Migrant City: A New History of London | Panilos Panayi

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Panilos Panayi | Imagem: Times Higher Education

According to a survey carried out by the National Federation of Fish Fryers in the 1960s, the first fish and chip shop was opened by Joseph Malins in 1860 on Old Ford Road in the East End of London (p. 234). The combination of the fried fish that had been sold and eaten in the Jewish East End since the early nineteenth century with chips created what became a quintessentially British meal. This is one of many examples included in Panikos Panayi’s Migrant City: A New History of London of how migrants have contributed to the culture and economy of London and in turn the United Kingdom.

Panayi makes clear the crucial role that migrants have played in the development of London as a global centre of trade, finance, culture, and politics. He ties this to London’s status as both the centre of a global empire and the largest city in the world for much of the nineteenth and twentieth centuries. More than half of migrants arriving in the United Kingdom from abroad moved to London, whose history of migration stretches back to its Roman founding. London, therefore, had long been cosmopolitan and by the late twentieth century had become ‘super-diverse’, with residents born in more than 179 countries, many beyond Europe or the former British Empire. Leia Mais

Espelhos partidos: etnia, legislação e desigualdade na Colônia – SAMPAIO (E-CHH)

Das bandeiras levantadas por variados movimentos sociais e étnicos no Brasil, atualmente, a questão do fim dos estereótipos, tão vulgarmente propagado nos meios de comunicação para representar a tal da “diversidade cultural”, ainda mantém lugar de destaque, mesmo que pareça uma discussão “primária” (já que, teoricamente, seria óbvio que somos diferentes). Os povos indígenas, por exemplo, em suas reivindicações por reconhecimento por parte da sociedade civil, buscam ser vistos não por antigas características que os enquadravam numa homogeneidade exótica, mas a partir de suas próprias concepções repletas de diversidade.

Um desconhecimento arrogante parece reinar na maioria dos discursos que se dirigem a essa população, e o que mais intriga, a própria academia ainda engatinha em muitos meios para superar essa situação. Só há pouco tempo, a historiografia, graças a nomes como o de John Manuel Monteiro, tenta falar em diversos espaços, através de cuidadosos trabalhos com documentação, que os índios também têm história. Dizer isso, todavia, não é suficiente: os estudos que se debruçam sobre o passado desses povos vêm atentando cada vez mais para o fato de que os “discursos homogeneizantes”, combatidos pelos grupos atuais, precisam ser incorporados também nas análises históricas.

A obra Espelhos Partidos, fruto da tese de Patrícia Sampaio1, defendida no Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal Fluminense em 2001, é um feliz e rico exemplo dessa renovação historiográfica. O estudo, que se concentra na região das capitanias do Rio Negro e Grão-Pará, já é esclarecedor (mas não só por isso) por tratar de um espaço colonial português na América que não era propriamente Brasil, mas o Estado do Grão-Pará e Maranhão.

Ou seja, a busca por combater estereótipos já inicia com a própria delimitação espacial, ao estipular um contexto bem diferente dos conhecidos paulistanos ou cariocas.

Desde o início, a proposta da autora é apresentar os sertões de uma região que, assim como outras nos domínios lusitanos, era profundamente crivada por uma série de diversidades étnicas e sociais. Os grupos indígenas, produtores de uma babel linguística protagonista dessa história, são tratados enquanto agentes que mantinham múltiplas e complexas relações com diferentes personagens coloniais, como proprietários, administradores, representantes da coroa, negros escravos e forros, mestiços etc. Muito além de serem apresentados como “inseridos” na lógica colonial, vemos pela aguçada análise documental que os índios, gentios ou aliados, eram coautores desse universo. Para isso, sabiam habilmente transitar por entre espaços e manipular elementos por eles criados ou modificados, revelando identidades fluidas, intimamente relacionadas com suas variadas formas de busca pela realização de seus interesses.

O livro é composto por duas partes: a primeira, Quando o fim é o começo: os mundos da fronteira na Amazônia do século XVIII, apresenta os vastos “sertões” amazônicos dos setecentos, revelando espaços e estratégias com que os grupos iriam lidar naquele mundo de fronteira(s), entre Espanha e Portugal, entre a barbárie (os matos) e a civilização (as vilas), “na tentativa de aproximar-se da complexidade que caracteriza os sertões do Grão-Pará nesse período” (p. 33).

