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Frei Betto, biografia – FREIRE; SYDOW (VH)
FREIRE, Américo; SYDOW, Evanize. Frei Betto, biografia. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016. 448 p. BOHOSLAVSKY, Ernesto. Frei Betto, uma vida entre a Igreja e a política. Varia História. Belo Horizonte, v. 34, no. 66, Set./ Dez. 2018.
O recente livro de Freire e Sydow é uma contribuição extremamente valiosa para a compreensão de alguns fenômenos políticos do último meio século do Brasil. A biografia nos permite perceber a profunda interligação entre as atividades intelectuais e pastorais e as práticas políticas de Frei Betto, desde meados da década de 1960 até hoje. Frei Betto parece ter estado presente sempre que algo novo aconteceu na política brasileira: ele foi a ponte entre a Igreja paulistana e o líder guerrilheiro clandestino Carlos Marighella no final dos anos 60, tendo passado quatro anos na prisão durante a ditadura por causa dessas tarefas; participou das comunidades eclesiais de base em vários estados depois de sair da cadeia; morou em uma favela em Vitória; fez parte das greves dos metalúrgicos do ABC em 1980; posteriormente, permaneceu próximo ao Partido dos Trabalhadores (PT) e a Lula e, finalmente, acabou envolvido na execução do Programa ‘Fome Zero’ nos governos do PT. Enquanto fazia tudo isso, tornava-se uma das figuras intelectuais brasileiras mais lidas e reconhecidas fora do Brasil, juntamente com Leonardo Boff e Paulo Freire, com os quais teve inúmeros contatos e intercâmbios e compartilhava o pertencimento à galáxia do catolicismo brasileiro em diálogo com tradições marxistas e críticas.
A primeira parte da biografia é organizada de acordo com uma rota cronológica, que começa com referências aos avós do frade e termina com suas últimas iniciativas políticas e literárias na segunda década do século XXI. A segunda metade do livro, contém capítulos temáticos: sobre a participação na imprensa, sua produção literária, suas amizades e sua vida cotidiana atual. Uma interessante seleção de fotografias nos permite ver algumas das trajetórias e ligações de Betto dentro e fora do Brasil e dentro e fora da Igreja Católica. O trabalho baseia-se na consulta da ampla produção intelectual e política do biografado, cartas pessoais, documentação jornalística e jurídica e, claro, dezenas de testemunhos recolhidos no Brasil, Argentina, Cuba, França e Nicarágua, produzidos por homens e mulheres que tiveram ligações com o dominicano em suas numerosas iniciativas políticas, eclesiásticas e educacionais. Nesse sentido, o livro oferece pistas para uma reconstrução das redes editoriais, jornalísticas, políticas e religiosas (principalmente latino-americanas) nas quais participou Frei Betto desde finais dos anos 60.
Trata-se de um livro explicitamente favorável a Frei Betto: os entrevistados são unanimemente solidários, coincidentes na avaliação e nas memórias sobre o biografado. Isso impede que o leitor perceba as dissidências interpretativas que possam existir sobre Frei Betto, suas práticas políticas e seu nível de participação e envolvimento políticos (com a exceção do capítulo 20, que inclui as críticas e amarguras geradas por sua saída do primeiro governo Lula, em 2004, e a publicação do livro A mosca azul, em 2006). Essa impressão é confirmada pelo fato de que o prefácio do livro foi escrito por Fidel Castro, explicitamente amigo do frade: em 1985, como resultado de longas conversas gravadas em Havanna, Frei Betto publicou o livro Fidel e a Religião, que fazia parte da longa lista de seus esforços feitos para aproximar as posições teóricas e organizacionais do marxismo e do catolicismo (Betto, 1985). Talvez uma consulta a ocasionais detratores políticos, sindicais ou dentro da Igreja teria contribuído para detectar ou destacar algumas facetas ou avaliações mais críticas ou negativas sobre sua trajetória. A figura de Frei Betto torna-se neste livro, então, passível de leituras apologéticas. Em parte, isso é o resultado também da relevância do próprio biografado neste projeto editorial, no qual teve um envolvimento entusiasmado desde o início.
Os autores mostram vários elementos da vida econômica e social da família do frade que tiveram um papel crucial na trajetória de Frei Betto: um tio general do Exército e um pai juiz ajudaram a evitar a tortura física que sofreram outros clérigos sob o AI-5; pertencer a altos estratos profissionais da sociedade mineira foi fundamental para sua formação intelectual e para a posse de recursos retóricos que ajudaram construir uma carreira muito bem sucedida no mercado literário no Brasil. Vale considerar, por exemplo, que os próprios autores agradecem à agente literária de Betto (Freire; Sydow, 2016, p.405). Quantos autores da esquerda e frades têm um “agente literário”? Isto não é para apontar essas questões como se fossem estigmas, mas porque fatores como a estrutura da Igreja, do campo literário ou a distribuição desigual de bens simbólicos e materiais ao longo de linhas étnicas, de gênero e regionais no século XX no Brasil contribuem muito para uma compreensão mais precisa da impressionante carreira de Frei Betto. Isso ajudaria a compensar a importância que os autores atribuem a fatores mais individuais e contingentes, como as enormes virtudes pessoais do sujeito biografado.
Este livro será de enorme interesse para um público não especializado, interessado em conhecer os elementos centrais da evolução histórica do Brasil desde a ditadura até o presente. Aqueles que desejam conhecer mais a radicalização dos católicos nos anos 60 vão encontrar chaves sobre o rapidíssimo processo pelo qual muitos jovens passaram da Juventude Estudantil Católica para a resistência armada. Mas também vão achar pistas sobre os movimentos populares nos anos 70 e as ligações com a Teologia da Libertação e com projetos educativos radicais. Muitas das características da política durante o começo da Nova República nos anos 80 e da política pública dos governos do PT são mais bem compreendidas a partir desta biografia, que consegue mostrar que Frei Betto foi uma figura animada, inteligente e criativa, não escapando nunca ao engajamento em relação aos problemas de seu tempo.
Referências
FREIRE, Américo; SYDOW, Evanize. Frei Betto, biografia. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira: 2016. [ Links ]
BETTO, Frei. Fidel e a religião. São Paulo: Brasiliense, 1985. [ Links ]
Ernesto Bohoslavsky – Universidad Nacional de General Sarmiento, Oficina 5111, J. M. Gutiérrez 1150, (1613) Los Polvorines, Província de Buenos Aires, Argentina. ebohosla@ungs.edu.ar.
O passado que não passa: a sombra das ditaduras na Europa do Sul e na América Latina – COSTA PINTO, A.; MARTINHO (Topoi)
COSTA PINTO, António; MARTINHO, Francisco Carlos Palomanes. O passado que não passa: a sombra das ditaduras na Europa do Sul e na América Latina. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013. 336p. Resenha de: GUIMARÃES, Gabriel Fernandes Rocha. A democracia na penumbra. Topoi v.17 n.32 Rio de Janeiro Jan./June 2016.
Recentemente muito se tem falado nos círculos intelectuais e na grande mídia acerca do golpe militar de 1964 e de que forma ele moldou a política brasileira durante o regime implementado, e mesmo depois, já no período da chamada redemocratização, que tipo de herança política ele deixou, seja de caráter institucional ou ligado à cultura política nacional. Muito se tem especulado acerca deste período. Alguns afirmando que se tratou de um dos maiores, se não o maior, trauma político da história nacional, outros dizendo que foi o solapamento de uma jovem e incipiente democracia brasileira. Há ainda aqueles que falam do golpe como uma resposta a um crescente ganho de força dos grupos de ideologia comunista no Brasil, seja através de guerrilhas rurais, seja através da criação de quadros marxistas dentro das forças armadas, sobretudo no médio e baixo oficialatos.
