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O Governo dos negócios: comércio, instituições e seus agentes entre os séculos XVIII e XIX / Varia História / 2020
A investigação sobre as origens do direito dos comerciantes, os debates em torno de sua datação mais ou menos recuada no tempo, as pesquisas das primeiras citações nas obras dos juristas do século XVI, ocuparam durante muito tempo os historiadores entre a Idade Média e a Era Moderna. O desafio era identificar o momento em que um mundo à parte teria sido criado e o comércio teria ganho uma relativa autonomia em relação a outras esferas da vida social, estruturando assim suas próprias instituições e ditando suas próprias regras. Essa investigação sobre as origens foi sem dúvida incentivada pelo desejo de legitimação das elites comerciais que, sobretudo no século XVIII e em várias situações na Europa e para além dela, manifestou-se de maneira particularmente urgente nos contextos frequentemente ferozes de disputas políticas dentro dos governos. Seus argumentos em torno da irredutível especificidade do universo do comércio e da necessidade de garantir-lhe um lugar privilegiado encontrou um público atento e sensível entre os historiadores contemporâneos, nutrido pela experiência atual da chamada “autonomia” de esfera econômica em relação a outros domínios da vida social.
Algumas pesquisas fundamentais contribuíram, nos últimos anos, para mudar essa situação e abriram caminho para questionamentos mais aprofundados. Por um lado, todo um ramo de estudos sobre o que podemos definir como “os léxicos econômicos” das sociedades medievais e modernas lançou uma nova luz sobre as relações entre economia, direito, religião, que mostraram sua estreita conexão. Nos trabalhos de Bartolomé Clavero (1991) ou de Giacomo Todeschini (2002) trata-se menos de identificar as raízes religiosas da economia do que mostrar em que medida os dois domínios são construídos com o mesmo material, pois seus conceitos estão baseados nos mesmos princípios. As palavras contrato, troca, dívida, crédito, juro… estão carregadas dessa pluralidade de significados devido a seu caráter anfíbio, em que toda separação entre questões materiais e questões morais ou jurídicas seria paradoxal. Nesse contexto, toda “autonomia” ou especificidade irredutível do campo econômico mostra seu caráter anacrônico; e a pesquisa sobre a “cultura do negócio” se abre a uma pluralidade de domínios frequentemente inesperados.
Outro movimento que contribuiu para “libertar” a esfera econômica dos limites que tinham sido construídos em torno dela foi a maior atenção em relação a um tema aparentemente técnico, o dos modos de resolução de conflitos e do procedimento judicial seguido nos tribunais dedicados aos casos comerciais (AGO; CERUTTI, 1999). O terreno era delicado porque, como acabamos de mencionar, o direito e a justiça eram os domínios em que a busca pela originalidade na esfera econômica era mais desenvolvida. O direito em vigor nos tribunais que lidavam com esses casos era visto como um ramo separado do direito, mesmo em períodos em que essa separação não estava prevista e nem era buscada pelos contemporâneos. Essa abordagem limitou a compreensão dos princípios que regiam esses procedimentos judiciais, cujas características – a brevidade, os custos mitigados, a ausência de advogados, importância das provas escritas, etc. – estavam relacionadas principalmente às exigências do comércio. Trata-se de um daqueles casos em que o resultado de um processo reconstrói, no sentido contrário, sua própria história. De fato, é sabido que o próprio conceito de ius mercatorum apareceu na verdade tardiamente, em pleno século XVI: anteriormente, as bibliotecas dos juristas falavam apenas de clérigos, professores, aprendizes, camponeses, soldados, viúvas, menores, e a condição jurídica do comerciante era difícil de distinguir daquela que caracterizava o grupo de pessoas que gozavam do mesmo regime de derrogação. Na mesma ordem de ideias, algumas décadas atrás alguns autores alertaram para perspectivas demasiado estreitas que tendiam a confinar o ius mercatorum em um espaço dedicado, negligenciando assim as relações que o vinculavam aos direitos e privilégios que uniam, na Idade Média, as diferentes figuras da itinerância.