Em seguida, Códigos de fronteira: consolidando diferenças. Essa segunda parte dialoga prioritariamente com os principais conjuntos legais indigenistas deste período: o Diretório dos Índios e a Carta Régia de 1798. Apesar de direcionados para um grupo específico daquela população, o seu peso na formação social e sua importância no funcionamento econômico destas capitanias faziam com que as transformações advindas desses arcabouços legais tivessem alcance bem mais amplo.

Por elas é possível perceber a enorme capacidade de leitura dos índios do contexto que se constituía ao seu redor. Longe de serem unicamente limitadores de suas ações por atitudes coercitivas, as leis eram também elementos apropriados pelos grupos indígenas em suas práticas políticas.

O que mais chama atenção na leitura dessa obra é a grande variedade de tipos sociais que constituíam aquela realidade fronteiriça.

O caráter limítrofe daqueles sertões era latente nos embates que se davam entre agentes que faziam do mundo ocidental e das antigas tradições realidades não tão separadas, mas ao contrário, geralmente conviventes. Nesse ambiente flutuante, índios brabos por vezes passavam para o lado aliado, que por sua vez, eram atravessados pelas hierarquias criadas pela lei, mas cuja capacidade de ação fugia e muito ao controle das autoridades.

Algumas conclusões da autora, contudo, não levaram em conta a heterogeneidade do território brasileiro no que dizia respeito à aplicação das leis indigenistas. Concordando com a ideia de Manuela Carneiro da Cunha, de que ao longo do século XIX a questão indígena passou a estar mais ligada à terra que à mão de obra, Sampaio acredita que a viabilidade da Carta Régia de 1798 no Grão-Pará se explicava pela contínua demanda de trabalhadores índios, ao contrário de outras regiões que continuaram utilizando os artigos do Diretório (p. 245). Contudo, esse não parecia ser o caso das capitanias do Ceará e Rio Grande do Norte, possuidoras de significativa população nativa e que permaneceram com a lei pombalina até meados dos oitocentos. Além disso, lá também se presenciaram “intervenções das populações nativas sobre a legislação pombalina”, que segundo a autora, seria uma das explicações sua revogação no norte do país (p. 226). Se as atitudes de rebeldia dos índios, resultantes das opressões sofridas por autoridades instituídas, provocavam declarações de insucesso dessa legislação, estas não eram exclusivas do Grão-Pará, estando presentes também em regiões que não aplicaram a Carta Régia de 1798.

O mérito maior do estudo em questão está em afirmar, convincentemente, que a análise da história desses povos não deve se resumir a perspectivas homogeneizantes que os enquadrem em submissos inertes, nem tampouco em guerreiros obstinados. A realidade social setecentista amazônica foi interferida fortemente pela ação desses grupos, que não estavam à margem do processo, mas como já foi dito aqui, eram dele coautores. O destino das práticas civilizatórias propostas em Portugal, cujo “fracasso” era sempre atribuído aos administradores sedentos pelo abuso da mão de obra, foi modificado em relação às ideias originais pela própria obstinação dos índios em realizar seus objetivos a partir de suas próprias opiniões, frequentemente divergentes das autoridades coloniais.

Na conclusão, o livro encerra tratando de silêncios: conta a breve história de duas crianças índias, Iuri e Isabella, cujos ancestrais e primeiros anos de vida pouco se conhece. Foram levadas para a atual Alemanha pelos viajantes Spix e Martius como artigos de curiosidades, e tiveram suas vidas encerradas pouco depois de chegarem ao continente europeu. A indiferença em relação a essas pessoas, cujo espectro silencioso é ensurdecedoramente revelador, relaciona-se diretamente com toda a história da relação da nossa sociedade com outros grupos étnicos, com índios, negros e ciganos, com minorias negligenciadas, com o incomodante “outro”. A historiografia, também silenciada e silenciante, era cúmplice dessa tendência, ao acreditar durante tanto tempo que registros para recuperar uma “suposta história” dos indígenas nem existiam. Dar o tom de denúncia a estas considerações finais, de forma provocativa e estimulante para outras reflexões, gritando contra emudecimentos reveladores, é mais que um serviço ao público: é um convite a toda a sociedade para se repensar, se (re)representar, se desconhecer, para, talvez, saber melhor de si.

