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A ditadura na tela: o cinema documentário e as memórias do regime militar brasileiro- DELLAMORE et. al. (Topoi)
DELLAMORE, Carolina; AMATO, Gabriel; BATISTA, Natalia. A ditadura na tela: o cinema documentário e as memórias do regime militar brasileiro. Belo Horizonte: Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, 2018. Resenha de: CARDOSO, Igor Barbosa. História cultural, linguagem fílmica e ditadura militar brasileira. Topoi v.21 n.43 Rio de Janeiro Jan./Apr. 2020.
Há algumas décadas, os estudos culturais flexibilizaram uma tradição de estudos históricos a fim de refletir sobre as políticas de identidade que discutem a questão do sujeito a partir de conflitos sociais em que há afirmação ou negação de identidades étnicas, nacionais, etárias, de gênero, de classe e outras. A renovação dos estudos históricos impactou as análises fílmicas no sentido de superar o diagnóstico estrutural da produção cultural de massa para voltar o olhar às condições efetivas e específicas de produção e recepção da obra. O olhar histórico e sociológico tendo o cinema como fonte de pesquisa passou a privilegiar, quando muito, o nível narrativo-dramático, em detrimento dos componentes propriamente estéticos.
Sob a organização dos doutorandos Carolina Dellamore, Gabriel Amato e Natalia Batista, o livro A ditadura na tela procura equilibrar as análises oriundas dos estudos culturais, levando em consideração a linguagem cinematográfica, em uma articulação interdisciplinar. Logo na introdução (“A ditadura na tela: questões conceituais”) – escrita pelos organizadores -, três pressupostos orientam a curadoria: os filmes documentais são tratados como “trabalhos de recordação interessados na construção de identidades e de projetos políticos no tempo presente de sua produção” (p. 12); são previamente indexados de modo que pactuam com o espectador um “compromisso de exploração da realidade” (p. 13); e são resultados de uma conformação cultural atual que demanda narrativas memorialísticas. A partir desses pressupostos, os historiadores articulam – alguns com mais sucesso – elementos fílmicos e extrafílmicos para compreender os posicionamentos assumidos pelos diretores em seus trabalhos bem como a relação de suas obras com o público.
A ditadura na tela é fruto do projeto de extensão, de título homônimo, conduzido pelo Núcleo de História Oral da UFMG. Em parceria com equipamentos públicos de Belo Horizonte – Centro de Referência da Moda e Museu da Imagem e do Som (MIS) Cine Santa Tereza -, o projeto exibiu, entre 2014 e 2017, diversos documentários a respeito do período ditatorial brasileiro (1964-1985), seguidos de discussões fomentadas por pesquisadores convidados. O livro é constituído de duas partes. A primeira (“As batalhas de memória no cinema documentário sobre a ditadura”) é resultado da reunião de dez artigos oriundos dessas intervenções públicas. Em parte por isso, não é possível encontrar unicidade metodológica de análise. Os temas abordados também são diversos: a militância de mulheres, estudantes universitários e operários; a relação entre Estado, futebol e imprensa; na produção cultural, a literatura de temática lésbica de Cassandra Rios, o grupo inovador Dzi Croquettes, o movimento (musical) tropicalista e os silêncios sobre o cantor Wilson Simonal.
Juliana Ventura Fernandes analisa Repare bem (2012), documentário da cineasta portuguesa Maria de Medeiros. No artigo, alguns aspectos próprios da composição fílmica são abordados, tais como a construção cênica (locações quase sempre na casa das entrevistadas), a montagem (que faz coincidir a fala das entrevistadas com imagens documentais, reforçando o argumento apresentado) e, especialmente, a oralidade (considerando tanto os momentos de maior contundência do discurso, quanto os depoimentos mais fragmentários e fugidios, além dos silêncios e pausas). A análise da violência e da perseguição política pelas quais três gerações de mulheres foram submetidas, proposta de Medeiros, é compreendida por Fernandes no campo das estratégias estatais de construção de uma memória sobre a ditadura, uma vez que o documentário é fruto da iniciativa do projeto Marcas da Memória, que tem por finalidade construir alternativas à atuação dos órgãos oficiais de reparação – geralmente, de caráter pecuniário – ao fornecer material para o reconhecimento de experiências de violência durante a ditadura.
