Como era fabuloso o meu francês! Imagens e imaginários da França no Brasil (séculos XIX-XXI) | Anaïs Fléchet, Olivier Compagnon, Silvia Capanema P. Almeida

O Ano da França no Brasil, comemorado em 2009, para além de extensa programação no campo cultural, também inspirou a realização de uma série de eventos acadêmicos, que continuam a dar frutos. Sob a chancela da Editora 7 Letras e da Fundação Casa de Rui Barbosa veio a público em 2017 obra coletiva resultante de colóquio organizado naquele profícuo ano, que reuniu um rol diversificado de especialistas em torno das relações franco-brasileiras.

Abre o volume alentada introdução dos organizadores, que coloca em questão as visões eurocêntricas que fazem do Brasil um receptor, a um tempo passivo e fascinado, de valores e hábitos franceses, tomados como modelo de civilização. Os autores evidenciam que, pelo menos desde meados do século passado, não faltam exemplos de trabalhos a matizar essa leitura, a exemplo dos escritos de Roger Bastide, que já insistia nas trocas bilaterais. Em sintonia com a historiografia contemporânea, que tem evidenciado a força heurística das noções de transferências culturais, histórias conectadas, mestiçagem e história global, o que se propõe é ir além do comparatismo tradicional, que elege um padrão ideal para avaliar o outro, e das noções de centro e periferia, tarefa desafiadora e que se coloca na contra mão de visões cristalizadas e arraigadas no imaginário social e também na produção acadêmica, razão pela qual ainda continuam a se insinuar mesmo entre especialistas.

Seguem-se quinze capítulos, divididos em quatro partes. A primeira delas, “Civilização e barbárie”, traz contribuições de Lúcia Maria Bastos Pereira das Neves, Ingrid Hötte Ambrogi, Silvia Capanema P. de Almeida e Olivier Compagnon, que problematizam o dualismo enunciado no título a partir de diferentes situações históricas. Assim contemplam-se, respectivamente, as representações – bastante negativas, é bom sublinhar, – difundidas no início do oitocentos no Império português a respeito de Napoleão Bonaparte, quando a Família Real estava instalada no Rio de Janeiro; o ideal perseguido pelos estabelecimentos escolares da Primeira República, claramente calcados em modelos vigentes na França; as caricaturas publicadas a respeito da 1ª Guerra Mundial na Careta, com particular destaque para as que tematizavam a França e, ainda, o posicionamento, nem sempre uníssono, das nossas elites em relação aos contendores, bem como o impacto do conflito e seus desdobramentos nas relações entre os dois países. Trata-se, portanto, de diferentes momentos e contextos a atestar a diversidade de percepções em relação à imagem da França no Brasil, cuja centralidade, tão marcada no decorrer do século XIX, sofreu abalos significativos com a Grande Guerra, aspecto evidenciado por Almeida e Compagnon.

Questões de ordem estética e artística são contempladas nos quatro textos que compõem a segunda parte, “França, mãe das artes”. A produção de Nicolas-Antoine Taunay e Jean Baptiste Debret, que integraram a chamada “missão” francesa de 1816, denominação já relativizada pela rigorosa contextualização das circunstancias que trouxeram ao Rio de Janeiro um grupo de artistas comprometidos com a recém deposta ordem napoleônica, foram abordadas por Lilia Moritz Schwarcz e Heloisa Pires Lima. As contingências políticas, que fizeram da corte lusitana um refúgio seguro que oferecia, pelo menos em tese, várias oportunidades de trabalho, não significou o abandono das relações com a pátria distante, sobretudo em vista das dificuldades enfrentadas no Rio de Janeiro. Se a conjuntura no Hexágono era cuidadosamente acompanhada, tendo em vista o retorno ao solo europeu, a passagem pelos trópicos deixou marcas profundas na produção pictórica, como bem exemplifica a análise dos quadros de Taunay e sua recepção pela crítica francesa, pouco sensível às cores e aos tons da natureza brasileira, o que acaba por colocá-lo num entre lugar – francês no Brasil, estrangeiro em sua terra natal. Já a análise do pano de boca confeccionado por Debret para a coroação de D. Pedro I, que expressava uma certa concepção da jovem nação, sua composição social e futuro projetado, em sintonia com as necessidades e expectativas do poder, adquire outros sentidos quando remetido à posição que ocupou no interior da Viagem pitoresca e histórica no Brasil, às circunstâncias que possibilitaram a publicação da obra entre 1834 e 1839 e às condições reinantes no cenário político francês. Em ambos os casos, trata-se de vias de mão dupla, que problematizam a apreensão ancorada nas ideias de influência e recepção passiva.

