Circulação de saberes no Mundo Atlântico: escrita da história, cultura letrada e cultura científica / Clio – Revista de Pesquisa Histórica / 2014

A chegada dos europeus ao Novo Mundo promoveu, desde os primeiros contatos que se estabeleceram com as populações nativas, a produção de uma extensa e diversificada gama de documentos oficiais, relatos de viagens, crônicas, tratados, desenhos, mapas, inventários de história natural e coleções de espécimes. Mais do que meras percepções da Europa acerca do mundo que a expansão marítima, a conquista e a colonização criaram, esta produção escrita, iconográfica e cartográfica evidencia tanto a circulação de ideias, pessoas, objetos, saberes e práticas, quanto as configurações étnicas e identitárias resultantes do intenso contato intercultural. Uma produção que aponta, portanto, para a intensa circulação de ideias e de conhecimentos entre a América, a África e a Europa ocorrida durante a Idade Moderna.

Este dossiê foi organizado, justamente, para divulgar os trabalhos de pesquisadores que, à luz das contribuições da História Social, Cultural e das Ciências, vêm refletindo sobre este intenso processo de circulação de ideias, saberes e práticas que se estendeu do século XVI ao XIX. Como o leitor poderá acompanhar nas páginas seguintes, os artigos que compõem este dossiê se debruçam sobre essa temática a partir de diferentes abordagens e refletem sobre sujeitos, espaços e tempos distintos, não descuidando de discutir sobre as diversas maneiras de se escrever a história destas incontáveis e intensas situações de interculturalidade. Situações que alimentaram um movimento contínuo de cruzamento e reposição de fronteiras territoriais, étnicas e políticas, que articularam diferentes estratégias individuais, coletivas e institucionais, e favoreceram diferentes fluxos de informações e de apropriações materiais ou simbólicas.

No primeiro artigo, intitulado Entre homens de saber, de letras e de ciências, médicos e outros agentes da cura no Brasil Colonial, Ana Carolina de Carvalho Viotti nos oferece uma ampla caracterização do período que antecedeu o estabelecimento da Corte portuguesa, evento que acabaria por introduzir e difundir o ensino e a prática essencialmente médica no Brasil do início do século XIX. De acordo com a autora, o período colonial foi marcado pela pluralidade de agentes e saberes curativos e pelo intenso intercâmbio entre as ideias advindas do Velho Mundo e as necessidades – e possibilidades – que os trópicos criavam aos que neles viviam.

O pão das Índias: o milho nos relatos de Diego Durán e José de Acosta é o título do artigo de Luís Guilherme Assis Kalil e Renato Denadai da Silva. Nele, os autores analisam textos produzidos pelo dominicano Diego Durán e pelo jesuíta José de Acosta, enfocando a compreensão que tiveram do universo indígena, em especial da relação estabelecida entre a alimentação e as crenças indígenas, tema ainda pouco explorado pela historiografia sobre as Américas. Kalil e Denadai da Silva não apenas identificam diversas representações do milho, como destacam seu papel de mediador na incorporação intelectual de um universo natural e moral distinto do dos europeus.

No terceiro artigo, intitulado Mediações culturais no além-mar: O padre Mamiani e os usos da Língua Kariri nas brenhas dos sertões, Ane Luíse Mecenas Santos aborda o papel de mediador cultural desempenhado pelo padre jesuíta Mamiani que, encarregado da conversão de indígenas Kiriri, grupo que não falava a língua geral e vivia nos sertões da Capitania de Sergipe Del Rey, escreveu, ao final do século XVII, uma gramática e um catecismo, através dos quais é possível reconstituir aspectos da cultura Kiriri, em especial, de suas manifestações de religiosidade.

