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Percorrendo o vazio: intelectuais e a construção da Argentina no século XIX | José Alves Freitas Neto
José Alves de Freitas Neto | Foto: Diego Nigro/ Anjo da História
O objetivo da presente resenha é abordar e discutir o mais recente livro do historiador José Alves de Freitas Neto, intitulado Percorrendo o vazio: intelectuais e a construção da Argentina no século XIX. Como resultado da tese de livre-docência do autor, a obra se destaca pela originalidade de repensar a dicotomia “civilização e/ou barbárie” utilizando a noção de “vazio”. O século XIX argentino foi marcado pelas tentativas de se constituir um projeto político para a nascente nação. Nesse sentido, para legitimar ou não esses projetos, discursos e ideias eram criados e propagados por diferentes grupos a fim de se afirmarem como representantes do progresso e da prosperidade, isto é, da civilização. A barbárie, por sua vez, simbolizava tudo aquilo – e também todos aqueles – que não contribuíam para o progresso e, por isso, não deveriam sequer existir. O apagamento de culturas era justificado pela necessidade de construir e manter uma suposta civilização. Uma das formas de se divulgar e legitimar os projetos de nação era as letras: como indica Jorge Myers (2008), o romantismo literário do século XIX contribuiu para a transformação do papel dos escritores latino-americanos em intérpretes das sociedades na quais estavam inseridos e profetas das nações emergentes.
Assim sendo, o ponto de partida da análise de Freitas Neto foi o incômodo com essas representações dualistas empregadas e atualizadas nas explicações da história argentina. Os objetivos do livro consistem, portanto, em estudar as obras do escritor Esteban Echeverría (1805-1851) – um dos expoentes da Geração de 1837 –, a circulação da revista La Moda (1837-1838) e questionar o discurso acerca do “vazio”, usado para silenciar projetos e ideais. A obra é formada por quatro capítulos e conta também com um apêndice dos conteúdos publicados em La Moda feito pelo autor. Importante ressaltar que o período estudado compreende os governos de Juan Manoel de Rosas (1829-1952), momento marcado pela perseguição e censura à oposição. Para a Geração de 1837, por exemplo, o rosismo era o representante da barbárie a ser combatida pelos portadores da civilização. Logo, as análises das obras de Esteban Echeverría, bem como o estudo de La Moda, se inserem no contexto dos anos rosistas e revelam como que as ideias de um grupo opositor foram construídas e divulgadas naquele período. Para Freitas Neto, as letras e a política estariam imbricadas de tal forma que a primeira legitimaria no plano das ideias aquilo que viria a acontecer historicamente. Leia Mais
Civilização, tronco de escravos | Maria Lacerda de Moura e Patrícia Lessa e Cláudia Maia
Maria Lacerda de Moura | Arte: Andreia Freire/Reprodução/Revista Cult
Chamamos de visionárias e dizemos que estavam à frente de seu tempo àquelas que, atentas às questões da sua época, teciam críticas que nos servem dezenas ou mesmo centenas de anos depois. Entretanto, trata-se, muitas vezes, de pessoas que souberam analisar tão bem o presente que nele captaram as centelhas que acendem outros fogos no futuro. Assim é a obra de Maria Lacerda de Moura (1887-1945) e é assim que recebemos a nova edição lançada pela editora Entremares da obra Civilização, Tronco de Escravos, organizada pelas pesquisadoras e professoras Patrícia Lessa e Cláudia Maia, ambas historiadoras com amplas pesquisas relacionadas às lutas das mulheres e com trabalhos já desenvolvidos sobre a anarquista brasileira.
A editora Entremares, cuja trajetória se iniciou no ano de 2017, não é uma editora que circula em grandes livrarias, e tem feito um ótimo trabalho de resgate de obras do passado ao passo que também traz publicações recentes de autores libertários. Civilização, tronco de escravos é a segunda obra de Maria Lacerda de Moura lançada pela editora, que também já publicou uma nova edição de Fascismo: filho dileto da Igreja e do Capital (2018) e recentemente lançou a obra Amor & Libertação em Maria Lacerda de Moura (2020), de Patrícia Lessa. Civilização… integra a Coleção Astrolábio da editora, que tem como objetivo trazer a filosofia e o pensamento crítico como instrumentos para navegar na busca de “outros olhares, outra moral, outros horizontes”. Leia Mais
The Fall of Rome and the end of civilization | Bryan Ward-Perkins
O Império Romano caiu? A pergunta, feita para uma pessoa educada que não fosse ligada à área de História, receberia, hoje, um inequívoco “sim”, talvez mesmo um “mas é claro!”. Não apenas isso, mas a queda do Império Romano teria nítidas implicações catastróficas: seria a vitória do barbarismo sobre a civilização, que lançaria um mundo inteiro em uma Idade das Trevas.
