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A Escrita da História. Lisboa: Temas e Debates | José Mattoso
A escrita da História é um livro que compila conferências e palestras várias do historiador português José Mattoso, proferidas entre 1986 e 2000, em diversos lugares do globo. Como o próprio afirma, com elas não procura “o sentido da História” (p.8), antes aí encontra uma forma de “juntar-[se] à sinfonia da História” (p.11).
Esses textos reunidos no exemplar em análise abordam temáticas que o autor deseja particularmente úteis para quem lê, nomeadamente, a construção crítica do texto historiográfico, o ensino da História, os arquivos e a sua ligação à construção histórica e temas outros, vastos, como o nacionalismo ou as iluminuras. Principiando pelo capítulo um – A escrita, contam-se cinco textos sobre, na perspetiva daquele estudioso, as especificidades da História e da Historiografia (e seus rumos). Leia Mais
História da vida privada em Portugal. A Idade Moderna – MONTEIRO; MATTOSO (Tempo)
MONTEIRO, Nuno Gonçalo (Org.); MATTOSO, José (Dir.). História da vida privada em Portugal. A Idade Moderna. Lisboa: Círculo de Leitores, 2011. 494 p. Resenha de: MONTEIRO, Rodrigo Bentes. Do privado ao oculto. Tempo v.18 no.32 Niterói 2012.
O segundo volume da coleção editada pelo Círculo de Leitores tem como referência a edição francesa de 1986. Mas, escrito em outro momento e sobre o contexto mais delimitado de Portugal na época moderna, o livro organizado por Nuno Monteiro, sob a direção de José Mattoso, evita os paradigmas do Estado justiceiro e financista, bem como da família moderna, para explicar o surgimento de uma suposta esfera privada em Portugal, contraposta à pública. Na introdução, Monteiro alerta para a distinção entre os dois âmbitos, só consagrada na contemporaneidade. Conscientes do anacronismo da proposta para o período, os autores esmeram-se para abordar temas hoje considerados da vida privada, mas que na época moderna, em Portugal, não o eram. Desse modo, o volume confronta os modelos propostos por Habermas, Elias ou Ariès com investigações recentes da historiografia portuguesa. Questionam-se o teleologismo da ideia de modernização e a aplicação de uma cronologia de matriz francesa na história de Portugal, em que a afirmação da monarquia não foi linear, e a difusão da leitura e da escrita, limitada à época estudada. Trata-se, assim, de contemplar os temas questionando sua procedência. Essa é uma característica do livro, em um entrecruzar de teoria e empiria que marca o ofício do historiador. Se os portugueses modernos não viajaram muito a outros reinos europeus, circularam pela Espanha durante a união das coroas e pelos espaços ultramarinos, construindo, também, sua privacidade integrada ao mundo colonial, em especial à América portuguesa. Procurou-se, ainda, não escrever uma história do cotidiano ou da cultura material, embora a fronteira entre esses aspectos e a “vida privada” fosse tênue.
O volume em tela divide-se em cinco partes. A primeira trata dos poderes normatizadores da monarquia e da Igreja – sobretudo pós-tridentina. Com dois capítulos de António Manuel Hespanha e um de Joaquim Ramos de Carvalho, salta aos olhos a discrepância de abordagens. Hespanha adota a macroanálise para explicar a importância da ordem, do controle e do autocontrole no mundo ibérico, em uma sociedade que vigiava a si mesma. E particulariza os juristas, detentores dum saber especializado e de cargos na monarquia, como grupo social acima da pluralidade de poderes. Os juristas integravam uma cultura escrita afinada a um mundo dominado pelo direito em latim – uma língua quase sacral. O discurso jurídico era meio de distinção social e de eficácia da lei. Já Ramos de Carvalho analisa a Igreja, os indivíduos e os territórios de forma mais concreta, com riqueza factual e alusões a comportamentos em que o privado era associado ao ilícito ou oculto, em meio a visitas pastorais, devassas, denúncias e castigos. Nesse âmbito, as determinações tridentinas não encontraram oposição do poder régio em Portugal, diferentemente de outros países europeus. Constituía-se, assim, uma sociedade em que a articulação entre o privado e o público marcava-se pelas concepções de salvação e pecado.