Os dilemas em torno das relações nacional e estrangeiro estão presentes nas contribuições de Marize Malta e Maria Luiza Luz Távora. A primeira diz respeito à decoração das residências nos anos 1920, discutida a partir da publicidade estampada na Revista da Semana e A Casa. Em debate os estilos de mobiliário: art-déco, neocolonial e modernismo, com suas linhas simples. Mais do que a opção por um modelo, o que Malta evidencia é o processo de hibridismo, a mistura entre estilos e a apropriação criativa, com a utilização de motivos nacionais, entre eles os marajoaras. Já a discussão suscitada pela presença do artista franco-alemão Johnny Friedlaender no curso inaugural do ateliê de gravura do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro em 1959 torna patente as resistências frente às experimentações e propostas estéticas diversas das imperantes no cenário artístico nacional, o que atesta, ainda uma vez, a tensa e complexa relação com as inovações que aqui aportavam, sobretudo numa conjuntura marcada por exacerbado nacionalismo.

A terceira parte, “Grandeza e decadência da mulher francesa”, é composta por três textos que tratam da imagem e do imaginário sobre o feminino, num arco temporal que vai de meados do século XIX às décadas iniciais do século XX, quando a presença da mulher no espaço público começava a alterar e mesmo suberventer a ordem estabelecida e papéis sociais consagrados. As pesquisas de Monica Pimenta Velloso e Lená Medeiros de Menzes privilegiam a figura da cocotte que, a exemplo da modista do início do Império, desfrutava de reputação duvidosa, o que não impedia que fosse objeto de irresistível curiosidade e atração, como bem demonstram as autoras. Velloso explora as ambiguidades do olhar francês sobre o Brasil, a partir de refinada análise do humor “debochado, caricato e anarquiante”, para retomar os seus termos, da revista Ba-ta-clan, que afrontava a sensibilidade e o orgulho locais. Contudo, esse material também permite desvelar valores, desejos e expectativas dos franceses radicados no Rio de Janeiro, num entrecruzamento ambiguo e nem sempre fácil de ser apreendido. Lená Medeiros, por seu turno, exemplifica o périplo transatlântico cumprido por algumas francesas que, contrariamente às suas expectativas e esperanças, enfrentaram uma realidade bem pouco glamourosa. A natureza calidoscópica da questão, diligentemente pontuada no texto, evidencia-se pelo recurso às colunas da Ba-ta-clan, que permitem avaliar o impacto do comportamento transgressor dessas mulheres, que alimentavam a percepção acerca dessas francesas atrevidas, duramente combatidas pelso guardiões da ordem. Fecha o conjunto a contribuição de Cláudia Oliveira, que retoma as representações de Salomé, tematizada na pintura, no teatro, nas revistas ilustradas, com fortes doses de sensualidade. Novamente o que se destaca é a ambivalência diante das mudanças provocadas pela modernidade, num ambiente marcado por significativas transformações na sociabilidade e cotidiano urbanos. Merece particular destaque a análise sensível da Salomé de J. Carlos, publicada em 1927 na revista Para Todos.

Sob a rubrica “O espelho do outro” estão reunidos outros quatro textos que retomam as relações interculturais franco-brasileiras, o primeiro deles a partir da temática da religiosidade e seu surpreendente sincretismo e interconexões, que remetem tanto para a presença de São Luís e outros personagens do ciclo de Carlos Magno nos nossos terreiros quanto à conversão de Pierre Verger, como revela Monique Augras ao explorar as trajetórias e transfigurações desses seres “encantados”. Intercâmbios que também se expressam em periódicos, livros e bibliotecas e na presença de tipógrafos, editores, livreiros, gravadores e litógrafos franceses, que desempenharam papel relevante na difusão da cultura letrada e na ampliação do espaço público, como bem pontua Tania Bessone, que não deixa de assinalar, em sintonia com outras colaborações, o esmaecer dessa presença a partir das primeiras décadas do século XX.