De modo relativamente semelhante, Gabriel Amato analisa Memória do movimento estudantil (2007), documentário dirigido por Silvio Tendler, relacionando os elementos propriamente fílmicos e o debate historiográfico sobre a União Nacional dos Estudantes (UNE), entidade que financiou a produção documental por meio de Lei Federal de Incentivo à Cultura. A partir do conceito exposto por Marie-Claire Lavabre, de que a memória histórica é uma sobreposição das fronteiras entre a prática social da memória e a atividade intelectual historiográfica, Amato propõe que a estética realista de Tendler corrobora a narrativa hegemônica sobre o movimento estudantil desenvolvida em O poder jovem (1968), de Arthur Poerner, segundo o qual “o estudante brasileiro é um oposicionista nato” (p. 56). Amato explora com acuidade o recorte realizado pelo documentarista dos documentos de época, das trilhas sonoras não originais, dos acontecimentos, das personagens e das entrevistas. Segundo o articulista, a seleção prévia expressa determinada visão de mundo que acaba por reduzir “a participação política dos estudantes brasileiros à história da UNE e a determinado modelo de militância dentro da entidade” (p. 59). Com efeito, a contracultura e o hippismo, duas manifestações culturais caras à juventude das décadas de 1960 a 80, permanecem silenciadas face à memória histórica da UNE – o que se reflete no trabalho de Tendler.
Também encontramos boa discussão historiográfica e de linguagem fílmica com Davi Aroeira Kacowicz, que analisa Tropicália (2012), documentário dirigido por Marcelo Machado. Como Amato sugeriu em relação a Memórias do movimento estudantil, Kacowicz discute a reprodução de certa memória histórica sobre a efervescência cultural dos anos 1960 no documentário de Machado, qual seja a de que a tropicália, conceito estético que designou uma constelação de vanguardas culturais, acaba reduzido ao tropicalismo, movimento musical de Gilberto Gil, Caetano Veloso, Torquato Neto e tantos outros. Em contrapartida, Kacowicz evidencia que a historiografia mais recente compreende a contracultura brasileira para além das fronteiras da cena musical, a exemplo dos importantes trabalhos de Frederico Coelho (Eu, brasileiro, confesso minha culpa e meu pecado, 2010), de Christopher Dunn (Brutalidade jardim, 2009) e de Heloísa Buarque de Hollanda (Impressões de viagem, 2004). Apesar disso, o artigo aponta que o levantamento documental empreendido por Machado traz fatos inéditos que podem revisar em parte a discussão historiográfica, como as cenas do Festival da Ilha de Wight de 1970 e a versão ao vivo da faixa Alfômega, apresentada por Caetano e Gil na rede de televisão portuguesa em 1969. Além da raridade material, Kacowicz atenta para o cuidadoso trabalho dispensado em Tropicália na condução da trilha sonora (sugerindo haver um refinamento técnico das músicas), dos efeitos de pós-produção (com inserção de cores vivas nas imagens em p&b) e de montagem, capazes de envolver o público em um “painel imagético-sonoro do contexto” (p. 133).
Da mesma forma que Kacowicz acredita que Tropicália pode contribuir para novas questões ao debate historiográfico, Natália Batista defende a tese de que o documentário Dzi Croquettes (2009), de Tatiana Issa e Raphael Alvarez, inaugurou uma discussão que ainda não havia sido feita pelos historiadores, isto é, o papel do teatro na resistência à ditadura pelo viés do escracho e do humor, com a abordagem das homossexualidades. Batista também explicita que o esquecimento/apagamento em torno do grupo teatral dificulta a construção documentária na falta de outras ancoragens narrativas. De todo modo, por meio de entrevistas, imagens de arquivo e trilha sonora, Batista acredita que Issa e Alvarez conferem uma dimensão de engajamento do grupo diante da ditadura e um reconhecimento de sua importância tanto no âmbito nacional quanto no internacional. Ademais, segundo Batista, o documentário permite questionar o pressuposto de “vazio cultural dos anos 1970” e, em especial, o papel dos corpos como atos políticos.
