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Cocanha: A história de um país imaginário – FRANCO JÚNIOR (VH)
FRANCO JUNIOR, Hilário. Cocanha: A história de um país imaginário. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. Resenha de: PAIS, Marco Antonio de Oliveira. Varia História, Belo Horizonte, v.14, n.19, p. 205- 208, nov., 1998.
No início da presente década o Prof. Hilário passou a dedicar-se a uma linha de pesquisa direcionada para o estudo da mitologia medieval e cujos resultados podem ser encontrados nos seus livros As utopias medievais, A Eva barbada: ensaios de mitologia medieval e Cocanha: lianas faces de uma utopia. Mas é com a presente obra que o autor mais avança nos seus estudos, na qual aborda um tema de grande interesse para os estudiosos da civilização medieval. 0 livro coloca ponto final numa discussão que ocorre nos meios acadêmicos nacionais e Órgãos financiadores de pesquisa sobre a possibilidade, ou não, de ocorrer avanços na historiografia medieval conduzida por um pesquisador brasileiro, trabalhando no Brasil. Seu trabalho serve de estimulo para o professor que diante das dificuldades colocadas pela pratica da pesquisa nesta área aqui no Brasil muitas vezes deixa-se vencer pelo desanimo. Penso que com este livro a historiografia medieval brasileira atinge a maturidade, abrindo perspectivas para a realização de novos trabalhos.
A excelência da obra e reconhecida inclusive por um dos maiores medievalista contemporâneo, o professor francês Jacques Le Goff, que no prefacio, entre outros temas, agradece ao autor pela seu trabalho sobre o pais de Cocanha, pois mesmo apesar de atrair a atenção de diversos historiadores, nunca tinha sido tratado de forma abrangente e sistemática. A partir de agora o livro deverá tornar-se citação obrigatória na bibliografia sobre o assunto.
A utopia de um país maravilhoso, de uma terra de abundancia e felicidade, da eterna juventude pode ser encontrada em diversas formações sociais pré-industriais, ocidentais e orientais, sejam elas letradas ou iletradas, tanto no mundo antigo quanto no contemporâneo. Estes sonhos que povoam o imaginário de inúmeros povos vão aos poucos sendo desvendados pela pesquisa histórica, ampliando nosso conhecimento sobre as sociedades onde surgiram. E partindo do pressuposto de Duby — de que para conhecer a ordenação das sociedades humanas o historiador deve prestar a atenção tanto nos aspectos econômicos quanto mentais que o Prof. Hilário desenvolve seu trabalho.
Movimentando-se numa área onde são muitas as imprecisões conceituais, aquela do imaginário e da intersecção cultura popular/erudita, o autor consegue se locomover com habilidade, discutindo e esclarecendo os pressupostos teóricos que utiliza, apresentando hipóteses precisas e bem elaboradas. Demonstrando ser um discípulo da história social, o autor abre-se a interdisciplinaridade movimentando-se com desenvoltura na área da história, literatura, semiótica, etimologia, filosofia, antropologia, sociologia, e mesmo algumas escapadas pela psicanalise.
O livro demonstra uma grande erudição e acesso a uma vasta bibliografia, mas nem por isto deixa de ser urna leitura agradável. O autor evita as citações em idiomas estrangeiros, tediosas e incompreensíveis para muitos, e com isto favorece a leitura a um público mais amplo do que aquele restrito ao interessados pela história medieval. A tradução completa do fabliau da Cocanha nas primeiras páginas presta um auxilio inestimável ao leitor e favorece a compreensão das idéias do autor no decorrer da obra.
No primeiro capítulo, O Fabliau de Cocagne, mosaico textual, localiza o texto manuscrito cronológica e geograficamente e faz algumas incursões pela área do maravilhoso em várias culturas do mundo antigo, concluindo que o “fabliau da Cocanha pode ser considerado um exemplo típico da utilização de lugares-comuns, de imitação, de empréstimos, de compilação enfim, pratica muito difundida nas elaborações literárias medievais.” (p. 50) Quanto ao público alvo do fabliau não há acordo entre os especialistas, e o autor prefere sustentar a hipótese de que o mito de Cocanha funciona como uma compensação imaginaria para os principais grupos sociais urbanos dos séculos XII e XIII, período muito agitado na Europa em consequências das transformações oriundas do crescimento comercial e urbano ocorridas naquela época. Mas Cocanha não e só uma terra de sonho, pois representa também urna crítica social, além de urna sátira ou paródia da cultura oficial.
No segundo capitulo A terra da abundância parte do princípio de que a fome representava um dos piores inimigos da população da Europa medieval, daí o surgimento de várias utopias que poderiam dar cabo daquela desgraça de uma forma imaginaria. Ao que tudo indica nem mesmo o nome do país — Cocanha estaria livre de associações com o terna dos alimentos. A dieta dos cocanianos e alvo então de interessante analise e comentário, e nos dá uma visão panorâmica dos hábitos alimentares da civilização medieval.
No capitulo terceiro A terra da ociosidade, a partir do verso de que “La, quem mais dorme mais ganha” (FC v.28), aborda-se um dos tragos marcantes dos cocanianos, herança talvez dos preconceitos contra o trabalho oriundos da civilização greco-romana, da cultura germana e do cristianismo. E o interessante foi a valorização da ociosidade num momento em que o trabalho começava a ser reconhecido, refletindo talvez unia postura aristocrática contra as atividades dos burgueses. Neste capitulo o autor defende a tese de que “a natureza cocaniana e divina.” (p. 90), o que leva ao panteismo, isto e, doutrina na qual a idéia de Deus e do mundo representa urna (mica realidade. Dedica também algumas páginas na análise do carnaval e outras festas populares, pois “A terra maravilhosa com seus excessos alimentares, alcoólicos e sexuais é um carnaval ininterrupto.” (p. 97/98.)