A importância estratégica, para as elites imperiais, de contar com uma percepção positiva a respeito do Brasil na França é discutida por Sébastien Rozeaux. Se, graças à intervenção de Ferdinand Denis e Saint Hilaire, esta expectativa pode ser atendida, a situação alterou-se frente aos relatos bastante ácidos publicados nos anos 1830 na prestigiosa Revue des Deux Mondes. O estudo da reação de indivíduos do calibre de Araújo Porto-Alegre e outras figuras de proa do nosso cenário intelectual permite evidenciar quais eram os anseios da geração romântica, que tomou a si a tarefa de construir uma nação civilizada nos trópicos e de elaborar um discurso autônomo sobre a mesma. O autor explora a sensação de traição e o choque ocasionado pela difusão de percepções pouco confortáveis, fosse a respeito dos vícios sociais, da mestiçagem ou da incomoda questão da escravidão, que maculavam uma imagem pacientemente urdida. Daí o empenho para, se não reparar, pelo menos atenuar as apreensões pouco abonadoras a partir de estratégias discursivas bem diversas: a agressividade e a ironia para o público interno, o tom bem mais conciliador e cauteloso quando o destinatário era o leitor francês. Os estereótipos nacionais figuram em outro registro na colaboração de Anaïs Fléchet, que investiga a maneira como as cidades de Paris e do Rio de Janeiro foram figuradas nas canções populares ao longo do século XX. Mais do que distanciamento, predominam os paralelismo, uma vez que ambas são referidas como lugares distantes, que ativam a imaginação e remetem às aventuras amorosas, compondo uma “geografia musical do imaginário”, na bela definição da autora. Não faltaram referências às mulheres de ambos os lados do Atlântico, descritas em consonância com modelos de há muito em circulação: refinamento/sedução/prostituição, do lado francês, jovem/disponível/ despudorada, no que concerne à brasileira, num quadro de imagens cruzadas – e não raro sobrepostas – que convida a refletir sobre a circularidade das trocas.

A título de conclusão, conta-se com o texto de Robert Frank, que assume o desafio de abordar as relações internacionais em suas dimensões culturais. Para tanto, o autor passa em revista as contribuições de Pierre Renouvin e Jean-Baptiste Duroselle a respeito do significado das mentalidades para a elaboração e difusão de nacionalismos e na relação entre países. À detalhada reconstrução do arsenal analítico proposto, segue-se sua relativização à luz das mudanças introduzidas pelo cultural turn dos anos 1980, que consagrou interpretações ancoradas nas noções de representação, imaginário e identidade.

O rápido deambular por entre os vários capítulos, se não contempla todas as questões abordadas em cada uma das contribuições, é suficiente para evidenciar a importância das mesmas para a temática, que tem recebido atenção significativa nos últimos anos. Cabe ressaltar que as partes acima referidas não devem ser tomadas como conjuntos estanques. De fato, os textos convidam a imaginar outros arranjos e articulações possíveis. Assim, a título de exemplo, Napoleão e os imigrados que deixaram a França após a queda do Imperador são personagens retomados em vários capítulos, tanto quanto o declínio da presença francesa, as referências ao imaginário sobre as mulheres, a oposição (ou a adesão) aos ventos que sopravam da França, os esforços para estabelecer trocas de mão dupla, em lugar das rotas com sentido único. Por certo o leitor será capaz de propor outras possibilidades diante de um rol de contribuições que se revelam tão densas e complexas quanto o objeto a ser desvendado.

Tania Regina de Luca –  Professora Livre Docente em História do Brasil Republicano pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho. Possui doutorado e mestrado em História Social pela Universidade de São Paulo e graduação em História pela mesma instituição. Responsável, junto ao CNPq, pelo financiamento do projeto “Estudos de jornais em língua estrangeira” (Transfopress Brasil). E-mail: tania.luca@pq.cnpq.br


FLÉCHET, Anaïs; COMPAGNON, Olivier; ALMEIDA, Silvia Capanema P. de. Como era fabuloso o meu francês! Imagens e imaginários da França no Brasil (séculos XIX-XXI). Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa; 7 Letras, 2017. Resenha de: LUCA, Tania Regina de. Sob o signo da complexidade: trocas interculturais entre França e Brasil.  Revista Maracanan. Rio de Janeiro, n. 19, p. 216-220, jul./dez. 2018. Acessar publicação original [DR]

 

L’adieu à l’Europe. L’Amerique latine et la Grande Guerre (Argentine et Brésil, 1914-1939) – COMPAGNON (Tempo)

COMPAGNON, Olivier. L’adieu à l’Europe. L’Amerique latine et la Grande Guerre (Argentine et Brésil, 1914-1939). Paris: Fayard, 2013. 394 p.p. Resenha de: FERRERAS, Norberto. A Grande Guerra e a América Latina. Tempo v.21 no.38 Niterói jul./dez. 2015.