Provavelmente, essa pessoa educada acabaria por se surpreender ao saber de um dos momentos historiográficos mais significativos das últimas décadas do século XX, a “revolução da Antiguidade Tardia”, detonada pela obra do historiador irlandês Peter Brown, que abandonou totalmente a “visão negra” do colapso da civilização romana durante o século V (o termo “Antiguidade Tardia” designa, grosso modo, um período histórico que vai de c. 250 até c. 800). Para Brown e seus seguidores, que operam em âmbito quase que exclusivamente anglo-saxão, a Antiguidade Tardia não é uma “Idade das Trevas”, mas sim uma época de novos, interessantes e criativos começos – do cristianismo, do judaísmo rabínico, do islamismo, do Império Bizantino, do reino dos Francos, da historiografia eclesiástica.
A nossa pessoa educada surpreenderia- se ainda mais com o trabalho de outros historiadores, como o canadense Walter Goffart. André Piganiol, historiador francês, escreveria, pouco depois da Segunda Guerra Mundial, sobre a queda do Império Romano: “A civilização romana não morreu de forma natural. Foi assassinada” (p. 173). Goffart, em 1980: “o que nós chamamos de „queda do Império Romano‟ foi um experimento imaginativo que saiu um pouco dos eixos‟ (p. 9). Dito de outra forma: os invasores e conquistadores de Roma não foram assassinos de uma civilização, mas – tirando um ou outro episódio lamentável – foram cooptados pelo sistema imperial romano, que preservaram na medida do possível.
Ninguém discute a importância do fenômeno historiográfico da Antiguidade Tardia, nem a competência de Peter Brown. Mas a ótica proposta por ele para a interpretação deste período pode ser questionada, e assim o é, embora apenas em um período recente tais críticas sejam mais evidentes – e tais críticas acabam por revelar um certo mal-estar de alguns historiadores que participaram de tal movimento, sob uma certa ótica (no entanto, cabe ressaltar que a obra de Goffart não recebeu a aceitação que a de Brown teve).
Um marco tão bom quanto qualquer outro para designar o momento em que o “paradigma da Antiguidade Tardia” foi questionado de maneira decisiva é o lançamento do premiado livro de Bryan Ward-Perkins em 2005: “A Queda de Roma e o fim da civilização”, que será tema da presente resenha.
Ward-Perkins é um arqueólogo, especializado na história urbana da Itália a partir do século IV até a ascensão de Carlos Magno. Crescendo em Roma (seu pai, John Ward-Perkins, também arqueólogo, era diretor da Escola Britânica de Roma), observava os impressionantes feitos técnicos da civilização imperial, feitos que seriam impossíveis de ser imitados por séculos a fio, graças a uma ruptura econômica e social brutal. Ele é, segundo suas próprias palavras, “alguém que está convencido que a vinda dos povos germânicos foi deveras desagradável para a população romana, e que os efeitos a longo prazo da dissolução do Império foram dramáticos” (p. 10.). Neste livro, ele pretende comprovar a justeza de sua visão.
O livro se divide em duas partes: na primeira (composta por três capítulos), “a queda de Roma”, o autor elabora uma pequena história narrativa das invasões bárbaras (Por “bárbaros”, designa-se aqui os povos germânicos, sem conotação de valor). dos séculos IV e V; na segunda (composta por quatro), “o fim de uma civilização”, Ward-Perkins elenca evidências materiais para comprovar o terremoto econômico e social que o fim político do Império Romano causou.
De certa forma, na primeira parte o autor viaja por mares já navegados – aliás, navegados à exaustão, como ele não deixa de ressaltar, mencionando a lista, elaborada por A. Demandt em 1984, de 210 motivos para a queda do Império Romano propostos através dos séculos (aliás, divertidíssima: entre os motivos, encontram-se “invasões bárbaras” e “declínio econômico”, mas também “feminismo”, “capitalismo”, “comunismo”, “prostituição” e “neurose cultural”). Na verdade, Ward-Perkins pouco traz de inovador aqui. A equivalência material dos exércitos germânicos e romanos, a série de guerras civis que enfraqueceu, de maneira decisiva, o Império Romano do Ocidente, as invasões bárbaras, a resistência e sobrevivência do Império Romano do Oriente, as revoltas camponesas ocorridas no norte da Gália no começo do século V: todos são temas de pesquisa bastante recorrentes, e que foram tratados de maneira mais extensa e aprofundada em outros contextos.