Embora essas correntes analíticas estejam em debate desde a década de oitenta do século passado, foi nos últimos anos que a discussão se tornou mais acirrada. Então fica a pergunta: por que apenas em governos ou períodos específicos a busca pela “verdade” e pelo passado ganha maiores impulsos? Por que o passado é visto como alvo de uma averiguação mais profunda em certos contextos e em outros não? Por que em certos contextos se defende um maior silêncio em relação a passados ditatoriais sob o argumento de que não é bom para uma democracia nascente abrir velhas “feridas”, e em outros se argumenta que as “feridas” devem ser reabertas justamente em benefício da democracia? Por que em alguns casos os “regimes de transição” parecem remediar bastante os traumas políticos gerados por regimes autoritários (como na Grécia) e em outros se dá lugar a um silêncio que só será contestado muitos anos depois (como na Espanha)? É sobre esta problemática que O passado que não passa, livro organizado por Antônio Costa Pinto e Francisco Carlos Palomanes Martinho vai tratar analisando países sul-americanos com ênfase no Brasil e países da Europa do sul, colocando em foco Portugal, Espanha, Itália e Grécia.
Os diversos autores que escrevem no livro organizado por Costa Pinto e Martinho tentam mostrar como e por que surgem as “políticas do passado”, quais os grupos que as defendem, se elas vêm à tona durante a redemocratização, através dos “regimes de transição”, ou anos, ou mesmo décadas depois de fim dos regimes autoritários. Os países da Europa do sul, como Itália, Portugal, Espanha e Grécia trataram de formas bastante diferentes o seu passado, uma vez que o modo como lidaram com as principais lideranças dos regimes autoritários imediatamente à queda destes mesmos regimes foi muito diverso.
O regime fascista italiano teria caído no contexto de uma sangrenta guerra civil entre fascistas e partisans comunistas no norte italiano, além de uma invasão de forças norte-americanas e inglesas que avançou a partir do sul. Os saneamentos ligados a cargos políticos e burocráticos, protagonizados pela esquerda radical, fizeram com que 309 dos 420 senadores fossem afastados de seus cargos, assim como todos aqueles que ocupavam cargos nos níveis mais altos da administração pública. Os saneamentos selvagens que foram administrados pelos partisans junto ao desmantelamento do paraestado fascista foram uma das primeiras medidas tomadas pela esquerda radical enquanto o regime desmoronava. Estimou-se que entre doze e quinze mil supostos agentes do fascismo tenham sido fuzilados através de processos de justiça sumária. O Comitê de Liberação Nacional (CLN), durante a libertação e depois dela limitou-se e comprometeu-se a cumprir as ordens das autoridades aliadas, sendo que a defesa dos saneamentos selvagens e da condenação daqueles que deram suporte aos fascistas, após o término da segunda guerra, ficou a cargo, sobretudo da esquerda radical, o PCI (Partido Comunista Italiano), e na região mais ao norte, seu líder Palmiro Togliatti defendeu a necessidade do “sagrado ódio do povo” se manifestar contra seus antigos opressores. No sul, por outro lado, adotava-se uma posição mais conservadora, preferindo-se “esquecer” o passado fascista tendo em vista a necessidade de pôr fim aos conflitos fratricidas que desde o período da guerra assolavam a sociedade italiana. Os partidos de direita foram revitalizados após a guerra e o movimento Uomo Qualunque, (homem comum) que tanto havia se oposto aos saneamentos, assim como à CLN, conseguiu assegurar a reabilitação de muitos que haviam sido saneados.
O legado do regime fascista italiano persiste até os dias de hoje, de acordo com o artigo, através das disputas entre partidos de direita e de esquerda. Os primeiros defendendo a ideia de que os partidos de direita do pós-guerra impediram que o comunismo, uma força supostamente mais violenta que o fascismo, tomasse o poder na Itália, e os segundos colocando os partisans comunistas como os responsáveis pela derrocada do regime mais tirânico que seu país conheceu. Muitas vezes a esquerda italiana associa a direita de Berlusconi a uma retomada do fascismo na Itália, sendo que a memória do passado está bastante viva no presente político italiano.
Os portugueses, por sua vez, não desmantelaram estruturas paraestatais como os italianos, nem promoveram saneamentos selvagens tão violentos após o fim do regime autoritário em 1974 (estes ficaram restritos a algumas áreas do norte português). Os acertos de contas com o passado dirigiram-se, sobretudo, à PIDE, a polícia secreta do regime salazarista, que atuava tanto em Portugal quanto nas colônias africanas. Assim como na Itália, a demanda por justiça em relação a todos que, de alguma forma, colaboraram com o regime foi encabeçada pelos partidos colocados mais à esquerda do PS (Partido Socialista) no espectro político, no caso o PCP (Partido Comunista Português) e a UDP (União Democrática Popular), de inspiração maoista. A UDP, inclusive, defendia execuções sumárias, nos moldes dos partigiani italianos definidas por tribunais revolucionários populares, para quem tivesse apoiado o regime. No entanto, assim como o PCP, obtiveram pouco apoio popular.
Os saneamentos feitos no sistema burocrático e administrativo encontraram os mesmos problemas que na Itália, uma vez que provar definitivamente quem apoiava integralmente o regime ou não era muito difícil, e julgar todos os suspeitos gerava o risco de paralisia de toda a estrutura burocrática nacional. Apesar do forte apelo feito pelo PCP e pela UDP, dos saneamentos feitos dentro da PIDE e do caráter revolucionário da fratura política, o regime de transição português se caracterizou por uma posição relativamente moderada (pelo menos se compararmos com o caso italiano), no sentido de que as demandas comunistas-maoístas foram amenizadas por uma espécie de apatia de boa parte da sociedade portuguesa em relação a tais propostas.1 A maioria da sociedade lusitana se contentou com a prisão dos membros da PIDE como forma de acertar as contas com o antigo regime de Salazar e Marcello Caetano. A memória popular ligada ao regime do Estado Novo ficou muito vinculada à imagem de Marcello Caetano que, segundo os autores, teve a sua principal faceta, a de um grande intelectual, apagada da memória popular em função de momentos esporádicos de sua carreira, como a repressão à Capela do Rato ou as restrições às listas eleitorais de 1969 e 1973. Dois anos após a queda do regime, o que se viu foi um quase desaparecimento das políticas do passado. A vitória do PS em 1976 deu continuidade a este processo de esquecimento e de reconciliação frente a processos de caráter mais punitivo.
Já o caso espanhol aparece como um dos mais curiosos, uma vez que, mesmo com a violência e grande duração (36 anos) do regime de Franco, as políticas do passado e a busca pela verdade só vieram à tona já adentrado o novo século, tendo havido uma espécie de esquecimento que durou décadas até ser ativado pelo governo de Zapatero. Ao contrário do caso italiano, em que o regime de Mussolini caiu frente a uma violenta guerra civil, ou do caso português, que viu o regime ruir frente a um movimento revolucionário que se desenvolveu dentro das Forças Armadas em um contexto de guerra colonial, o regime franquista espanhol nasceu, se desenvolveu e morreu com Franco. O ditador faleceu de velho em sua cama em 1975, em uma conjuntura de pouco conflito político-militar, com a monarquia logo tomando as rédeas do processo de democratização.
De certa forma, as elites que conduziram a redemocratização insistiram em um argumento utilizado pelo próprio Franco de que os espanhóis seriam inaptos para viver em democracia sem recorrer à violência. Embora essas elites conduzissem o sistema rumo a uma democracia, este argumento foi utilizado no sentido de estabelecer rapidamente um discurso de reconciliação e evitar novos confrontos que pudessem vir à tona junto com a busca pelas raízes do governo franquistas. Isto se traduziu numa procura obsessiva pelo consenso, e um princípio indispensável durante o governo de transição. Desta maneira, o argumento de Franco foi utilizado de forma ex negativo como forma de superação do regime do próprio Franco.
A transição para a democracia foi, em alguma medida, baseada num desejo quase explícito de esquecer, ou mesmo silenciar as dimensões do passado. A Lei de Anistia de 1977 para crimes políticos, votada no Parlamento por todos os partidos, menos a ala de direita dos ex-franquistas, satisfez, sobretudo bascos e catalães, que haviam sofrido repressão direta do regime. Entretanto, essa lei protegia de ações judiciais também os perpetradores da ditadura. O referendo para Lei para a Reforma Política de 1976, que estabelecia a lei como princípio político e a soberania do povo através do sufrágio geral teve amplo apoio popular (77% votou pelo sim) e a maioria dos partidos políticos espanhóis optou pela moderação.
