesquisa dos documentos diretamente relacionados à estrutura fundiária, e sobre as fontes para o estudo das estruturas sociais, as de natureza cartorial, as de natureza econômica e políticoinstitucional, e os documentos oficiais, como atas, correspondências e legislações. O livro era ,desse modo, uma janela que se abria para o universo rural, desconhecido da grande maioria dos jovens universitários que haviam sido criados na Ditadura. Inseridos num período historiográfico cuja marca era a utilização do método quantitativo, eles desejavam contribuir para a consolidação de metodologias e modelos capazes de estimular os estudos sobre o tema no Brasil. Passados muitos anos após a criação daquele campo científico, ainda estão presentes muitas das questões inauguradas pelos autores. Leia Mais
Identidades e conflitos no mundo antigo e mundo antigo e cultura moderna / História – Questões & Debates / 2008
É a própria alma que há que construir naquilo que se escreve;
todavia, tal como um homem traz no rosto a semelhança
natural com seus antepassados, assim é bom que se possa
aperceber naquilo que escreve a filiação dos pensamentos que ficam gravados na sua alma.
Foucault, “A escrita de si”, in: O que é um autor?,
Passagens, Lisboa, 1992, p. 144.
As últimas décadas do século XX foram marcadas por uma profunda revisão epistemológica nas Ciências Humanas, levando os estudiosos a reavaliarem seus valores e suas certezas. Considerando que a moderna ciência nasceu em meio à formação dos Estados nacionais e do colonialismo europeu, esses estudiosos chamaram a atenção para um aspecto pouco considerado até então: o modus operandi da construção de modelos interpretativos. Os estudos que se desenvolveram destacaram como os modelos interpretativos das Ciências Humanas estavam carregados de uma visão de mundo eurocêntrica, fundamentados na busca incessante pela verdade e pela legitimação de políticas de domínios territoriais.
As críticas que surgiram em meados da década de 1970, especialmente após os desconcertos causados pelas reflexões de Foucault [1], foram imprescindíveis para abrir caminhos para uma reflexão mais aprofundada ao fazer dos pesquisadores, bem como à formação de uma perspectiva analítica na qual a História passou a ser entendida como discursos específicos, embebidos das percepções de seu produtor. Ao retirar a História do campo da neutralidade e da objetividade, a base epistemológica dessa disciplina passou a ser repensada, proporcionando uma explosão de reflexões acerca da teoria para a produção de modelos interpretativos menos normativos acerca das relações humanas no passado.
A partir das discussões acirradas nesse novo contexto teóricometodológico, interpretações foram revistas e novas perspectivas de pesquisa foram criadas e, sem dúvida, provocaram profundas alterações sobre os estudos acerca do mundo antigo. As críticas de Said [2], já nos anos de 1970, por exemplo, fizeram com que repensássemos como o Oriente tem sido analisado pelo Ocidente. Martin Bernal [3], por sua vez, ao escrever Black Athena questionou a noção de que mundo antigo ficava congelado em um passado distante e imóvel, mas desenvolveu a idéia de que o passado Grecoromano ajudou a alicerçar pontes fundamentais para a construção das identidades dos Estados Nacionais modernos. Já Martin Millett [4], estudioso britânico, foi um dos primeiros a propor mudanças na maneira de entender o Império Romano e suas relações de domínio aos povos nativos, ao desconstruir o conceito de Romanização pela primeira vez.
Esses estudiosos, entre vários outros, fizeram com que as percepções acerca do passado antigo se tornassem mais dinâmicas e menos elitistas, abrindo espaço para novas maneiras de perceber os povos que viveram em períodos mais afastados historicamente, bem como despertaram o interesse para o fato de que, muitas vezes, nosso cotidiano está eivado de valores desses povos, reinterpretados a partir de nossas experiências modernas.
Foi pensando nesses dois vieses que organizei esse número duplo da Revista História: Questões & Debates e dividi os textos em dois grandes grupos. O número 48 traz contribuições para pensarmos temas que se desenvolveram a partir das revisões epistemológicas e da interdisciplinaridade que mencionei, indicando como Identidade e Conflitos são temas instigantes para pensarmos o passado Greco-romano. Por outro lado, o número 49 nos insere nas relações e constantes resignificações dos Antigos pelos Modernos, ou seja, como o mundo moderno se apropria do passado em múltiplos aspectos, transformando e recriando visões de mundo.
O leitor irá perceber que os textos selecionados mesclam especialistas e iniciantes, pesquisadores brasileiros e estrangeiros, indicando os frutos de experiências de orientação e diálogo que estudiosos brasileiros têm desenvolvido nos últimos anos. Para contemplar essas especificidades, procurei ordenar as reflexões de maneira que a multiplicidade de olhares sobre o mundo antigo possa ser explorada, estimulando uma reflexão sobre a importância de se pensar o mundo antigo oriental e ocidental nas suas diversas facetas.
