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O mais natural dos regimes Espinosa e a Democracia – AURÉLIO (CE)
Aurélio, D. P. (2014). O mais natural dos regimes. Espinosa e a Democracia. Lisboa: Temas e Debates/Círculo de Leitores. Resenha de: BRAGA, Luiz Carlos Montans. Uma tese radical: Espinosa e a Democracia. Cadernos Espinosanos, São Paulo, n.40, jan./jun., 2019
O termo radical, tal como ética, democracia, política, e tantos outros, pelo excesso de uso e vulgarização demasiada, ao ser trazido à discussão, merece ser precisado, para que, em meio ao caos semântico, inimigo maior da filosofia, signifique algo claro e distinto. De fato, certo senso comum associa a palavra radical àquele que é fundamentalista em algo; em geral, o indivíduo contrário à boa ordem social, aos bons costumes. Porém, o que a expressão deve significar nesta resenha tem a ver com seu sentido etimológico. Ou seja, radical é o que vai à raiz, ao fundamento.
E por que a tese espinosana acerca da democracia, tema protagonista do livro ora resenhado, é radical? Porque ousa ir à raiz ontológica da política, como o belo ensaio de Diogo Pires Aurélio mostra com cuidado demandado por uma filosofia que, durante aproximadamente três séculos, esteve sob a sombra de uma imagem equivocada que dela se produziu. De panteísta que nega a liberdade do homem a pensador maior da política e do direito – em tempos recentes –, o caminho das teses e textos espinosanos é um labirinto cujas primeiras saídas foram encontradas pelos estudos fundamentais de Antonio Negri (1998) 1 e Alexandre Ma – theron (1988) 2, os quais foram aprofundados por outros comentadores de peso, posteriormente, entre os quais, em terras brasileiras, Marilena Chaui (1999, 2003, 2016). Aurélio, é preciso salientar, compõe esta linhagem.
Uma, entre outras muitas, imagem equivocada que sombreou a compreensão das teses espinosanas está condensada no influente verbete Spinoza, de autoria de Pierre Bayle (1696). No verbete, as teses espinosanas são descritas como as de um panteísta e ateu de sistema, filosofia diabólica precisamente por ser de difícil refutação, dada sua costura com as linhas de aço da geometria. A tradição posterior, raciocinando a partir de premissas exteriores às da filosofia espinosana, só poderia, em uma filosofia em que tudo é necessário, encontrar absurdos e contradições insolúveis. De fato, se há apenas uma substância – Deus ou a natureza –, na qual os homens são modos finitos, isto é, intensidades de potência expressas pela substância em sua causalidade imanente e necessária, onde encontrar a liberdade do homem? Em que fissura da causalidade da substância haveria espaço para a ação livre, para o campo da ética e da política? Pois um dos paradoxos quase insolúveis que a tradição de leituras exponenciaria aos comentadores até muito recentemente 3 seria exatamente este: de que fio puxar a ética e a política em uma filosofia da necessidade? Em uma palavra: se tudo é determinado, resta saber qual a liberdade possível. Ou, de outro ponto de vista, como passar do infinito positivo da substância eterna aos modos finitos das existências dos homens sem compreender estes últimos como meros epifenômenos de Deus? Estas imagens acerca do autor influenciaram, por exemplo, Voltaire, passando por Hegel e, em paragens brasileiras, chegaram a Machado de Assis (2009, p. 242) em seu poema dedicado a Espinosa – e tiveram ainda fôlego largo durante o século 20. Quanto a Machado de Assis, o Espinosa que tinha em mente seria, eis uma hipótese, o do verbete de Bayle, a saber, o panteísta.
O que o belo ensaio de um dos mais eruditos e eminentes estudiosos contemporâneos de Espinosa mostra é precisamente a ligação radical entre ontologia e política. Daí, talvez, a importância maior de Espinosa em tempos opacos como os que se desenham. Se a ciência política de corte formal não diz muito sobre a política atual, talvez seja porque não tenha lentes para tanto. E Espinosa bem pode ser, tantos séculos depois, se bem desvendado e comentado, uma dessas lentes. Permite, por exemplo, para ir ao título do ensaio que ora se resenha, que se possa dizer, acerca da democracia, que não é o “menos mau dos regimes”, mas “o mais natural” (Aurélio, 2014, p. 9). Mudança aparentemente banal, mas que traz à cena algo esquecido das discussões políticas que mais têm mídia, a saber, a natureza humana. Espinosa, pela pena de Aurélio, é trazido à cena para que mostre exatamente sua inovação fundamental no campo da filosofia política, isto é, declarar, a partir de um ponto de visto ontológico, o encaixe preciso entre a natureza humana e este regime político, tão celebrado nos belos discursos de retórica vazia quanto aviltado em seu exercício. A democracia que se proclama como tal em discursos pomposos, com seus formalismos vazios e malandros – pois fintam o conceito para lhe retirar o que tem de substantivo –, não ousa ser radical como a proposta por Espinosa. Não ousa ser ontologicamente fundada.
O livro é uma reunião de ensaios – uns já publicados outros agora republicados com acréscimos e, ainda, alguns inéditos, apresentados, até o momento, apenas sob a forma de conferências –, os quais formam, segundo o autor, não um conjunto esparso de textos, mas um todo coerente, alinhavado (Aurélio, 2014, p. 11). São três as partes do livro, somadas a uma “Introdução”, cujo título aguça a curiosidade: Espinosa, Marx e a democracia . O que haveria de comum entre Marx e Espinosa? Muita coisa, como o leitor poderá ver, e das quais esta resenha adianta uma apenas: a tese de Marx, que ecoa ideias espinosanas, e projeta a democracia “para além da tradicional questão dos regimes políticos” (Aurélio, 2014, p. 34), para afirmá-la como “horizonte de refundação permanente do demos, quer fazendo alastrar o princípio da soberania popular a todas as esferas da sociedade, quer resistindo à tendência do poder para se impor como fecho absoluto e se tomar pela totalidade social” (Aurélio, 2014, p. 34). Eis a iguaria fina que o autor serve ao leitor como entrada ao livro. A primeira das três partes que seguem, por sua vez, é baseada na “Introdução” de Aurélio ao Tratado teológico-político (TTP), por ele traduzido e publicado no Brasil pela editora Martins Fontes (2003). Intitula-se TTP : Genealogia do Poder . Nesta parte, os temas próprios ao TTP são trabalhados com a minúcia de quem estuda Espinosa há muitos anos. Ou seja, a questão da profecia, das leis, do fundamento do Estado, do direito natural e sua permanência no estado civil, da liberdade de expressão como um dos pilares de uma república bem constituída, etc. A segunda parte tem como título “O império das paixões”, composta por Capítulos que tratam de temas especificamente políticos em Espinosa. Uma das teses de Aurélio nesta parte, muito recente e atual, analisada em filigrana, é a da relação imbricada entre afetos e política. A terceira e última parte, nomeada “ TP : Da multidão ao poder”, sistematiza esses temas políticos e lhes dá acabamento. Tal parte foi originalmente publicada como “Introdução”, escrita por Aurélio, à sua tradução do Tratado político (TP) 4, no Brasil publicada também pela editora Martins Fontes (Espinosa, 2009).