Os primeiros sinais da necessidade de pensar o passado vieram com as pensões destinadas a viúvas de militares republicanos mortos na guerra civil, e a reabertura de valas comuns em certos municípios, onde estariam enterrados membros da oposição assassinados pelo regime. A reabertura das valas foi uma iniciativa popular situada, sobretudo, em pequenos municípios, canalizadas por parlamentares recém-eleitos das câmaras municipais, mas as iniciativas de “desenterro” do próprio passado ficaram reduzidas a isso. Mesmo com o PSOE vencendo as eleições espanholas de 1982 e 1986, pouco se propôs para uma maior averiguação do passado ditatorial. Apenas com o PP (Partido Popular), um partido de direita chegando ao poder em 1996, começou-se realmente a tentar desvelar o passado franquista. A política do passado se fez incisivamente relevante no presente, assumindo um ponto central no discurso da esquerda a partir de 2000. O PSOE passou a associar a direita espanhola de forma geral com a ditadura franquista, de maneira a enquadrá-la como a revitalização de um passado sombrio, cabendo à esquerda a tarefa de barrar esta suposta ameaça. Desta forma, a averiguação do passado ditatorial está intrinsecamente ligada a um discurso partidário de plataformas eleitorais de esquerda como PSOE, IU (Izquierda Unida), ERC (Esquerra Republicana de Catalunya) e vivo no presente político espanhol, como no caso da ARMH (Associação para a Recuperação da Memória Histórica) fundada no ano 2000. De qualquer forma, os próprios autores concordam que a necessidade de recuperar a “verdade” acerca do passado autoritário na Espanha ter ocorrido apenas nestas datas específicas permanece uma questão a ser estudada mais minuciosamente.
No caso grego, curiosamente parece ter ocorrido justamente o contrário. O “governo dos coronéis” caiu em 1974, sendo que suas mais proeminentes lideranças foram presas e condenadas quase que imediatamente ao fim do regime. Isto parece ter, em alguma medida, saciado a necessidade de acerto de contas com o passado, visto que o tema da ditadura militar parece ter sido “apagada” da memória coletiva dos gregos. À queda do regime sucedeu o retorno do conservador Konstantinos Karamanlis ao poder, o mesmo que havia sido deposto em 1967 pelos militares. Quando da queda dos militares o partido mais à esquerda, o Partido Comunista da Grécia (EKK), curiosamente não foi quem colocou demandas mais radicais em relação ao que fazer com os administradores da ditadura. Quem assumiu esta posição foi o Partido Socialista Grego (PASOK). Isto se deve, segundo o autor, ao fato de muitos membros do EKK terem vivenciado a semidemocracia de antes da ditadura, onde partidos socialistas e comunistas eram proibidos de competir em eleições. Para os membros do EKK, o direito às eleições após o fim da ditadura já era um grande ganho e tinham receios do que poderia ocorrer caso colocassem demandas demasiadamente radicais, tendo em vista as perseguições que sofreram durante os governos conservadores de antes do regime dos coronéis. Os mais jovens membros do PASOK, não tendo tão fresca a memória acerca dos regimes conservadores, não hesitavam em exigir penas duríssimas para os responsáveis pela ditadura. Por causa desta questão geracional, os gregos inverteram a regra portuguesa, onde os comunistas haviam assumido um maior radicalismo e os socialistas uma maior moderação. Com a condenação à prisão perpétua de três dos principais membros dos círculos governantes, a necessidade de desenterrar o passado ficou no próprio passado, no caso grego.
Voltando nosso olhar para a América do Sul, o Brasil foi o maior alvo da atenção dos autores. De acordo com Palomanes Martinho, os silêncios acerca da ditadura no Brasil foram vários, incluídos aqueles em torno das iniciativas políticas institucionais e extrainstitucionais da esquerda antes do golpe e aquele em torno dos torturadores, que parece ocupar um lugar central nos atuais debates acerca do tema. A averiguação dos crimes cometidos pelo regime militar, no caso brasileiro, também teve, no início, iniciativas bastante tímidas. Elas se limitaram às buscas do frade franciscano Paulo Evaristo Arns e do pastor presbiteriano Jaime Wright, ainda durante o regime (entre 1979 e 1985) por meio de documentos confidenciais acerca do julgamento de 707 “subversivos” julgados pelo Superior Tribunal Militar (STM). No governo Collor, muito pouco se fez para aprofundar um anseio que já se desenvolvia em alguns setores da sociedade civil desde a década de 1980: acesso aos arquivos em busca da verdade acerca dos mortos e desaparecidos.
Foi no governo FHC que começaram medidas mais significativas em relação ao passado ditatorial. Em 1995 a Comissão de Familiares dos Mortos e Desaparecidos por Razões Políticas (CFMDRP) publicou o “Dossiê das mortes e desaparecimentos políticos a partir de 1964” e o governo respondeu apresentando um projeto de lei para reconhecer a morte dos 136 presos políticos e compensar as famílias dos mortos e dos torturados. O governo também assinalou o décimo sexto aniversário da Lei de Anistia, que liberou presos políticos e torturadores de qualquer forma de processo por parte do Estado. Ainda em 1995, a Lei das Vítimas de Assassinato e Desparecimento Político tornou-se o eixo da “justiça de transição” do governo FHC. Ela reconhecia a responsabilidade do Estado pela morte de 136 militantes políticos e estabelecia a criação da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos com o objetivo de analisar esses e outros casos pendentes, além de comprometer o governo com o pagamento de indenizações às famílias das vítimas.
O governo Lula deu continuidade a essas propostas, aprofundando-as através de uma nova Comissão de Anistia e do estabelecimento de uma Comissão Nacional da Verdade promovendo um conjunto de “políticas da memória”. O governo Lula representou o primeiro esforço oficial para contar a verdade desde os esforços de Arns nos anos 1980. Entretanto, deparou-se com as mesmas dificuldades encontradas durante o governo FHC, em particular com a resistência dos militares em abrir os arquivos e com a forte resistência contra a violação dos limites impostos pela Lei de Anistia. No governo Dilma Rousseff este processo se aprofundou realmente. A política do passado ganhou tonalidades mais gritantes. Ao passar a Lei da Comissão da Verdade, a presidente Dilma também sancionou a Lei de Acesso à Informação, que permitiria aos cidadãos entrar em contato com os documentos governamentais. Esta lei entrou em vigor em 2012 e garantiu acesso a documentos públicos de órgãos federais. Porém, a existência dos tribunais separados para a polícia militar continua gerando certo clima de impunidade e de continuidade de certos traços do regime ditatorial, permanecendo como um dos principais temas de conexão entre as políticas do passado e do presente.
Encontrar um eixo comum que caracterize todos os casos estudados se mostra bastante difícil, no que se refere ao momentum em que essas reivindicações são de fato postas em prática. A busca pela verdade e pelo acerto de contas pode vir ainda durante o regime, mas ganhar contornos mais incisivos apenas anos depois, como no Brasil. Pode também vir à tona apenas décadas depois como no caso espanhol. Segundo os autores, o passado pode sobreviver e influenciar na luta partidária do presente como na Itália, ou permanecer no passado como na Grécia e, em certa medida, Portugal.
Os gregos, inclusive, foram o caso mais claro de esquecimento do passado autoritário, talvez porque os principais responsáveis tenham imediatamente recebido penas duríssimas, satisfazendo assim o desejo de retaliação de certos setores sociais. O que podemos ver em todos os casos analisados é que são basicamente os setores de esquerda que reivindicam a luta pela memória. Tanto nos regimes de transição, onde a esquerda radical defende muitas vezes julgamentos populares para os suspeitos, quanto já no período democrático, onde a esquerda clama para si o papel de antagonista daqueles que supostamente ainda perpetuam certos traços das ditadura, ela em todos os casos analisados assume o papel de grande adversário do espírito autoritário que dominou seus países, mesmo em situações onde grande parte da população não esteja tão interessada na questão, como em Portugal. Isto se deve, muito provavelmente, ao fato de todos os regimes estudados no livro terem sido ditaduras de direita. Mas fica a pergunta: a esquerda, e sobretudo, a esquerda radical, entra em cena nesses momentos para lutar por um regime poliárquico no sentido de Robert Dahl, ou para alavancar um processo revolucionário extra, ou intraparlamentar? Seria interessante um aprofundamento deste estudo comparando os casos analisados com os países do leste europeu, seus regimes de transição, quais atores afrontaram os regimes autoritários e como o fizeram, e de que maneira o passado influencia na política do presente.