A relação entre América Latina e Europa já foi estudada muitas vezes,algumas a partir do ponto de vista da influência e outras,da rejeição. Não são poucos os autores que podem ser arrolados entre os especialistas do tema em ambas as perspectivas. O mesmo poderíamos dizer da Grande Guerra (1914-1918),principalmente numa data tão marcante quanto o centenário. Sem ir muito longe, no Brasil vários seminários foram realizados e deles resultaram (ou virão a resultar) livros e artigos. As datas comemorativas sempre geram ondas expansivas de bibliografia relacionada ao tema em questão e essas ondas criam uma massa de títulos que em alguns casos será rapidamente esquecida junto com as efemérides. Esse não é o caso do livro aqui resenhado.

No livro L’adieu à l’Europe…, Compagnons e propõe a analisar o período de entre guerras que já tinha analisado anteriormente do ponto de vista das circulações entre América e Europa, quando estudou os vínculos entre o catolicismo e a reconfiguração do nacionalismo latino-americano. Acompanhando a história das circulações e dos contatos – a “história conectada” -, vemos que ele tanto aborda o vínculo intrínseco estabelecido entre Europa e América, quanto analisa o imaginário e a imagem criada pela Grande Guerra nos países latino-americanos, mais especificamente, na Argentina e no Brasil. Ao mesmo tempo, devemos entender este livro como um ensaio de história global, acompanhando a terminologia de época. Este é um estudo que, utilizando as fronteiras nacionais, as ultrapassa e redefine. Coloca-nos a pensar sobre o impacto de uma guerra europeia lutada em frentes que ultrapassaram os países e os continentes, que estabeleceram coalisões definidas pela afinidade política e econômica antes que pela territorialidade e que levou à reflexão acerca do modelo cultural e político europeu iluminista e de progresso constante. A Grande Guerra colocou os paradigmas existentes em xeque e fez seus contemporâneos e descendentes imediatos refletirem sobre o rumo da civilização ocidental e sua primazia, trazendo à tona outras possibilidades e alternativas desde o regional, rivalizando com o farol universal que pretendia ser Europa.

O livro propõe-se a estudar a Grande Guerra de uma perspectiva original.Nãoenfoca os fatos, nem volta àtentativa de revisão dos impactos europeus ou coloniais da guerra. Sem desconhecê-los, analisá-los não é o objetivo principal. O tema é a relação entre Europa e América Latina em um momento-chave para a história regional e para pensar a história latino-americana. O período em questão dialoga com a história global, mas é umaépoca de redefinições da latinidade e, ao mesmo tempo e num nível mais profundo, da nacionalidade. O autor tentará estabelecer as relações e influências da Grande Guerra no imediato e nas reflexões sobre o vínculo americano com a Europa.

Para desenvolver a sua hipótese, Compagnon divide o seu trabalho em três partes. A primeira parte, titulada “Da guerra europeia à guerra americana”, trata de como a guerra europeia é também uma guerra americana. A preocupação é pelo impacto mais imediato do conflito, como o mesmo levou ao posicionamento dos grandes atores políticos do período, principalmente como se portaram as elites políticas em uma conjuntura de redefinição de alianças, modelos e paradigmas. O livro estabelece um recorte nos dois grandes países da América do Sul, a Argentina e o Brasil; isso não implica negligenciar as linhas de força daqueles países que, de forma semelhante e por diversos motivos sentiam a influência da guerra, como o México e o Chile. Nesta primeira parte o interesse recai sobre a conformação de um campo aliadófilo e outro germanófilo com as diferentes estratégias de posicionamento entre os dois. Esses posicionamentos levaram grupos governantes terem que lidar com a Real Politik nas relações internas e internacionais, oscilando entre o neutralismo e a participação. Ao mesmo tempo, na primeira parte, analisa-se a construção da opinião pública em relação à guerra, com o posicionamento de intelectuais e políticos, mas também com a participação das coletividades de imigrantes. No caso argentino, os imigrantes terão uma voz potente sobre os acontecimentos de além-mar. Mas este é o momento fundante da constituição da opinião pública nacional. Certamente existiam grupos de ação política e intelectual, mas para a Argentina,trata-sedo momento de constituição de uma imprensa autônoma do poder econômico, no mesmo momento em que o Estado também inicia um processo de autonomização perante as oligarquias e o seu poder econômico e simbólico. A multiplicação das vozes e a emergência de novos atores, como os trabalhadores, colocará em questão a Real Politik,diferente do que acontecia no Brasil.