Notas

1 Patrícia Maria Melo Sampaio possui doutorado em História pela Universidade Federal Fluminense e pós-doutorado pela Unicamp. Professora do departamento de história da Universidade Federal do Amazonas, é líder do grupo de pesquisa História Indígena e da Escravidão Africana na Amazônia (HINDIA) e pesquisadora do Núcleo de Pesquisa em Política, Instituições e Práticas Sociais – POLIS.

João Paulo Peixoto Costa Doutorando pela Universidade Estadual de Campinas. E-mail: qdedo@hotmail.com


SAMPAIO, Patrícia Maria Melo. Espelhos partidos: etnia, legislação e desigualdade na Colônia. Manaus: Editora Universidade Federal do Amazonas, 2011. Resenha de: COSTA, João Paulo Peixoto. Fronteiras Desiguais. Especiaria – Cadernos de Ciências Humanas, Ilhéus,  v. 14, n. 25, p. 245-248, jul./dez. 2013. Acessar publicação original. [IF]

Escravidão, mestiçagens, ambientes, paisagens e espaços – PAIVA et al (S-RH)

PAIVA, Eduardo França; IVO, Isnara Pereira; AMANTINO, Márcia (Orgs.). Escravidão, mestiçagens, ambientes, paisagens e espaços. Belo Horizonte: PPGH-UFMG; São Paulo: Annablume, 2011, 284 p. Resenha de: SILVA, Kalina Vanderlei. Um manifesto sobre os usos dos conceitos na História. sÆculum REVISTA DE HISTÓRIA, João Pessoa, [27] jul./dez. 2012.

Dentro do atual cenário acadêmico brasileiro, e de suas rigorosas exigências em torno da produção científica – exigências muitas vezes mais quantitativas que qualitativas –, os grupos de pesquisa vêm agindo como verdadeiros palcos para o desenvolvimento do debate científico e da pesquisa sistemática, chamando a atenção tanto das instituições de investigação quanto das agências de fomento. No entanto, especificamente no campo historiográfico, nem todos conseguem de fato realizar um trabalho efetivo de diálogo entre diferentes instituições e ao mesmo tempo apresentar os resultados para o público mais amplo de pesquisadores.

Nesse sentido, o Grupo de Estudos Escravidão e Mestiçagens tem se destacado positivamente por conseguir ultrapassar as exigências básicas postas a seus congêneres ao reunir regularmente pesquisadores de várias regiões brasileiras. Seus integrantes compartilham um interesse temático que gira em torno da diversidade de situações coloniais – sempre observadas em suas especificidades, mas jamais desligadas das múltiplas conexões externas às Américas – e de uma preocupação teórico-metodológica com os conceitos empregados na construção do saber historiográfico.

Apesar de sediado no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Minas Gerais, o grupo – cujos primórdios datam de uma primeira reunião realizada no âmbito do XXIII Simpósio Nacional de História2 – não apenas congrega historiadores para discutir conceitos teóricos e metodologias de investigação, mas também vem produzindo obras de qualidade, como o recente Escravidão, mestiçagens, ambientes, paisagens e espaços.

Privilegiando uma metodologia comparativa, embasada sempre em detalhada pesquisa documental cujos objetos são colocados em espaços coloniais específicos e bem definidos, os autores discutem as possibilidades conceituais no estudo da escravidão e das mestiçagens coloniais, inquietando-se acerca de quais conceitos e categorias podem ser empregados – e de que forma podem ser empregados – a fim de maximizar a compreensão o mais aproximada possível das realidades coloniais, de seus múltiplos personagens e de suas tão distintas identidades.

Terceiro livro da série, ‘… Paisagens e Espaços’ traz questionamentos que aprofundam e espelham outros já visíveis nas duas obras anteriores: no primeiro livro, ‘Escravidão, mestiçagem e histórias comparadas’, a reflexão principal girava em torno da utilização da metodologia comparativa em estudos sobre os dois grandes conceitos do grupo3; no segundo livro, por sua vez, ‘Escravidão, mestiçagens, populações e identidades coloniais’, a preocupação basilar eram as identidades4.

Por outro lado, tanto a metodologia comparativa quanto os estudos identitários podem ser percebidos também em ‘Escravidão, Mestiçagens, Ambientes, Paisagens e Espaços’, o que dá aos três livros uma coerência interna e os apresenta como obras conectadas, realmente integrantes de uma série.