Clio no Ultramar: elementos da historiografia portuguesa nas narrativas seiscentistas da “guerra holandesa” é o título do artigo de Kleber Clementino, para quem a historiografia portuguesa reverbera nas narrativas sobre a presença holandesa no Atlântico Sul (1630-1654), indicando que, embora as obras devam ser lidas em diálogo com seus contextos históricos específicos, as concepções de história e os elementos retóricos que as caracterizam se inspiram em um paradigma historiográfico enraizado na Península Ibérica.

No artigo seguinte, A escrita e o envio de cartas do governador-geral Francisco Barreto (1657-1663), Caroline Garcia Mendes destaca a importância da correspondência para a comunicação e para a administração portuguesa no além-mar no século XVII. A autora analisa, especificamente, as cartas enviadas pelo governador-geral Francisco Barreto a oficiais no interior do Estado do Brasil e para o Reino, entre os anos de 1657 e 1663, discorrendo sobre as redes de informação que se formaram entre a Europa e a América portuguesa no período.

Já Antonio Astorgano, em La difícil circulación de los libros devocionales del jesuíta mexicano José Ignacio Vallejo (1772-1788) analisa a trajetória desse padre da Companhia de Jesus, destacando sua atuação em colégios da Guatemala e da Itália. O autor explora suas relações pouco amistosas com personagens como Ventura Figueroa e, também, com o conde de Floridablanca, com o duque de Grimaldi e com José Nicolás de Azara, embaixadores junto à Santa Sé, vinculando-as às dificuldades de introdução e circulação de seus livros de devoção na América.

Também Marcelo Cheche Galves e Romário Sampaio Basílio, no artigo intitulado Saberes em circulação na América portuguesa: os estudantes maranhenses na Universidade de Coimbra (1778-1823), se dedicam à análise da circulação de impressos em São Luís do Maranhão e em Lisboa, no período de 1778-1823, com base na documentação da Real Mesa Censória, preservada pelo Arquivo Nacional da Torre do Tombo. Além de apontar para as razões da circulação de homens e livros em um momento de importantes transformações na Capitania, os autores referem a prática das remessas de impressos por estudantes maranhenses formados em Coimbra, destacando algumas das obras enviadas ou trazidas em suas bagagens.

O artigo Viagem ao Brasil: produção e circulação entre o público europeu do século XIX de Igor de Lima e Silva encerra o dossiê. O autor aborda a produção e a circulação da narrativa Viagem ao Brasil, do naturalista prussiano Maximiliano de Wied-Neuwied, que percorreu regiões do Brasil entre os anos de 1815 a 1817. A infinidade de informações sobre a fauna, a flora e os povos indígenas que Wied-Neuwied recolheu foi – após seu retorno à Europa – reunida e divulgada sob a forma de livro. Os dois volumes de Viagem ao Brasil foram lançados em 1821-1822 alcançando grande repercussão, com várias edições e traduções para vários idiomas. Lima e Silva se detém na análise dessas diferentes edições e traduções que a obra teve ao longo do século XIX, identificando e refletindo sobre as significativas alterações e sobre os efeitos da “imagem difusa” – e até deturpada – que elas ajudaram a difundir.

Na seção de artigos livres, o leitor poderá travar contato com duas produções de temáticas distintas, mas que acabam por fornecer um quadro sobre aspectos da economia e da cultura religiosa na América portuguesa do Antigo Regime – conferindo, em termos de conjuntura, um valor complementar aos estudos do dossiê.

Breno Almeida Vaz Lisboa, em seu artigo Engenhos, açúcares e negócios na capitania de Pernambuco (c. 1655 – c. 1750), procura pensar a economia açucareira da capitania pernambucana entre o fim do século XVII e o início do XVIII. A despeito da crise economia seiscentista, o autor constata que novos engenhos foram levantados nessa capitania entre as décadas de 1650 e 1750. Tal dado, segundo ele, aponta para o desenvolvimento de práticas comerciais paralelas que, por sua vez, ajudariam à indústria açucareira a contornar os problemas econômicos pelos quais passava.