Na segunda parte do livro, “A Europa bárbara”, temos outro tipo de aproximação do conflito. O autor avança em duas perspectivas complementares: a história da cultura e a das sensibilidades. A recepção do sofrimento e a expansão dos sentidos gerados por este sofrimento em relação à guerra, assim como as reflexões sobre seus horrores pela via da literatura testemunhal, como Barbusse, Aldous Huxley ou Erich Maria Remarque, levam a guerra ao plano do pessoal, ao sofrimento em primeira pessoa. Compagnon explora os impactos de reduzir o foco de análise por parte dos escritores e dos jornalistas, colocando em primeiro plano os civis e os soldados, fossem estes os próprios compatriotas que participavam na guerra ou as vítimas dos confrontos. Em princípio, para criar empatia com os bandos em disputa, mas também para apresentar o sofrimento em primeira pessoa, tentava-se criar uma corrente de opinião contrária ao conflito bélico. Aqui a Real Politik sai de cena. As pessoas de carne e osso mostravam os limites da civilização europeia e as suas pretensões de universalidade. O capítulo cinco,“A Noite Europeia”, um dos mais interessantes do livro, analisa os posicionamentos dos intelectuais brasileiros e argentinos acerca da Grande Guerra. O sentimento de inferioridade em relação aos feitos culturais europeus passam a ser questionados, a América pode ser modelo de si própria e para isso precisava realizar uma devassa da Europa. Rui Barbosa, José Ingenieros, Afrânio de Melo e Franco, entre outros pensadores e intelectuais,identificam esse período como o do declínio europeu. As interpretações podem ser diferentes, mas a América como contraponto de paz e civilidade são comuns. O binômio estabelecido por Domingo Sarmiento em meados do século XIX estava invertido: a América era a civilização e a Europa era a barbárie.

A última parte do livro, “A Grande Guerra, A Nação, A Identidade”, é destinada a analisar os impactos culturais imediatos da Grande Guerra, enfocando o nacionalismo na Argentina e no Brasil. É esse o legado cultural e intelectual da Grande Guerra? É daqui que partem as famílias que se diferenciam do modelo Europeu? O que o autor vai explorar é o nacionalismo cultural anterior ao político. Para isso,Compagnon analisa as diversas vertentes desses nacionalismos, estabelecendo um estudo em paralelo de dois autores argentinos, Borges e Leopoldo Lugones, e o Movimento Antropofágico no Brasil. O contraponto permite acompanhar o impacto de longa duração nas gerações que vivenciaram o período de entre guerras: Borges e Lugones. O nacionalismo democrático e o autoritário. A renovação e a restauração, as duas correntes que, do campo intelectual, demarcariam territórios políticos por longo tempo.

A pesquisa realizada por Compagnon, especialista em história intelectual, mostra a necessidade de lidar com fontes de origens diferentes e com registros narrativos diversos para poder realizar uma síntese sobre a questão da Grande Guerra na América Latina. A história intelectual dialoga com a história política e cultural. A narrativa factual é necessária para públicos pouco familiarizados com a Grande Guerra ou com a América Latina para poder dar lugar a sofisticadas análises sobre a produção artística e literária latino-americana. Esperamos que o resultado seja o de estimular novas pesquisas deste tipo e com esta perspectiva.

A versão francesa do livro apresenta algumas diferenças da brasileira. A capa original foi trocada. A brasileira optou por uma previsível foto da guerra de trincheiras. A edição francesa reproduz a portada da partitura do tango El Marne, de Eduardo Arolas. A escolha é significativa e mostra os efeitos duradouros da guerra na cultura da região. Sem pretender ser exaustivo no forte impacto cultural da Grande Guerra na região, vou tentar mostrar a relação estabelecida com os círculos vinculados ao tango.

Para isso, voltemos ao tango El Marne. Quando Eduardo Arolas compõe este tango era um jovem bandoneonista argentino, filho de franceses. Arolas teve a trajetória arquetípica de um tanguero do período. Nasceu em Barracas, na cidade de Buenos Aires, e morreu produto do alcoolismo,em Paris,aos 32 anos, longe da cidade que abandonou para fugir da relação estabelecida entre seu irmão e sua esposa. El Marne, escrito neste exílio voluntário, é uma peça que,mesmo sendo de profunda melancolia,entrou no repertório das grandes orquestras, parte do estilo do tango dançante por décadas. Escrito em 1919, este tango continua a receber novas versões e é frequentemente revisitado. Posteriormente e para ser mais palatável aos dançarinos, recebeu uma letra que falava de um amor a orilhas do Rio Marne, deturpando a sua origem vinculada a uma batalha com centenas de milhares de mortos, mas dando-lhe sobrevida.