O livro traz como questão mais aguda a democracia em Espinosa, isto é, a inovadora visão do filósofo acerca do tema. Curiosamente, ainda que já explícito no TTP como o mais natural dos regimes, por ser aquele que mais satisfaz a natureza humana de potência para perseverar no ser, não pôde ser desdobrado no TP, Capítulo XI, dedicado precisamente à democracia e não concluído pelo autor em razão de sua morte. A questão a democracia em Espinosa, na verdade, ainda é um problema a ser investigado pelos comentadores. Tal problema é levantado por Aurélio no momento em que indaga como seria este regime quanto às instituições. É possível dizer que o essencial da democracia já estaria nos demais textos de Espinosa? Uma passagem do “Prefácio” do livro dá pistas do projeto espinosano quanto ao tema:
Entre governantes e governados há sempre uma brecha, uma feri – da permanente […]. O que distingue a democracia dos outros regimes é o facto de, por definição, ela contrariar a cicatrização dessa ferida, evitar que a desigualdade se instale como natural, mantendo acesa, […] a ideia de um querer da totalidade, que está na origem e é fundamento de todo o poder. Reside aí o projeto de Espinosa. Reside aí, porventura, a sua atualidade (AURÉLIO, 2014, p. 10)
O livro de Aurélio cuidará de desdobrar este projeto, não obstante o não findo Capítulo XI do TP – aliás, quanto a este tema, o autor expõe sua posição, bem como a de outros comentadores, como Antonio Negri (1985) 5 e Étienne Balibar (1985), os quais igualmente transitaram pela questão. Mas onde está, mais precisa e analiticamente, a radicalidade de Espinosa, apontada no início desta resenha? Aurélio a desdobra, e ela consiste no seguinte: a rigor, não há seres isolados, indivíduos – humanos ou não–, isolados. Quanto aos homens, são indivíduos constituídos por outros indivíduos, formando uma totalidade complexa. Nas palavras do autor: “O indivíduo é sempre um ser coletivo e complexo, um aglomerado de partes cujas naturezas se conjugam momentaneamente num todo em que as forças de sinal positivo, que tendem a preservá-lo na existência, são superiores às de sinal negativo, que tendem a desagregá-lo.” (AURÉLIO, 2014, p. 36). Tais indivíduos, humanos ou não, são modificações finitas da substância absolutamente infinita, a qual é o ponto fundante da ontologia espinosana. O que vem a seguir é que amarra a política, que lida com o poder, à ontologia espinosana. Escreve Aurélio, para concluir o desenho da tese que será protagonista de muitas páginas do ensaio: “É esta a ontologia, desenvolvida nas duas primeiras partes da Ética [cujos temas são, respectivamente, De Deus e Da natureza e origem da mente ], que serve de fundamento à antropologia e à política de Espinosa.” (AURÉLIO, 2014, p. 34). Ontologia uma vez que os homens, como modificações da substância única (Deus, ou seja, a natureza), modos finitos do pensamento e da extensão, intensidades parciais de potência advindas da potência absoluta, apenas se constituem como tal em razão e como partes desta potência fundante do real, eterna e infinita, causa sui (causa de si). Tese magistral, com desdobramentos em campos vários, ao amarrar uma teoria do ser à política, à ética e ao direito, sem olvidar as variações de potência próprias aos humanos, a saber, os afetos, derivando daí o fundamento dos corpos políticos e a tese relevante e inovadora do direito natural como prevalecente no estado civil, o qual é criado para preservá-lo. Vários conceitos se apresentarão como importantes à compreensão do mecanismo da política, desvelando e desenvolvendo a tese inicial da democracia como o mais natural dos regimes uma vez que, potência que são, os homens desejam governar e não ser governados.
Em vez de analisar cada passo da longa cadeia argumentativa do autor em cada parte do livro, o que tornaria esta resenha muito longa e talvez enfadonha, opta-se por analisar, a seguir, dois ou três fios que se ligam à tese geral do livro, explicitada nas linhas acima. No interior do tema geral Aurélio introduz uma série de autores cujos conceitos são postos a dialogar com os espinosanos, a se afastar ou se aproximar deles. Eis alguns desses movimentos, a seguir.
Maquiavel é um autor com o qual Espinosa dialoga explicitamente. Chama-o agudíssimo no TP (ESPINOSA, 2009, TP, v, 7, p. 46) 6 e o pressupõe em várias passagens. Este é um tema que Aurélio desdobra com maestria, a saber, o Maquiavel latente, bem como o explícito, que há nas análises da filosofia política espinosana. Há várias e elucidativas páginas acerca das semelhanças e diferenças entre os autores. Dentre as semelhanças, Aurélio chama a atenção para o fato de que ambos dão à multidão uma importância política significativa. Maquiavel teria sido o primeiro autor da filosofia política, e durante séculos o único, a pôr “em causa a imagem negativa vulgarmente associada à multidão” (AURÉLIO, 2014, p. 370). E, ademais, ela é capaz de ser politicamente mais sábia e estável que o príncipe, tese de Maquiavel presente nos Discorsi (MAQUIAVEL, 2007 D, I 58, pp. 66-172) 7 e n’ O Príncipe (MAQUIAVEL, 2017, p. IX, pp. 147-151) 8 . Para Espinosa, por seu turno, a liberdade política dos súditos-cidadãos, no estado civil, para dizer de modo sumário, tem como fiadora a multidão, tese presente em vários momentos do TP.
O Maquiavel dos Discorsi – bem como o de O Príncipe –, afirma Aurélio, explicita a tese da positividade da multidão e Espinosa a recupera e endossa, ao seu modo (AURÉLIO, 2014, p. 370 e seguintes). Não casualmente a multidão terá papel fundamental na argumentação exposta no TP, e o termo aparecerá várias vezes no correr do texto. Ela é o fundamento de uma república bem instituída e, nesse sentido, é a protagonista maior da política.
Há outro ponto de encontro entre os autores, a seguir apenas indicado, o qual é analisado por Aurélio:
Considerar, pois, a natureza como horizonte inultrapassável do político significa integrar o político num horizonte de conflitualidade e contingência, onde não obstante os homens se unem de forma mais ou menos duradoira, consoante os afetos comuns que estabilizam e predominam em dado momento. É aí, nesse preciso horizonte, que Espinosa se encontra com Maquiavel (AURÉLIO, 2014, p. 381).
Não aparece no livro ora resenhado, mas em outro estudo de Aurélio, uma diferença entre ambos que é digna de nota. Trata-se do fato de que em Maquiavel predominam os exemplos históricos que levam às teses políticas, ao passo que em Espinosa existe uma ontologia de fundo que informa e dá sustentação aos conceitos políticos. Tal tema se apresenta quando o autor analisa o conceito de virtude em ambos.Afirma Aurélio:
[…] as ocorrências do termo ‘virtude’ no TP adquirem um alcance completamente diferente do que possuiriam quando encaradas apenas como um reflexo da leitura de Maquiavel. À superfície, haverá, com certeza, alguma coincidência: […]. Tanto Maquiavel como Espinosa rejeitam a tese ciceroniana, geralmente aceite, segundo a qual a conveniência ou utilidade e a rectidão moral seriam inseparáveis [Cícero, De Officiis, II, III, 9, ed. The Loeb Clasical Library, 1970, p. 176 ]. Mas o primeiro chega a essa conclusão com base apenas num cotejo da experiência e da história, chamando a atenção para aqueles a quem a glória bafejou no passado, apesar de se lhe imputarem actos criminosos. […] Espinosa, raciocinando embora a partir de idêntica integração do indivíduo na trama de relações em que os seus actos ganham significado e podem ser valorizados, transfere, no entanto, o problema para a sistematicidade de uma ordem ontológica onde o confronto entre razão moral e razão política é subsumido (AURÉLIO, 2000, pp. 84 – 85).Outro autor que surge no ensaio, em muitos momentos como contraponto às teses espinosanas, é Hobbes. Espinosa possuía um exemplar do De Cive em sua biblioteca pessoal, e Hobbes é um autor cujas ideias foram amplamente debatidas no período maduro de Espinosa. Espinosa o leu, é certo, e na famosa Carta 50 afirma o que o diferenciaria do autor Inglês. Esse é um mote fortíssimo, muito bem analisado por Aurélio precisamente para desdobrar as diferenças entre ambos. Uma hipótese que aqui se levanta é: os conceitos contidos e pressupostos na filosofia política hobbesiana podem ser considerados vencedores na história das ideias, ao passo que os espinosanos ficaram nas sombras por muito tempo. Por exemplo, Aurélio desenvolve muito bem o tema da representação em Hobbes, bem como o do contrato, para mostrar como Espinosa propõe algo muito diverso. Em muitas passagens do ensaio, ambos são comparados para que se possa ver com maior clareza e distinção o que os une – temas comuns – e, especialmente, o muito que os separa.