1Não se quer dizer que na Itália não houve de for ma alguma um desinteresse popular pela extrema esquerda. Queremos dizer apenas que a esquerda radical italiana conseguiu capitalizar o processo de saneamento do regime fascista por mais tempo e de forma mais contundente.
Gabriel Fernandes Rocha Guimarães – Doutorando em Sociologia pelo Iesp-Universidade do Estado do Rio de janeiro, Rio de Janeiro, RJ, Brasil. E-mail: gabrielfrg@bol.com.br.
1964: o golpe que derrubou um presidente, pôs fim ao regime democrático e instituiu a ditadura no Brasil | Ângela de Castro Gomes
Os historiadores Ângela de Castro Gomes e Jorge Ferreira trazem a publico um livro emblemático, 1964: o golpe que derrubou um presidente, pôs fim ao regime democrático e instituiu a ditadura no Brasil, no ano em que meio século se passou daquele 31 de março. Por meio de uma escrita que captura o leitor desde as primeiras páginas, rapidamente se é tomado por uma curiosidade crescente sobre o relato seguinte, o passo seguinte, a negociação, o cenário. Como a mirar um caleidoscópio, os eventos são narrados alternando temporalidades e espacialidades articulados a um grande domínio das informações bibliográficas e documentais. E não poderia ser diferente, a obra é resultado de uma vida de pesquisa e escritas de livros e artigos, de dois historiadores que muito produziram sobre essa temática e esse período. O enorme conhecimento sobre a documentação e a bibliografia relacionada à temática e ao período é elemento decisivo que potencializa essa capacidade de pensar a arquitetura da escrita em seus múltiplos vórtices de efeitos de verdade.
O livro narra um curto período da história política do Brasil: da crise da renúncia de Janio Quadros, em agosto de 1961, até o golpe civil militar de 1964. No entanto, as dimensões sociais, econômicas e culturais se entrelaçam à narrativa quer no detalhamento das lutas sindicais e de setores da sociedade civil, quer nas tensas negociações das estratégias econômicas, quer nas campanhas da UNE e de defensores de uma reforma educacional ampla, entre outros aspectos abordados. Leia Mais
João Goulart: uma biografia – FERREIRA (Tempo)
FERREIRA, Jorge. João Goulart: uma biografia. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011. 714 p. Resenha de: DELGADO, Lucília de Almeida Neves. João Goulart: do limbo à escrita da história. Tempo v.19 no.34 Niterói jan./jun. 2013.
A história e a memória, embora diferentes em suas formas de registro e manifestação, são férteis interlocutoras. Ambas, como bem acentua Jacques Le Goff, são dotadas de expressivos poderes, entre eles destacam-se, por exemplo, os de construção do esquecimento, da desqualificação e da interdição de registros. Por outro lado, a memória e a história também ganham poderosa expressão ao construírem versões positivas e elogiosas de eventos e pessoas. Quando assim acontece, essas características muitas vezes contribuem para alicerçar dinâmicas de mitificação de pessoas e processos sociais. As duas situações, desqualificação e mitificação, distorcem a realidade. Ao conhecimento histórico analítico e bem fundamentado, cabe romper com a cadeia nebulosa construída por essas estratégias referentes ao vivido e ao acontecido.
O livro João Goulart: uma biografia, do historiador Jorge Ferreira, alcança com esmero o objetivo de construir um conhecimento histórico sólido, posto que é interpretativo e bem fundamentado. Trata-se de um texto que inclui inúmeras contribuições para um melhor entendimento da história do Brasil no pós-1945. O mesmo teve como mérito especial romper com pressupostos e chavões que ilharam o ex-presidente Goulart, no âmbito de uma memória de esquecimento, de desqualificação ou de interdição, e trazê-lo para o campo da história do conhecimento.
Desde a tomada do poder pelos generais presidentes em 1964, a memória do presidente João Goulart tem frequentado a zona etérea e nebulosa do limbo. Uma pátina de esquecimento há muitos anos encobre sua trajetória, que, ao contrário do que está consolidado no senso comum, apesar de permeada por crises, foi rica e marcada por expressiva e destacada participação em cargos públicos.
Tal estratégia da construção de uma memória de esquecimento sobre o ex-presidente consolidou-se graças ao forte empenho dos adversários políticos que o depuseram. A mesma teve dois objetivos: justificar o próprio golpe de estado e construir uma possível legitimidade para o regime autoritário. Porém outros fatores também integram o caleidoscópio que a explica e a reproduz. Entre os mesmos, destaca-se a construção interpretativa produzida em especial nas décadas de 1970 e 1980 por intelectuais de renome, como Florestan Fernandes, os quais identificam em Jango uma forte fragilidade política e uma ambiguidade escorregadia quanto à sua opção ideológica à esquerda. Ainda, o silêncio recorrente de jornais e revistas, de expressiva circulação, adensou o caldo da desqualificação e do esquecimento sobre Goulart.
A biografia de Jango, escrita por de Jorge Ferreira, é baseada em sólida pesquisa documental e bibliográfica. São informações retiradas de livros, crônicas, documentos oficiais, artigos de revistas e jornais, manifestos, discursos, fotos, livros de memória, e articuladas em um texto que tem o mérito de ser denso, mas fluente. O autor ainda recorreu à realização de entrevistas que trouxeram grande contribuição e um toque de emoção à sua escrita. Por essas qualidades, o livro, redigido com clareza e cuidado estético, contribui de forma efetiva para a desconstrução da injustiça referente aos eventos que levaram à desqualificação do presidente Jango como um homem público. Desqualificação elaborada com esmero estratégico que não poupa o uso frequente de adjetivos negativos para identificar o ex-presidente, entre eles destacam-se expressões como demagogo, incompetente, irresponsável, boêmio e populista.
A combinação das estratégias de construção e reprodução do esquecimento e da difusão de críticas generalizadas sobre João Goulart teve como desdobramento um grande silêncio sobre sua trajetória política. Tal fato fica mais evidente quando compara-se o número de livros e artigos publicados sobre o líder com a profusão de publicações sobre Getúlio Vargas e Juscelino Kubitschek, que atuaram na mesma fase histórica em que Jango alcançou projeção nacional. Cabe lembrar que Goulart foi ministro do trabalho durante o Governo Vargas (quando ganhou projeção nacional), deputado federal pelo Rio Grande do Sul, vice-presidente de Juscelino Kubitschek e de Jânio Quadros e, por fim, presidente da República.
Jorge Ferreira, embora atento às ambiguidades que marcaram a trajetória de Jango, está na contramão da solidificada imagem negativa do ex-presidente. Sem cair na tentação de se apresentar como redentor da memória do presidente deposto em 1964, o autor escreveu um texto ponderado, sério e marcado por qualidades inerentes à construção do conhecimento histórico: pesquisa, registro dos fatos e interpretação do processo. Foram dez anos dedicados à investigação e redação de uma longa e agradável biografia. Dez anos de persistência e dedicação meticulosa a um objetivo que teve um resultado impressionante, combinando registro biográfico e história.
O livro percorre a trajetória de vida de João Goulart desde sua infância até sua morte, no exílio em 1976. Buscou, nas entranhas do Rio Grande do Sul e nas características familiares de Jango, elementos de formação da personalidade de um político, que, apesar de ter herdado sólida fortuna e de tê-la multiplicado com efetiva competência, sempre possuiu uma afinidade eletiva com os segmentos mais empobrecidos da população brasileira. Essa opção preferencial do ex-presidente — trabalhadores urbanos e rurais — jamais foi compreendida e aceita pelos setores mais conservadores da sociedade brasileira, que se articularam na aliança político-social atuante na deposição do ex-presidente. Esta aliança era formada pelos seguintes protagonistas: expressivos segmentos das forças armadas, partidos como a União Democrática Nacional, grandes proprietários de terra — que o viam como traidor, membros da igreja católica conservadora, governadores de estado — como Minas Gerais, Guanabara e São Paulo, empresas de capital externo que investiam no Brasil e organizações internacionais que se tornaram guardiãs do sistema capitalista no tempo da Guerra Fria.