Assim é que, dando continuidade a essas discussões, os organizadores defendem na apresentação de sua terceira obra, além do cuidado com os conceitos relacionados ao mundo colonial – seu tema mais recorrente –, também a necessidade de focar outros espaços que não os urbanos, já que esses são em geral pensados de forma privilegiada pela historiografia como cenários para os jogos políticos coloniais. E para levar essa proposição a cabo, Eduardo França Paiva, Isnara Pereira Ivo e Márcia Amantino – historiadores em atividade respectivamente em Minas Gerais, na Bahia e no Rio de Janeiro – dividem sua obra em duas partes: a primeira, mais extensa, abrangendo o período colonial e a segunda se debruçando sobre o século XIX. Nesta última, o recorte espaço-temporal privilegiado se distancia do cenário favorito do grupo, a sociedade colonial americana. Apesar disso, os artigos mantêm a conexão temática e teórica ao enfocar aspectos das relações socioculturais estabelecidas por escravos, forros e livres do Império brasileiro a partir de premissas discutidas para os espaços coloniais.

Os capítulos de ‘…Paisagens e Espaços’ seguem uma perceptível divisão temática: o olhar sobre as paisagens urbanas perpassa principalmente os artigos de José Newton Menezes, de Carla Mary de Oliveira, de Maciel Carneiro Silva e de Luiz Gustavo Cota, enquanto o mundo para além das ruas escravistas é estudado por Isnara Pereira Ivo, que se debruça sobre o sertão, e Márcia Amantino, que focaliza as fazendas jesuítas. Por sua vez, a preocupação com os atores sociais dentro desses espaços preenche as páginas de Maria Lemke, Marcelo Rocha e Renato Rangel, que se preocupam com aspectos particulares das vidas de personagens mestiços, usando diferentes conceitos para abordá-los: pardos, mulatos, mamelucos. Já Eliane Garcindo e Eduardo Paiva, por seu turno, propõem reflexões conceituais mais amplas sobre as identidades mestiças, enquanto João Azevedo Fernandes traça uma revisão historiográfica, ou como ele denomina uma ‘arqueologia cultural’, dos mamelucos em autores clássicos tais como Freyre e Darcy Ribeiro.

De forma geral, percebe-se uma coerência teórica na abordagem das mestiçagens pelos múltiplos autores que seguem, basicamente, a definição de mestiçagem estabelecida por França Paiva na apresentação da obra: nela, Paiva expressa a fé de ofício do grupo, propondo a compreensão das mestiçagens enquanto mesclas bioculturais processadas nas dimensões complexas e dinâmicas dos espaços coloniais ibero-americanos5. Por outro lado, as espacialidades – um dos focos temáticos principais do livro – são abordadas com diferentes ênfases ao longo do texto.

O tratamento conceitual mais aprofundado dedicado a estas está no texto de José Newton Coelho Menezes. Em seu artigo ‘Escalas espaço-temporais e História Cultural: reflexão de um historiador sobre o espaço como categoria de análise’, ele se debruça sobre o uso historiográfico de conceitos de espacialidade, estabelecendo definições que pensam o lugar enquanto produto da ação humana, e a paisagem enquanto espaço percebido pelos sentidos. Tomando as Minas setecentistas como recorte, Menezes defende uma abordagem que busque compreender a relação entre identidades e espacialidades sempre considerando as características históricas da construção do lugar estudado. Esse seria o caso do estudo dos limites entre o urbano e o rural que o autor utiliza como exemplo: partindo de uma análise que considera as características urbanas comuns dentro do Império português, ele descreve uma complexa malha de lugares na capitania das minas, buscando pensar dentro dela o lugar dos escravos. Em cima dessa base empírica, ele passa a enfocar a historicidade dos conceitos de espaço, ou seja, como esses conceitos são não apenas construídos mas também mutáveis ao longo do tempo: conceitos tais como lugar – o lugar de determinados personagens na paisagem. Propõe assim que os lugares dos escravos na sociedade colonial, por exemplo, sejam buscados através dos sentidos que possuíam então.