Já o artigo de André Cabral Honor intitulado Origem e expansão no mundo luso da observação de Rennes: a mística-militante dos carmelitas turônicos ou reformados no século XVII e XVIII discute as ressonâncias da formulação das Constituições Carmelitas da Estrita Observância no contexto da América portuguesa. Vulgarmente denominadas de “Reforma Turônica”, tais constituições forneceram aos carmelitas calçados uma legislação que buscava conciliar a experiência mística à catequese. Segundo o autor, ainda que os seguidores dessa nova observância não tenham formado uma nova ordem religiosa, ela acarretou na divisão dos frades carmelitas que daria origem à Província Reformada de Pernambuco, no ano de 1725.

Os trabalhos publicados nesta edição oferecem, direta ou indiretamente, uma radiografia da cultura escrita no Mundo Atlântico. Uma cultura que participou na formação de modelos explicativos coevos (historiográficos, científicos, etc.); enriqueceu-se pela circulação de homens de letras e de seus escritos; reafirmou, validou e traduziu – através de práticas discursivas – políticas administrativas, espaços de domínio e padrões de sociabilidade.

Fechando esta edição, contamos com uma resenha crítica que analisa a obra recém publicada de Antônio Jorge Siqueira, Labirintos da Modernidade: memória, narrativa e sociabilidades, de autoria de Márcio Ananias Ferreira Vilela.

Juntamente com o editor da Revista Clio e os autores dos artigos do presente número de 2014 – aos quais agradecemos pelas contribuições –, oferecemos este dossiê com a expectativa de que seus leitores dêem continuidade ao esforço de compreensão e de reflexão sobre as formas que a circulação de ideias e de conhecimentos entre América, África e Europa assumiu e sobre seus efeitos nas configurações sociais, culturais e políticas nas duas margens do Atlântico.

Eliane Cristina Deckmann Fleck – UNISINOS

Marília de Azambuja Ribeiro – UFPE


FLECK, Eliane Cristina Deckmann; RIBEIRO, Marília de Azambuja. Apresentação. CLIO – Revista de pesquisa histórica, Recife, v.32, n.1, jan / jun, 2014. Acessar publicação original [DR]

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Circulação de saberes no Mundo Atlântico: escrita da história, cultura letrada e cultura científica / Clio – Revista de Pesquisa Histórica / 2014

A chegada dos europeus ao Novo Mundo promoveu, desde os primeiros contatos que se estabeleceram com as populações nativas, a produção de uma extensa e diversificada gama de documentos oficiais, relatos de viagens, crônicas, tratados, desenhos, mapas, inventários de história natural e coleções de espécimes. Mais do que meras percepções da Europa acerca do mundo que a expansão marítima, a conquista e a colonização criaram, esta produção escrita, iconográfica e cartográfica evidencia tanto a circulação de ideias, pessoas, objetos, saberes e práticas, quanto as configurações étnicas e identitárias resultantes do intenso contato intercultural. Uma produção que aponta, portanto, para a intensa circulação de ideias e de conhecimentos entre a América, a África e a Europa ocorrida durante a Idade Moderna.

Este dossiê foi organizado, justamente, para divulgar os trabalhos de pesquisadores que, à luz das contribuições da História Social, Cultural e das Ciências, vêm refletindo sobre este intenso processo de circulação de ideias, saberes e práticas que se estendeu do século XVI ao XIX. Como o leitor poderá acompanhar nas páginas seguintes, os artigos que compõem este dossiê se debruçam sobre essa temática a partir de diferentes abordagens e refletem sobre sujeitos, espaços e tempos distintos, não descuidando de discutir sobre as diversas maneiras de se escrever a história destas incontáveis e intensas situações de interculturalidade. Situações que alimentaram um movimento contínuo de cruzamento e reposição de fronteiras territoriais, étnicas e políticas, que articularam diferentes estratégias individuais, coletivas e institucionais, e favoreceram diferentes fluxos de informações e de apropriações materiais ou simbólicas.