O Capítulo VIII, constituinte da Segunda Parte do livro, pode dar margem a sadias polêmicas. Nele, Aurélio propõe uma aproximação entre Kelsen e Espinosa, especialmente quanto aos temas da norma jurídica e do Estado. Entre outras passagens ricas e ousadas, o autor escreve: “Se o analisarmos a partir desse seu caráter de absoluta imanência, não é difícil ver no Estado kelseniano um eco do imperium espinosano.” (AURÉLIO, 2014, p. 283). Tese tão ousada quanto, ao ver deste resenhista, de difícil sustentação. Pois se Espinosa propõe uma explicação da política fundada em redes de afetos e de potência – procurando, no limite, a sustentação real do direito natural de cada súdito-cidadão no estado civil –, Kelsen está muito mais preocupado com a fundação de uma ciência do direito que seja autônoma – ao menos é este o projeto de sua Teoria Pura do Direito (1998), obra na qual estão condensadas muitas de suas principais teses acerca do direito. E se é certo, como afirma Aurélio, que Kelsen é um crítico das doutrinas clássicas do jusnaturalismo – o mesmo se poderia dizer de Espinosa –, em nenhum momento, salvo melhor juízo, argumenta a favor de um direito que se identifique a potência. Ao invés, está sempre na chave do direito como dever-ser e na proposta de um direito que possa ser objeto de ciência autônoma, com objeto próprio, a saber, as normas validamente postas e constituintes do ordenamento jurídico. Espinosa parece estar em trilhos muito diversos. Veja-se sua tese da identificação do direito à potência, bem como a de que o direito do Estado tem seu fundamento na potência da multidão – conceito este, o de multidão, em que o tema dos afetos se apresenta como um dos pilares explicativos de sua constituição. Ora, esses temas não são objeto dos textos de Kelsen. Porém, o brilho do ensaísta está precisamente em desenvolver uma argumentação tão cerrada e tão convincente que faz o leitor pensar à revelia de suas convicções, a contrapelo de si mesmo – tarefa da filosofia. Eis um ponto a ser ressaltado, neste e em outros Capítulos: Aurélio ousa levar sua pena e seu talento ensaístico a territórios pouco frequentados.
A discordância acima indicada é bastante pontual e lateral. Com efeito, o fio principal do texto – e as análises de Aurélio – pode ser resumido como um brilhante e erudito ensaio acerca do mais natural dos regimes, a democracia, a tese radical de Espinosa. Neste ensaio de Aurélio, Espinosa é apresentado como filósofo num dos sentidos originais da ex – pressão, ou seja, o que leva à verdade como alétheia [ αλήθεια ], isto é, desvelamento ou desocultamento. Na filosofia política que propõe o autor holandês, e que Aurélio apresenta tão bem, há reviravoltas conceituais que levam à constituição de lentes polidas com extrema precisão. Espinosa faz o leitor que se apropria de seus conceitos enxergar o que antes era opa – cidade. E Aurélio é excelente mapa para o território da filosofia política espinosana – antes que escureça! Uma resenha deve insinuar coisas interessantes sem mostrar o essencial. Espera-se que o intento tenha sido alcançado, ou seja, que este texto seja convite ao leitor para palmilhar com a velocidade lenta da filosofia a bela geografia conceitual criada por Aurélio.
Notas
1 A primeira edição de L’anomalia selvaggia : potere e potenza in Baruch Spinoza é de 1981 .
2 Que é uma reimpressão do texto de 1969 (Matheron, 1988, p. I).
3 Como indicado acima, uma das primeiras leituras que rompe com este estado de coisas é a de Matheron, de 1969 (Matheron,1988), e depois a de Negri, publicada pela primeira vez em 1981 (Negri, 1998) .
4 Agraciada, em 2009, com o prêmio de Tradução Científica e Técnica em Língua Portuguesa, atribuído pela União Latina em parceria com a Fundação para a Ciência e Tecnologia de Portugal.
5 Traduzido no Brasil em: Negri, A. (2016). Espinosa subversivo e outros escritos. Tradução de Herivelto Pereira de Souza. São Paulo: Autêntica, pp. 46 – 85.
6 Em romano o capítulo, em arábico o parágrafo -Espinosa, 2009.
7 Em romano o Livro, em arábico o Capítulo – Maquiavel, 2007.
8 Em romano o Capítulo – Maquiavel, 2017
Referências
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NEGRI, A . (1998) L’anomalia selvaggia : potere e potenza in Baruch Spinoza (publicado com Spinoza Sovversivo e Democrazia Ed eternità in Spinoza). Roma: DeriveApprodi.
_______. (1985) Reliquia desiderantur: congettura per una de fi nizione del concetto di democrazia nell’ultimo Spinoza. In: Studia Spinozana I, n. 8, pp. 143-181.
Luiz Carlos Montans Braga – Professor Universidade Estadual de Feira de Santana. E-mail: lcmbraga@usfs.br
Contra o vento. Portugal, o império e a maré anticolonial (1945-1960) – VALENTIM (LH)
VALENTIM, Alexandre. Contra o vento. Portugal, o império e a maré anticolonial (1945-1960). Lisboa: Círculo de Leitores, 2017, 840 pp. Resenha de: NASCIMENTO, Augusto. Ler História, v.73, p. 257-261, 2018.
1 Contra o vento, um de três livros sobre “um tempo mais longo” do império português, foca a resistência do governo de Salazar à descolonização entre 1945 e 1960. De uma perspectiva comparativa e global, esta excelente narrativa histórica do mundo em tempos de descolonização equaciona os condicionalismos dos múltiplos actores, desde as entidades internacionais aos colonizados, passando por Salazar, cujos processos decisórios escrutina minuciosamente, conquanto o livro não se debruce sobre Salazar e a sua política. Um dos condicionalismos é o contexto internacional – diga-se, uma variável crucial para o império português desde a sua constituição em oitocentos –, do qual, a par da emergência do bloco afro-asiático, da abdicação das potências coloniais e das disputas na ONU, avulta a política americana, pautada pela inclinação para a autodeterminação dos povos, com maior ou menor convicção consoante as conveniências do combate ao comunismo, que por vezes favoreceram as aspirações nacionalistas.
2 Contra essa determinante, o vento, Salazar, chefe quase incontestado, tentou ganhar tempo para manter a arquitectura política interna. Dos estéreis areópagos institucionais, atentos sobretudo ao lado de onde soprava o vento, brotava a corroboração da palavra do chefe. À luz da rígida subordinação prevalecente nos meandros do regime, percebe-se que, aquando da adopção da ideia de “nação una” contra a mística imperial, começava um debate de ilusões. As personalidades acreditavam ou forçavam-se a acreditar por força do corriqueiro acatamento das intenções do chefe, que passavam pela instrumentalização da ideia de integração nacional que, diz-nos o autor, teve uma função retórica, de justificação de soberania colonial – sobretudo quando esta se encontrava ameaçada do exterior. A mutação terminológica de “colónias” para “províncias ultramarinas” indiciava o intuito de recusar qualquer solução gradualista e prenunciava a resistência à descolonização, aparentemente em consonância com o consenso nacional acerca do património colonial.
3 Ao tempo, avultava a questão de Goa, que levou a que no PCP – cujos militantes não escapavam à crença generalizada na bondade da colonização – se advogasse o direito à autodeterminação já em 1955. Porém, tal posição do PCP era irrelevante para o regime, que a usava como prova de que o anticolonialismo era um manejo comunista contra o ultramar português. Com uma visão anacrónica do mundo, Salazar não se apercebeu da amplitude da retirada do poder colonial na Ásia, forçada pelos movimentos nacionalistas e pela crise das potências europeias. Desprezando os sinais do tempo – a propósito do Padroado, a Santa Sé sapou os fundamentos ideológicos da presença colonial –, Salazar acreditou em vão na fragmentação da Índia e não quis ver a aposta inglesa na interlocução com o Congresso Nacional Indiano. Se o recurso ao Tribunal de Haia constituiu um engulho para União Indiana, já da descrição das conversações secretas se infere uma obstinada cegueira perante as várias possibilidades oferecidas a Goa. Este livro não se queda nos meandros das dilações e mais expedientes diplomáticos na defesa do indefensável, evidentes no caso de Goa. Proporciona-nos uma viagem pelas várias situações coloniais – entre elas, o modus vivendi em Macau e o indirect rule em Timor – de que, ao arrepio do palavreado, se compunha a recém-baptizada “nação una”.
4 Portugal acordaria para o enorme hiato entre a imagem que a “nação construía de si e do seu Império” e as opressões vividas nas colónias por força da ameaça resultante da vaga descolonizadora que, além de rápida, era perturbante por fazer implodir os planos das potências coloniais de controlar o processo de descolonização. Contagiado por esta evolução política, subitamente o ambiente nas colónias de África tornou-se volátil, também devido às debilidades da administração e às sujeições impostas aos colonizados. Os massacres de finais dos anos 50 desmentiriam a vangloriada pax lusitana, aparente porque assente na repressão. A realidade era pouco conforme à harmonia racial ou, de outro modo, à presunção da subordinação natural do negro à tutela portuguesa. Todavia, mesmo se em perda, a sobranceria racista, incomparavelmente mais operante do que as lucubrações em torno do luso-tropicalismo à la carte e do benfazejo paternalismo dos portugueses, induzia ilusões quanto à capacidade de prevenir e conter a insurgência. Por exemplo, advogava-se a repressão dura, “dentro das leis que eles entendem”, de qualquer acto violento ou desrespeitoso para evitar o surgimento de uma “Argéliazinha” corrosiva de recursos e de energias, tal a expressão do optimismo baseado nos presumidos resultados da repressão infrene e selvagem, cinicamente justificada com a selvajaria imputada aos africanos.