Na segunda parte, que analisa as relações entre indivíduos e famílias, Isabel dos Guimarães Sá considera o tratamento distinto da infância por parte dos pais em relação à mocidade, quando a expectativa de morte dos filhos enfim diminuía. Os jovens portugueses não teriam muita margem de decisão: os primogênitos estudavam pouco devido ao sistema de morgadio, as viagens europeias não eram frequentes, tampouco os manuais de civilidade. Os das camadas populares eram amamentados pelas mães biológicas, e a proliferação do abandono de crianças expostas geraria o sistema da roda em 1783. Em vários tópicos, a autora relativiza as ideias propostas por Ariès, pois, no que toca às crianças, a esfera familiar passava mais ao controle público da Igreja ou da coroa. Por sua vez, Ramos de Carvalho aborda as sexualidades sob o prisma do “padrão de casamento europeu” vigente em Portugal. Nessa lógica, faz sentido o relato da mulher mais velha e órfã em Soure, ao início do século XVIII, que consumara relações sexuais antes do casamento para conseguir um marido improvável. A vida sexual baseava-se no controle dos instintos, mediante o casamento tardio, a contracepção e a pressão da Igreja. No entanto, o sistema permitia conflitos e hesitações em torno da sexualidade ilegítima. A esfera familiar como entrave ao privado retorna no capítulo de Monteiro sobre a casa nobre – acepção diferente da “família moderna” e defendida pelo autor como central na sociedade estudada. Contrariando a ideia de que os nobres acompanhavam as transformações sociais e psicológicas dos séculos XVII e XVIII, Monteiro observa o controle dos casamentos pela monarquia portuguesa no período, com o fortalecimento da primogenitura e a nobreza ou fidalguia transmitidas por linha paterna ou materna – diferentemente de outros países europeus. Mas a diversidade não seria pensada em termos de atraso ou situação periférica, pois no século XVI a Península Ibérica era centro de referências.
A terceira parte é a mais longa do livro, com experiências do privado em vários espaços. Pedro Cardim estuda a corte régia com referência inequívoca à teoria de Elias, inclusive no tocante às relações entre indivíduo e sociedade. Indaga-se até que ponto esse modelo francês seria pertinente a Portugal, onde não havia nobreza de corte até meados do século XVI e onde a austeridade dos primeiros reis Braganças produziu uma corte pouco sofisticada no XVII. Supõe, assim, que a afirmação da corte lusa como arquétipo social foi mais gradual que em outros reinos europeus. Não obstante, concede atenção a cartas de cortesãos, reis e rainhas, a áreas reservadas do palácio, à vida familiar e de corte, por fim, a ministros “privados” ou favoritos régios. Em seguida, Mafalda Soares da Cunha e Nuno Monteiro voltam ao tema das “grandes casas”. Em Portugal, elas tiveram origem em uma mercê régia e confundiam-se com os fidalgos convocados para assembleias de cortes. No século XVII, os principais nobres portugueses passaram a residir em Lisboa. Embora não fossem refinadas, as grandes casas tinham vários andares e muita gente: senhores, filhos sucessores (mesmo casados), irmãos, tios e criados. O tamanho da criadagem relacionava-se com a importância do titular da casa; de modo semelhante ao ocorrido em Madri, mas diferente dos casos inglês e francês. Em termos de divisões internas, constata-se um aumento dos corredores e do espaço “privado”; mas a cozinha continuava imensa. Não havia apego às artes, e eram poucos os nobres partícipes de academias literárias. A análise das bibliotecas e coleções foi prejudicada pelo terremoto de 1755.