No primeiro artigo, intitulado Entre homens de saber, de letras e de ciências, médicos e outros agentes da cura no Brasil Colonial, Ana Carolina de Carvalho Viotti nos oferece uma ampla caracterização do período que antecedeu o estabelecimento da Corte portuguesa, evento que acabaria por introduzir e difundir o ensino e a prática essencialmente médica no Brasil do início do século XIX. De acordo com a autora, o período colonial foi marcado pela pluralidade de agentes e saberes curativos e pelo intenso intercâmbio entre as ideias advindas do Velho Mundo e as necessidades – e possibilidades – que os trópicos criavam aos que neles viviam.

O pão das Índias: o milho nos relatos de Diego Durán e José de Acosta é o título do artigo de Luís Guilherme Assis Kalil e Renato Denadai da Silva. Nele, os autores analisam textos produzidos pelo dominicano Diego Durán e pelo jesuíta José de Acosta, enfocando a compreensão que tiveram do universo indígena, em especial da relação estabelecida entre a alimentação e as crenças indígenas, tema ainda pouco explorado pela historiografia sobre as Américas. Kalil e Denadai da Silva não apenas identificam diversas representações do milho, como destacam seu papel de mediador na incorporação intelectual de um universo natural e moral distinto do dos europeus.

No terceiro artigo, intitulado Mediações culturais no além-mar: O padre Mamiani e os usos da Língua Kariri nas brenhas dos sertões, Ane Luíse Mecenas Santos aborda o papel de mediador cultural desempenhado pelo padre jesuíta Mamiani que, encarregado da conversão de indígenas Kiriri, grupo que não falava a língua geral e vivia nos sertões da Capitania de Sergipe Del Rey, escreveu, ao final do século XVII, uma gramática e um catecismo, através dos quais é possível reconstituir aspectos da cultura Kiriri, em especial, de suas manifestações de religiosidade.

Clio no Ultramar: elementos da historiografia portuguesa nas narrativas seiscentistas da “guerra holandesa” é o título do artigo de Kleber Clementino, para quem a historiografia portuguesa reverbera nas narrativas sobre a presença holandesa no Atlântico Sul (1630-1654), indicando que, embora as obras devam ser lidas em diálogo com seus contextos históricos específicos, as concepções de história e os elementos retóricos que as caracterizam se inspiram em um paradigma historiográfico enraizado na Península Ibérica.

No artigo seguinte, A escrita e o envio de cartas do governador-geral Francisco Barreto (1657-1663), Caroline Garcia Mendes destaca a importância da correspondência para a comunicação e para a administração portuguesa no além-mar no século XVII. A autora analisa, especificamente, as cartas enviadas pelo governador-geral Francisco Barreto a oficiais no interior do Estado do Brasil e para o Reino, entre os anos de 1657 e 1663, discorrendo sobre as redes de informação que se formaram entre a Europa e a América portuguesa no período.

Já Antonio Astorgano, em La difícil circulación de los libros devocionales del jesuíta mexicano José Ignacio Vallejo (1772-1788) analisa a trajetória desse padre da Companhia de Jesus, destacando sua atuação em colégios da Guatemala e da Itália. O autor explora suas relações pouco amistosas com personagens como Ventura Figueroa e, também, com o conde de Floridablanca, com o duque de Grimaldi e com José Nicolás de Azara, embaixadores junto à Santa Sé, vinculando-as às dificuldades de introdução e circulação de seus livros de devoção na América.

Também Marcelo Cheche Galves e Romário Sampaio Basílio, no artigo intitulado Saberes em circulação na América portuguesa: os estudantes maranhenses na Universidade de Coimbra (1778-1823), se dedicam à análise da circulação de impressos em São Luís do Maranhão e em Lisboa, no período de 1778-1823, com base na documentação da Real Mesa Censória, preservada pelo Arquivo Nacional da Torre do Tombo. Além de apontar para as razões da circulação de homens e livros em um momento de importantes transformações na Capitania, os autores referem a prática das remessas de impressos por estudantes maranhenses formados em Coimbra, destacando algumas das obras enviadas ou trazidas em suas bagagens.