Ana Marília Menezes Carneiro debate a questão de gênero a partir de Cassandra Rios: a Safo de Perdizes (2013), documentário dirigido por Hannah Korich que conta com depoimentos de familiares, estudiosos e pessoas próximas da escritora, que escreveu romances bastante populares com temáticas homoeróticas. Carneiro ressalta a importância do documentário por reapresentar Cassandra Rios para além dos estereótipos muitas vezes preconceituosos e, ainda, por levar em consideração o amplo alcance de público, expressão de uma demanda social latente pelos temas ficcionalizados pela escritora. Apesar da boa discussão mobilizada por Carneiro em torno do silenciamento midiático sobre Cassandra Rios – reproduzindo em parte o argumento apresentado no depoimento de Laura Bacelar, editora de grande parte dos romances de Rios -, talvez fosse interessante resgatar reportagens de época em importantes meios de comunicação a fim de melhor explorar – e quem sabe nuançar – a tese sobre a recepção de suas obras durante a década de 1970, a exemplo do perfil elaborado sobre Cassandra Rios pela revista Realidade em 1970 e da crítica ao romance Carne em delírio escrita por Marina Colasanti e publicada pelo Jornal do Brasil em 1972.
Como no artigo de Juliana Ventura, a participação de mulheres na resistência à ditadura também é tema discutido por Débora Raiza Carolina Rocha Silva, que analisa Que bom te ver viva, documentário dirigido por Lúcia Murat e lançado em 1989. Silva retoma o contexto de produção memorialística e historiográfica sobre a ditadura militar nos finais da década de 1980 para compreender a representação do feminino na obra de Murat, em especial no que diz respeito à tortura de cunho sexual contra mulheres. Também lança um olhar atento sobre a recepção da obra no meio midiático. O artigo não explora o estatuto do documentário de Murat, constituído de cenas dramatizadas e depoimentos, o que poderia enriquecer enormemente a análise sobre as fronteiras do dizível, uma vez que a ficção é aí elemento central na abordagem de um tema sensível.
O artigo de Isabel Cristina Leite da Silva também aborda a representação do feminino durante a ditadura. Analisa Subversivas – Retratos femininos de luta contra a ditadura (2013), documentário dirigido por Fernanda Vidigal e Janaina Patrocínio. O texto destaca a inclusão de novos temas pelo documentário para compreender o período da ditadura militar, como o de conciliação entre o mundo político e o mundo privado, a maternidade, a revolução sexual e os novos comportamentos por parte de setores da sociedade brasileira frente ao aborto. A leitura realizada pela autora privilegia a exposição da narrativa desenvolvida pelo documentário, sem colocar questões com relação à linguagem propriamente fílmica.
A partir de Simonal – ninguém sabe o duro que dei (2009), documentário dirigido por Cláudio Manoel, Micael Langer e Calvito Leal, Bruno Vinicius de Morais tematiza o corpo negro do cantor Wilson Simonal como parte de uma memória subterrânea sobre o período ditatorial. Por meio de entrevistas concedidas por Manoel, que também foi comediante do grupo global Casseta & Planeta, Morais identifica um projeto de releitura sobre o período ditatorial brasileiro pretensamente assentado na renovação historiográfica empreendida por Daniel Aarão Reis Filho, para quem os anos de chumbo foram de relativo consenso e legitimação social, sendo que as esquerdas não apresentavam até então um programa democrático face ao autoritarismo de direita. Morais avalia que a forma pela qual o documentário foi recebido pela opinião pública em jornais e revistas é significativa: em geral, Wilson Simonal é representado como um artista ingênuo e apolítico; por outro lado, a esquerda é associada a um “stalinismo midiático”, tão autoritária quanto a própria ditadura. Segundo Morais, a apreensão conservadora sobre o regime militar acaba por se silenciar acerca de outras questões caras à trajetória do cantor, como as denúncias que fazia contra o racismo e a afirmação do orgulho negro em plena década de 1960, quando o debate racial carecia de espaços institucionalizados.