E, de fato, na origem dessa nova consideração do lugar do mundo do comércio nas configurações sociais dos diferentes países, havia também uma constatação importante: o fato de que o procedimento judicial seguido por um grande número de tribunais de comércio durante toda a Era Moderna tinha uma tradição antiga e estava longe de se limitar apenas aos comerciantes. O procedimento sumário – como era denominado em uma pluralidade de situações territoriais (CERUTTI, 2003) – era aquele ao qual tinham direito diferentes figuras sociais que compartilhavam uma debilidade específica, uma relativa incompetência das normas locais relacionada tanto à fragilidade de seus estatutos (e de sua capacidade de agir diretamente na justiça; viúvas, menores, etc.) quanto à mobilidade no território (comerciantes, soldados, peregrinos, empregados, etc.). A justiça sumária também era chamada de justiça para “os miseráveis”, isto é, os estrangeiros, os pobres, as viúvas, os menores, os órfãos, os camponeses, os soldados, os empregados, os peregrinos e, finalmente, os comerciantes. A “sumária” era, portanto, o procedimento que poderia ser administrado pontualmente por certo número de tribunais, para além daqueles destinados aos atos comerciais. No caso do Estado da Saboia, por exemplo (do qual tratou minha própria pesquisa), o rito sumário era aquele seguido pelo Senado do Piemonte para resolver os assuntos das viúvas e dos menores, ou ainda aquele seguido pelo Vigário para resolver os diferendos relativos aos empregados. Tal procedimento permitia o acesso direto à justiça (sem seus advogados, sem seus custos) por parte de uma população que compartilhava uma fragilidade devida a uma menor inscrição social. Esse procedimento deve ser inscrito, de fato, no quadro mais geral das justiças “derrogatórias” das formalidades do processo, caracterizadas por um arbitrium procedendi (MECCARELLI, 1998); se, no caso dos procedimentos inquisitoriais, por exemplo, o rito sumário remete à maior liberdade do juiz, livre da figura iudicii, no contexto judicial dos tribunais comerciais o arbitrium se traduzia pela maior possibilidade de ação das partes, expressa, aliás, na fórmula consagrada: ser “juiz em seu próprio processo”.
No entanto, reinserir a justiça dos comerciantes no panorama das justiças urbanas significa, ao mesmo tempo, ocultar sua irredutível originalidade e revelar a riqueza da cultura jurídica dessas sociedades da Era Moderna. Assim, somos confrontados a esse pluralismo jurídico que caracterizou uma parte da nossa história e, portanto, às condições de convivência, dentro da mesma sociedade, de várias maneiras de conceber o justo e de administrá-lo.[1]
Várias ideias de justiça podiam coexistir no mesmo espaço e no mesmo lugar, que podiam ser moduladas em função das fisionomias sociais do público ao qual essas justiças se dirigiam. Isso nos introduz à dialética existente nessas sociedades modernas entre diferentes fontes de direito, bem como entre diferentes tradições jurídicas que compunham a construção heterogênea do direito comum. Em relação à justiça comum, a “sumária” nos introduz a uma articulação diferente da relação entre caso e série; entre fatos e direitos; e finalmente aos diferentes elementos que constituem a gramática do vínculo social vigente no campo judicial.
Finalmente, o último ponto de inflexão que abriu uma nova consideração sobre o lugar ocupado pelo mundo do comércio nas sociedades da era moderna, colocando em discussão, mais uma vez, a suposta “autonomia”, foi inaugurado por esses trabalhos que reivindicavam sua filiação à economia neoinstitucionalista.[2] Como se sabe, a reflexão enfocou o papel desempenhado por uma pluralidade de instituições (mais ou menos formalizadas, das corporações aos tribunais, aos Consulados, aos árbitros privados…) na construção de relações de confiança e na produção de certificações capazes de reduzir a incerteza das trocas, ocorrendo em sociedades caracterizadas por sistemas de informação muito incompletos. A consideração das características próprias às economias e aos mercados da Era Moderna e das condições de incerteza em que as trocas aconteciam abriu caminho para uma nova atenção em relação a esse panorama institucional que, muito longe de ser apenas o cenário dessas trocas, tinha desempenhado claramente um papel essencial em sua realização.