Contudo, a primeira parte é necessária, posto que, na segunda parte, Ward-Perkins trata dos resultados da queda política do Império Romano no Ocidente, que para ele são catastróficos. O tom aqui passa a ser marcadamente polêmico: “Atualmente, está profundamente fora de moda afirmar que qualquer coisa parecida a uma ‘crise’ ou ‘declínio’ ocorreu no final do Império Romano, que dirá dizer que uma ‘civilização’ entrou em colapso e seguiu-se uma ‘idade das trevas’. A nova ortodoxia é que o mundo romano, tanto no Oriente quanto no Ocidente, foi lentamente transformado, de uma forma essencialmente indolor” (p. 87).
Para se contrapor a esta ortodoxia, Ward-Perkins apresenta um rico conjunto de fontes materiais do período, que iluminam cantos inesperados da sociedade romana. O principal conjunto de fontes com que Ward-Perkins trabalha é a cerâmica, por uma razão bastante pragmática: os potes sobrevivem em grande quantidade, relativamente intactos, e mesmo fragmentos podem apresentar uma quantidade de dados que permitem ao estudioso chegar a conclusões bastante sofisticadas sobre a sociedade que criou tal artefato.
Comparando a cerâmica da Inglaterra romana com a da Inglaterra anglo-saxã (admitidamente um caso extremo, tendo em vista que tal província se situava na periferia do mundo econômico romano, centrado no Mediterrâneo), o resultado é bastante surpreendente: a cerâmica romana é de alta qualidade, estandardizada, produzida em enorme quantidade (quantidade essa que só vai ser superada no final da Idade Média), tendo centros produtores em todas as provinciais imperiais e, principalmente, mesmo o mais miserável camponês tinha acesso a estes potes. No começo do século sete, um pequeno lorde anglo-saxão foi enterrado em Sutton Hoo, em meio a todas as suas riquezas. O conjunto é bastante extraordinário, mas um achado é bastante banal, tanto que pouco atrai atenção: uma garrafa de cerâmica, de alta qualidade, importada do continente. A simples existência dessa garrafa traz duas implicações bastante graves: 1) Uma cerâmica de alta qualidade, artigo comum na época romana, tornara-se um artefato tão precioso que acompanhava o seu dono para o túmulo; 2) A Inglaterra anglo-saxã não possuía um centro de produção de cerâmica sofisticada no século VII.
Tal colapso econômico pode ser medido, segundo o autor, não apenas pelo impacto sofrido pelos homens, mas – de forma tão divertida quanto significativa – pelas consequências enfrentadas pelas vacas. O colapso econômico na Inglaterra, derivado do colapso político, também causou prejuízos para a população bovina da província. A partir de ossos de vaca encontrados em sítios da Inglaterra pré-romana, romana e pós-romana, Ward-Perkins verifica que as vacas do primeiro período tinham uma altura média de 1,15 m, do segundo de 1,20 m e do terceiro 1,12 m; o que aconteceu depois da queda do Império Romano, ao menos na Inglaterra, não foi uma mera recessão, mas uma verdadeira regressão a um estado econômico mais precário até do que o existente antes da conquista romana.
Culturalmente, o impacto não foi menor. A antiga Catedral de São Pedro de Roma, erguida no séc. IV, tinha mais de 10.000 metros quadrados de área; no século VI, a S. Agnese fuori-le-mura tinha apenas 2.500 metros quadrados (Deus possuía acomodamentos notavelmente mais espartanos depois do fim do Império Romano do Ocidente). Diversos objetos encontrados em vários sítios arqueológicos demonstram, juntamente com os inúmeros grafites de Pompéia – amiúde pornográficos – que a população romana era, em grande parte, alfabetizada; pedras de catapulta recuperadas em Perugia, local de um cerco na época das guerras civis de Augusto e Marco Antônio, são repletas de mensagens curtas elaboradas por várias mãos, na esperança de não apenas esmagar a cabeça dos oponentes, como também desmoralizá-los. O exemplo mais pornográfico, citado por Ward-Perkins, é de um onde está escrito “Lúcio Antônio [líder da guarnição de Perugia], seu careca, e Fúlvia [esposa de Marco Antônio e presente no cerco], mostrem-nos seus traseiros” (p. 158). Esta atitude implica que um número significativo de soldados, e não apenas Lucio Antônio e Fúlvia, eram capazes de ler tal educada missiva, e que o conhecimento da escrita era suficientemente difundido na sociedade romana que acabava se tornando banal. Comparar-se-á tal situação com a educação no século VI: a maioria dos soberanos dos primórdios da Idade Média, incluindo o próprio Carlos Magno, eram totalmente iletrados, que se dirá do grosso da população (p. 166-167).
Vacas esfomeadas, soberanos analfabetos, apetrechos miseráveis, igrejas apertadas: tal compêndio de evidências permite a Ward-Perkins afirmar, tranqüilamente, que o final do Império Romano trouxe consigo o final de uma civilização, tal qual Ward-Perkins concebe o termo, isto é, “sociedades complexas e o que elas produzem (p. 167.)”.