Já o artigo de Carolina Dellamore versa sobre Greve! (1979), documentário de João Batista de Andrade, que registrou o movimento grevista dos metalúrgicos em São Bernardo do Campo (SP). Para Dellamore, o cineasta não somente mostrou a greve, mas buscou especialmente intervir na realidade, na medida em que o que ele filmou foi a situação criada a partir da presença da câmera, o que Jean-Claude Bernadet denominou de “dramaturgia da intervenção” (p. 87). O artigo explora a narrativa em off, que muitas vezes chega a ser irônica se contrapondo à exibição das imagens e às falas dos entrevistados. Outro aspecto da construção narrativa evidenciada por Dellamore reside na montagem empreendida por Andrade, que faz o depoimento do interventor Guaracy Horta em defesa da “normalidade” nos sindicatos ser contradito pelas imagens de repressão policial sobre os trabalhadores nas ruas. A trilha sonora, com músicas de Belchior, também é explorada como elemento diegético que sugere por vezes ambiguidade com relação às imagens exibidas. O movimento de câmara é analisado ao final, quando o cineasta privilegia a perspectiva do operário em vez do ponto de vista do palanque, das lideranças, revelando a posição crítica de desconfiança assumida por Andrade.
Marcus Vinícius Costa Lage escreve sobre Memórias do chumbo: o futebol nos tempos do Condor (2012), uma série de quatro documentários realizada por Lúcio de Castro sobre o uso político do futebol pelas ditaduras militares de Argentina, Brasil, Chile e Uruguai. Exibida pelo canal televisivo ESPN Brasil, a série é analisada por Lage a partir da construção narrativa, ora atentando-se para a composição da trilha sonora, ora para os cenários nos quais os entrevistados depõem sobre o tema. Segundo o articulista, a abordagem escolhida por Castro privilegia a denúncia contra a corrupção das entidades desportivas, que seriam caracterizadas pela manipulação da opinião pública por meio do futebol, com interferência direta dos governos autoritários. O contexto de produção e lançamento da série – isto é, seis meses antes da realização da Copa das Confederações da FIFA no Brasil, quando parte da imprensa discutia a promoção de megaeventos esportivos que demandaram vultoso financiamento estatal – ajuda a explicar, segundo Lage, o posicionamento crítico do cineasta bem como do canal televisivo.
Na segunda parte do livro (“O fazer e o guardar no campo do cinema documentário sobre a ditadura”), a cineasta e professora Anita Leandro (UFRJ) escreve sobre o método de “montagem direta” utilizado em seu documentário Retratos de identificação, que consiste no comparecimento da imagem de arquivos – muitas delas inéditas e produzidas pela polícia para fins de identificação e controle do prisioneiro – diante da testemunha. Segundo a autora, o método precede a montagem propriamente dita de modo que de entrevistada a testemunha torna-se narradora de uma história na primeira pessoa. Apesar de existir uma seleção prévia das imagens e uma ordem de apresentação que designam um roteiro, a metodologia de Anita Leandro possibilita um novo campo de pesquisa ao despertar a potência mnêmica dos materiais de arquivo com a fala das testemunhas. Ainda com relação à segunda parte do livro, Marcella Furtado faz um apanhado geral sobre o acervo do MIS de Belo Horizonte, composto basicamente por cinejornais institucionais produzidos pela prefeitura e por materiais brutos e editados pela TV Globo Minas.
Por fim, vale ressaltar que o livro A ditadura na tela se mostra relevante para o atual debate historiográfico por diversos motivos. Em primeiro lugar, a própria seleção dos documentários privilegia a inclusão de novos sujeitos – mulheres, negros, homossexuais – para a compreensão mais plural da ditadura militar brasileira, que por vezes é centrada pela atuação de partidos e lideranças políticas. Em segundo lugar, no caso dos documentários que abordam atores já consagrados tanto pela memória quanto pela historiografia, como no caso da atuação do movimento estudantil ligado à UNE, o tratamento analítico dos articulistas procura explorar os desvios em relação às narrativas hegemônicas. Por fim e em terceiro lugar, ainda que nem todos os artigos se debrucem mais detidamente sobre a linguagem fílmica, fica nítido o esforço de levar em consideração tanto os elementos de produção e recepção das obras quanto os elementos estéticos específicos de fontes audiovisuais. Em tempo de revisões grosseiras sobre o período, A ditadura na tela contribui para um debate público qualificado, ultrapassando a interlocução entre pares, algo cada vez mais necessário.