O artigo Viagem ao Brasil: produção e circulação entre o público europeu do século XIX de Igor de Lima e Silva encerra o dossiê. O autor aborda a produção e a circulação da narrativa Viagem ao Brasil, do naturalista prussiano Maximiliano de Wied-Neuwied, que percorreu regiões do Brasil entre os anos de 1815 a 1817. A infinidade de informações sobre a fauna, a flora e os povos indígenas que Wied-Neuwied recolheu foi – após seu retorno à Europa – reunida e divulgada sob a forma de livro. Os dois volumes de Viagem ao Brasil foram lançados em 1821-1822 alcançando grande repercussão, com várias edições e traduções para vários idiomas. Lima e Silva se detém na análise dessas diferentes edições e traduções que a obra teve ao longo do século XIX, identificando e refletindo sobre as significativas alterações e sobre os efeitos da “imagem difusa” – e até deturpada – que elas ajudaram a difundir.

Na seção de artigos livres, o leitor poderá travar contato com duas produções de temáticas distintas, mas que acabam por fornecer um quadro sobre aspectos da economia e da cultura religiosa na América portuguesa do Antigo Regime – conferindo, em termos de conjuntura, um valor complementar aos estudos do dossiê.

Breno Almeida Vaz Lisboa, em seu artigo Engenhos, açúcares e negócios na capitania de Pernambuco (c. 1655 – c. 1750), procura pensar a economia açucareira da capitania pernambucana entre o fim do século XVII e o início do XVIII. A despeito da crise economia seiscentista, o autor constata que novos engenhos foram levantados nessa capitania entre as décadas de 1650 e 1750. Tal dado, segundo ele, aponta para o desenvolvimento de práticas comerciais paralelas que, por sua vez, ajudariam à indústria açucareira a contornar os problemas econômicos pelos quais passava.

Já o artigo de André Cabral Honor intitulado Origem e expansão no mundo luso da observação de Rennes: a mística-militante dos carmelitas turônicos ou reformados no século XVII e XVIII discute as ressonâncias da formulação das Constituições Carmelitas da Estrita Observância no contexto da América portuguesa. Vulgarmente denominadas de “Reforma Turônica”, tais constituições forneceram aos carmelitas calçados uma legislação que buscava conciliar a experiência mística à catequese. Segundo o autor, ainda que os seguidores dessa nova observância não tenham formado uma nova ordem religiosa, ela acarretou na divisão dos frades carmelitas que daria origem à Província Reformada de Pernambuco, no ano de 1725.

Os trabalhos publicados nesta edição oferecem, direta ou indiretamente, uma radiografia da cultura escrita no Mundo Atlântico. Uma cultura que participou na formação de modelos explicativos coevos (historiográficos, científicos, etc.); enriqueceu-se pela circulação de homens de letras e de seus escritos; reafirmou, validou e traduziu – através de práticas discursivas – políticas administrativas, espaços de domínio e padrões de sociabilidade.

Fechando esta edição, contamos com uma resenha crítica que analisa a obra recém publicada de Antônio Jorge Siqueira, Labirintos da Modernidade: memória, narrativa e sociabilidades, de autoria de Márcio Ananias Ferreira Vilela.

Juntamente com o editor da Revista Clio e os autores dos artigos do presente número de 2014 – aos quais agradecemos pelas contribuições –, oferecemos este dossiê com a expectativa de que seus leitores dêem continuidade ao esforço de compreensão e de reflexão sobre as formas que a circulação de ideias e de conhecimentos entre América, África e Europa assumiu e sobre seus efeitos nas configurações sociais, culturais e políticas nas duas margens do Atlântico.