Ferreira demonstrou que, desde jovem, Jango, como era conhecido em São Borja, sua cidade natal, tinha algumas qualidades merecedoras de importância e que foram melhor elaboradas ao longo de sua vida de homem público. Era paciente e exímio negociador, como demonstrou durante seu mandato de vice-presidente à época do governo de Kubitschek. Sobretudo, tinha vocação para a arte da política e, em especial, à formação de consensos. A essas virtudes, contudo, somaram-se defeitos, como os de muitas vezes buscar a construção da conciliação com adversários e frágeis apoiadores. Esses últimos não hesitaram em chamuscá-lo com o que atualmente é denominado de ‘fogo amigo’. Essa orientação do presidente, ou seja, buscar a conciliação mesmo quando os sinais indicavam sua inviabilidade, poderia ser um estilo e uma estratégia, mas acabou sendo identificada como vacilação, incapacidade decisória e demagogia populista.
O escritor também argumenta, de forma correta e bem fundamentada, que, diferentemente do que é disseminado, não se pode definir Jango como um populista sem méritos e sem tradição histórica. Ao contrário, identifica-o como o principal herdeiro de Vargas — embora dele se diferenciasse — e um dos maiores líderes não do populismo, mas do trabalhismo brasileiro. Para ele, a principal opção política de Goulart era o trabalhismo, desdobrado em nacionalismo, desenvolvimentismo, distributivismo social e intervencionismo estatal. Certamente, Jango estava sintonizado com expressivos políticos e intelectuais da sua época, os quais consideravam ser de responsabilidade do Estado a adoção e a administração de políticas públicas sociais e econômicas.
A biografia de Goulart coroa renovadora contribuição historiográfica de Ferreira a respeito do período entre 1945 a 1964. Seu principal investimento no que se refere à política desses anos situa-se no esforço para desconstruir a teoria do populismo. Discorda da conceituação dela decorrente, que identifica populismo como manipulação e demagogia. Portanto, diverge veementemente da utilização desse conceito como explicativo daquele período, pois entende que trabalhismo e nacional desenvolvimentismo são ideias mais consistentes e melhor explicativas de uma opção política, hegemônica à época e orientada por um projeto nacional caracterizado por definições precisas e objetivos estabelecidos. Entre as metas destacavam-se valorização do trabalho, distributivismo social, planejamento estatal, valorização dos investidores nacionais, política previdenciária sólida e reformismo social, com ênfase para a reforma agrária.
Sem se descuidar dos aspectos privados da trajetória do ex-presidente, que gostava dos prazeres da vida boêmia e do cotidiano na área rural, Jorge Ferreira também registrou, em três densos capítulos, a vida do líder no tempo do exílio. Foram anos de amargura, saudade e solidão. Nessa derradeira fase de sua vida, à Goulart só restou o prazer de cuidar de suas extensas criações de gado que, contudo, estavam, em grande parte, situadas na Argentina e no Uruguai e não em sua pátria.
Jango rumou para o exílio, pensando que o mesmo duraria pouco, tão logo os militares ascenderam ao poder em 1964. Seguiu acompanhado de sua mulher Maria Tereza e de seus filhos João Vicente e Denize. Sua opção foi a de não resistir ao golpe que o destituíra. Para muitos de seus aliados seu grande erro foi exatamente o de não ter reagido ao golpe. No entanto, Ferreira argumenta que o presidente preferiu o caminho do exílio, com toda sua imprevisibilidade, ao recurso da resistência, que, com grande probabilidade, mergulharia o Brasil em uma guerra civil. Essa mesma orientação o levou a concordar, embora contrariado, com a adoção do parlamentarismo, em 1961, quando da renúncia do presidente Jânio Quadros.
A decisão de não resistir ao Golpe de 1964 contrariou diferentes tendências das esquerdas brasileiras, que ganhavam envergadura no efervescente pré-1964. Ansiosas para chegarem ao poder, as esquerdas jamais perdoaram a opção de recuo de João Goulart quando as botas dos militares alcançaram o Palácio do Planalto, os marines americanos rondavam as costas brasileiras e o Congresso Nacional, apesar dos protestos de alguns deputados, declarou vaga a Presidência da República, mesmo estando Goulart em território nacional. Esqueceram-se de que Jango jamais foi um homem de conflito. Ao contrário, sempre escolheu a via da conciliação e da negociação, entendida por ele como inerente à democracia.
O mesmo João Goulart, que sempre fora conciliador e trabalhista, abraçou, com vigor, o radicalismo reformista no final do ano de 1963 e início de 1964. Após inúmeras tentativas, sem ressonância, de negociação com os setores mais conservadores da sociedade brasileira, recorreu ao apoio das esquerdas para sua sustentação no poder. Tal estratégia orientou a regulamentação da lei, que controlava a remessa de lucros por empresas de capital internacional instaladas no Brasil, e a adoção de medidas como a da reforma agrária, anunciada no comício de 13 de março de 1964.
Para Ferreira, a conspiração conservadora a depô-lo ganhou forma e envergadura a partir desse contexto. Portanto, concluímos que nesse ponto o autor carregou um pouco na tinta, pois em 1954, quando da crise política que levou ao suicídio de Getúlio Vargas, os acontecimentos de 1964 já haviam sido anunciados. As circunstâncias adversas do governo Jango e o movimento das peças no xadrez da história somente definiram o tempo exato desse desfecho.
Finalmente, vale ressaltar que, nesta alentada biografia, Ferreira esclareceu seu entendimento sobre qual foi o papel, no contexto do imediato pré-golpe de 1964, das divergentes forças políticas que atuavam naqueles anos. Considerou que a conjuntura foi marcada por marchas e contramarchas e por um forte radicalismo à direita e à esquerda. Esse processo radical dificultou uma avaliação melhor acurada dos possíveis desdobramentos decorrentes da extrema polarização conjuntural. Nesse quadro de crescente intransigência, também alimentada pelos acontecimentos da Guerra Fria, a vocação negociadora de Goulart não encontrou eco e não teve força persuasiva. À uma determinada altura dos acontecimentos, que define como o ano de 1963, não foi mais possível conter o avanço da oposição ou neutralizar a força da radicalização política à esquerda que se movimentava sob forte influência do brizolismo. Contudo, mesmo reafirmando a tese do crescente radicalismo, deixou registrado que os opositores do trabalhismo, do nacionalismo e do reformismo foram os protagonistas principais do golpe de 1964. Em outras palavras, os responsáveis pelo golpe situavam-se no campo da direita.
Uma biografia do porte e da qualidade de escrita do historiador Jorge Ferreira é leitura indispensável para quem quer conhecer melhor o tempo polêmico e efervescente do pré-1964 e seus terríveis desdobramentos, uma vez que o livro se estende até a morte de Goulart, em 1976, quando o presidente ainda estava no exílio. Entre os méritos do autor, que são muitos, destaca-se o da ousadia de se contrapor à história hegemônica e à construção do esquecimento coletivo sobre quem foi um protagonista vencido e não vencedor. Mais do que isso, o historiador demonstrou que Jango foi um homem público de grande envergadura, merecendo transitar, de forma definitiva, do limbo para as páginas da história.
Lucilia de Almeida Neves Delgado – Historiadora; Professora do Curso de Pós-Graduação em História da Universidade de Brasília (UnB); Professora do Programa de Pós Graduação em Direitos Humanos da UnB; Pesquisadora do Programa de História Oral da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG); autora, entre outros, do livro: PTB: do Getulismo ao Reformismo (1945-1964). 2 ed, São Paulo, LTr, 2011. E-mail: lucilianeves@terra.com.br.