Juntos, portanto, esses diferentes movimentos – a consideração das relações existentes entre direito, religião, economia e mercado; a consideração das modalidades de resolução de conflitos e da variedade de instituições que foram criadas e convocadas para garantir o sucesso das transações – mudaram definitivamente o nosso conhecimento do mundo do comércio e, de maneira mais geral, do funcionamento da economia da Era Moderna.
A coletânea de ensaios que se segue é uma excelente prova do novo momento que se abriu para esses estudos. Cada um dos seis artigos aborda um tema que evocamos. O ensaio de Guillermina del Valle Pavón nos mostra como o campo da economia e o da devoção se encontraram e se reforçaram mutuamente; as práticas de crédito adotadas pelos grandes comerciantes da Cidade do México no fim do século XVIII baseavam-se na criação de “capellanías”, portanto, de fundações religiosas, cujos bens constituíam meios de construção de redes úteis para o comércio. Em outras palavras, o terreno do investimento financeiro e o do investimento devocional estão estreitamente ligados, manifestando assim “a articulação complexa que existia entre a cultura católica e a reprodução social das redes de negócios no Antigo Regime novo-hispânico”.[3] Mais uma vez, trata-se menos de destacar comportamentos “oportunistas” por parte das pessoas no comércio do que enfatizar as imbricações de culturas familiares, comerciais e devocionais nessas sociedades da Era Moderna, o que torna anacrônico qualquer leitura disciplinar desses três domínios.
Por outro lado, duas das contribuições abordam um tema cuja importância acabamos de mensurar, o das formas institucionais que eram componentes essenciais do funcionamento do comércio em uma pluralidade de situações sociais. O ensaio de Javier Kraselsky, que traça as vicissitudes do Consulado de Comércio de Buenos Aires entre os séculos XVIII e XIX, mostra a importância dessa instituição na definição das políticas da coroa desde o início e depois dos governos revolucionários; enquanto o caso das corporações lusitanas analisado por Miguel Dantas da Cruz destaca o papel ativo que essas desempenharam no panorama urbano mesmo depois do terremoto de 1755 e pelo menos até as primeiras décadas do século XIX (contra a imagem corrente da decadência que teriam sofrido instituições que a historiografia frequentemente pintou como conservadoras e hostis a qualquer avanço do comércio e da indústria).
Finalmente, os ensaios de Andréa Slemian e Cláudia Chaves enfrentam o tema das modalidades de resolução dos conflitos comerciais, das instituições responsáveis por esses fins e das relações entre os sistemas judiciais que essas propõem e a oferta jurisdicional mais ampla. No centro dessas pesquisas estão os árbitros que garantiam uma justiça “laica” para os diferendos comerciais no Portugal do século XVIII, propondo, assim, os princípios de uma justiça “entre pares”; e, por outro lado, a Real Junta de Comércio do Império Luso-Brasileiro, cuja produção jurisprudencial é objeto de uma análise inovadora.
Cada um desses ensaios é, em suma, uma contribuição essencial para esta nova consideração do lugar do comércio e da vida econômica que contribuiu decisivamente para questionar não apenas o passado das sociedades da Era Moderna, mas também o nosso presente.
Notas
- A mais recente elaboração é de HERZOG (no prelo).
- A referência obrigatória é o trabalho de NORTH (1990).
- Trad. livre: “la compleja articulación que había entre la cultura católica y la reproducción social de las redes de negocios en el Antiguo Régimen novohispano”.