Eliane Cristina Deckmann Fleck – UNISINOS

Marília de Azambuja Ribeiro – UFPE


FLECK, Eliane Cristina Deckmann; RIBEIRO, Marília de Azambuja. Apresentação. CLIO – Revista de pesquisa histórica, Recife, v.32, n.1, jan / jun, 2014. Acessar publicação original [DR]

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Circulação e conformações de saberes no Império português, séculos XVI-XIX / Revista Brasileira de História da Ciência / 2011

Porque os Portugueses, que navegam muita parte do mundo, onde vão nam procurão de saber senam como farão milhor suas mercadorias […] Não são curiosos de saber as cousas que ha na terra, e, se as sabem, nam dizem a quem lhas traz que lhe amostre o arvore, e, se o vêem, nam o compárão a outro arvore nosso, nem proguntao se dá frol ou fruto, e que tal he.

Esta sentença foi estampada em 1563, em Goa, por ninguém menos que Garcia de Orta em seus Colóquios dos simples e drogas he cousas mediçinais da Índia. O conde de Ficalho, editor de Orta para a Academia das Ciências de Lisboa em fins do século XIX, houve por bem reforçar o veredito, anotando no pé da página um comentário seco sobre essa passagem: “Reflexão perfeitamente sentida, e que ainda hoje tem cabimento”. Esse desinteresse, essa falta de curiosidade a respeito das “cousas que há na terra” são parte fundamental da legenda negra que envolveu – e ainda envolve – muito do que já se disse sobre os projetos coloniais dos impérios ibéricos. Os próprios portugueses não fizeram pouca coisa para disseminá-la, e a narrativa da decadência, da superstição religiosa e da irracionalidade se estabeleceu com toda força na época do reformismo ilustrado, acompanhando todo o século XIX e as primeiras décadas do XX.

No Estado Novo salazarista, esboçou-se uma reação. A singularidade da experiência colonial portuguesa foi louvada em múltiplos cantos; sua capacidade de adaptação, seu estar no mundo eminentemente prático e tolerante, sua missão civilizacional foram glorificados. De maneira paradoxal, no entanto, a produção de saberes sobre o Império permaneceu vista como uma excepcionalidade – excepcionalidade de gênios, bem entendido, homens como o próprio Orta, Duarte Pacheco Pereira, D. João de Castro ou Pedro Nunes, em torno dos quais se construiu uma tradição triunfalista e patriótica. Curiosamente, as primeiras reações a essa historiografia, que se começam a esboçar nos estertores do Império Colonial cinco décadas atrás, mantiveram a condição de exceção desses homens do século XVI, e acabaram por reforçar, de certa maneira, a parcela da legenda negra que afirmava que, por centenas de anos, os portugueses sustentaram um Império sobre o qual não se interessaram intelectualmente. Sentença ainda mais forte quando se comparava à experiência do colonialismo neerlandês, francês e inglês do período.

Esse movimento, afastado dos imperativos de certo lusotropicalismo e de ideologias congêneres, teve a salutar consequência de nos chamar a atenção para o papel fundacional da violência e do racismo na conformação da empreitada imperial lusitana por mais de quatrocentos anos, até bem entrado o século XX. Em lugar das narrativas da tolerância e da civilização, temos hoje a consciência aguda do lugar central ocupado pela força bruta em todo esse processo. Terá então Orta sido vindicado, estabelecendo-se que os portugueses só se interessaram por comerciar (inclusive com seres humanos como mercadorias)? Os últimos anos têm indicado que não.

A consciência da lógica econômica e da prática brutal tem convivido com uma percepção cada vez mais consolidada de que instrumentos intelectuais de controle dos espaços, de suas gentes e de sua natureza também foram largamente empregados pelos portugueses, em seu próprio território europeu e em todas as conquistas ultramarinas. Ao contrário do que denunciaram Orta e sucessivas gerações de portugueses, eles foram sim muito curiosos das terras que encontraram, e não só em casos excepcionais. Assim, o estudo da formação de corpos de saberes necessários à constituição da ordem imperial, envolvendo práticas e conhecimentos administrativos, tecnológicos, demográficos e de inventário da natureza, ocupa hoje lugar central no programa de investigação de muitos historiadores da ciência, mas não apenas.