5 Por convicção ou cedência aos interesses instalados, o poder colonial manteve até aos anos 50 formas arcaicas de exploração – trabalho forçado e culturas obrigatórias –, evidenciando relutância em subscrever a convenção de 1930 sobre trabalho forçado. Portanto, não estava em causa o “fracasso de uma política de integração”, mas, sim, a “aplicação de uma política que de integradora nada tinha”. Afinal, até nos relatórios de matiz reformista se obliterava a instituição marcante do colonialismo, o indigenato (conquanto possamos supor que a abstenção da menção ao indigenato, revelando muito da rigidez hierárquica do regime, não significasse que a sua abolição não estivesse pensada enquanto consequência das propostas reformistas). Não se aboliu o indigenato nos anos 50, retocando-se apenas os aspectos mais chocantes que poderiam chamar a atenção da opinião pública mundial.
6 Nestes anos, o rumo do colonialismo compôs-se do atrito entre o monolitismo da política colonial e as tentativas reformistas, para Valentim Alexandre, genuínas, mesmo se falhadas. Dada a rigidez do controlo das instituições e a consequente expressão apenas das ideias com cunho oficial, os alvitres reformistas tinham de ser ambíguos e contidos para poderem ser apresentados conquanto depois inexoravelmente rejeitados por afrontarem, minimamente que fosse, interesses instalados. Nada pareceria menos certo do que o idealismo de reformistas, para quem o pressentimento dos perigos levaria os colonos a mudar a posição relativamente aos negros. Como já há décadas Valentim Alexandre chamou a atenção, aos colonos que lidavam com as “realidades” no terreno, os idealismos afiguravam-se risíveis… Como convencer os colonos e os potentados de que, afinal, o interesse nacional era diverso do que vigorara durante décadas a seu benefício? Aventar que só com uma política indígena sã e verdadeira se asseguraria a confiança e a lealdade dos indígenas, base de uma ordem interna estável e sólida, afigurava-se um idealismo sem sentido. Nas colónias, e não só, sabia-se que tal não era verdadeiro. Por exemplo, cria-se que não seria por se pagar melhores salários que se obteria mão-de-obra (a que acrescia o desinteresse na redução do sobrelucro esperado nos empreendimentos coloniais).
7 Maior certeza subjazia à predição de que era mais do que duvidosa a sobrevivência de qualquer governo ao abalo da eventual perda das colónias. Justamente, dada a subordinação de tudo à preservação do seu poder, Salazar pendia para a PIDE e para os que, contrariamente às sugestões reformistas – que, diga-se, não salvariam as colónias –, achavam que a repressão era a chave da resolução de qualquer crise. No equivocado debate sobre a política colonial, truncado no tocante a conteúdos e condicionado porque operando desigualmente entre indivíduos e Salazar, a opção pela repressão foi levando a melhor sobre as reformas, para Valentim Alexandre, duas faces da política tendente a preservar a soberania sobre o império. Ao mesmo tempo que os luso-tropicalistas e reformistas produziam relatórios com sugestões para correcção das injustiças, já operava a disposição de conduzir o país para a guerra.
8 Em suma, contra o vento… ganhar tempo? A tal se resumiu a estratégia do governo de Portugal, cujos interesses foram subordinados aos de Salazar. Contra a aura de “estadista”, a história aqui narrada sugere, para não dizer que confirma, a senda de um ditador norteado pelo desejo de não querer assistir ao fim do seu poder, instrumentalizando tudo e todos, pouco lhe importando os portugueses. Para isso, construiu uma narrativa – composta de denúncias das frágeis verdades da conjuntura e, até, da duplicidade dos aliados de momento, assim como de antevisões etnocêntricas e racistas conquanto parcialmente confirmadas pelas convulsões supervenientes às independências – aparentemente irrebatível, sobretudo, por a ditadura vedar qualquer discurso dissonante. A este respeito, afigura-se sugestivo o facto de Salazar, cônscio da precariedade da soberania em Goa, auscultar o Conselho de Estado sobre (remotíssimas, se não falaciosas) hipóteses de um plebiscito ou de uma entrega institucional – soluções inconstitucionais –, qual forma de “apalpar o terreno” no topo do estado, de onde, presume-se, recolheria opiniões condicionadas não só pelos bordões do regime, mas até pela eventual intuição dos conselheiros de estar à prova a sua fidelidade.
9 Este livro insere breves diálogos com outros autores. Reconhece a António José Telo o mérito de aludir às mudanças nos apoios internacionais em finais da década de 1950, contestando, todavia, a ideia de inversão de alianças, até pela pouca firmeza dos apoios, pontuais e não comprometidos para o futuro. O autor discorda da qualificação, de Bruno Cardoso Reis, de Portugal como um estado pária, incluso na categoria dos estados que se colocavam contra as normas globais. Ora, apesar de isolado, Portugal pertencia à ONU, à NATO, à EFTA e tinha apoio da França e da Alemanha. Mais, as “relações com muitos dos novos países africanos” viriam a ser “mais complexas do que à primeira vista parecem”, uma perspectiva particularmente relevante para quem queira entender os posteriores desenvolvimentos em África.
10 A par destes diálogos, sopesam-se problemáticas, por exemplo, a da equiparação entre nazismo e colonialismo. Para o autor, a equiparação das práticas coloniais às nazis não deve ser levada longe por subsistirem diferenças, desde logo, por o poder colonial ser, não necessariamente mais humano, mas mais cônscio dos limites. Apesar de nem todos terem resultado de desmandos, os massacres coloniais tinham um carácter instrumental, não sendo, por regra, uma solução final ou uma política em si mesma. Ditatorial, o colonialismo português desdobrava-se facilmente na prevalência da arbitrariedade administrativa sobre a lei, factor propício a processos similares aos dos sistemas totalitários. Ainda assim, e mesmo que se desvalorize a ideologia que buscava a legitimação do colonialismo na missão evangelizadora e na integração, atente-se, por exemplo, na debilidade da ocupação administrativa, que limitava os efeitos das práticas discriminatórias e opressivas.
11 Nesta obra assente num vastíssimo leque de fontes, é notável a profundidade com que são retratados actores, situações conjunturais, possibilidades, estratagemas, decisões políticas, episódios e cenários de uma história global. O conhecimento não reproduz a vida, mas este livro quase nos torna testemunhas presenciais dos processos e das vicissitudes dos desempenhos na luta “contra o vento”. Esta narrativa, a que não falta, aqui e além, uma coloquialidade bem-humorada, não é uma história exaltante nem ideologicamente orientada. Pauta-a a atenção à multiplicidade de posições, incluindo a ambiguidade das enunciações para serem interpretadas pelo chefe providencial e tendencialmente absoluto. Traçados os caminhos da concretização dos supostos e reais objectivos da acção colonizadora, o autor arrola, sempre que pertinente, as várias interpretações possíveis. Pela criteriosa selecção das questões e perspectivas, valorizada pela exímia escolha de trechos citados, mormente dos papéis de Salazar, Valentim Alexandre foge ao maniqueísmo, que comummente não inspira senão a mera enunciação do consabido rol de malfeitorias insanáveis do colonialismo.
12 Obviamente, emergirão questões para responder, entre elas, a (eventualmente calada) percepção da parca valia do que se dizia (o que, aduza-se, tanto vale para os colonialistas, como, noutras circunstâncias, para os anti-colonialistas), a que se segue a questão de saber da convicção com que se lutava… “contra o vento”. Escasseiam as dúvidas: uma refere-se ao “regime colonial português tardio”, noção a aclarar pelos historiadores quanto ao período a que respeita e ao que caracteriza. Outra atém-se à grande influência do massacre de Pindjiguiti na evolução do nacionalismo guineense, do que se poderá duvidar, menos por se poder infirmar a asserção do que pela intuitiva relutância ao que poderá compor mais uma “biografia perfeita” do que uma relação intrínseca na génese do nacionalismo guineense, decerto avivado pelas influências advindas dos países limítrofes.