Referências
AGO, Renata; CERUTTI, Simona. Procedure di giustizia. Quaderni Storici, v. 101, n. 2, p. 307-314, 1999. [ Links ]
CERUTTI, Simona. Giustizia sommaria. Pratiche e ideali di giustizia in una società di Ancien Regime (Torino XVIII secolo). Milão: Feltrinelli, 2003. [ Links ]
CLAVERO, Bartolomé. Antidora. Antropología Católica de la Economía Moderna. Milão: Giuffrè, 1991. [ Links ]
HERZOG, Tamar. Legal Pluralism. In: MIROW, Matthew; URIBE, Víctor (Eds.). A Companion to the Legal History of Latin America. Leiden: Brill (no prelo). [ Links ]
MECARELLI, Massimo. Arbitrium. Un aspetto sistematico degli ordinamenti giuridici in età di diritto comune. Milão: Giuffré, 1998. [ Links ]
NORTH, Douglass. Institutions, institutional change and economic performance. Cambridge: Cambridge University Press, 1990. [ Links ]
TODESCHINI, Giacomo. I Mercanti e il tempio. La società cristiana e il circolo virtuoso della ricchezza fra Medioevo ed età moderna. Bolonha: Il Mulino, 2002. [ Links ]
Simona Cerutti – LaDéHiS (Laboratoire de Démographie et Histoire Sociale), Paris, France. E-mail: simona.cerutti@ehess.fr http: / / orcid.org / 0000-0001-7427-7430
Tradução: Alexandre Agabiti Fernandez
CERUTTI, Simona. Trad. Alexandre Agabiti Fernandez. Apresentação. Varia História, Belo Horizonte, v.36, n.72, set. / dez., 2020. Acessar publicação original [DR]
A OMC e os desafios do Sistema Multilateral de Comércio | Meridiano 47 | 2015
Em 1995, entrou em funcionamento a Organização Mundial do Comércio (OMC) — um dos muitos resultados da Rodada Uruguai de negociações comerciais multilaterais (1986-1994), que colocou em vigor diversos atos multilaterais e alguns plurilaterais, entre eles o acordo constitutivo da OMC.1
A criação da OMC não correu em um vácuo organizacional. Ao final da Segunda Guerra Mundial, uma série de encontros tentou criar uma Organização Internacional do Comércio (OIC). No encontro preparatório de Genebra, em 1947, os negociadores decidiram aproveitar a oportunidade para entabular a primeira rodada de cortes tarifários do pós-guerra, já incorporando os princípios da não-discriminação, do tratamento nacional, da reciprocidade e, mais importante, uma cláusula de nação-mais-favorecida com poucas exceções. Para regular e proteger os resultados dessas negociações, foi instituído um Acordo Geral sobre Tarifas Aduaneiras e Comércio (GATT), que vigoraria provisoriamente até a criação de uma organização internacional especificamente dedicada ao comércio, o que completaria o tripé institucional da ordem econômica multilateral do pós-guerra, iniciada pelos capítulos monetário e financeiro em Bretton Woods, em julho de 1944. Ao cabo de uma longa conferência diplomática realizada em Havana, de novembro de 1947 a março de 1948, foi criada a Organização Internacional de Comércio (OIC), incorporando todo o conteúdo do acordo negociado em Genebra, e diversos outros dispositivos relativos a emprego, a investimentos e regras institucionais. O Congresso americano, no entanto, falhou em aprovar a Carta de Havana: o resultado foi o funcionamento provisório GATT, a partir de 1948, até a criação da OMC. Arranjos ad hoc permitiram a instalação de um secretariado, dirigido por um Diretor Geral (geralmente europeu), ademais de arranjos incipientes para a solução de controvérsias comerciais entre as Partes do acordo. Leia Mais
Nação, Comércio e Trabalho na África Atlântica / Varia História / 2013
É visível o crescimento do campo dos estudos africanos no Brasil ao longo da última década. Cada vez mais eventos dedicados ao tema ocorrem em diversos espaços no país, as agências de fomento investem no desenvolvimento de projetos vinculados à área, as traduções e publicações de livros de pesquisadores brasileiros também aumentaram significativamente nos últimos anos. O diálogo internacional, já em andamento, é mais um objetivo a ser perseguido e consolidado nos próximos anos.