Essa preocupação com a construção e a mutação dos significados dos termos, expressões e conceitos coloniais – uma inquietação que aponta para a preocupação mais profunda com a reconstrução exata das formas de pensar e socializar-se no mundo colonial – perpassa todos os textos do livro. Chamada de “polissemia dos termos colonial”, ela aponta para a busca pelas identidades como objetivo principal da maioria dos autores de ‘… Paisagens e Espaços’. Caso de Marcelo Rocha que em seu artigo ‘Vidas mescladas: mulatos livres e hierarquias na Nova Espanha (1590- 1740)’ reflete, baseado em ampla documentação hispânica, sobre as identidades mulatas no México colonial. Identidades não apenas mutáveis, mas também muito dependentes da relação que os grupos sociais que as construíram mantinham com o sistema de castas vigente no Império espanhol. Para Rocha, inclusive, essas identidades dependiam da capacidade dos atores de “instrumentalizar condições de assimilação aos distintos contextos a partir das relações grupais ou interpessoais”6. O que significa, de fato, que as identidades mestiças nada tinham de estáveis nem de fixas, mudando conforme os personagens se adaptavam a novos cenários, geográficos ou sociais.

Importante ressaltar que ‘… Paisagens e Espaços’ se apresenta como um verdadeiro panorama da diversidade dos espaços coloniais no mundo iberoamericano: seus autores, se em sua maior parte continuam a privilegiar os espaços urbanos, por outro lado privilegiam diferentes espaços urbanos: das vilas mineiras setecentistas às capitanias do norte do Estado do Brasil. E fora dos espaços urbanos a heterogeneidade também prevalece: dos sertões baianos às fazendas jesuítas, do mundo andino à Nova Espanha.

Ainda em torno dos espaços urbanos coloniais, Carla Mary S. Oliveira se apropria de uma abordagem cara ao grupo Escravidão e Mestiçagem ao analisar a produção artística barroca de Minas Gerais e das Capitanias do Norte do Estado do Brasil de forma comparada. Com um olhar treinado pela História da Arte, a autora enfoca trajetórias de vida de artesãos mestiços em um texto cujo repertório documental está fundado sobre os forros de igrejas e os óleos sobre madeiras que constituem o patrimônio visual dos templos das irmandades/ ordens religiosas em Minas Gerais, Recife, Salvador e João Pessoa. Esmiuçando os elementos pictóricos dessas fontes, ela busca compreender as representações artísticas que os artesãos, eles mesmo mestiços, construíam sobre as mestiçagens no mundo colonial.

Sem desconsiderar as rígidas imposições de regras artísticas que a Igreja tridentina trazia para o mundo colonial, a autora reflete sobre as “estratégias de apropriação e ressignificação que se cristalizaram na arte religiosa colonial dos séculos XVII e XVIII no Brasil, estratégias essas que historiadores como Gruzinski chamam de hibiridização”7. E se em seu texto a influência de Serge Gruzinski é mais direta, essa influência paira, por outro lado, em muito da produção dos pesquisadores do grupo Escravidão e Mestiçagem.

Se no capítulo de Oliveira as identidades são buscadas dentro de cenários urbanos coloniais, no trabalho de Isnara Ivo essas identidades são perseguidas nos sertões. Os personagens de Ivo são os chamados ‘homens de caminho’, comerciantes de diferentes etnicidades que percorriam, constantemente, os interiores coloniais da América portuguesa. Trabalhando sobre registros fiscais, a autora procura desenhar um retrato desses personagens, ousando analisar as descrições físicas trazidas pelos documentos. Assim, as descrições setecentistas de barbas, cabelo e cor dos olhos, tornam-se, em sua abordagem, elementos para reflexão não apenas sobre o imaginário e as identidades coloniais, mas também sobre as próprias conceituações generalistas usadas pela historiografia em torno do difícil personagem do mestiço. Tudo isso, todavia, sem fugir do recorte teórico dedicado às espacialidades.

No entanto, se as espacialidades compõem a temática central da obra, em associação com os conceitos de escravidão e de mestiçagem, isso não significa que todos os autores prefiram focá-las de forma central em seu trabalho. Assim é que alguns capítulos, como o de Maria Lemke sobre Goiás e o de Rangel Cerceau sobre Minas Gerais, cuidam menos de especificar as espacialidades, apesar de perceptivelmente focarem urbes coloniais, e mais de analisar identidades e formas de sociabilidades. Por um lado, Lemke se utiliza de uma metodologia cada vez mais atual na historiografia para melhor compreender os contextos e estruturas sociais: o estudo de trajetórias de vida; uma metodologia devedora de Ginzburg, apesar de não creditada a ele no texto. A partir dessa abordagem ela segue alguns ortodoxa’ de alguns governadores régios, ampliaram seus espaços de ação em Vila Boa, Capitania de Goiás. Assim é que através da descrição da correspondência administrativa, a autora descortina um cenário de conflitos políticos que envolviam ‘homens bons’ e representantes régios, mas também pardos ascendidos a posições oficiais.