13 Esta obra interpela quanto às consequências de uma política que, independentemente das duras provas e de pequenas vitórias diplomáticas, não tinha saída: não se tratava de não se poder deixar de sacrificar os filhos à pátria, tratava-se de os instrumentalizar quando provavelmente já prevaleceria a consciência de que tal era inútil. Se esta hipótese estivesse certa, então, tudo não teria servido senão para Salazar preservar o poder até à morte, fito a que imolou o país. Fascinante viagem no tempo, esta é uma obra que, à margem dos nebulosos “factores de impacto”, nos enriquece. Resulta do exercício livre e competente do ofício de historiador, para que a sociedade e, infelizmente também, as universidades parecem ter deixado de ter tempo… Seja lá como for, após este, ficamos à espera dos próximos livros.
Augusto Nascimento – Centro de História da Universidade de Lisboa, Portugal. E-mail: anascimento2000@yahoo.com
A Guerra que acabou com a Paz. Como a Europa trocou a Paz pela Primeira Guerra Mundial – MACMILLAN (LH)
MACMILLAN, Margaret. A Guerra que acabou com a Paz. Como a Europa trocou a Paz pela Primeira Guerra Mundial. Lisboa: Temas e Debates/Círculo de Leitores, Fevereiro de 2014. Resenha de: PIRES, Ana Paula. Ler História, v.66, p. 169-174, 2014.
1 A crise de Julho de 1914 e as origens da Primeira Guerra Mundial têm sido debatidas de forma exaustiva e continuada desde os primeiros dias de Agosto de 1914, quando a Guerra eclodiu no continente europeu. Apesar deste tema ser um clássico da historiografia dos conflitos militares – em 1991 o historiador norte-americano John Landgon identificou 25 000 livros publicados só em língua inglesa sobre as origens da Grande Guerra1– a verdade é que, como tem sido visível, neste início de centenário, através do enorme fluxo de publicações sobre o tema, as questões políticas, económicas, sociais e diplomáticas em torno das consequências do assassínio, em Sarajevo, do herdeiro do trono da Áustria-Hungria, a 28 de Junho de 1914, continuam a ser um campo vasto de investigação e análise. Contudo, mais do que procurar identificar os antecedentes da Primeira Guerra Mundial, estudos recentes, tanto de historiadores como de politólogos, têm sublinhado a polarização da Europa durante o período da belle époque e os impactos resultantes da divisão do continente em dois sistemas de alianças (a tríplice entente e a entente cordiale) no desenvolvimento e consolidação de diversas teorias internacionais de conflito2. Os recentes debates teóricos em torno das origens da Grande Guerra, tanto no âmbito da historiografia, como das relações internacionais, têm concentrado a sua atenção em torno de questões centrais para o estudo das origens do primeiro conflito mundial, nomeadamente o papel dos homens; diplomatas, políticos e militares, que tiveram nas suas mãos a decisão da entrada da Europa em guerra.
2 Foi em torno destes homens, da sua personalidade, ambições e ligações familiares que a historiadora canadiana Margaret MacMillan centrou o seu mais recente e sugestivo livro A Guerra que acabou com a Paz. Como a Europa trocou a Paz pela Primeira Guerra Mundial. MacMillan uma professora de história da Universidade de Oxford – cujas principais áreas de investigação são a história das relações internacionais e o imperialismo britânico entre o final do século XIX e o início do século XX – é bisneta de um desses protagonistas, David Lloyd George, primeiro-ministro britânico entre 7 de Dezembro de 1916 e 22 de Outubro de 1922. Num esforço hercúleo e ao longo de mais de 800 páginas, MacMillan identificou e analisou, a partir da acção de políticos e diplomatas, mais ou menos conhecidos, as ambições das principais potências europeias da época concluindo que, e esta é a sua tese principal, apesar da Grande Guerra ter sido fruto de escolhas individuais, os homens que conduziram a Europa ao confronto, líderes fracos e atormentados, acabaram por desempenhar um papel menor em todo este processo complexo, ainda que, segundo o argumento de MacMillian, nenhum dos líderes europeus tivesse tido coragem, força, ou vontade suficientes para contrariar os argumentos dos que consideravam inevitável a eclosão de uma guerra no continente.
3 Recorde-se, de resto, que em Portugal o primeiro-ministro Afonso Costa, tinha defendido, em Maio de 1913, quase no final da primeira guerra balcânica, a necessidade do nosso País definir com brevidade a sua atitu-
de num cenário eminente de eclosão de uma guerra na Europa, a Repú-
blica tinha, segundo Afonso Costa, «(…) obrigação de, lançando os olhos para o mapa da Europa, ver qual é a sua situação e preparar-se para a sustentar (…)»3.
4 Ao analisar a tomada de posição da Rússia no desenrolar da crise de Julho de 1914, MacMillan revela-nos, precisamente, os contornos sinuosos da diplomacia russa, e descreve o papel extremamente importante desempenhado pelo círculo mais próximo de Nicolau II, na tomada de posição do País, destacando, em particular, a influência do ministro dos Negócios Estrangeiros Sergei Sazonov, acérrimo defensor da ideia de que a missão histórica da Rússia era proteger as nações balcânicas. Há semelhança do que Sean McMeekin4 havia já defendido Sergei Sazanov foi um dos homens que, com o apoio da França, mais teria contribuído para a transformação de um conflito regional num confronto continental. A autora não hesita ainda em rejeitar o argumento tradicional que atribuiu a Guilherme II a principal responsabilidade pela eclosão da guerra, afirmando, logo nas páginas iniciais do livro, que a conflagração nunca foi inevitável: «A Europa não tinha de entrar em Guerra em 1914; teria sido possível impedir uma Guerra generalizada até ao último minuto do dia 4 de Agosto em que os britânicos decidiram finalmente participar nela»5. Milhões de pessoas não teriam que ter morrido durante a I Guerra Mundial, e o velho continente e o Mundo, defende MacMillan, teriam evitado a ruína e o sofrimento. A autora acaba ainda por não atribuir a Alfred von Schlieffen a responsabilidade pela estratégia militar ofensiva prosseguida pela Alemanha, no entanto, seguindo uma linha de raciocínio bastante próxima da tese de Fritz Fischer, defende que os alemães adoptaram uma posição de agressividade, a que as potências da entente cordiale reagiram6.
5 O volume encontra-se dividido em vinte capítulos, redigidos unicamente com base em fontes secundárias, cada um dedicado à analise de um momento específico do percurso que levou a Europa da guerra à paz. O próprio título escolhido por MacMillan para o livro deixa, desde logo, subentendido que a Europa era um continente extraordinariamente pacífico antes da harmonia do sistema internacional ter sido quebrada em 1914. Em 1900, ano escolhido para abrir o volume, coincidente com a Exposição Universal de Paris e com as segundas olimpíadas da idade moderna, não existia uma guerra que envolvesse as principais potências europeias há 85 anos. Uma das principais qualidades da obra é, sem dúvida, a forma como MacMillan consegue transportar o leitor para uma Europa efervescente e em plena transformação cultural, científica, política e económica, reconstruindo de forma detalhada a atmosfera de confiança relativamente ao futuro que contaminava um continente «(…) habituado à paz(…)»7.
6 A leitura dos primeiros capítulos do livro descreve-nos um mundo interconectado, assente numa economia global única apoiada numa rede cada vez mais densa de circulação de pessoas, capitais e mercadorias, realidade visível, aliás, num movimento de interdependência contínua, e crescente, entre países desenvolvidos e o mundo subdesenvolvido8. É neste contexto que importa perceber as posições anti-guerra da city londrina e a postura britânica que, no início do século, defendia que a única forma de evitar um colapso total no crédito europeu era, num cenário de guerra na Europa, a Grã-Bretanha optar pela neutralidade. Recorde-se que desde 1890 todas as potências europeias, os Estados Unidos da América e o Japão, partilhavam a mesma unidade monetária internacional: o padrão-ouro, o que acabou por determinar que as transacções fossem calculadas com base em moedas de valor praticamente imutável. A rede de transacções de bens e pessoas estendera-se trazendo para o centro da economia-mundo espaços remotos e periféricos (segundo MacMillan o crescimento exponencial da marinha alemã foi o principal responsável pelo envenenamento das relações entre germânicos e britânicos). As exportações europeias quadruplicaram entre 1848 e 1875, a navegação mercante mundial passou, entre 1840 e 1870, de 10 para 16 milhões de toneladas, e a rede de caminhos-de-ferro, cresceu de 200 000 quilómetros, em 1870, para cerca de 1 milhão pouco antes da Primeira Guerra Mundial.