Jerusalém colonial – VAINFAS (VH)
VAINFAS, Ronaldo. Jerusalém colonial. Judeus portugueses no Brasil holandês. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010, 376 p. Resenha de: FEITLER, Bruno. Varia História. Belo Horizonte, v. 28, no. 47, Jan./Jun. 2012.
Nesse livro, que é dos últimos resultados da sua importante produção historiográfica, Ronaldo Vainfas se mantém dentro da temática dos estudos sociorreligiosos, seguindo um veio que iniciou com seu Trópico dos pecados (1989). Vainfas estuda desde então fenômenos vários de desvios religiosos no mundo católico português. Esse prisma na verdade diz muitas vezes mais sobre as instituições e as culturas dominantes do que os estudos a elas diretamente dedicados. Essa história sociológica, voltada para as rupturas e as descontinuidades à la Foucault, e que Vainfas domina com uma extrema sensibilidade e familiaridade, é uma importante contribuição para a compreensão do Brasil colônia e também um estímulo metodológico para os historiadores brasileiros.
Em seu livro, Jerusalém colonial. Judeus portugueses no Brasil holandês, mais do que apenas estudar a estrutura e o funcionamento da comunidade sefaradita local (o que não deixa de fazer), Vainfas continua a tratar daqueles comportamentos e personagens heterodoxos. Contudo, não lhe interessa estudar ritos e cerimônias religiosas, mas sim o comportamento social e os dilemas identitários dos seus personagens, tratando assim de uma questão que não deixa de ser de uma extrema atualidade. Com todos os cuidados necessários, ele abre uma janela para as ligações existentes entre religião, cultura, origem geográfica e identidade no mundo português, no qual esses judeus estavam inseridos muitas vezes com extremo gosto, e a despeito da rejeição que sofriam de parte dos “bons” católicos.
Essa leitura sociológica da (curta) história da comunidade judaico-nordestina (1636-1654) tem assim origem no próprio percurso de Vainfas. Mas ela também deve muito à mais recente produção historiográfica sobre a diáspora sefaradita, como ele claramente frisa desde a sua introdução, sobretudo nos trabalhos de Yosef Kaplan e com seu conceito de “judeu-novo”.
Esses judeus, descendentes daqueles convertidos à força no Portugal de 1497, em seguida estigmatizados pelo epíteto de “cristãos-novos”, sofreriam, por sua origem judaica e por uma vivência católica por vezes secular, “dramas de consciência” (p. 15). Assim, Vainfas faz uma história geral da comunidade judaica do Recife de Israel (Kahal Kadosh Tsur Israel), cuidadosamente reconstituindo o percurso da comunidade mãe de Amsterdã, e retomando de José Antônio Gonsalves de Mello, sua principal inspiração, temas como a importância dos sefaraditas para a economia da empresa comercial da Companhia das Índias Ocidentais no Brasil, concentrando-se na questão identitária. Vainfas intencionalmente quis se manter livre de adotar qualquer conceituação mais ampla de um “espírito judaico” ou sefaradita, como fizeram muitos dos seus predecessores no estudo da diáspora judaico-portuguesa. Ele quer assim evitar reduzir a análise da religiosidade dessas pessoas a algo de unívoco, desviando-se do caminho seguido pelos inquisidores (“Melhor não imitá-los”, p.278), e pondo em causa autores mais recentes como Nathan Wachtel, que defendem a ideia de uma “essência judaica” generalizada dos cristãos-novos ibéricos (p.41). Nosso autor contudo sucumbe, ao meu ver, a uma certa generalização, ao afirmar que “a ambivalência dos judeus novos era, portanto, inerente à identidade cultural – e individual – da maioria deles” (p.75). Mas essa pequena nota não diminui em nada a importância do seu livro. Vainfas aplica ao caso brasileiro, no seu estilo instigante e inconfundível, as mais recentes interpretações historiográficas sobre o judaísmo sefaradita, que até agora permaneceram restritas a limitadas publicações acadêmicas.
Jerusalém colonial também traz novidades. Vainfas revê de modo surpreendente, entre outras questões (a origem recifense do judaísmo de Nova York, a figura do jesuíta Antônio Vieira, as divisões no seio da comunidade judaica, etc.), a personagem de Isaac de Castro Tartas. Preso na Bahia em nome da Inquisição em 1644, e queimado vivo em seguimento ao auto-da-fé lisboeta de 1647, ele foi transformado num verdadeiro mártir do judaísmo pela comunidade de Amsterdã. Vainfas desfaz o mito do erudito e corajoso rapazola que de Recife teria passado a Salvador para proselitizar cristãos-novos, mostrando a trágica indefinição identitária de Isaac.
O autor também consegue, retomando uma documentação de certo modo já surrada, encontrar novas e interessantes leituras da estrutura social da comunidade judaica do Pernambuco holandês. Vainfas mostra que Tsur Israel foi monopolizada por homens vindos da Europa. Ele fala primeiramente de “Uma nova diáspora. Diáspora colonial” para se referir à comunidade pernambucana, tendo em vista a sua intrínseca ligação com a empresa da Companhia das Índias Ocidentais (p.160-161). Mas em seguida mostra que essa colonialidade também pode ser flagrada na preponderância numérica que os “retornados” na Europa tinham sobre os que se tornaram judeus professos no Brasil. Para crescer, a comunidade dependeu sobretudo da imigração. Finalmente, essa preponderância europeia também era social. “Os judeus convertidos no Recife acabaram relegados à condição de judeus de segunda categoria. Judeus incertos. Judeus coloniais” (p.188). É sem dúvida isso que explica que alguns desses judeus-novos tenham escolhido ir para Amsterdã para se fazer circuncidar, em vez de utilizar os serviços dos mohelim locais.1
Já a escolha de uma estrela de seis pontas para ilustrar a capa do livro parece ser um anacronismo editorial, já que a chamada estrela de Davi só se tornou um símbolo especificamente judaico durante o século XVIII, a partir do mundo askenazi.2
Em todo caso, é o trabalho uma grande contribuição aos estudos dos judeus no Brasil, sobretudo em tempos de redefinições identitário-religiosas.
1 Lisboa. Arquivos Nacionais da Torre do Tombo (ANTT). Inquisição de Lisboa (IL). Processo 11562. Processo contra Pedro de Almeida.
2 Ver SCHOLEM, Gershom. L’étoile de David: histoire d’un symbole. In: Le messianisme juif… Paris, 1992, p.367-395. [ Links ]
Bruno Feitler – Departamento de História – Unifesp. Estrada do Caminho Velho, 333. 07252-312. Guarulhos, S.P. feitler@unifesp.br.
João Goulart – uma biografia – FERREIRA (EH)
FERREIRA, Jorge. João Goulart – uma biografia. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011. 713 p. Resenha de: NAPOLITANO, Marcos. João Goulart: um personagem em busca de uma história. Estudos Históricos, v.25 n.49 Rio de Janeiro Jan./June 2012.
João Goulart é um dos personagens mais polêmicos e menos estudados da história do Brasil. Dizer isso soa como um clichê, mas é inevitável. Mais que um interesse meramente biográfico, o estudo de sua vida e trajetória política é, necessariamente, um exercício de análise da história do Brasil. Qualquer estudo biográfico sobre o personagem é um convite à polêmica e exige do analista um jogo de aproximação e de distanciamento a um só tempo.
O livro do historiador Jorge Ferreira consegue construir o perfil de um líder com qualidades e defeitos, faturas e fracassos, que ao longo de sua curta trajetória na política brasileira – de pouco mais de 14 anos – mexeu profundamente com nossa modorrenta e conservadora vida política. Para tanto, Jorge Ferreira explicita de saída sua estratégia: analisar Jango para além dos dois dias finais de seu governo, aqueles que se plasmaram para sempre na história do biografado.
O livro resgata aspectos da vida privada e pública de Jango, traçando um perfil coerente de uma personalidade política que ajudou a formular um projeto para o Brasil, designado como trabalhismo reformista de corte nacional-popular (p. 137-140). Jango tornou-se, na memória e na história, o personagem síntese deste projeto fracassado, tragado por uma bem-sucedida conspiração direitista. Personagem que acabou visto como um arremedo de Vargas e Perón, sem a grandeza trágica ou a coragem política dos dois.