Mas o tango e a Grande Guerra mantiveram o seu vínculo. Em princípio, porque a década de 1910 é o momento fundacional desse estilo musical. De fato, o grande ícone do tango, Carlos Gardel, escreveu um tango-canção para homenagear os combatentes franceses. Silencio foi escrito em 1932 e apresentado no filme Melodia de Arrabal, de 1933. O tango é claramente um manifesto antibélico. No filme, Gardel interpreta um cantante de tangos que, no palco que o consagraria, canta Silencio. O importante é a interpretação da letra: um melodrama. A letra faz referência a um caso, verdadeiro ou mítico pouco importa, de cinco irmãos operários que se alistam para lutar pela pátria, a França, e morrem. A mãe deles, la viejita, lamenta a morte dos filhos. Ela fica com os túmulos e as medalhas. A música começa com um clarim e um coro acompanha Gardel com uma canção de ninar. Quando conclui, ele, sorridente, abraça a sua namorada. Está consagrado, é um momento festivo. A Grande Guerra, na década de 1930, é uma temática que faz parte do universo narrativo. Ainda está presente, porém sem a carga dramática que tinha para Arolas. A guerra permaneceria no imaginário coletivo sobre o que podiam ser imprimidas imagens e sentimentos, como o sacrifício, a dor e a perda geradas pela guerra. Estes exemplos mostram o impacto de longa duração da guerra apresentado por Compagnon e que pode ser ampliado por novas pesquisas e novas perspectivas analíticas. Finalmente, essa pequena relação estabelecida entre o tango e a capa tem como objetivo mostrar a capacidade de síntese temática evidenciada na capa da edição francesa e a indefinição apresentada na capa brasileira, que confunde o leitor sobre os temas e as abordagens.

Norberto FerrerasProfessor do Departamento de História da Universidade Federal Fluminense (UFF) – Niterói(RJ) – Brasil. E-mail: ferreras@vm.uff.br.

O Adeus à Europa: a América Latina e a Grande Guerra | Olivier Compagnon

Efemérides sempre acarretam uma série de eventos acadêmicos e lançamentos editoriais, que se aproveitam das datas para preencher as agendas e abastecer as estantes com títulos relacionados a um determinado evento tido como relevante. O ano de 2014 foi particularmente profícuo nesse sentido; no contexto nacional, os cinquenta anos do Golpe de 1964 foram relembrados por eventos de todos os tipos; no plano internacional, o acontecimento mais significativo foi, sem dúvida, o centésimo aniversário do início da Grande Guerra. As maiores livrarias do país ficaram abarrotadas de inúmeros títulos recém-lançados sobre a Grande Guerra. Dentre eles, chama a atenção O Adeus à Europa do historiador francês Olivier Compagnon, professor de história contemporânea da Université Sorbonne Nouvelle – Paris 3. Leia Mais

O adeus à Europa: a América Latina e a Grande Guerra – COMPAGNON (Topoi)

COMPAGNON, Olivier. O adeus à Europa: a América Latina e a Grande Guerra. Rio de Janeiro: Rocco, 2014. Resenha de: PARADA, Mauricio Barreto Alvarez. O espelho quebrado. Topoi v.l.15 n.29 Rio de Janeiro July/Dec. 2014.

Lançado no Brasil neste ano de rememorações dos cem anos da Grande Guerra, o livro O adeus à EuropaA América Latina e a Grande Guerra, do historiador francês Olivier Compagnon, contribui de forma muito instigante para os estudos sobre o conflito de 1914, pois o situa em um cenário pouco frequentado pelas pesquisas sobre o tema: a América Latina. Orginalmente um pesquisador do pensamento católico latino-americano, Compagnon estudou as relações entre os intelectuais cristãos da Argentina e Brasil com os trabalhos de Maritain e Maurras. Assim sendo, seu olhar como historiador se formou com extrema sensibilidade para perceber a circulação de ideias, projetos e pessoas. Compangnon nos oferece, portanto, a possibilidade de adentrarmos no mundo das histórias conectadas e da história comparada.

É nesse registro que ele apresenta seu trabalho sobre a Grande Guerra. Como tese geral, ele nos oferece a inversão de perspectiva, “latinoamericanizando” o conflito. Ao traçar o impacto da guerra de 1914 na América Latina – na verdade suas fontes estão concentradas no Brasil e na Argentina -, o autor pretende estender a geografia imaginativa que ronda as teses sobre os eventos do conflito mundial do início do século XX. Compagnon afasta-se, claramente, dos argumentos que pensam o desastre de 1914 como uma “guerra civil europeia”, sua proposta é levar avante a ideia de estudar um evento efetivamente mundial.