Este dossiê é mais um passo nesta direção tendo sido originalmente pensado para trazer novas reflexões ou releituras acerca dos temas relacionados à história do trabalho no continente africano. Trata-se de tema caro e fundamental para a compreensão dos desenrolares históricos das formações sócio políticas da África, inclusive por sua centralidade na própria tradição historiográfica. Estudos sobre a escravidão, o tráfico atlântico de escravos e as formas de trabalho forçadas produziram verdadeiros clássicos cujas influências extrapolaram as áreas de estudo relativas apenas à história do trabalho.
Se por um lado os desenvolvimentos historiográficos das últimas décadas fizeram muito para ultrapassar as velhas dicotomias que nortearam as pesquisas sobre história da África por boa parte da segunda metade do século XX, mostrando as complexidades das condições sociais para muito além dos binômios escravo-livre, colonizado-colonizador, vítima-algoz, colonial-pós-colonial, entre outros, por outro, não é possível desprezar as relações violentas que se impuseram em diversos níveis sobre as várias regiões do continente africano desde o contato com a Europa em estágio inicial da expansão capitalista. Como pensar as mudanças nas formas de escravidão no interior do continente sem levar em consideração as dinâmicas atlânticas das épocas moderna e contemporânea? Como considerar as condições extremas de exclusão e opressão no continente sem atentar para as lógicas coloniais derivadas da expansão imperial europeia a partir de meados do século XIX? Boa parte destas questões estão, direta ou indiretamente, abordadas nos textos do dossiê, escritos por historiadores brasileiros, africanos e europeus, num esforço de ampliar os debates do campo crescente em searas brasileiras e estimular um produtivo diálogo internacional.
Antes porém, apresentamos um texto de José da Silva Horta, que chegou-nos por ocasião de sua eleição para o PROGRAMA CÁTEDRAS do Instituto de Estudos Avançados Transdisciplinares / IEAT / UFMG e patrocinado pela Fundação de Desenvolvimento da Pesquisa – FUNDEP. Nações”, marcadores identitários e complexidades da representação étnica nas escritas portuguesas de viagem: Guiné do Cabo Verde (séculos XVI e XVII) foi o texto original apresentado na Grande Conferência, atividade primeira desenvolvida no âmbito do programa de Catedrático Residente da UFMG que teve parcerias transdisciplinares com vários grupos de pesquisa, centros e laboratórios da UFMG e PUC-Minas.1
O texto de José da Silva Horta apresenta análise singular ao defender o uso de etnônimos para compreender as “nações” enquanto identidades étnicas das sociedades do Noroeste africano subsaariano a partir das pistas fornecidas por três dos mais importantes tratados do corpus documental para a região, escritos entres fins dos séculos XVI e XVII, por André Álvares de Almada, André Donelha e Francisco de Lemos Coelho. O autor enfrenta não apenas o desafio conceitual da historiografia mas também avança ao apresentar metodologias de leituras para compreender como pensavam os oeste-africanos em relação aos seus marcadores identitários, que variavam conforme as sociedades. As lógicas identitárias oeste-africanas, por vezes, foram bem captadas pelos discursos antropológicos dos viajantes / comerciantes, e em outras foram reconstruídas pela matriz de pensamento ocidental destes. Este foi o escopo da análise de Horta – mostrar que as sociedades se identificavam a partir do sentimento de pertença não restrito a um território ou a uma língua.