A biografia ganha especial importância, reposicionando criticamente algumas questões e matizando as visões negativas e moralistas sobre Jango, sua época – a “República de 46” – e seu governo. O distanciamento do autor, cioso do seu oficio de historiador, não se traduz em uma visão pretensamente neutra. O biografado Jango que se desenha nas 690 páginas de texto é um líder lúcido, ponderado, coerente. Mas também manipulador, contraditório e, em muitos (e fatais) momentos, hesitante. Nem vilão, nem herói, Jango é reconhecido como um político importante que esboçou um projeto e uma agenda de reformas profundas.
O texto é marcado pelo equilíbrio entre a biografia e o ensaio acadêmico de história política. Cabe aqui destacar o importante trabalho que Jorge Ferreira vem desenvolvendo há algum tempo na recuperação historiográfica da “República de 46”, apontando para a necessidade de outras pautas de pesquisa que deem conta do período, para além das categorias clássicas “populismo” e “desenvolvimentismo”.
Há uma impressionante quantidade de fontes primárias e secundárias, muito bem articuladas pelo autor: livros de memórias, crônicas, documentos oficiais, cartas, manifestos políticos, matérias de imprensa partidária e comercial. Mas não deixa de ser curioso que o biografado, nos momentos em que esteve no poder – como deputado, presidente do PTB, ministro do trabalho, vice-presidente ou presidente da República – pouco fale de si através das inúmeras fontes primárias citadas. Ao contrário, as fontes em primeira pessoa escritas por Jango surgem apenas no contexto do exílio, dando o tom dos dois últimos capítulos da biografia escrita por Jorge Ferreira. Nestas fontes, entretanto, predominam o gosto amargo da derrota e os balanços negativos de sua trajetória e legado, impedindo qualquer tipo de monumentalização histórica, sempre muito comum em biografias. Jango, em certo sentido, mergulhou no esquecimento ou no ostracismo, apesar do esforço de alguns poucos correligionários e historiadores em dar-lhe uma sentença mais justa no tribunal do tempo.
Nesta linha, Jorge Ferreira resgata um aspecto ainda pouco estudado da trajetória política de Jango: sua passagem pelo Ministério do Trabalho do segundo governo Vargas (capítulo 3). O detalhamento desta fase da vida política do futuro presidente é uma das grandes contribuições historiográficas do livro. No comando da pasta, Goulart mudou completamente o papel do Estado na negociação entre patrões e trabalhadores (urbanos) e, mesmo inclinando-se para o lado destes últimos, nunca abriu mão da estratégia de mediação e negociação de conflitos. As bases sociais e políticas ali constituídas deram-lhe força para esboçar um projeto reformista que, na verdade, foi muito mais uma agenda do que um projeto, abortada pelo golpe de 1964.
Ferreira recusa duas explicações clássicas sobre o golpe: a tese da “grande conspiração da direita”, bem como a tese do “colapso do populismo”. Ambas trabalham com a idéia de inexorabilidade do processo histórico. A primeira minimiza os erros políticos da esquerda ao destacar a sagacidade da direita, e a segunda vê o governo Jango apenas como um soluço final no grande terremoto estrutural que moveu a história, porque a lógica de acumulação do capital assim o quis. Há no livro uma percepção detalhada sobre as “marchas e contramarchas” do tempo histórico na direção do golpe de estado, evitando a inexorabilidade do evento que selou o destino do personagem e do seu tempo. Mas ao recusar estes paradigmas para explicar o golpe militar de 1964, Ferreira se aproximou de outro, que, a meu ver, mereceria mais exame crítico. Aqui me refiro à maneira como Jorge Ferreira utilizou o livro de Argelina Figueiredo, Democracia ou reformas (publicado no início dos anos 1990), e incorporou, em certo sentido, o paradigma do colapso da democracia como obra do radicalismo dos atores de esquerda e direita (p. 429). Fruto de uma excelente e acurada pesquisa empírica e dotado de coerência teórico-metodológica e plausibilidade argumentativa, o livro de Argelina consolidou a retomada da história política para compreender a crise política que desaguou no golpe militar de 1964. Entretanto, sua perspectiva de análise funcionalista parte do princípio de que as instituições políticas devem absorver e neutralizar os “interesses” e “conflitos” protagonizados pelos atores.
Mesmo se pautando pela tese do radicalismo generalizado, Jorge Ferreira deixa bem claro que o golpe foi da direita, evitando diluir as responsabilidades pelo conjunto de atores. Mas defende a tese de que o ambiente político criado pela radicalização das esquerdas (leia-se, a esquerda brizolista, sobretudo) inviabilizou a liderança janguista na condução de um projeto negociado de reformas e acabou fazendo com que o centro político fosse para a direita (p. 412, 429). Jorge Ferreira demonstra que a habilidade de negociador de João Goulart encontrou seu limite neste ponto. Mas como negociar reformas em um ambiente político e institucional conservador que transformou o lugar da negociação – o Congresso Nacional – em um bunker do antirreformismo?
Neste ponto, seria oportuno revisar o conteúdo histórico do pretenso “radicalismo” das esquerdas que teriam ajudado a construir o golpe da direita. Olhando mais de perto, a grande radicalização das esquerdas entre 1962 e 1964, bravatas retóricas à parte, era propor uma reforma agrária contra o latifúndio improdutivo, disciplinar a remessa de lucros para o exterior e apostar em um novo poder constituinte.
Ainda que mantenha certas perspectivas sobre a crise final do governo e sobre o golpe que poderiam ser mais problematizadas, Jorge Ferreira deu uma grande contribuição no sentido de reposicionar Jango criticamente na tessitura do tempo histórico sem tomá-lo como farsante ou herói mal compreendido. Esta é uma das grandes qualidades da obra, que, inclusive, valoriza a erudição na qual se apoia. João Goulart – uma biografia sem dúvida entrará para a galeria das biografias clássicas da história do Brasil. A partir dele, Jango deixa o território da memória (ou melhor, do esquecimento) para retornar à história.
Marcos Napolitano – Marcos Napolitano é doutor em História Social e livre-docente pela Universidade de São Paulo, onde leciona História do Brasil desde 2004 (napoli@usp.br)
Na trama das redes – FRAGOSO; GOUVÊA (VH)
FRAGOSO, João e GOUVÊA, M. F. (orgs.) Na trama das redes: política e negócio no império português, séculos XVI-XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010, 599p. Resenha de: ROIZ, Diogo da Silva. Varia História. Belo Horizonte, v. 27, no. 45, Jan. /Jun. 2011.
Em 2001, o livro O Antigo Regime nos trópicos, constituiu-se num conjunto de resultados inovadores, tanto quanto instigantes, sobre as peculiaridades da dinâmica imperial portuguesa. Entre suas principais constatações, encontravam-se: a) “a importância da dinâmica imperial constituída pelas conexões e interações de diferentes formas sociais, que iam desde a sociedade aristocrática reinol, passando pela escravidão americana, pelas hierarquias sociais africanas e pelas que configuravam o Estado da Índia”; b) a de visualizar as “discussões em voga acerca do processo de formação do Estado Moderno, por meio das quais se questionou o suposto caráter absolutista e/ou centralizado dos impérios ultramarinos português, britânico, dentre outros”; c) a de que “minhotos, açorianos e outros reinóis haviam chegado e se instalado nos trópicos, criando uma sociedade dita colonial, com um universo mental e cultural que lhes era próprio”, quer dizer, “as características de Antigo Regime com a sua concepção corporativa de sociedade”; d) e, enfim, “a compreensão de que tal concepção de mundo constituí-se em um dos pontos de partida desse processo de organização social, havendo ainda vários outros” (p.13-14). Assim, consideravam João Fragoso e Maria de Fátima Gouvêa, ao fazerem um rápido balanço daquele empreendimento, e demonstrarem sua contribuição para a consecução de Na trama das redes. Mesmo que não seja tão direta sua relação com o livro: Conquistadores e negociantes, de 2007, que perscrutou a história e a organização das elites do Antigo Regime nos trópicos, evidentemente, tal projeto contribuiu para o amadurecimento dos resultados que o leitor encontrará em Na trama das redes.