A presença da América Latina na historiografia da Primeira Grande Guerra é modesta, limitando-se a estudos de história militar, especialmente as poucas batalhas navais travadas na região, ou aos estudos que se referem ao telegrama Zimmermann no que concerne a sua importância para a adesão dos Estados Unidos à guerra em abril de 1917. Segundo Compagnon: “Tudo se passa como se, afinal, a América Latina (…) tivesse naturalmente escapado do sismo da primeira guerra total da história simplesmente por estar-lhe à margem”( p. 15).

O historiador francês destaca que, apesar de o conflito ter sido um acontecimento matricial para a história contemporânea, é muito curioso que raros pesquisadores levaram a fundo a hipótese de que a Primeira Guerra Mundial poderia ser algo além de um nebuloso pano de fundo para a história latino-americana do século XX. Seu argumento é que a Grande Guerra não foi um evento marginal na história brasileira ou argentina e que o esquecimento que envolve a historiografia contrasta com a eloquência das fontes disponíveis.

A grande imprensa, os debates políticos, a produção intelectual, entre outros materiais documentais, demonstram o quanto a opinião pública da América Latina manteve-se atenta à evolução do conflito entre agosto de 1914 até a redefinição da configuração política decorrente dos tratados de paz e da criação da Liga das Nações. Além disso, a questão da neutralidade ou do apoio militar, os efeitos nas relações econômicas e, mesmo, a nova posição internacional dos Estados Unidos a partir de 1917 tornariam impossível que os anos 1914-1918 passassem despercebidos na história do “extremo Ocidente latino-americano”(p. 18).

Para sustentar sua argumentação, Compagnon divide seu livro em três partes, em cada uma delas ele procura desenvolver uma tese específica que se relaciona com a ideia geral do livro. A costura do trabalho está sustentada pelo recurso a uma expressiva diversidade de fontes. Textos de jornais, correspondência diplomática, mensagens presidenciais, textos literários são citados em todos os capítulos criando uma tessitura que torna a leitura fluida.

O autor inicia a obra com três capítulos reunidos em uma unidade intitulada “Da guerra europeia à guerra americana”. O grande tema dessa passagem é a recepção da guerra na América, momento em que o autor avalia os diversos posicionamentos frente à eclosão do conflito. O debate principal gira em torno das contendas entre germanófilos e aliadófilos acerca do posicionamento dos países americanos. Afinal, observa Compagnon, a neutralidade ou a adesão a um dos lados mobilizou diplomatas, juristas e repercutiu sobre a grande população de imigrantes europeus que constituiu um fluxo constante para a América Latina desde o século XIX.

Assim sendo, a mobilização dos diversos grupos que pertenciam às complexas sociedades latino-americanas constituiu “uma primeira etapa no duplo processo de mobilização das sociedades e de nacionalização do conflito” (p. 65). As fontes apresentadas por Compagnon apontam para uma tendência latino-americana favorável aos aliados da Enténte, mas o próprio autor entende que essas vozes hegemônicas devem ser relativizadas.

Mais interessante do que isso, as fontes mostram uma forte solidariedade à França. As imagens mobilizadas nesses primeiros momentos da guerra colocariam de um lado a civilização francesa e de outro a bárbarie alemã, mostrando assim a tradicional face da aliança entre a América ibérica e a latinidade cristã francesa. Uma francofilia que apontaria para a ideia de que, portanto, o “destino da França na guerra seria uma metonímia do destino da humanidade” (p. 86).

O segundo grupo de capítulos, reunidos na segunda parte do livro e nomeados de “Europa Bárbara”, é um ponto forte do livro. Compagnon argumenta que o imaginário latino-americano formou-se tendo como referência os conceitos europeus de civilização, cultura e modernidade – sejam eles de matriz inglesa, alemã ou francesa. O relato diário narrado nos jornais sobre os horrores da guerra realiza uma “forma de desilusão com relação à Europa que, metodicamente, parece ter orquestrado seu próprio fim” (p. 166). A imagem inicial, cheia de dissonâncias, mas hegemônica, de uma luta entre a civilização latina representada pela França contra o bárbaro alemão “é progressivamente substituída pela imagem de um desmoronamento da civilização europeia em seu conjunto” (p. 166).