Referências
DELLAMORE, Carolina; AMATO, Gabriel; BATISTA, Natalia(orgs.). A ditadura na tela: o cinema documentário e as memórias do regime militar brasileiro. Belo Horizonte: Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, 2018. [ Links ]
Igor Barbosa Cardoso – Doutor pela Universidade Federal de Minas Gerais / Departamento de História, Belo Horizonte/MG – Brasil. E-mail: igorbcardoso@gmail.com.
A Ditadura na Tela: O Cinema Documentário e as Memórias do Regime Militar Brasileiro | Gabriel Amato, Natália Batista e Carolina Dellamore
Durante o século XIX, a constituição do ofício de Clio como uma disciplina universitária produziu a necessidade de profissionalizá-lo. A afirmação da História enquanto uma prática científica foi possível por conta de alguns pressupostos, tais como a separação radical entre sujeito e objeto, a primazia dos registros escritos em detrimento das fontes orais e o afastamento das questões do presente. Por conseguinte, os historiadores rejeitaram os acontecimentos recentes, que ainda contavam com partícipes vivos, sob o argumento de que seria preciso manter a escrita da história guiada pelos ditames da objetividade e da imparcialidade, o que implicava no tratamento do passado na condição de alteridade e no estabelecimento da dicotomia entre memória e história.
No entanto, esse descrédito atribuído à memória começou a mudar a partir do final da Segunda Guerra, quando várias obras produzidas a partir de relatos das testemunhas da violência política obtiveram uma enorme atenção por parte da esfera pública. Nesse sentido, a visibilidade conferida à uma dessas manifestações memorialísticas em particular, o testemunho, iniciada a partir da revelação e dos julgamentos dos crimes nazistas, foi impulsionada por conta de eventos que ocorreram quase que simultaneamente: as transições democráticas no Cone Sul e o surgimento das teses negacionistas do Holocausto na Europa.
Por conseguinte, os historiadores não passaram incólumes a esse fenômeno conhecido como boom da memória, que suscitou a “guinada subjetiva”, descrita por Sarlo (2007) como sendo uma mudança epistemológica que ocorreu no interior das ciências humanas: no lugar das estruturas econômicas e sociais, houve a revalorização do ponto de vista subjetivo. Deste modo, a emergência dos relatos amparados em experiências referentes a situações limite, que constituem um “passado vivo” (traz muitas inquietações e desafios para além do momento em que ocorreram) foi crucial para o desenvolvimento do campo da História do Tempo Presente [2].
É justamente nesse contexto de fortes críticas a alguns dos fundamentos da história dita “positivista” ou “tradicional”, que se iniciou uma percepção incisiva de que o cinema detém um potencial enorme para a investigação historiográfica. Desde o seu nascimento, no final do século XIX, a sétima arte consiste em uma testemunha da história e sempre registrou os fatos no “calor do momento”, sendo imprescindível para a compreensão do tempo presente [3]. Dessa maneira, conforme aponta Michèle Lagny (2012) se por um lado o cinema sempre se referiu à história, seja por meio da captura instantânea do que ocorreu, ou seja, pela recriação e romantização do passado em filmes ficcionais; por outro, a história só começou a se interessar tardiamente pelas produções audiovisuais. Essa historiadora francesa também indica que a emergência do estudo do tempo presente e a inclusão das fontes memorialísticas audiovisuais aconteceram simultaneamente no interior do fazer historiográfico. Por conseguinte, pode-se afirmar o seguinte:
[…] a apreensão audiovisual é considerada indiscutivelmente como testemunho porque ela ‘mostra’ o que se passa no momento em que a história acontece. Assim, o cinema revela de imediato um interesse pela história do tempo presente […] É justamente quando, nos anos 60-70, começa a ser formulada a noção de história do tempo presente que certos historiadores acabam, após um período de desprezo pelo audiovisual, percebendo que podem […] servir-se dele para interrogar a forma com que o momento presente é apresentado ou pela qual determinados atores querem que ele seja percebido (LAGNY, 2012, p.24-25)Nesse sentido, a coletânea A Ditadura na Tela: O Cinema Documentário e as Memórias do Regime Militar Brasileiro, publicada pela Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFMG e organizada por três jovens pesquisadores, Carolina Dellamore, Natália Batista e Gabriel Amato, contribui substancialmente para os debates em torno dos vínculos que as memórias do nosso último período ditatorial mantém com a linguagem historiográfica e cinematográfica na sua vertente documental.