Neste novo livro coletivo, que em muitos pontos dá continuidade ao anterior, O Antigo Regime nos trópicos, há um avanço considerável sobre o tratamento dado a essas e a novas questões, assim como sobre as fontes, os grupos e os indivíduos. A reunião de 16 textos, distribuídos em quatro partes não foi casual. Ela constitui uma bem fundamentada proposta, articulada teórica e metodologicamente entre suas partes. Na primeira, Debates entrecruzados: estados modernos e impérios ultramarinos, encontram-se dois textos, de António Manuel Hespanha e o de Jack P. Greene. Na segunda, Redes e hierarquias sociais no império, há outros cinco, de Mafalda da Cunha, Maria de Fátima Gouvêa, Roquinaldo Ferreira, João Fragoso, e o de Ronaldo Vainfas. Na terceira, O império e seus centros, há mais quatro, de Nuno Monteiro, Maria Fernanda Bicalho, Júnia Furtado, e o de Francisco Cosentino. Na quarta e última parte, Povos e fronteiras imperiais, encontramse outros cinco textos, de Hebe Mattos, Antonio Carlos de Sampaio, Luís Frederico Antunes, Nauk de Jesus, e o de João José Reis.
Todos os trabalhos visam explorar as peculiaridades do Antigo Regime estabelecido nos trópicos, a partir da pormenorização das redes socioculturais e das tramas políticas e econômicas que as compuseram entre os séculos XVI e XVIII. Não por acaso, a “conquista e a organização da sociedade nos trópicos pelos portugueses foram presididas por conjuntos de valores e sistemas de regras vindas da Europa meridional: a concepção corporativa da sociedade” (p.15), amplamente transplantada para as Américas (Portuguesa, e também Hispânica). Daí a importância de se estudar indivíduos e grupos, que se estabeleceram nos trópicos, fazendo amplo uso dessas estratégias para constituírem suas redes sociais, políticas e econômicas, assim como seus desdobramentos culturais ao longo do tempo. Se tal questão foi comum no Antigo Regime, dado que o funcionamento corporativo da sociedade a viabilizava nos trópicos como os autores demonstram, apesar do ambiente favorável, a transplantação desses modelos de sociabilidade, não deixaram de despertar certas resistências, que não se limitaram aos nativos, o que os fez encontrarem respostas e tramas originais para a sua boa execução. E é detendo-se sobre alguns desses exemplos, um dos pontos altos da coletânea, que os ensaios demonstram de que maneira houve a trama de certas redes, vinculando os indivíduos, a projetos de cunho político, econômico, social e até cultural – por darem alguns dos principais contornos ao espaço público e privado, e que, por sua vez, organizariam determinadas formas de sociabilidades entre seus habitantes. Aí se justificaria o estudo de personagens, como: o capitão Manuel Pimenta Sampaio, João Soares (pardo), d. Luis da Cunha, Luis César de Meneses, Manuel Pimenta Tello, dentre outros, que firmaram suas relações sociais nos trópicos, em corporações que formariam tentáculos que se prolongariam no tempo, estabelecendo redes de sociabilidade, cuja função, entre outras coisas, estava em efetuar a manutenção das classes dirigentes nessas terras.
Para levarem a bom termo tal empreendimento, eles fizeram uso de termos como monarquia pluricontinental, que “é entendida como o produto resultante de uma série de mediações empreendidas por diversos grupos espalhados no interior do império” (p.17). Nela se encontraria o reino de Portugal, único a operacionalizar as tramas com os trópicos, e também estaria cerceado por uma só aristocracia e diversas conquistas. Pois, as ramificações dos governos no Novo Mundo, gerando autogovernos, em muitos casos, independentes a centralização metropolitana, “foram veiculadas nas práticas e vontades surgidas no âmbito das relações sociais daquelas mesmas localidades (…) produzidas pela interação de agentes sociais como potentados, escravos minas e crioulos, índios e pardos”. Contudo, mais “importante é perceber que tais práticas e costumes veiculados pelas instituições locais eram reconhecidos em termos do próprio princípio de autogoverno praticado pela monarquia portuguesa” (p.18). Nesse sentido, o “império resulta (…) do processo de fusão da concepção corporativa e da de pacto político, fundamentada na monarquia, e garantindo, por princípio, a autonomia do poder local”. É dentro dessas circunstâncias específicas, que a “monarquia pluricontinental se torna uma realidade graças à ação cotidiana de indivíduos que vivem espalhados pelo império em busca de oportunidades de acrescentamento social e material” (p.19).
Assim caminham os textos de António Hespanha e o de Jack Greene, ao procurarem demonstrar a especificidade do império português nos trópicos. Para o primeiro, este seria definido pela “justaposição institucional, pluralidade de modelos jurídicos, diversidade de limitações constitucionais do poder régio e o consequente caráter mutuamente negociado de vínculos políticos” (p.57), enquanto para o segundo, completando a argumentação do primeiro, para a obtenção do “consentimento e [d]a cooperação daquelas classes, os oficiais metropolitanos não tinham outra escolha a não ser negociar com eles sistemas de autoridades” (p.111), nos quais esse “processo de barganha, tão semelhante ao que caracterizou a formação do Estado nos primórdios da Europa moderna, produziu variações de governo indireto que ao mesmo tempo definiu fronteiras claras em relação ao poder central, reconheceu os direitos das localidades e das províncias a vários graus de autogoverno e assegurou que, em circunstâncias normais, as decisões metropolitanas que afetassem as periferias teriam de consultar ou respeitar interesses locais e províncias” (p.111-12).
A par dessas questões, e dos resultados que oferece de acordo com a ação e a forma de organização dos grupos e dos indivíduos no poder, o texto de Mafalda da Cunha perscruta como se conformaram certas redes sociais em torno dos recrutamentos de governantes no período das conquistas (entre 1580 e 1640), muito semelhante ao que fez Maria de Fátima Gouvêa ao estudar as redes governativas portuguesas, e a maneira como ocorreram as centralidades régias no mundo português (entre 1680 e 1730). Por sua vez, o texto de Roquinaldo Ferreira se deterá sobre as redes de comércio ilegal no mercado ultramarino português (de 1690 a 1750), enquanto João Fragoso irá questionar a forma pela qual se compunham as hierarquias sociais no Rio de Janeiro do século XVIII, por meio da investigação da trajetória do capitão Manuel Pimenta Sampaio. Com o objetivo de rastrearem os vários centros, em torno do império português, Nuno Monteiro reconstituirá a ‘tragédia dos Távoras’, por meio da análise da estrutura de parentesco, das redes de poder e as facções políticas na monarquia portuguesa do século XVIII. Maria Fernanda Bicalho o fará dando ensejo a interpretação das tramas políticas que se formaram em torno dos conselhos, secretários e juntas na administração da monarquia portuguesa e de seus domínios ultramarinos. Ao centrar sua análise na trajetória de dom Luis da Cunha, Júnia Furtado, objetivou vislumbrar a organização geopolítica do novo império luso-brasileiro.
Desnecessário se alongar nos exemplos que são explorados por outros ensaios, visto que eles próprios também fazem parte de uma trama bem articulada pelo conjunto dos textos. Portanto, ao se apoiarem nas sugestões de Barth, Grendi e Levi de que “todos os sistemas de normas são incoerentes, na medida em que estão em contínuo movimento” (p.16), que em seus ensaios os autores procuraram visualizar o impacto desse tipo de movimento contínuo na conformação das tramas políticas e econômicas, ao mesmo tempo formadoras de redes socioculturais e de seus desdobramentos no tempo, assim como de suas dissoluções e reformulações em formas metamorfoseadas, mas nem sempre totalmente novas, pois, alicerçadas sobre ramificações forjadas no passado, que manifestavam a ambição de manter certa continuidade no tempo.
Diogo da Silva Roiz – Doutorando em História pela UFPR, bolsista do CNPq. Professor da UEMS. diogosr@yahoo.com.br.