De fato, até meados do século XVII, Portugal tinha sob seu controle a maior e mais extensa rede mundial de portos marítimos e entrepostos comerciais, indo da América do Sul ao Japão, passando pelas duas costas da África, pela Índia e por diversos pontos da Ásia Meridional. Entre os mecanismos de controle dos domínios ultramarinos, a produção de saberes sobre os lugares e sobre os povos teve um lugar de destaque desde os primórdios da expansão marítima e esteve presente no colonialismo até a primeira metade do século XX. Mesmo após a entrada em cena de potências imperiais concorrentes, cosmógrafos, matemáticos, engenheiros, naturalistas, médicos e geógrafos a serviço de Portugal estavam espalhados pelo mundo todo, ao lado de outros agentes sociais como mercadores, missionários, marinheiros, administradores e colonos. Esses atores estiveram envolvidos, desde o século XV, nos mais variados processos de coleta, organização e troca de informações, na forma de saberes sobre o mundo natural e o território, organização social, práticas religiosas, matéria médica e muito mais. Os diversos produtos deste imenso inventário, bem como seus meios de produção, circularam, de forma manuscrita ou impressa, em livros, cartas, memórias, roteiros, mapas e imagens, ou ainda se materializaram em instrumentos e outros artefatos.

A circulação de informações e saberes sobre o Império, dentro dele e através das suas fronteiras, interessa-nos especialmente aqui. Primeiro, cabe investigar as diferentes modalidades em que os próprios saberes se organizaram, sem projetar no passado categorias disciplinares modernas. Como, por exemplo, não desconsiderar o impacto da circulação de informações em forma manuscrita e não impressa durante a Época Moderna. Essas modalidades devem ser estabelecidas tendo-se em vista seu lugar na estrutura das lógicas imperiais que se sucederam e às vezes coexistiram, e devem ser pensadas em situações históricas concretas. A dimensão complementar é o estudo do conteúdo desses corpos de conhecimento, os usos que lhes foram dados e seu estatuto comparativamente a saberes da mesma natureza produzidos por outros atores. É então que se impõe a análise das formas de circulação: público, suportes materiais, obstáculos e alcance. Os hitoriadores das ciências têm reconhecido cada vez mais que a circulação é um processo ativo em que o conhecimento é muitas vezes transformado, ressignificado e “universalizado”, a partir de sua ancoragem sempre local na incepção. As ciências modernas, longe de serem uma dádiva de algumas pessoas e instituições da Europa Ocidental ao mundo, são fruto de processos circulatórios em diversas escalas – e a do Império Português é forçosamente uma delas.

Os artigos aqui reunidos pretendem, a partir de casos específicos, analisar saberes, ciências e práticas culturais que deram lastro aos processos imperiais de controle e transmissão a longa distância, tais como evidenciados nas formas de intercâmbio, nos objetos e nos mecanismos de visibilidade e comunicação empregados na circulação do conhecimento sobre o Império Português, ao longo de alguns séculos de sua existência. Outro eixo de reflexão é a própria relação entre os saberes e o modelo imperial português, com atenção especial aos processos de coleta, formalização e disseminação do conhecimento adquirido nas possessões ultramarinas e no Reino. Investigam ainda quais os aspectos relevantes da interação entre “eruditos” e comunidades ou informantes locais, quais eram os mecanismos de difusão e legitimação do conhecimento construído em situações de contato cultural e quais os efeitos da competição e colaboração intra- e inter-imperiais na conformação dos saberes em circulação.