Voltando, portanto, ao tema original do dossiê, a organização dos outros artigos se deu por sequência temática e temporal. No artigo Biografia como História Social, Roquinaldo Ferreira apresenta a trajetória incrível de duas gerações da família Ferreira Gomes com o objetivo de explicar o funcionamento das redes transatlânticas que deram sustento ao comércio ilegal de escravos entre Angola e o Brasil. Assim como as estratégias utilizadas pelos comerciantes de Benguela, como o empresário Gomes Júnior, filho do carioca Ferreira Gomes e de mãe africana (Benguela), para driblar o controle do comércio ilegal de escravos. As trajetórias familiares mostram como comerciantes brasileiros e angolanos instalados ao sul de Luanda tentaram driblar as autoridades britânicas e portuguesas na costa angolana no contexto da proibição do tráfico de escravos e do comércio de urzela. A decadências das famílias angolana-brasileiras em Benguela, como ocorreu com o clã Ferreira Gomes, foi marcada pela independência do Brasil, a extinção do comércio de escravos e a tentativa de maior controle colonial português que diminuía drasticamente o papel das elites da terra. As questões raciais que até então não eram levadas em consideração devido ao pequeno número de brancos passavam a ter outra conotação em meados do Oitocentos em Angola.
O artigo de Elaine Ribeiro trata dos trabalhadores africanos no período posterior ao tratado por Ferreira. Seu texto aborda um grupo contratado em Luanda para acompanhar a expedição de Henrique de Carvalho à Mussumba do Muatiânvua, na década de 1880, no contexto pós abolição da escravidão nas possessões portuguesas. Com uma instigante análise baseada principalmente no próprio relato de Henrique de Carvalho – inclusive em parte da documentação iconográfica disponível – Elaine procura apresentar as condições de trabalho destes africanos, suas atividades e remunerações, as hierarquias estabelecidas entre eles e suas estratégias de atuação no contexto da expedição. Desta forma, aflora de sua pesquisa, por um lado, uma rica imagem do cotidiano destes trabalhadores, sempre em relação dialógica com a historiografia africanista que aborda as regiões visitadas e, por outro, eventuais formas de reconstrução identitária deste grupo que apropriava-se de elementos culturais distintos e construíam seus caminhos e vivências ao longo da expedição.
O historiador português Augusto Nascimento, especialista na história de São Tomé e Príncipe, analisou as questões relativas ao trabalho forçado de serviçais nas roças de São Tomé e Príncipe, importados do continente, principalmente através de Angola, e ao poder dos roceiros no momento da polêmica do cacau escravo no arquipélago. Os objetivos do autor consistem na análise, através dos discursos na imprensa de São Tomé, de como os são-tomenses se tentaram interpor no debate em torno do trabalho forçado de africanos e também na reflexão das fronteiras entre nação e raça, pensadas de forma distintas pelos ilhéus e autoridades colonizadoras num período em que a colonização estava assentada em critérios de hierarquização racial e as noções republicana de cidadania não se aplicavam à maioria dos indivíduos dos chamados territórios coloniais.
O ensaio de Jean Michel Tali, numa instigante reflexão sobre o trabalho forçado no caso dos regimes coloniais franceses no continente africano, retoma um dos temas clássicos da historiografia sobre o período colocando-o em perspectiva e dialogando com autores de diferentes matizes. Desta reflexão, resulta uma interessante síntese do estado atual das pesquisas sobre o tema. Ao realizar uma análise ao mesmo tempo aguçada e ampla, o autor recoloca a importante questão da relação entre formas de trabalho compulsório e o imperativo capitalista dos regimes coloniais. Com foco principal nas relações de produção na África colonial francesa, Jean-Michel amplia o escopo de análise com constantes comparações com regiões colonizadas por outros países europeus, demonstrando com grande clareza que, a despeito de projetos coloniais aparentemente diferentes, a expropriação forçada do trabalho foi, em conjunção com a expropriação territorial, elemento fundamental e basilar das práticas colonialistas em todo o território africano. Desta forma, sua interpretação reapropria-se de uma perspectiva global ao considerar a violência das relações de trabalho no continente africano como parte integrante do processo de formação do sistema mundo capitalista, e como ela se entranha em todos os níveis da hierarquia social ao longo do tempo.