Nesse sentido, o dossiê Identidades e Conflitos no Mundo Antigo conta com a participação de estudiosos do mundo grego e romano. Ana Teresa Marques Gonçalves e Marcelo Miguel de Souza interpretam Homero a partir de um diálogo entre Literatura, História e Música para analisar a relação entre os gregos e a musicalidade; José Geraldo Grillo recorre ao diálogo entre Arqueologia e História, enfocando a Ilíada e os vasos áticos, para estudar as múltiplas imagens de Aquiles e a relação dos gregos com a guerra; e Maria Aparecida de Oliveira Silva reinterpreta passagens de Plutarco para discorrer sobre a percepção de identidade helênica que esse escritor antigo constrói em seus textos. No que diz respeito ao mundo romano, Norma Musco Mendes e Airan dos Santos Borges nos apresentam uma instigante análise sobre o período republicano discutindo os calendários romanos, as percepções de tempo e etnicidade neles implícitos, enquanto Pedro Paulo Funari e Renata Senna Garraffoni avançam para o período imperial analisando as relações de gênero e os conflitos inerentes à sociedade romana a partir de um episódio do Satyricon de Petrônio, conhecido como “Dama de Éfeso” e Lourdes Conde Feitosa recorre aos grafites de parede da cidade de Pompéia para estudar as percepções de sexualidade e afeto daqueles que viveram no início do Principado. No que tange a chamada Antiguidade Tardia, o exército romano é estudado a partir de diferentes prismas: Cláudio Carlan apresenta uma análise sobre as relações entre romanos e bárbaros a partir de moedas, enquanto Margarida Maria de Carvalho e suas orientandas Ana Carolina de Carvalho Viotti e Bruna Campos Gonçalves retomam Amiano Marcelino para discutir as múltiplas identidades presentes no exército romano. Por fim, Júlio César Magalhães nos leva ao Norte da África para discutir os conflitos religiosos, políticos e sociais na pequena cidade de Calama.
No que diz respeito ao Dossiê Mundo Antigo e Cultura Moderna, Adilton Luis Martins inaugura as reflexões com um texto sobre a importância de textos Greco-romanos para se delinear a epistemologia da História durante o século XVIII. Em seguida, busquei reunir os textos que discutiam as relações entre Oriente e Ocidente: Andréa Doré nos apresenta uma reflexão sobre como os povos antigos e, em especial os do oriente, aparecem n’A Divina Comédia de Dante; Nathalia Monseff Junqueira analisa a presença do Egito na obra Voyage en Égypte de Gustave Flaubert; Margaret Bakos e suas orientandas Ana Paula A. L. de Jesus e Karine Lima da Costa nos introduzem a uma reflexão sobre as apropriações de traços da cultura do Egito antigo, localizadas no mobiliário urbano, de países de fala espanhola e portuguesa na América do Sul e nas antigas metrópoles, compreendendo achados que englobam desde monumentos até textos de humor. Por fim, temos os trabalhos que apresentam a relação entre o mundo Greco-romano e o século XX: Rafael Faraco Benthien analisa essa relação a partir das obras de Marcel Proust; e Airton Pollini retoma o Satyricon de Petrônio a partir do filme realizado por Fellini no final dos anos 1960, analisando a relação que o diretor estabelece com as descobertas arqueológicas do período.
Para finalizar, o número duplo da Revista História: Questões & Debates conta com a seção Artigos, na qual temas diversificados sobre História do Brasil, ensino de História e Arqueologia são discutidos. Assim, Giselda Brito da Silva apresenta uma reflexão metodológica para o estudo da repressão política, analisando a documentação referente ao Integralismo em Pernambuco; Tiago de Melo Gomes propõe uma análise sobre a relação entre historiografia e prática de ensino no Brasil; Ariel Feldman trata da elaboração do discurso político no Brasil do oitocentos, analisando os escritos de Miguel do Sacramento Lopes Gama, publicados no jornal pernambucano O Carapuceiro, entre 1832 e 1833; e Mirian Liza Alves Forancelli Pacheco fecha a seção com uma discussão teórica sobre estilo em função na Arqueologia, concretizando a perspectiva dialógica e interdisciplinar inerente a esse número da Revista. Encerrando o trabalho, três resenhas são apresentadas comentando livros recentes sobre o mundo antigo, proporcionando uma breve discussão acerca da importância do constante diálogo com o passado clássico. Boa leitura a todos!
Notas
1. Cf., em especial, FOUCAULT, M. A ordem do discurso. São Paulo: Edições Loyola, 1996; FOUCAULT, M. Arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1997.
2. SAID, E. O orientalismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
3. BERNAL, M. Black Athena. The afroasiatic roots of Classical Civilization. New Brusnwick: Rutgers, 1987.
4. MILLETT, M. The Romanisation of Britain. An essay in archaeological interpretation, Cambridge, 1990.
Renata Senna Garraffoni – Organizadora.
GARRAFFONI, Renata Senna. Apresentação. História – Questões & Debates. Curitiba, v.48-49, n.1-2, 2008. Acessar publicação original [DR]