Jogos de Identidade Profissional: Os engenheiros entre a formação e a acção – MATOS (LH)

MATOS, Ana Cardoso de; DIOGO, Maria Paula; GOUZÉVITCH, Irina; GRELON, André Grelon (eds.). Jogos de Identidade Profissional: Os engenheiros entre a formação e a acção. Lisboa: Colibri, 2009. Resenha de: PINHEIRO, Magda. Ler História, n.60, p. 198-200, 2011.

1 O livro agora publicado inscreve-se num contexto de colaboração científica entre investigadores de dois centros de pesquisa portugueses, o Centro Interdisciplinar de História, Culturas e Sociedades da Universidade de Évora e o Centro Universitário de História das Ciências e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa e investigadores do Centro Maurice Halbwachs do CNRS. Esta colaboração que se tem estendido ao ensino é um exemplo de rede internacional temática e interdisciplinar com resultados muito positivos que se exprimem nesta publicação. A evolução das instituições de investigação faz aliás com que o Centro Universitário de História das Ciências e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa se tenha entretanto unido ao Centro de História da Ciência Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa formando um centro de maiores dimensões.

2 Jogos de Identidade Profissional: Os engenheiros entre a formação e a acção é um livro assumidamente trilingue em que se procuram os vectores através dos quais se elaborou a tomada de consciência da especificidade profissional dos engenheiros. Trata-se de uma publicação com avaliação científica de parte das comunicações apresentadas a um colóquio internacional que teve o mesmo título. Os estudos são originários de mais de 11 países e abarcam o período que vai dos finais do século XVIII à actualidade.

3 O tema também é aliciante já que aborda a identidade profissional dos engenheiros, grupo a que, na introdução, André Grelon atribui uma imagem social positiva. Questionando-se sobre a permanência de uma identidade comum, em face da multiplicação de tarefas e funções traduzida num trabalho cada vez mais diferenciado, conclui pela sua actual ausência. Cedo, refere-nos, a identidade colectiva foi atravessada por conflitos entre instituições e formações. Ao explicitar os conflitos de fronteiras e formações que presidiram à constituição desta, como de outras identidades profissionais, a abordagem aqui publicada distancia-se de epopeias ainda hoje comuns nesta área de estudos. Uma grande evolução tem porém vindo a afirmar-se e este livro denota-o.

4 O estudo comparativo ao nível internacional é, neste caso, particularmente adequado dados os traços comuns presentes nas diversas experiências nacionais. Traços ligados às formações e à precoce existência de organizações e certames internacionais. A estes tópicos acrescentaria as circulações de capitais que também favoreceram transferências culturais e identitárias.

5 Este livro foi organizado em cinco grandes eixos temáticos dos quais os dois primeiros dizem respeito às instituições de ensino e à formação de professores, o terceiro ocupa-se das áreas de acção profissional e o quarto às associações representativas da profissão de engenheiro. O quinto eixo de enfoque considera aspectos nacionais e imperiais de uma identidade profissional que, sendo baseada nas ideias de perfectibilidade e de progresso, se adequava particularmente à acção imperial.

6 Não é possível recensear as 26 comunicações presentes neste livro. Começarei por salientar a pertinência e novidade do conjunto das comunicações apresentadas pelos portugueses. Algumas são resultantes de estudos doutorais, outras de projectos colectivos. Salientarei pela sua novidade as comunicações de Rui Branco sobre o trabalho de campo dos engenheiros cartográficos, o de Ana Carneiro e Vanda Leitão sobre a profissionalização dos geólogos e a carta geológica de Portugal e ainda o de Paulo Simões sobre o debate entre arquitectos e engenheiros no Portugal da segunda metade do século XIX. Tiago Saraiva aborda o papel dos engenheiros na criação dos novos espaços madrilenos do século XIX sem nos trazer grandes novidades, pois a história do Ensanche madrileno é por demais conhecida. Também os investigadores sénior Maria Paula Diogo, Ana Cardoso de Matos e Álvaro Ferreira da Silva apresentam estudos muito relevantes sobre temas que já vinham focando ou trouxeram de novo. Maria Paula Diogo aborda o papel dos engenheiros na expansão colonial portuguesa.

7 Os estudos publicados abarcam o mundo mediterrânico, a Rússia, a República Checa, o México, o Brasil e a Tunísia. O mundo anglo-saxónico e a Alemanha ficam em grande medida de fora, salvo no estudo de Ian Inkster da Universidade de Trent que aborda comparativamente a emergência do papel dos engenheiros no registo de patentes, ou seja, como inovadores. Chama a atenção para o bem conhecido aumento do papel do Estado nos paises late comers. Em Inglaterra, a data da mudança de uma maioria de patentes registadas por artesãos para uma maioria de registos apresentados por formados em engenharia parece-lhe situar-se em torno de 1850. Em 1850-70 já 42% das patentes eram registadas por engenheiros, enquanto apenas 20% provinham de profissões tradicionais. Londres começou a ser a localização da maioria dos pedidos de registo no mesmo momento. Antes de 1860 a cultura da oficina seria ainda considerada em Inglaterra a melhor escola, emergindo a engenharia neste país em estreita simbiose com os meios artisanais. A identidade do engenheiro nasceu aqui no mesmo cadinho onde se afinavam as outras profissões qualificadas, uma cultura de saberes urbanos que não carecia tanto de certificação.