O livro contém 12 artigos divididos em duas partes (“As batalhas da memória no cinema documentário sobre a ditadura” e “O fazer e o guardar no campo do cinema documentário sobre a ditadura”) além de um prefácio assinado pela professora Miriam Hermeto, do departamento de História da supracitada instituição, e uma espécie de introdução denominada “A Ditadura na Tela: Questões Conceituais”, escrita pelos organizadores. Nessa seção, somos informados que a publicação é fruto de uma iniciativa anterior: o projeto de extensão “A Ditadura na Tela”, parceria entre o Núcleo de História Oral (NHO) dessa universidade, primeiro com o Centro de Referência da Moda e depois no Museu da Imagem e do Som (MIS), por meio do MIS Santa Tereza, ambos localizados na capital mineira. Tal projeto, que começou em 2014 e findou após três anos, ao longo das suas edições, promoveu a exibição de filmes documentais que tratam do regime autoritário iniciado em 1964 e encontros entre o público, cineastas e pesquisadores.
Um mérito desse projeto de extensão, que se traduziu na análise das películas dos artigos que compõem a coletânea, consiste na pluralidade de assuntos tratados em diferentes formatos cinematográficos. Ou seja, em relação à temática, foram escolhidas produções que vão desde o imaginário mais comumente atribuído ao período ditatorial que se refere, muitas vezes, aos jovens, geralmente homens de classe média ou alta, que aderiram ao movimento estudantil e à luta armada até as especificidades de grupos como as mulheres, as populações negras e os LGBT’s, que geralmente não são incluídos na escrita da história ou na memória social sobre a ditadura militar brasileira.
Ademais, os filmes eleitos também demonstraram igualmente uma variedade de formatos, sendo possível identificar filmes com características típicas dos chamados documentários ditos tradicionais, que se caracterizam por uma pretensão de objetividade, pela utilização de uma voz em off que procura tecer comentários distantes dos problemas suscitados pela realidade e pela presença de imagens apenas como ilustração para o que está sendo dito, mas também notamos que foram selecionados documentários com outros tipos de formato, nos quais o entrecruzamento entre as vivências do/a diretor/a e das personagens entrevistadas se torna um elemento central e as próprias fronteiras com o cinema ficcional são diluídas.
Assim, os organizadores afirmam que esses pressupostos permitem concluir que os filmes escolhidos, tanto para fazer parte do projeto de extensão quanto os analisados nos capítulos do livro em questão, se preocupam em valorizar não só a memória da esquerda armada, mas também aquela de outros personagens, isto é, a memória de “gays e lésbicas perseguidos pelo regime e a censura, artistas mais próximos da contracultura, sujeitos invisibilizados pela questão racial, entre outros” (AMATO, BATISTA, DELLAMORE, 2018, p.18). Em suma, através de um formato cinematográfico específico (caracterizado pela voz em off, de entrevistas e de imagens de arquivo) os documentários não apenas reproduzem memórias amplamente exploradas, mas evidenciam a pluralidade dos relatos dos vários grupos afetados pelos mecanismos repressivos. Além disso, também se inserem na luta desses grupos por visibilidade, reconhecimento de seus direitos na atualidade.
Não obstante à essa atenção a novos aspectos e testemunhas, a coletânea contém artigos que tratam de filmes que versam sobre objetos que, na historiografia e na memória coletiva sobre a ditadura, já são consagrados, a exemplo do movimento estudantil. No capítulo “A UNE Somos Nós: A Construção de Uma Memória Social Nostálgica da Resistência à Ditadura no Documentário Memória do Movimento Estudantil”, de Silvio Tendler (2007), Gabriel Amato realiza uma crítica ao filme citado no título. É uma produção idealizada por conta das comemorações dos 70 anos da própria União Nacional dos Estudantes, que é retratada como a unificadora dos embates dos jovens contra o autoritarismo nos anos 1960, apesar da multiplicidade de tendências no movimento estudantil da época. Deste modo, os estudantes seriam símbolos da defesa à democracia e representam o espírito da sociedade que resistiu bravamente aos abusos e desmandos. Entretanto, Amato faz menção aos trabalhos de Daniel Aarão Reis, que ressalta que as relações entre Estado e sociedade foram muito complexas e que não podem se resumir na polarização opressão e resistência. Assim, trata-se de um filme fortemente imbuído de uma memória oficial/institucional.