Abrimos o dossiê com o artigo de Lorelai Kury, A ciência útil em O patriota (Rio de Janeiro, 1813-1814). O texto nos convida a refletir sobre as caracterísitcas do Ilumismo luso-brasileiro, sobretudo no que diz respeito ao papel da imprensa na difusão não apenas das ideias, mas também como meio de propagar as novas formas de aproveitamento dos recursos naturais e as inovações técnicas que deveriam auxiliar o trabalho. Visto como um movimento reformador, o Iluminismo, conforme apresentado por Lorelai Kury, “centrou suas propostas na racionalização do uso da terra, na busca de produtos agrícolas e de origem animal alternativos, na descrição e quantificação das populações e suas atividades, na listagem, classificação e utilização dos chamados três reinos da natureza.”.

Tema caro à historiografia das ciências e da tecnologia no Brasil e em Portugal, as Viagens Filosóficas, ocorridas durante a Ilustração, são aqui tratadas por Ermelinda Moutinho Pataca do ponto de vista de sua estruturação, teórica e prática, explorando as etapas de preparação, execução e sistematização dos dados coletados nos vários pontos do Império, processo fomentado pelo Estado e organizado a partir de instituições situadas em Lisboa, em especial o Real Museu e Jardim Botânico do Real Palácio da Ajuda. Em seu artigo, “Coletar, preparar, remeter, transportar – práticas de História Natural nas viagens filosóficas portuguesas (1777-1808)”, a autora nos mostrou como, embora os resultados não tenham sido publicados, o empreendimento não pode ser considerado um “fracasso”, uma vez que as “práticas”, “técnicas” e “representações” resultantes de todo o processo, inclusive a formação de uma rede de informações que surgiu durante a preparação e realização das viagens científicas no Império português.

O artigo seguinte, Censura e mercê: os pedidos de leitura e posse de livros proibidos em Portugal no século XVIII, traz uma contribuição que pode nos levar a novas interpretações sobre a Ilustração luso-brasileira, momento bastante estudado por historiadores da Ciência e da Tecnologia entre nós. Ao analisar os pedidos de licença enviados por homens públicos, professores e clérigos aos órgãos censores de Portugal, Cláudio DeNipoti e Thais Nivea de Lima e Fonseca nos mostram como esta elite letrada tinha acesso à posse de livros que tratavam de temas “perigosos” escritos pelos filósofos ilustrados de várias partes da Europa que constavam nas listas das leituras proibidas, demonstando, assim, como havia circulação de saberes e ideias, ainda que com acesso restrito, obedecendo à lógica do privilégio da sociedade do Antigo Regime. Entre os livros, havia obras e temas importantes da cultura científica da Ilustração.

Fechamos este dossiê com o texto de Thomás Haddad que nos leva ao período anterior ao Iluminismo e ao Império português observado pelo holandês Jan Huygen van Linschoten (c. 1563-1611), em seu livro Itinerário, publicado em 1596. O livro, além de conter roteiros de viagem, ficou famoso por tratar dos portugueses no Oriente. Além de uma apresentação sumária dos conteúdos tradicionais do “conhecimento colonial” que se constitui junto com a expansão europeia, Thomás Haddad explora, sobretudo, os aspectos de uma “etnografia implícita”, refletindo sobre o tema da miscigenação, tão caro à compreensão do império português e visto com olhos críticos pelo observador batavo.

Por tudo isto, vemos o conjunto de artigos aqui publicados não como ponto de chegada, mas, sobretudo, como estímulo a novas pesquisas e questionamentos que se atenham ao papel da produção de saberes articulados ao processo de expansão portuguesa desde os seus primórdios. Acreditamos que historiadores da ciência podem contribuir ainda muito para o estabelecimento de novas investigações sobre esta temática.

Heloisa Meireles Gesteira – Museu de Astronomia e Ciências Afins. MCTI PPGHIS-UNIRIO.

Thomás A. S. Haddad – Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo. EACH / USP


GESTEIRA, Heloisa Meireles; HADDAD, Thomás A. S. Apresentação. Revista Brasileira de História da Ciência, Rio de Janeiro, v. 4, n. 2, jul. / dez., 2011. Acessar publicação original [DR]

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