7 É a este Mundo que a eclosão da Grande Guerra em Agosto de 1914 vem colocar um ponto final. A síntese de MacMillan não coloca, no entanto, como vimos, a Europa no rumo da guerra (a historiadora canadiana descreve de forma clara quais as consequências das crises, sucessivas, que abalaram o continente durante os anos finais da «Belle Époque»: a primeira crise marroquina de 1905-06, a anexação da Bósnia em 1908, a crise de Agadir de 1911 e as duas guerras balcânicas de 1912 e 1913) defendendo que a Europa em 1914 era um continente em paz, cujos líderes, políticos e diplomatas, apesar de crises e tensões sucessivas, tinham sempre conseguido evitar uma guerra generalizada: «Durante as crises anteriores, algumas delas tão graves como a de 1914, a Europa não ultrapassara certos limites (…)»9. A questão a que MacMillan procura responder ao longo do livro, é porque é que esse equilíbrio tradicional de poderes não funcionou no Verão de 1914, arrastando a Europa e o Mundo para um conflito de dimensões sem precedentes, elencando várias possíveis causas: uma Rússia ferida pelos revezes que tinha sofrido nos Balcãs e pela derrota sofrida em 1904-05 na guerra com o Japão; uma Alemanha ávida por construir um império e por ver a sua posição de potência emergente consolidada no continente e, olhando para a Europa do Sul e para o Mediterrâneo, uma Itália que desejava ascender ao estatuto de grande potência.
8 A 23 de Julho, após a garantia dada por Guilherme II de que, em caso de guerra, a Alemanha alinharia ao lado do Império Austro-Húngaro, Viena dirigiu um ultimato à Sérvia. Nos primeiros dias de Agosto, cinco das principais potências europeias (Grã-Bretanha, França, Rússia, Áustria-Hungria e Alemanha) estavam já em guerra; apenas a Itália conseguira permanecer neutral. Um conflito secundário, situado nos Balcãs transformara-se numa guerra europeia, cujas repercussões se fariam sentir no extremo oposto do Continente. Neste jogo de destruição e morte não havia lugar para empates: travava-se uma «(…) guerra que só poderia ser totalmente ganha ou totalmente perdida»10. Não deixa de ser irónico, no entanto, como Margaret MacMillan demonstra, ter sido o assassinato do arquiduque Francisco Fernando, que em conflitos anteriores na região dos Balcãs tinha intervindo a favor da paz detendo a impetuosidade do chefe das forças armadas austro-húngaras Conrad von Hotzendorf, o principal detonador da grande guerra. A morte de Francisco Fernando retira de cena, segundo a autora, um dos principais advogados da paz do império austro-húngaro.
9 O livro de MacMillan não nos fornece uma explicação nova quanto às causas que estiveram por trás da eclosão da Grande Guerra, contudo o que a historiadora canadiana faz, magistralmente, é descrever o drama humano que conduziu à primeira guerra mundial, numa escrita que coloca, muitas vezes, frente a frente, o ano de 1914 e a nova realidade geo-política actual, relembrando ao leitor os perigos inerentes ao desenvolvimento do nacionalismo, numa narrativa em que fica claro que tanto no século XXI como em 1914, o Mundo transporta em si o potencial para reavivar a violência à escala global, mas onde, tal como há cem anos, a guerra continua a não ser inevitável, ainda que a inevitabilidade se continue a afigurar, muitas vezes, como uma das suas principais causas.
Notas
1 Cf. Christopher Clark, «The First Calamity» in London Review of Books, Vol. 35, n.º 16, 29 August 2 (…)
2 Jack Levy e John A. Vasquez, «Historians, political scientists, and the causes of the First World W (…)
3 Diário da Câmara dos Deputados, 86.ª Sessão Ordinária do 3.º Período da 1.ª Legislatura, de 1 de Ma (…)
4 Sean McMeekin, The Russian origins of the First World War, s/l, Belknap Press, Dezembro de 2011.
5 Ver, Margaret MacMillan, A Guerra que acabou com a Paz. Como a Europa trocou a Paz pela Primeira Gu (…)
6 Fritz Fischer, Germany’s Aims in the First World War, s/l, W.W. Norton & Company, 2007.
7 Margaret MacMillan, A Guerra que acabou com a Paz…, p. 24.
8 Veja-se David Stevenson, 1914-1918. The History of the First World War, London, Penguin Books, 2004 (…)
9 Cf. Margaret MacMillan, A Guerra que acabou com a Paz. Como a Europa trocou a Paz…, p. 24.
10 Expressões utilizadas por Eric Hobsbawm. Cf. Eric Hobsbawm, A Era dos Extremos – História Breve do (…)
Ana Paula Pires – IHC-FCSH-UNL.
As Armas de Papel – PEREIRA (LH)
PEREIRA, José Pacheco. As Armas de Papel. Lisboa: Temas e Debates/Círculo de Leitores, 2013. Resenha de: CORDEIRO, José Manuel Lopes. O problema dos stencils que se rasgavam. Ler História, n.64, p. 221-228, 2013.
1 Nos últimos anos tem-se assistido ao surgimento de inúmeros trabalhos sobre a história da extrema-esquerda na década final do Estado Novo, desde livros e artigos académicos a teses de mestrado e de doutoramento, assim como à realização de Encontros, Seminários, Conferências ou Debates sobre esta temática. Este interesse resulta de uma nova geração de investigadores que despontou para o estudo da história desta corrente, assim como do reconhecimento da importância que a mesma então exerceu junto de vários setores da sociedade portuguesa e, também, do distanciamento com que é já encarada, permitindo uma análise objetiva e aprofundada.
2 José Pacheco Pereira vem agora prestar o seu contributo com a publicação de um livro interessante, As Armas de Papel (Temas & Debates/Círculo de Leitores, 2013), que se propõe constituir um repertório sobre as «publicações periódicas clandestinas e do exílio ligadas a movimentos radicais de esquerda cultural e política», editadas entre 1963 e 1974.
3 O livro é constituído essencialmente por duas partes. A primeira, aborda de uma forma muito completa os vários aspetos relacionados com a produção deste tipo de publicações, nas décadas de sessenta e setenta, até ao 25 de abril, tais como as suas diferentes tipologias, os meios técnicos e tecnologias adotadas, as tiragens e a periodicidade, o grafismo, o texto, a distribuição, contemplando ainda a sua cronologia e geografia, ilustradas com inúmeros exemplos dessas publicações e dos diversos equipamentos técnicos então utilizados. Apresenta, também, os critérios para a inclusão das publicações recenseadas, tendo em consideração as características que então definiam a extrema-esquerda e a esquerda radical.
4 A primeira parte do livro, a mais original, constitui muito mais do que a mera enumeração dos aspetos relacionados com a produção destas publicações, uma vez que analisa muitas das características das organizações que as editavam e as condições em que as mesmas atuavam, efetuando também uma abordagem daquele período. Dá-nos conta do universo muito rico e diversificado em que estas organizações se movimentavam, proporcionando elementos úteis para a compreensão daquela época, em Portugal e no exílio, assim como dos contornos políticos deste tipo de oposição, mais radical. A profundidade que aplica na análise faz com que constitua a parte mais bem conseguida do livro e a que mais se aproxima do anunciado desiderato de contribuir para o «retrato de uma geração».
5 Esta primeira parte não está, contudo, isenta de pequenos erros [a organização referida na p. 62 são os CCR (M-L) e não a OCMLP, para além de que a crise que afetou esta última em março-abril de 1974 não teve uma grande implicação na edição do O Grito do Povo, que continuou a ser publicado] e de imprecisões [quando afirma que «os textos da segunda metade da década de sessenta, já influenciados pela Revolução Cultural, como são tipicamente os do MRPP» (p. 91), pois este só foi fundado em setembro de 1970]. Mas são de outra natureza as observações que aqui merecem ser destacadas. Assim, é incompreensível afirmar, com base no n.º 2 do jornal, que a retirada da foice e martelo do título (cabeçalho) do O Grito do Povo (p. 78), resultava da necessidade de o «marcar» menos politicamente quando, no próprio exemplar que utilizou para fazer tal afirmação se vê claramente que o símbolo do comunismo permanece na primeira página, com grande destaque, para além de que regressará ao título logo no n.º 3, de onde, aliás, não mais sairá até ao final da sua publicação, em maio de 1987. Trata-se, numa apreciação benévola, de um erro (grosseiro) de interpretação. Quanto à alteração do cabeçalho do jornal, a verdadeira razão deveu-se ao facto de a substituição da letra «G» pela foice e martelo poder originar uma leitura errada do título, confundindo-se com «O Rito do Povo». É também pouco rigoroso afirmar que os conflitos existentes em algumas escolas do Porto tinham como protagonistas «militantes da UEC (M-L) e os da OCMLP» (p. 99), uma vez que os militantes estudantis desta última estavam organizados nos CREC’s, para além de que os membros da OCMLP não atuavam no meio estudantil. Constitui também uma interpretação pouco rigorosa, afirmar que em 1974 se verificou «um certo esgotamento do espaço político da extrema-esquerda pelos títulos já existentes» (p. 106) – não poderiam surgir, continuamente, novos títulos –, retomada na entrevista ao Diário de Notícias (de 16 de março), ao declarar que as publicações de extrema-esquerda, «na prática» acabaram com o 25 de abril «porque vivem do clandestino e do exílio» (p. 14), embora, como é sobejamente conhecido, tenha sido o contrário o que se verificou. Explicando melhor o seu ponto de vista, reitera que «existe também uma crise do esquerdismo em vésperas do 25 de abril, em que se verifica uma tendência para a social-democratização devido a um esgotamento destas organizações» (Diário de Notícias, p. 14). Tendência essa que apenas o autor conseguiu detetar.