Nesse sentido, é importante enfatizar quatro capítulos da obra resenhada aqui que discorrem acerca de documentários que evidenciam as vivências de mulheres sob o jugo do regime ditatorial. São eles: “Repare Bem (2012) e as Estratégias de Construção da Memória em Diálogo com o Estado brasileiro: o caso da Comissão da Anistia”, escrito por Juliana Ventura de Souza Fernandes, “Censura, Homossexualidades e Resistências na Narrativa Cinematográfica de Cassandra Rios: a Sarfo de Perdizes (2013)”, assinado por Ana Marília Menezes Carneiro, “Uma Resposta de Vida à Ditadura Militar Brasileira: Memórias Femininas no Filme Que Bom Te Ver Viva (1989)” de Débora Raiza Carolina Rocha Silva e, por fim, “O Ato de Lembrar a Militância sob a Ótica Feminina: O Caso do Documentário Subversivas (2013)”, de Isabel Cristina Leite.
Se, por um lado, esses textos possuem a mesma matéria-prima, por outro lado, eles exploram aspectos distintos referentes a essa mesma temática. O primeiro se debruça sobre o filme Repare Bem, lançado em 2012 e dirigido pela portuguesa Maria de Medeiros, cuja trama focaliza as dores vividas por Denize Chrispim e Eduarda Leite, respectivamente viúva e filha do guerrilheiro Eduardo Collen Leite, assassinado em 1970 e conhecido pela alcunha de Bacuri. Somos apresentados, então, a duas gerações de mulheres atingidas pela perda de um ente querido vitimado pela violência política. Outro ponto a ser sublinhado é o fato de essa produção ser resultado do projeto “Marcas da Memória: História Oral da Anistia no Brasil”, desenvolvido pela Comissão da Anistia do Ministério da Justiça. Como se pode perceber, é um projeto que exemplifica a chamada “estatização da memória”, que consiste na apropriação por parte do Estado do quê e de como se deve lembrar, o que implica em um discurso oficial que, embora reconheça as graves violações de direitos humanos cometidas por agentes públicos durante a ditadura e a necessidade de se fomentar iniciativas que tocam nesse assunto sensível, possui demasiadas limitações devido à Lei da Anistia e da suavização, justificação e até mesmo negação das práticas repressivas apresentadas por membros das Forças Armadas, representantes deste mesmo Estado.
Já o segundo texto, escrito por Ana Marília Menezes Carneiro, trata do filme Cassandra Rios: a Safo de Perdizes de 2013, dirigido por Hanna Korich. É uma produção sobre a vida de Cassandra Rios (1932-2002), uma escritora que, desde o final dos anos 1940 até o início dos anos 2000, publicou diversos romances que possuíam como pano de fundo as relações homoafetivas, especialmente entre mulheres. Os livros da escritora obtiveram bastante sucesso no mercado editorial, não obstante o conservadorismo de cunho moral observável tanto em setores à esquerda quanto à direita na sociedade brasileira. Em consequência desses tabus, a liberdade de expressão de Cassandra era constantemente tolhida antes mesmo do golpe de 1964. Entretanto, com a censura prévia de instalada no começo dos anos 1970, houve a sistematização do cerceamento às publicações que se contrapunham à preservação dos bons costumes. A própria escritora chegou a ser submetida a interrogatórios, ameaças e até agressões físicas. Em suma, a obra de Cassandra Rios nos ajuda a complexificar o entendimento acerca da diversidade das práticas censórias e também conferiu “visibilidade à homossexualidade – notadamente a feminina – em contraponto não somente ao conservadorismo proveniente dos órgãos de censura e repressão, mas também presente na militância da esquerda” (AMATO, BATISTA, DELLAMORE, 2018, p.75).