Já o tema de Cerceau são as famílias. De fato, são “as mesclas envolvendo as uniões familiares constituídas por indivíduos desiguais social e culturamente”8. Assim como Lemke, ele também realiza estudos de caso sobre trajetórias de personagens específicos: no seu caso, as mulheres forras. Com relação à metodologia, sua abordagem dá uma atenção especial às conceituações setecentistas que poderiam influenciar as representações identitárias desses personagens. Assim é que ele analisa as definições de dicionaristas, pintores e cronistas para tentar se aproximar das imagens vigentes, nos setecentos, sobre os crioulos9.

Todas essas considerações conceituais em torno das mestiçagens e espacialidades, associadas ao contexto escravista americano ficam, de fato, bem exemplificadas no texto de Eliane Garcindo de Sá. Em seu artigo, intitulado ‘Identidade, espacialidade e territorialidade: reflexões sobre a presença africana no universo colonial’, Sá se debruça sobre crônicas andinas para questionar as espacialidades em sua relação com as representações construídas sobre as identidades coloniais. Seguindo uma das mais fortes premissas do grupo – a de buscar as interpretações próprias aos muito diversificados grupos mestiços sem concessões às leituras eurocêntricas e teleológicas impostas pela historiografia –, a autora lê as crônicas indígenas andinas em busca de suas versões próprias acerca da presença dos estrangeiros – fossem espanhóis fossem africanos – nos espaços incaicos. E nessa trilha ela identifica em algumas dessas crônicas um “libelo contra a mestiçagem”10. Além disso, a autora percebe a noção de território como um fator fundamental nas definições identitárias estabelecidas dentro dos domínios da Monarquia Católica, contexto no qual seus personagens se inseriam: para ela, os autores indígenas, eles próprios mestiços como Poma de Ayala, definiam africanos, espanhóis e descendentes de ambos como estrangeiros a partir de uma consideração geográfica, associando sempre as identidades desses personagens a seus territórios de origem. O que tornava esses autores – mestiços que nem sempre se autoidentificavam como tal, lembremos – opositores do próprio processo de mestiçagem. Esta mestiçagem, por sua vez, sempre entendida em suas páginas como a permanência de atores sociais estrangeiros, de fora daquelas espacialidades específicas.

Entre os textos que pensam as espacialidades não urbanas está, por sua vez, o capítulo de Márcia Amantino sobre as fazendas jesuíticas. Compondo um detalhado estudo de caso focado em uma fazenda específica – a fazenda de São Cristóvão no Rio de Janeiro setecentista – a autora apresenta dados de extrema relevância para a história da escravidão, bem característicos de uma tradicional História Social: dados populacionais, principalmente. Uma abordagem compartilhada também por Carlos Engelman, que discorre sobre as identidades crioulas no Vale do Paraíba também a partir de densos dados seriais.

Mas Engelman, por sua vez, vem se somar já à segunda parte de ‘…Paisagens e Espaços.’ E se esta é consideravelmente mais curta e menos coesa que a primeira, apesar disso ela traz interessantes contribuições para a discussão temática geral da obra: além de Engelman também Maciel Silva, que compara as ruas de Salvador e Recife a partir do personagem das domésticas, dialoga ativamente com as principais questões do grupo, desde a metodologia comparativa até os problemas identitários. Entre os dois estão os textos de Luiz Gustavo Cota – mais culturalista, centrado em festividades abolicionistas estudadas a partir de uma abordagem que mistura discursos, memória e a própria espacialidade urbana para compreender a difusão e as leituras da ideia de liberdade – e de João Azevedo Fernandes com sua crítica historiográfica que pinça a imagem do mameluco desde Varnhagen até Darcy Ribeiro.

Assim, em seu conjunto todos os textos de Escravidão, Mestiçagens, Ambientes, Paisagens e Espaços se inserem na discussão inicialmente proposta em sua apresentação, apesar de que as diretrizes teóricas esboçadas a princípio não chegam a engessar os resultados de seus diferentes autores. Tal mescla de coerência conceitual e flexibilidade metodológica torna a obra extremamente enriquecedora tanto para os estudiosos das temáticas canônicas do grupo quanto para a historiografia sociocultural que se debruça sobre o mundo colonial americano. Mas, além disso, esse terceiro volume do grupo Escravidão e Mestiçagens funciona também como exemplo do que uma obra historiográfica coletiva deveria ser: pela miríade de diferentes fragmentos desse mundo colonial que apresenta; pela coerência teórica que embasa tantos autores de diferentes contextos; pela seriedade e pertinência do trabalho com as fontes históricas.