8 A emergência da engenharia como inovação, segundo o autor deste estudo, pode encontrar-se também em países como a Alemanha, em finais do século XIX. Em 1912 havia 3,4 milhões de patentes no mundo. Entre 1905 e 1910, só os alemães tinham registado 25.900 patentes noutros países, sendo seguidos pelos americanos com 25.200 e os britânicos com 16.800. A expansão do consumo de bens resultando, nos países precocemente desenvolvidos, de uma subida do nível de vida das classes médias estaria também ligada a uma nova estética – a do movimento Arts and Crafts – trazendo um renovar do trabalho artisanal e da invenção a este associada.

9 Mesmo na Alemanha 70% dos aprendizes estariam, entre 1850 e 1914, empregues em pequenas firmas mas tenderiam a mudar ao longo da carreira para firmas dominadas pela engenharia industrial. As escolas estatais que davam certificação foram apoiadas por um Estado confrontado com técnicas mais complexas e por isso mais aberto a arcar com os custos da inovação. Nestes casos o estatuto dos engenheiros destacava-se face ao dos artesãos.

10 A estes modelos o autor acrescenta o das nações coloniais onde a engenharia será uma poderosa alavanca, mas onde a identidade dos engenheiros naturais é posta em causa pelo poderio comercial, téncico e social dos colonizadores. Assim, o autor postula uma relação entre inovação e identidade dos engenheiros que não demonstra cabalmente, mas constitui uma interessante hipótese de pesquisa.

11 A problemática da constituição das ordens de engenheiros é também abordada sendo particularmente interessante a comunicação de Éric Gobe sobre os engenheiros tunisinos e a sua «ordem». Neste estudo mostra-se que a inscrição na «ordem», deixando de ser rentável – ou possível – para os jovens engenheiros, muito mais numerosos do que os fundadores, faz com que o seu monopólio desaba numa crise de representatividade. Um problema que podemos associar não à modernidade mas à pós-modernidade que parece tardar a ser integrada por uma profissão que se auto-associa ao progresso.

Magda Pinheiro – CEHC – Instituto Universitário de Lisboa

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Matéria de Bretanha em Portugal | Leonor Curado Neves

Uma iniciativa como esta das organizadoras é sempre bem-vinda: informa-se na Introdução que estas Atas representam a recolha de um Colóquio e, por sua vez, de vários seminários realizados por e em favor de alunos do mestrado em Literatura Portuguesa Medieval, não só do Departamento de Literaturas Românicas da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, como de outras universidades portuguesas, os quais, ao longo de 1999-2001, tiveram por tema de estudos a “matéria de Bretanha”. É, de fato, louvável oferecer tal oportunidade a futuros pesquisadores que, sob a orientação de nomes conhecidos como Irene Freire Nunes, Ivo Castro, José Carlos Ribeiro Miranda, Ana Sofia Laranjinha e outros, além de um convidado “estrangeiro”, Michelle Szkilnik, têm a chance de prosseguir na carreira tomando por base modelos de investigação rigorosos e cientificamente respeitados. Cumprimentos às organizadoras pela abertura, nem sempre usual nos meios acadêmicos.

Contudo, por isto mesmo, por seu caráter de sumário heterogêneo, a obra é qualitativamente desigual – risco, ao que parece, conscientemente abraçado, pois também referido na Introdução. Nem se poderia esperar o contrário: dificilmente um mestrando teria a experiência crítica de Irene Freire Nunes, a quem se deve a edição de A Demanda do Santo Graal (cópia portuguesa), de 1995, trabalho que, embora não substitua o de Magne, a ele se acrescenta como consulta obrigatória; ou de Ivo Castro, que há anos vem preparando a edição do José de Arimatéia, igualmente destinada a somar-se à de H. H. Carter, a mais conhecida; ou, ainda, de José Carlos Ribeiro Miranda, cujas teses, aliciantes e revolucionárias, acerca da organização cíclica da Vulgata e da Pós-Vulgata, em diálogo cerrado com as propostas até então indiscutíveis de Fanni Bogdanow, têm suscitado tanta polêmica. Por enquanto, pelo que se deduz da maioria das comunicações recolhidas, seus autores estão antes para aprender com eles que para ombreá-los em perspectivas analíticas. O que não desmerece, reitere-se, a participação do grupo, disposto a enfrentar as teias extremamente complexas da matière – para cujas profundezas míticas Ana Paiva Morais chamou a atenção (p.125).