Também na terceira parte, Fernanda Olival ocupa-se dos lugares do privado nos grupos populares e intermédios. Na difícil tarefa de estudar segmentos sociais tão heterogêneos, a perspectiva de encontrar “muita gente em uma só casa” é detalhada pela autora ao lidar com registros paroquiais e concelhios de vários pontos do país. Mas os agregados não eram apenas consanguíneos: aprendizes moravam com seus mestres; caixeiros, com os mercadores. Em todo caso, a dimensão de uma família seria semelhante à média europeia, de quatro a seis pessoas. No interior das habitações, a privacidade era reduzida em relação à rua pelas janelas sem vidros, e aos vizinhos, pelas frestas. As divisões internas variavam, sendo também analisadas por áreas geográficas portuguesas. Olival envereda, então, pelo uso dos colchões, esteiras, leitos, estrados, oratórios e “privadas” – no que flerta com a cultura material. No campo da higiene pessoal, vale-se de exemplos franceses para constatar sua precária existência em Portugal, mediante inventários e tombos. A casa dos setores médios e populares era mais abrigo que refúgio de intimidade, enquanto o “privado” era associado ao interdito ou velado. A propósito, outro capítulo de Isabel Sá compreende os ambientes que alteravam a identidade de seus internos. Nos conventos femininos, entre clarissas e carmelitas descalças, a autora analisa a dependência de esmolas das primeiras, a relação com o século, as beatas, os princípios de entrada em uma ordem religiosa. Aborda, então, a prática do cilício e as disciplinas, a roda e o ralo como meios de comunicação com o exterior, e a moda freirática nos séculos XVII e XVIII. Sim, muitas freiras eram cultas e atraíam os homens. Mas a escrita conventual podia relatar experiências místicas arriscadas à perseguição inquisitorial, sobretudo se vindas de cristãs-novas. Sente-se falta, aqui, da menção aos conventos masculinos. Com consultas às obras de Francisco Manuel de Melo e Rafael Bluteau, os recolhimentos com estada provisória para mulheres também são contemplados, bem como as casas de misericórdia, sua distribuição de dotes e a assistência em segredo aos “pobres envergonhados” – diferentes dos que expunham a miséria nos hospitais. Misericórdias que também assistiam aos presos, pois nos cárceres portugueses a segregação não era total. Mas as condições de higiene das prisões eram péssimas, e nelas vigia a mistura de crimes e condições, albergando inclusive loucos.
Portugal foi dos primeiros países a valer-se da pena do degredo, em uma hierarquia de lugares: do degredo interno ao Brasil, até as ilhas de São Tomé e Príncipe e África. Ainda na terceira parte, viaja-se para a América portuguesa, pelo recorte feito por Laura de Mello e Souza ao relatar aspectos da vida privada dos seus governadores no século XVIII. Até meados desse século, para esses homens o novo cargo significava a ruptura com a vida familiar, a solidão combatida no trabalho. Sentiase medo do desconhecido, do clima, das revoltas, das expedições. A autora explora os cardápios dessas aventuras pelo Sertão, os alimentos dos matos e a penúria de meios. Quanto às casas desses governadores, só por eufemismo eram chamadas “palácios”. Nesse tópico, é pena não se ter explorado a escravidão doméstica. Os administradores criavam, pela correspondência, uma solidariedade com colegas de governo no interior do Brasil, ou com os que estavam de passagem vindos da África ou da Índia. Forjavam-se, assim, relações pessoais: as cartas do marquês de Lavradio, vice-rei no Rio de Janeiro, mostram como ele escrevia menos aos amigos da corte e cada vez mais aos governantes de outras regiões, de quem se sentia mais próximo. O que era público tornava-se privado.
No único capítulo da quarta parte, João Luís Lisboa e Tiago C. P. dos Reis Miranda dedicam-se aos usos da leitura e da escrita. De forma original, relativizam as diferenças entre manuscrito e impresso. Mas o impresso, mais que o manuscrito, forçava a entrada do livro nos espaços privados. Analisam as novas formas de sociabilidade em torno da escrita, enquanto a leitura tornava-se individualizada e silenciosa. Contudo, são atentos à alta “iliteracia” em Portugal no contexto do sul europeu, diferenciando o saber assinar do escrever e ler. Mas, em parte devido a reformas clericais que repercutiam no ensino, o público leitor era alargado. Com mais escolas, aprendiam também os de novas profissões, além das moças, que passavam a escrever. Surgiam, assim, os gostos literários: nas bibliotecas dos juristas, os livros de direito, história, política e administração; já os nobres eram mais ecléticos, enquanto os romances agradavam aos mercadores. O apreço pela posse dos livros fica evidente nas inscrições encontradas em alguns deles, ameaçando quem os perdesse. Envereda-se, então, pelos usos da correspondência, na preocupação com o estilo das cartas próprio de uma sociabilidade cortesã, familiar ou amical. Desse modo, a publicação de cartas é contraposta às que deveriam permanecer secretas; por exemplo, na conjuntura da prisão dos Távoras.