Notas

2 Cf. Anais do XXIII Simpósio Nacional de História – História: Guerra e Paz. Londrina: ANPUH; Editorial Mídia, 2005.

3 Cf. PAIVA, Eduardo França & IVO, Isnara Pereira (orgs.). Escravidão, mestiçagem e histórias comparadas. São Paulo: Annablume; Belo Horizonte: PPGH-UFMG; Vitória da Conquista: Ed.UESB, 2008.

4 Cf. PAIVA, Eduardo França; IVO, Isnara Pereira & MARTINS, Ilton Cesar (orgs.). Escravidão, mestiçagens, populações e identidades coloniais. São Paulo: Annablume; Belo Horizonte: PPGHUFMG; Vitória da Conquista: Ed. UESB, 2010.

5 PAIVA Eduardo França; Ivo, Isnara Pereira & AMANTINO, Márcia. “Apresentação” In: PAIVA, Eduardo França; IVO, Isnara Pereira & AMANTINO, Márcia (orgs.). Escravidão, mestiçagens, ambientes, paisagens e espaços. São Paulo: Annablume, 2011, p. 07-09.

6 ROCHA, Marcelo. “Vidas mescladas: mulatos livres e hierarquias na Nova Espanha (1590-1740)”. In: PAIVA, IVO & AMANTINO, Escravidão, mestiçagens, ambientes…, p. 94.

OLIVEIRA, Carla Mary S. “Arte colonial e mestiçagens no Brasil setecentista: irmandades, artífices, anonimato e modelos europeus nas Capitanias de Minas e do Norte do Estado do Brasil”. In: PAIVA, IVO & AMANTINO, Escravidão, mestiçagens, ambientes…, p. 97.

8 CERCEAU NETO, Rangel. “Famílias mestiças e as representações identitárias: entre as maneiras de viver e as formas de pensar em Minas Gerais, no século XVIII”. In: PAIVA, IVO & AMANTINO, Escravidão, mestiçagens, ambientes…, p. 165.

9 CERCEAU NETO, “Famílias mestiças…”, p. 165.

10 SÁ, Eliane Garcindo de. “Identidade, espacialidade e territorialidade: reflexões sobre a presença africana no universo colonial”. In: PAIVA, IVO & AMANTINO, Escravidão, mestiçagens, ambientes…, p. 39.

Kalina Vanderlei Silva – Doutora em História pela Universidade Federal de Pernambuco. Docente da Faculdade de Formação de Professores de Nazaré da Mata, Universidade de Pernambuco. E-mail: <kalinavan@ uol.com.br>.

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[MLPDB]

Colônia e nativismo: a história como “biografia da nação” | Rogério Forastiere da Silva

Uma essência nacional que esteja presente qualquer que seja a situação histórica do Brasil, no passado, no presente e no futuro: essa é a base do pensamento nacionalista construído a partir de cima, usuário da história e de seu ensino para fazer-se presente na memória coletiva. Isso fica claro – exemplo banal, mas com o mérito de ser contemporâneo – na propaganda da Rede Globo para as comemorações dos 500 anos do descobrimento, que não são chamadas dessa maneira. Diversamente, o locutor não se cansa de repetir todos os dias: faltam tantos dias para os 500 anos do Brasil. Não do descobrimento ou do que lhe equivalha. Sem outras palavras, a história que aí se ensina pondera que o Brasil é um ente trazido definitivamente à luz por Cabral e que, a partir daí, existe de forma cada vez mais completa e complexa, alcançando-nos no presente.

Esse olhar sobre a história nacional toma o seu objeto central, a nação, como um corpo, como um sujeito no tempo: existe potencialmente no passado como um embrião, nasce com a chegada dos portugueses à costa, emancipa-se com a Independência e alcança a maturidade num passado bem recente. Segundo Forastieri da Silva, a partir de Antonio Gramsci, essa é a perspectiva que lê a história como biografia da nação, como se a mesma fosse uma vontade ou um desígnio homogêneo, e por isso silencia todos os eventos em que essa unidade é posta à prova. Silencia ou integra, modificando o seu sentido e integrando-o a uma marcha em que tudo conduz, inexoravelmente, para o que há hoje. Leia Mais