Citando Leopoldo Lugones e Afrânio de Mello Franco, o autor observa que ambos se referem a esse período em termos semelhantes: o crepúsculo de uma civilização. Nesse quadro, a Grande Guerra se apresenta com a marca da desilusão, uma sociedade “desatinada ao sacrificar milhões de indivíduos, imoral ao trair suas promessas [e] mentirosa ao falsificar a verdade que o cientificismo e o positivismo haviam (…) erigido em valor supremo da humanidade” (p. 208). Daí decorre, na análise de Compagnon, que os modelos europeus de modernidade se tornaram obsoletos e inválidos para a América Latina.

Os anos de 1914-1918 foram, então, o momento de uma grande inversão de paradigma nas relações entre a Europa e a América Latina. A guerra bárbara seria um sintoma do fracasso europeu e as “nações latino-americanas não poderiam continuar a tirar das fontes do outro lado do oceano as condições e modalidades de sua própria modernidade” (p. 223). A Primeira Grande Guerra Mundial seria o momento de uma renovação cultural da América Latina, uma segunda independência – “trata-se agora de levar a efeito uma emancipação intelectual […] e de redescobrir as virtudes próprias a cada uma das nações do subcontinente” (p. 225).

Os três capítulos reunidos na terceira parte nomeada de “A Grande Guerra, a nação, a identidade” fecham o livro. Compagnon desdobra o argumento da crise do paradigma civilizacional europeu para a América Latina. Segundo ele, a crise cultural proporcionada pela Grande Guerra é um convite para repensar os elementos definidores da identidade das nações latino-americanas. Além disso, a desconstrução do eurocentrismo e a reavaliação das nacionalidades abrem caminho para novas concepções de modernidade no Brasil e na Argentina. Trata-se, no dizer do historiador francês, de uma “virada cultural’ que merece ser avaliada com atenção. O deslocamento da “Europa como referência universal da modernidade e produtora de modelos destinados a suas periferias, convida a um sobressalto identitário” (p. 284). A Grande Guerra contribuiria decisivamente, no caso do Brasil, para gênese do modernismo de 1922, para formação do modelo teórico da democracia racial e para a modernização autoritária implementada pelo Estado Novo.

Assim exposto, o texto de “O adeus à Europa” nos coloca uma série de questionamentos. É inegável a qualidade da pesquisa empreendida por Compagnon, o uso das fontes mostra sua maturidade como historiador. No entanto, como um exercício de uma “história conectada” ele esbarra continuamente nas diferenças entre Brasil e Argentina. Mesmo ressaltando a forte circulação de ideias e intelectuais entre Rio de Janeiro e Buenos Aires – um exemplo sempre citado foi o discurso de Rui Barbosa em Buenos Aires em 1916 -, o autor não consegue evitar a disparidade das posições dos dois países frente ao conflito. O neutralismo do Governo Yrigoyen não encontra eco nas posições brasileiras a favor dos franceses e seus aliados.

Bloqueado pelas diferenças regionais, o autor de O adeus à Europa realiza um excelente trabalho de história comparada, mas a expectativa de uma história que explore redes e conexões funcionais fica em parte frustrada.

A inserção da América Latina na historiografia da Grande Guerra e a “crise do paradigma europeu” são propostas que abrem possibilidades para muitas pesquisas futuras, no entanto, a terceira parte do livro parece forçar o argumento para além de suas possibilidades. Compagnon tem o cuidado de relativizar algumas de suas conclusões, mas fazer da desilusão provocada pela Primeira Grande Guerra Mundial o gatilho para entender as grandes mudanças das décadas de 1920 e 1930 ocorridas nos países da América Latina é dar início a uma argumentação que tem dificuldades para ser levada a frente.

A grande desilusão com a Europa deve ser considerada um fator para entender uma “guinada identitária”, mas é difícil perceber na profundidade dessa ruptura os desdobramentos que sugere Compagnon. Afinal, temos que observar que os movimentos modernistas no Brasil e na Argentina dialogaram intensa e diversamente com as vanguardas europeias do entreguerras. Como entender o Estado Novo brasileiro sem a experiência política de Portugal e da Itália?

As questões surgem, no entanto, como demonstração da qualidade da obra. O texto de O adeus à Europa ocupa um importante lugar na historiografia recente sobre a Grande Guerra e também na historiografia latino-americana.

Mauricio Barreto Alvarez Parada – Doutor em História Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e professor da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), Rio de Janeiro, RJ, Brasil. E-mail: mparada@ig.com.br.