No quarto capitulo, A terra da juventude aborda-se este tema tão sonhado pelas sociedades pré-industriais, mas que permanece obcecando o mundo pós-moderno. As condições econômicas, médico-sanitárias e alimentares da sociedade medieval conspiravam para que os indivíduos tivessem uma vida reduzida, daí a ênfase dada ao assunto pelo autor do fabliau, que inicia e fecha seu texto fazendo referências a Fonte da Juventude. Ser jovem era urna condição sine qua non para desfrutar das delicias e maravilhas de Cocanha. O próprio autor do fabliau era um jovem, corno ele mesmo afirma no texto, e que o imaginário transposto para país maravilhoso seria aquele da juventude aristocrática feudal. Mas para o Prof. Hilário o público alvo do fabliau não seria exclusivamente esta jovem aristocracia, pois atenderia também aos anseios e sonhos dos grupos urbanos burgueses.
No capitulo quinto, A terra da liberdade, discute-se as restrições que ela passou a sofrer no início da baixa idade média quando passou a ser cerceada pelo grande conjunto de normas imposto pelas monarquias centralizadas, pelos núcleos urbanos e pela igreja. Estas medidas deram origem a um clima de intolerância inexistente até então e que gerou a segregação de diversos segmentos da sociedades como enfermos, prostitutas, homossexuais, pobres de urna maneira geral, estudantes itinerantes, por exemplo. A ênfase na liberdade cocaniana seria urna compensação da liberdade real negada pelas realidade histórica daquele momento. Num momento de conflitos entre os partidários da ortodoxia da igreja e os diversos grupos heréticos que surgiram por várias partes da Europa, Cocanha desfruta de urna liberdade religiosa, e, melhor ainda, e um país não sacerdotal, conforme afirma o autor na página 139. Com uma igreja obcecada em impedir os prazeres oriundos do sexo, os cocanianos contra-atacam estabelecendo urna liberdade sexual que atinge a violência, pois os homens e a mulheres poderiam tornar a iniciativa de “pegar” os parceiros que quisessem, independente do seu consentimento, sem que isto gerasse algum descontentamento. O apelo da natureza era a única motivação a orientar a vida sexual dos cocanianos. No capitulo busca-se urna vez mais as possíveis origens do autor do fabliau e o Prof. Hilário enfatiza a hipótese de que vários indícios apontam para um goliardo que se investe contra a corrupta e avarenta estrutura papal e eclesiástica.
No sexto capitulo o autor aborda urna versão medieval inglesa do fabliau, cuja tradução e apresentada. Diferententemente da versão francesa, esta é bem mais limitada, concentrando-se na paródia de uma instituição monástica, ao que tudo indica a poderosa ordem de Cister, e seu autor seria um poeta franciscano, adepto da pobreza e simplicidade. 0 texto teria sua gênese então nos conflitos enfrentados pelas ordens monásticas a respeito dos valores e funções que as mesmas deveriam manter.
O sétimo e último capítulo trata de versões tardias que por surgirem num contexto histórico diferente do medieval incluem alguns elementos novos, apesar de manter constante o sonho de urna terra maravilhosa. Como o autor afirma, houve urna certa popularização do país da Cocanha e muitas versões representam críticas sociais as condições de vida levadas pelas classes mais pobres da sociedade, principalmente os camponeses. Algumas versões marcadas pela ideologia burguesa voltaram-se contra o clima de ociosidade e descontração da antiga Coconha. Por outro lado o realismo, o racionalismo e o iluminismo cuidaram de dar um cunho mais realista e sóbrio a algumas versões. Muito interessante para os leitores brasileiros são as páginas dedicadas a adaptação dos ideais cocanianos para o Novo Mundo a partir do final do século XV, funcionando como incentivo para o deslocamento de grandes contingentes de europeus para a América. A vegetação exuberante, a fauna variada, as aves coloridas, os rios caudalosos, a abundância de metais preciosos, a nudez indígena, levaram a transferir para a América a realidade da Cocanha. E para encerrar o livro o autor, como medievalista e brasileiro, não poderia ser mais feliz ao abordar uma interessante e cômica versão nacional do fabliau, o livreto de cordel intitulado o País de Sa -o Saruê, cujo autor transpôs para a realidade nordestina as maravilhas do país de Cocanha.
Na análise de um recorrente sonho da civilização ocidental — a utopia de uma terra maravilhosa o Prof. Hilário faz uma grande viagem pelo tempo, pois inicia seu livro abordando o famoso Poema de Gilgamech escrito por volta de 2500 a.C. no Oriente Media, e o conclui com um texto brasileiro de meados do século vinte.
Finalizando só resta-me recomendar a leitura do livro não só para os interessados pela cultura medieval, mas para todos aqueles dedicados aos temas relacionados ao imaginário, ideologia e cultura popular/erudita. E como aprofunda o tema referente ao carnaval deve ser leitura obrigatória para todos interessados pela cultura brasileira, pois afinal, para muitos, o Brasil e o país do carnaval.
Marco Antonio de Oliveira Pais – Professor do Departamento de História da UFMG.
[DR]