Compreensíveis as discrepâncias, mas nem por isso livres de reparos, a começar pelos lugares-comuns, espécie de estigma do assunto desde que dele se apossou a mídia, o cinema americano e uma certa imaginação popular aficcionada por fadas, duendes e dragões. Aqui, nas Atas, não se extrapola, é evidente, para a banalização; porém, elas não se isentaram de retornar à repisada idéia de que o Amadis de Gaula propõe uma cavalaria humanizada, cortesã, em consonância com a “revolução” provençal do século XII e como contraponto à elevada espiritualização da Demanda e ao paradigma ascético representado por Galaaz (p. 105); ou também à desgastada constatação de que a carnalidade de Lancelote, plena de erotismo e de sensualidade, espelho às avessas do grandioso filho bastardo, está atrelada a sentimentos cristãos de culpa, castigo, remorsos, reincidências, contrição – empecilhos em muito responsáveis, no plano simbólico, pela decadência de Artur e pela destruição do reino de Logres (p. 267); ou, ainda, à intrigante concepção da figura feminina, ora vítima de um discurso misógino, tendo Eva como respaldo emblemático, ora heroína de um discurso enaltecedor, abrindo espaço para a Virgem Maria e para uma série de reformas por que passava a Igreja na Idade Média Central (p. 69). Conclusões como estas não podem mais ser pontos de chegada, mas de partida, são pertença daquela já extensa bibliografia de fundo que deve assessorar qualquer projeto de trabalhos na área. Conhecê-la bem evita não só a repetição indesejável, como as comparações esdrúxulas do tipo de “um artigo de jornal, Tristão e Isolda, duas novelas camilianas e sociologia de Luhmann” (p. 277) – único texto da obra que realmente não precisaria estar ali.

O longo artigo de Irene Freire Nunes (20 páginas), “Merlin, o elo ausente” (p. 29), não traz grandes novidades enquanto “tese” – sabe-se, hoje, que o mito de Merlin veio se constituindo por etapas, das tradições orais às recriações literárias, e que a figura é “elo” indispensável na lógica estrutural de todo o ciclo – mas é utilíssimo, porque repassa várias vertentes que concorreram para a edificação do poderoso mago no imaginário coletivo, bem como resenha os principais estudos que foram, a pouco e pouco, montando o quebra-cabeças. O mesmo se pode dizer do ensaio de Ivo Castro, “Sobre a edição do Livro de José de Arimatéia” (p. 59) – uma defesa contundente, e justa, do minucioso labor filológico que exige a preparação de qualquer desses textos, a exigir não só o domínio de um vasto instrumental técnico, de teor comparativo, mas também boa dose de ousadia, de sensibilidade perceptiva e de criatividade. Embora bem provido das duas condições, como demonstra sua dissertação de doutorado apresentada à Universidade de Lisboa em 1984, o autor confessa dúvidas que, ao final do artigo, desnudam o quanto ainda se tem por avançar, por responder, por “demandar”: que lugar ocupa no estema da Estoire o manuscrito francês [do José de Arimatéia] que serviu de exemplar à tradição peninsular? Quem trouxe para Portugal os manuscritos da Estoire, da Queste e da Mort Artu, e possivelmente do Merlin, terá trazido outros (Lancelot, Tristan)? A “coesão” da “matéria de Bretanha”, cada vez mais documentada, será “retrato” da realidade ou “miragem”? (p. 68). Neste sentido – o das indagações que estimulam – José Carlos Roberto Miranda tem uma bela proposta sobre o papel de Elaim, o Branco, filho de Boorz, muito menos “estrela” que seu casto pai, na continuação da linhagem de Lancelote, depois que seu “duplo” Galaaz (nas palavras de Miranda) assume de vez a condição angélica. A pujante formulação, se suscitar interesses mais amplos, pode ser encontrada em Galaaz e a ideologia da linhagem (Lisboa: Granito, 1998), onde José Carlos relaciona a organicidade do universo arturiano e a questão sociológica linhagística própria de uma estrutura feudal como a da Baixa Idade Média. E para encerrar o rol de colaborações que movem à verticalização dos diálogos, continuam fundamentais as análises genológicas (p. 125, em que pese à opção por hermetismos de linguagem), as devassas do plano simbólico (p. 81, p. 145, p. 241) ou, como fez Michelle Szkilnik, de modo original, as localizações das chamadas “personagens secundárias”, cujo papel vai muito além de simples “mediadoras” na narrativa.

Como se percebe, comutados “prós” e “contras”, as Atas sobre A matéria de Bretanha em Portugal prestam à causa serviço de mérito. Quando menos por recolocar, no centro da arena, tema tão mais polissêmico quanto mais cindido entre a visão ligeira, incompatível com a realidade histórica de curta e longa duração em que todo o ciclo se insere, e a visão acadêmica, que muitas vezes peca por excesso oposto, em seu anseio de “precisão”, ao subestimar as diversas e quase sempre obscuras camadas culturais compactadas na matière. As coordenadoras estiveram atentas ao equilíbrio de linhas, o que já de si recomenda a obra.

Lênia Márcia Mongelli – Universidade de São Paulo / ABREM. E-mail: mongelli@dialdata.com.br


NEVES, Leonor Curado; MADUREIRA Margarida e AMADO, Teresa. (Coordenadoras). Matéria de Bretanha em Portugal. Lisboa: Colibri, 2001. Resenha de: MONGELLI, Lênia Márcia. Brathair – Revista de Estudos Celtas e Germânicos. São Luís, v.3, n.2, p. 64-65, 2003. Acessar publicação original [DR]