A última parte contrapõe velhas e novas relações entre vida privada e política. Mafalda Cunha e Nuno Monteiro estudam as mobilizações de nobres e comunidades. Definem um contexto paradoxal, com persistências e novidades em relação ao medievo: os conflitos políticos continuavam pulverizados, mas as demandas eram, então, dirigidas aos tribunais régios – e não mais às cortes. A dissimulação era admissível para alguns, como resguardo de oportunidade, reveladora da virtude da prudência. Em decorrência, havia grande concorrência social, indissociável da “microconflitualidade”. A exposição esquemática ao início do capítulo ganha vida com a exposição de casos. Entra-se, assim, nas brigas de senhores, suas criadagens e clientelas nos séculos XVII e XVIII em Lisboa, quadro que pode explicar a inexpressividade de duelos e grandes motins em Portugal à época. Por fim, Maria Alexandra Lousada aborda o espaço público luso setecentista nas novas sociabilidades culturais, mormente em academias, salões e cafés – espaços “informais” distintos da corte e do governo. Justifica, assim, o não tratamento das maçonarias no capítulo, tidas como grupos formais. O argumento é frágil, uma vez que as tardias academias portuguesas guardavam forte relação com o poder régio, e as maçonarias eram sociedades secretas. Não obstante, as várias remissões a Habermas fazem mais sentido neste último texto, ao captar suas definições de “público” e “burguês”. A autora situa o debate historiográfico com interpretações díspares sobre a vida cultural em Portugal ao fim do Antigo Regime. Se os trabalhos sobre academias literárias são bastante conhecidos, salta aos olhos a análise das assembleias – mais mundanas e menos literárias que os salões – e dos outeiros – reuniões poéticas nas grades de conventos femininos. Adentramos, enfim, os cafés do final do século XVIII, com Bocage e a boemia literária lisboeta, sob a vigilância do intendente Pina Manique. Embora eles não tenham originado clubes como em Londres ou Paris, constituíam um espaço “semipúblico” fora da influência acadêmica ou aristocrática. Neles, os atos de governo eram comentados.
Seria desejável, no decorrer do livro, um maior cuidado na uniformidade do uso de maiúsculas ou minúsculas nos nomes de instituições, épocas etc., além de um apreço da editora pela reforma ortográfica, que beneficia todo o mundo lusofônico forjado por Portugal na época moderna. Apesar das lacunas temáticas verificadas ao longo da obra, algumas justificadas pela dificuldade das fontes, outras revelando adequação às especializações dos autores, o volume organizado por Nuno Monteiro sobre a vida privada no Portugal moderno possui um grande mérito, porque consegue transpor para a especificidade portuguesa da época conceitos que não foram pensados para ela, sabendo-os discutir e problematizá-los. Faz despontar, assim, uma privacidade lusa refém da conversão forçada ao catolicismo e das disposições de Trento, bem como da opulência de algumas casas nobres que sufocava, justamente, esse âmbito particular. Tal engenho decorre em parte da capacidade de pesquisa de muitos autores, e de sua erudição. Não obstante, a passagem de abordagens entre o abstrato e o concreto é, por vezes, abrupta na obra, e em alguns momentos não há harmonia dentro de um mesmo capítulo. Ainda assim, louva-se o empenho da equipe de autores – em geral, mais afeita ao signo da alteridade do “Antigo Regime” do que à etiqueta progressista de “Idade Moderna” que sela a obra – em manejar com habilidade esse deslocamento conceitual. Resta saber se a historiografia francesa contemporânea hoje produziria um volume bastante diferente daquele de 1986, ou os modelos pioneiros permanecem com a sua força para inspirar trabalhos tão interessantes.
Rodrigo Bentes Monteiro – Professor-doutor da Universidade Federal Fluminense.