6 A explicação que oferece sobre uma putativa mudança de títulos (p. 110) que se teria verificado após o 25 de abril também não é correta. Primeiro, no que respeita à quase totalidade das organizações, não existiu qualquer mudança de títulos; segundo, o exemplo citado do PCP (R) ocorreu já muito depois do 25 de abril, no rescaldo do período revolucionário, e por razões óbvias; terceiro, provavelmente não sabe, mas Diógenes Arruda – que, na prática, dirigia então aquele partido – defendeu que no Norte, o PCP (R) deveria relançar O Grito do Povo (não saberia que se continuava a publicar, pela OCMLP reorganizada), devido à tradição que o jornal tinha naquela região. Surpreendentemente, Pacheco Pereira também não levou em consideração a única fonte disponível para se conhecerem com exatidão as condições em que se publicava e difundia um dos jornais clandestinos editado a partir de 1969, o Unidade Popular, do CMLP/PCP (M-L). Aquando da comemoração do seu 10.º aniversário, o jornal publicou uma série de artigos que revelaram, pela primeira vez e de uma forma muito pormenorizada, os mais diversos aspetos ligados à sua redação, produção e distribuição antes do 25 de abril, artigos que foram ignorados pelo autor ou cuja existência este desconhece.
7 A segunda parte do livro constitui um repertório da imprensa clandestina publicada em Portugal e no exílio, de 1963 ao 25 de abril de 1974, recenseando 158 títulos, correspondendo a cada um deles uma entrada. É mais do que um simples repertório, efetuando também uma apreciação de alguns dos aspetos da história das organizações que os publicavam, embora numa perspetiva que obnubila uma das componentes essenciais da análise. De facto, o conteúdo desta imprensa, principalmente o das publicações especificamente editadas para a luta política imediata, tem de ser analisado, precisamente, nessa perspetiva, compreendendo os seus objetivos e o respetivo contexto; por esta razão é que não fazem sentido as observações, expostas ainda na primeira parte, acerca da sua superficialidade, a «língua de pau» utilizada, a sua «ortodoxia política», os «slogans», a falta de «criatividade» e de «imaginação» (p. 91), de «que não se podia soltar a caneta» ou a perda da «espontaneidade inicial» (Diário de Notícias, p. 15). Terão sido só «slogans» e linguagem «de pau»? Estas organizações não desenvolviam atividade política? Não será este o aspeto fundamental a considerar na apreciação histórica da sua atuação? Esta visão redutora também não pode ser encarada como correspondendo à totalidade daquelas publicações, bastando para tal consultar, por exemplo, os textos da «Revolução Popular» ou da «Estrela Vermelha». Aliás o autor acaba por reconhecer que tal tinha muito a «ver com as condições de clandestinidade e de repressão que não favoreciam um pensamento e uma linguagem mais soltos do dogma» (p. 94), se bem que, ancorado no seu próprio dogma, o que classifica depreciativamente como «dogmas» não sejam mais do que as respetivas orientações ideológicas e políticas.
8 O contributo de Pacheco Pereira para o conhecimento da história da imprensa da extrema-esquerda assume um maior interesse no que respeita às publicações (e organizações) não marxistas-leninistas, uma vez que estas últimas têm sido objeto de um maior número de estudos, alguns deles bastante aprofundados. Destacam-se, em particular, as entradas relativas ao BAC, CIP, Cadernos de Circunstância, Cadernos Necessários e Polémica. No entanto, possivelmente porque não teve conhecimento do mesmo, não levou em consideração um incontornável artigo de Fernando Medeiros sobre os primórdios (1965/66) dos Cadernos de Circunstância, onde este explica a gestação e a maturação daquele projeto.
9 Variando na sua dimensão, de acordo com a importância e longevidade das publicações, o conjunto das entradas permite a compreensão de algumas das suas características, assim como das vicissitudes por que passaram as organizações que as editavam, principalmente no exílio, para cujo estudo as fontes são mais detalhadas. No que respeita às publicações do interior do país, nota-se uma maior dificuldade em proceder do mesmo modo, principalmente porque, como veremos, revela desconhecer aspetos importantes da história das organizações que as publicavam.
10 Num país em que não há grande tradição de publicar repertórios temáticos, como acontece por exemplo no mundo anglo-saxónico, merece ser destacado o trabalho de compilação efetuado. É uma obra útil, não apenas para os arquivos e bibliotecas, como refere, mas principalmente para os investigadores, que não refere, em especial para uma nova geração de jovens investigadores que tem descoberto e continua a descobrir esta temática da extrema-esquerda antes do 25 de abril, encontrando aqui um ponto de partida. Aliás, para os arquivos, não terá assim tanta utilidade, pois os poucos que conservam este tipo de publicações já as têm devidamente identificadas. No entanto, ao não nomear as bibliotecas e arquivos onde é possível consultá-las – para além, subentende-se, no arquivo da Marmeleira –, retira ao repertório uma das suas funções essenciais.
11 Uma das características fundamentais deste tipo de livros, e que deriva do próprio facto de constituírem obras de referência, é a do indispensável rigor dos dados que apresentam, sob pena de não corresponderem ao principal objetivo com que são elaborados. O rigor é fundamental, e sem rigor não há obra de referência. E, neste domínio, o livro ostenta um número demasiado elevado de incorreções, algumas delas surpreendentes, pois o autor apresenta-se como uma autoridade na matéria. É certo que, prudentemente, Pacheco Pereira assume uma inaudita postura defensiva, alertando que possivelmente haverá erros e omissões, que serão colmatados no seu blog: «irei progressivamente colocar em linha no site pessoal dedicado ao meu próprio arquivo (Ephemera), estas publicações em formato digital, assim como todas as informações (e correções) complementares que entretanto venham completar este livro» (p. 18). Mas não é a mesma coisa, nem é tão prático como um livro, pois muitos dos leitores poderão não ter conhecimento dessas eventuais correções, e só uma nova edição desta obra, (bastante) corrigida, poderá obviar o problema. Também há erros e erros. Alguns serão compreensíveis e, até, inevitáveis, em virtude da investigação não se encontrar esgotada; outros inaceitáveis, particularmente numa obra que se pretende de referência, na qual o autor trabalhou vinte anos, ou mais, lendo estas publicações «com frequência, duas ou três vezes» (p. 18), e relativa a uma temática em que, segundo o próprio, só «uma pequena minoria, que nalguns casos até foi só de um, que fui eu, começou a tentar fazer a história da esquerda, particularmente do PC e hoje da extrema-esquerda» (entrevista à SIC, em 5 de março). Deste modo, a fim de que os investigadores que vierem a debruçar-se sobre esta temática não repitam esses erros, assinalaremos alguns dos mais significativos, agrupando-os por categorias, prestando assim um primeiro contributo para as correções a inserir no Ephemera.