Esta mesma perspectiva global orienta a pesquisa do historiador nigeriano Adoyi Onoja, a despeito de seu estudo de caso referir-se especificamente a uma história regional, qual seja, ao trabalho da polícia na cidade de Jos, Plateau, no centro da Nigéria. O percurso que Adoyi traça para analisar as entrevistas realizadas com membros da polícia em Jos engloba desde as relações entre a conformação do Estado nacional nigeriano pós independência e suas relações políticas internacionais imersas na Guerra Fria, passando pelas reflexões sobre os impactos dos longos anos sob governo militar em seu país e as consequências desastrosas das políticas econômicas centralizadoras, organizadas em torno da exportação de petróleo principalmente a partir da década de 1980, que desmantelaram os setores agrícola e industrial da economia nigeriana.
A conversão dos rendimentos do petróleo em investimentos na área de segurança, justificados pela instabilidade social resultante do desmantelamento dos demais setores da economia, explicaria então a predominância do exército como força de segurança nacional, que assumiu em grande parte as atividades que originalmente seriam apanágio de sua polícia não militar. Finalmente, surge um vívido quadro das condições materiais de trabalho de policiais e oficiais numa região marcada por tensões sociais no centro da Nigéria.
Esperamos, enfim, que as leituras destes textos estimulem cada vez mais novos pesquisadores e novas pesquisas sobre o tema, sempre ampliando os debates e contribuindo para o amadurecimento de um campo em acelerado crescimento no Brasil, e fortalecendo e consolidando o processo de internacionalização em curso.
Nota
1.GRUPOS DE PESQUISAS: Escravidão, mestiçagem, trânsito de culturas e globalização – séculos XV a XIX, coordenador: Eduardo França Paiva (Departamento de História – FAFICH / UFMG); Migrações e deslocamentos – a constituição de ‘estéticas diaspóricas’ nas literaturas africanas de Língua Portuguesa, coordenadora: Maria Nazareth Soares Fonseca (Programa de Pós-graduação em Letras / Instituto de Ciências Humanas / PUC-MG); População e Políticas Sociais,coordenador: Eduardo Rios Neto (Departamento de Demografia – FACE / UFMG); Literaterras: escrita, leitura, traduções; pesquisadora: Sônia Queiroz (Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários – FALE / UFMG); ARCHE – Arte, Conservação e História – Espaços, pesquisadora: Yacy-Ara Froner (Departamento de Artes Plásticas – Escola de Belas Artes / UFMG); A Modernidade Ibero-americana e a capitania de Minas Gerais (séculos XVII-XVIII) – Espaços, Poder, Cultura e Sociedade (UFMG / CNPq), coordenadora: Júnia Furtado (Departamento de História – FAFICH / UFMG), pesquisadora: Márcia Almada.
CENTROS E LABORATÓRIOS: Centro de Estudos sobre a Presença Africana no Mundo Moderno-CEPAMM-UFMG, coordenador: Eduardo França Paiva (Departamento de História – FAFICH / UFMG); Centro de Estudos Africanos – CEA-UFMG, coordenador: Luiz Alberto O. Gonçalves (Presidente do Conselho do CEA-UFMG); Laboratório de Estudos Africanos e História do Atlântico Negro (CNPq / UFMG), coordenadora: Vanicléia Silva Santos (Departamento de História – FAFICH / UFMG); Laboratório de Estudos e Pesquisas em Ensino de História -LABEPEH, coordenadores: Júnia Sales, Pablo Lima e Soraia Dutra (Departamento de Métodos e Técnicas de Ensino, DMTE – FAE / UFMG).
Alexsander Gebara – Departamento de História. Universidade Federal Fluminense
Vanicléia Silva Santos – Departamento de História. Universidade Federal de Minas Gerais.
GEBARA, Alexsander; SANTOS, Vanicléia Silva. Apresentação. Varia História, Belo Horizonte, v.29, n.51, set. / dez., 2013. Acessar publicação original [DR]