Segue-se um capítulo de discussão historiográfica, na qual Ward-Perkins dialoga com a escola da Antiguidade Tardia. Ward-Perkins constata as duas principais características desta escola: uma nítida preferência pela abordagem do oriente do mundo romano (incluindo-se aí o Império Persa e as sociedades do Cáucaso e da Arábia) e uma preocupação central com o fato religioso da sociedade. Embora o autor veja importantes conquistas provindas desse movimento, ele manifesta uma preocupação que tal foco acabe distorcendo a visão que temos da sociedade romana nos séculos IV-VI de uma forma semelhante à que acabava impondo um declínio econômico às províncias orientais do Império, mas com sinal trocado: agora, o período seria de um crescimento social e cultural em todas as regiões imperiais, o que não é o caso. Da mesma forma, ele manifesta uma preocupação com os rumos que a historiografia da Antiguidade Tardia acaba tomando: no recente Guia da Antiguidade Tardia, Ward-Perkins procurou, em vão, por um verbete sobre o “prefeito pretoriano”, o mais alto posto civil do Império Romano nesse período, mas não achou nada entre “pornografia” e “reza (prayer, no original)”.
Ward-Perkins conclui seu livro defendendo o direito do historiador de usar termos difíceis, como “civilização” e “declínio” – cabe lembrar aqui que os historiadores brasileiros que estudam esse período não precisam fazer uma defesa desse direito: Norma Musco Mendes escreveu uma obra intitulada “Sistema político do Império Romano do Ocidente: um modelo de colapso”. O autor levanta a hipótese que a não-utilização do termo “declínio” seja por um receio de acabar realizando um julgamento moral, mas é possível fazer a objeção de que a palavra “declínio” não necessariamente implica uma opinião quase que metafísica acerca de uma dada sociedade (coisa que não acontece com o termo “decadência”).
Com essa obra, Ward-Perkins realizou algo muito importante: desafiando uma nova ortodoxia acadêmica, abre novos caminhos de pesquisa e faz rever conceitos arraigados no ambiente universitário. Tão polêmico quanto valioso, é uma obra-prima.
Gabriel Requia Gabbardo – Mestrando em História da UFRGS. E-mail: gabrielgabbardo@hotmail.com.
WARD-PERKINS, Bryan. The Fall of Rome and the end of civilization. Oxford: Oxford University Press, 2005. Resenha de: GABBARDO, Gabriel Requia. Aedos. Porto Alegre, v.2, n.5, p. 141- 145, jul. / dez., 2009.
Ciência/ civilização e império nos trópicos | Alda Heizer
O desenvolvimento das práticas científicas e sua consolidação em museus e instituições de pesquisa, e ainda a criação de redes de cientistas e mecanismos de intercâmbio e divulgação, constituem uma parte fascinante da história do século XIX brasileiro, à espera de ser contada. O fascínio, seja para o historiador ou para o leigo, está na complexa teia de relações que as ciências ali estabelecem com a história social e econômica, com o desenvolvimento das artes e das letras, e também com os meandros políticos e culturais da nação em formação. Não eram apenas as ciências que se estruturavam nos trópicos, mas o próprio país, o que torna o campo de estudo mais intrincado e, por isso mesmo, mais instigante. Dois são os motivos básicos para que essa história não esteja de todo contada: a história social e material do nosso século XIX — ponto de partida para os historiadores das ciências — ainda possui grandes lacunas; e a formação de uma cultura histórica das ciências é fato recente entre nós. Assim, os historiadores das ciências que se debruçam sobre o Império brasileiro acabam desenvolvendo simultaneamente duas frentes de trabalho. Talvez pela necessidade mesma desse múltiplo embate, esses historiadores especializados estão entre os que mais têm contribuído para uma reavaliação global do tempo do Império.
Nada mais oportuno, portanto, do que a publicação do volume Ciência, civilização e império nos trópicos, organizado por Alda Heizer, pesquisadora do Museu de Astronomia e Ciências Afins (MAST/MCT), e Antônio Augusto Passos Videira, professor de epistemologia e história da ciência na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), a partir das conferências apresentadas no colóquio Ciência, Civilização e Império nos Trópicos, que teve lugar no Rio Janeiro, em 7 e 8 de novembro de 2000, sob a direção do MAST/MCT e da UERJ, com patrocínio da FAPERJ. Leia Mais
Razão e irracionalidade, civilização e barbárie – CARPENTIER
CARPENTIER, Alejo. Razão e irracionalidade, civilização e barbárie. Rio de Janeiro: Marco Zero, 1984. Resenha de: LUKÁCS JÚNIOR, Estevão. Projeto História, São Paulo, v.4, 1985.
Estevão Lukács Júnior – Pós-graduando em História PUC-SP.
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