12 Denominações erradas de organizações: é surpreendente que o autor, que foi dirigente do PCP (M-L), o denomine por Partido Comunista Português (e não, de Portugal) (Marxista-Leninista) (p. 14). Aliás, sucede o mesmo em inúmeros «posts» que já publicou no Ephemera. Poderá parecer uma questão bizantina, ou apenas formal, mas na realidade é importante, tanto mais que constituía uma das condições (a 17.ª) estipuladas em 1920 para a admissão dos partidos na Internacional Comunista, um património que a corrente «antirrevisionista» pretendia recuperar. Também o nome do MRPP aparece como Movimento Revolucionário (e não Reorganizativo) do Partido do Proletariado (p. 14). Mas o caso mais enigmático é o da sigla PC de P (M-L) (pp. 14, 31 e 484). Poderia tratar-se do PCP (M-L), mas este nunca grafou desse modo a sua sigla, embora alguns dos seus antagonistas, por vezes, o tenham feito. A determinada altura do texto percebe-se que a organização a que se refere é o Partido Comunista de Portugal (em construção), mais conhecido por «O Bolchevista». Só que, até setembro de 1974, não se denominava PC de P (e.c.) – nem, muito menos, PC de P (M-L) –, mas sim Comité Marxista-Leninista de Portugal (CML de P), pelo que seria esta a denominação correta com que deveria ter sido designado no repertório.
13 Incorreções relativas aos títulos recenseados: Boletim (p. 186): a referência da sua ligação à LCI não faz sentido uma vez que esta organização só foi fundada em 1973, devendo ser atribuída aos Grupos de Ação Comunista (GAC); CAP (p. 255): não era realizada por estudantes da Faculdade de Direito de Lisboa, mas sim por Fernando Rosas e Maria da Conceição Lino Neto; EDE (p. 289): os textos que publicava não eram dos autores que cita, tendo sido todos escritos por Fernando Rosas, como este já revelou em público, pelo menos por duas vezes; Luta Operária e Luta Operária. Marxista-Leninista (pp. 403 e 406): embora refira que o segundo é a continuação do primeiro, o facto de o jornal manter a numeração sequencial não justificava duas entradas independentes – pois, na realidade, não são dois jornais diferentes, mas o mesmo jornal, que a partir do n.º 6 acrescentou um subtítulo –, tal como procedeu, corretamente, para com O Grito do Povo, que inicialmente tinha como subtítulo «jornal operário comunista» e, depois, «órgão da OCMLP», mantendo igualmente a numeração sequencial. Aliás, foi esse o critério adotado pelo Centro de Documentação 25 de abril. O Partido (p. 441): a OCMLP não teve «vários» boletins internos, apenas dois; afirma também que «não foi possível verificar» se a sua publicação se iniciou antes do 25 de abril, mas poderia tê-lo feito muito facilmente, evitando incluir um título que só surgiu após aquela data e que, por conseguinte, não devia constar no repertório. Seara Vermelha (p. 513): ao contrário do que afirma, a revista não deixou de se publicar após o 25 de abril, tendo sido editados mais oito números, até 1978.
14 Incorreções sobre a história das organizações: LCI (p. 320): a LCI não podia ter participado na crítica às eleições de outubro de 1973 pois só foi fundada em dezembro desse ano; as posições trotskistas eram então defendidas pelos GAC; O Grito do Povo (pp. 325-330): em relação à Organização que publicava este jornal e que veio a denominar-se OCMLP há inúmeras incorreções, entre as quais: o «Américo» não foi o responsável pela imprensa (p. 325) mas sim pela última tipografia clandestina, o que é bem diferente; o nome OPR (p. 326) nunca foi usado em público, apenas era conhecido internamente, e só no início da sua atividade; é também errado afirmar que o setor Sul do «O Comunista» não queria aceitar o «O Grito do Povo» (p. 328) como direção do interior, pois essa questão apenas foi discutida no exterior; não existiu uma mera fusão das duas organizações (p. 328), mas sim a integração do «O Comunista» na Organização do «O Grito do Povo», o que é completamente distinto, com base na aceitação por parte daquele de um documento com 14 exigências, entre as quais a que envolvia a sua clara opção pelo marxismo-leninismo e a subordinação do exterior ao interior; as cisões verificadas no «O Comunista» (p. 329) não se deveram a um suposto conflito exterior-interior, tendo sido a consequência natural da luta ideológica travada no exterior, que fora exigida pelo «O Grito do Povo».
15 Incorreções sobre os militantes das várias organizações: MRPP: Arnaldo Matos nunca foi do PCP (p. 289); OCMLP: entre os fundadores falta Rui Loza (p. 325), que foi o seu principal dirigente após a prisão de Pedro Baptista; uma das debilidades do livro diz respeito, precisamente, à enorme falta de rigor com que o autor se refere à composição dos membros das diferentes organizações (principalmente das m-l) e aos cargos que exerciam como, por exemplo, se verifica com a FEM-L e os CREC’s; assim, quanto à FEM-L (p. 330): Fernando Rosas só exerceu as funções de controleiro até à sua prisão em agosto de 1971, cargo que depois passou para Danilo Matos; o autor atribui indiscriminadamente vários militantes à FEM-L, mas não refere os seus fundadores, que foram Danilo Matos, Camilo Inácio e Duarte Teives, embora este a tenha abandonado; quanto ao CREC de Coimbra (p. 518): a sua primeira composição, responsável pela edição do Servir o Povo, contava apenas com José Queirós, Rui Carmo e Teresa Veludo; alguns dos outros nomes referidos nunca integraram a Organização dos CREC’s.
16 Pequenas incorreções: o nome da Sociedade de Construções Eletromecânicas, de São Mamede de Infesta, é SEPSA e não CEPSA (p. 423); o mesmo se verifica com Francisco Martins Rodrigues, que aparece como Francisco Maria Rodrigues (p. 477); e, já agora, não me chamo Lopes Cardoso (p. 130). No Índice Remissivo, algumas das páginas indicadas não correspondem ao autor citado; também não se compreende que algumas das capas reproduzidas estejam cortadas. Aliás, quanto aos aspetos gráficos e formais, é inevitável comparar este livro com um outro publicado em 2011 no Brasil sobre idêntica temática (As Capas desta História. A imprensa alternativa, clandestina e no exílio, no período 1964-1979, Instituto Vladimir Herzog) e constatar como é possível apresentá-los de um modo exemplar.
17 Relativamente à imprensa selecionada para o repertório é muito discutível incluir publicações das correntes associativas estudantis e não o fazer para as de carácter mais abertamente político, como as do MAESL (Intervalo e Ao Trabalho, assim como os vários jornais que publicava por escola, O Grito, Movimento outubro, Impulso, etc). Para além de vários títulos em falta, há também uma quantidade considerável de jornais paralegais que não foram incluídos – de organismos culturais, cooperativas, círculos culturais, etc –, animados pela extrema-esquerda, que um pequeno esforço de investigação no Centro de Documentação 25 de abril, ou o contacto com outros investigadores, resolveria facilmente, embora, como é óbvio, o autor esteja no seu pleno direito de efetuar um «trabalho individual» (p. 17). Contudo, ao assumir essa postura de auto-exclusão da comunidade científica (que inclui «não académicos»), que há muitos anos tem vindo a investigar a história da extrema-esquerda e já proporcionou várias teses de mestrado e uma de doutoramento (premiada), para além das que estão em curso, o autor ignora (e desconsidera) o que tem sido debatido, estudado e publicado. Caso contrário, não só evitaria alguns dos erros «de palmatória» acima apontados, como não teria qualquer dificuldade em obter exemplares de todos (e de mais alguns) os títulos que refere «não ter sido possível encontrar algum exemplar». Deste modo, não é surpreendente que não se iniba em afirmar que «tenho consciência de que a história da imprensa clandestina esquerdista e radical nos últimos quinze anos da ditadura começa aqui» (p. 20) ou que «90% da informação sobre estas publicações é inédita» (Diário de Notícias, p. 15).
18 Em suma, um trabalho desequilibrado, com um bom ensaio inicial (não isento de incorreções), algumas entradas muito boas, mas com demasiados erros, omissões e imprecisões, assim como vários casos de investigação deficiente, numa obra que se pretende de referência. Incorreções, algumas delas tão flagrantes, que só se podem compreender no caso de o livro não ter sido sujeito a uma adequada revisão editorial (como o próprio diria, no seu programa da SIC «Ponto/Contraponto», «mau trabalho»). Apesar de ter sido recebido acriticamente pela comunicação social – o Jornal de Letras (de 6 de março) considerou-o uma «investigação excecional» (sic) –, pelo acima exposto facilmente se constata que, independentemente dos aspetos positivos já assinalados e do interesse geral que o livro apresenta, o autor desperdiçou uma boa oportunidade para elaborar uma exemplar obra de referência.
José Manuel Lopes Cordeiro – Professor auxiliar do Departamento de História do Instituto de Ciências Sociais da Universidade do Minho e investigador do Centro de Investigação Transdisciplinar «Cultura, Espaço e Memória». E-mail:
cordeiro@ics.uminho.pt.