A autora do próximo artigo dessa série, Débora Raiza Carolina Rocha Silva, já o inicia com indagações sobre a possibilidade de se afirmar a existência de uma memória feminina no que tange à resistência à ditadura e, se sim, porque essa memória foi escamoteada e porque ela deve receber visibilidade. A partir desses questionamentos, Débora analisa Que Bom Te Ver Viva, documentário que recolhe depoimentos de oito mulheres que narram o seu engajamento contra a ditadura e como elas lidam com os traumas causados pelo encarceramento e pelas múltiplas torturas, mas também por atitudes machistas e por silenciamentos acerca da atuação de mulheres dentro das organizações de esquerda. Lançado em 1989, este foi um dos filmes pioneiros a retratar o combate ao autoritarismo por parte do cinema durante a redemocratização.
A atriz Irene Ravache, que muitas vezes se dirige diretamente ao telespectador por meio de um monólogo, interpreta um álter ego da diretora, Lúcia Murat, que assim como as suas entrevistadas, também foi uma presa política. O filme em questão ainda apresenta outro aspecto que merece ser acentuado: a sua instigante linguagem cinematográfica que apresenta a forma de um docudrama: uma mescla entre elementos ficcionais, como a presença de uma atriz profissional, e elementos típicos de filmes documentais, como o uso de entrevistas com testemunhas de carne e osso e de imagens de arquivo. Por conseguinte, Que Bom Te Ver Viva não é um representante de uma narrativa tradicional e se aproxima dos documentários performáticos que, de acordo com Nichols (2016), são caracterizados justamente pela predominância das subjetividades e do engajamento do/da cineasta e dos seus entrevistados nos processos históricos.
Por fim, o último texto da coletânea, que busca esmiuçar documentários cuja tônica é a participação de mulheres na luta contra a ditadura, analisa Subversivas: Retratos Femininos de Luta Contra a Ditadura, produzido e dirigido por Fernanda Vidigal e Janaína Patrocínio. O audiovisual aborda a inserção feminina nos movimentos de resistência em Belo Horizonte. Embora esse artigo se refira à atuação de um determinado grupo em uma cidade específica, a autora do artigo, Isabel Cristina Leite, tece reflexões mais amplas, acentuando as relações entre a emergência de se narrar o trauma sofrido pelos sobreviventes e o desejo, expresso no grito de “nunca mais”, de que a exceção e a violência política não retornem: “narrar um trauma tornou-se um desafio e estava relacionado com a necessidade de […] não repetição do passado traumático” (AMATO, BATISTA, DELLAMORE, 2018, p.206).
Uma singularidade deste filme reside no fato de que uma das suas diretoras, Fernanda Vidigal, é filha de João Furtado e Thereza Aurélia (que inclusive é uma das entrevistadas), dois militantes que fizeram parte do grupo Ação Popular, ligado à juventude católica que foi uma das várias organizações de oposição ao regime militar. Sendo assim, tomados em conjunto, os filmes Subversivas, Que Bom Te Ver Viva, Cassandra Rios: a Safo de Perdizes e Repare bem possuem o mérito de se antecipar à historiografia e sobre a memória hegemônica sobre o período, uma vez que tornam públicas as especificidades de gênero da repressão e da resistência.
Outros dois artigos presentes na coletânea que no nosso entendimento são passíveis de destaque são “As Batalhas da Memória da Ditadura em Simonal – Ninguém Sabe O Duro Que Dei” (2009) e “Esquecidos, Celebrados, Geniais: Reconfigurações do Campo Historiográfico a Partir do Documentário Dzi Croquettes” (2009). O primeiro deles discute Ninguém Sabe O Duro Que Dei, de 2009. Esse documentário, produzido a partir da vida Wilson Simonal, que conviveu com a imensa popularidade, mas também com as acusações de que as suas canções seriam “apolíticas” e até mesmo que ele seria um informante do Departamento de Ordem Política e Social (DOPS). No entanto, o autor do capítulo, Bruno Vinícius de Morais argumenta que controvérsias sobre a colaboração ou não do cantor a um dos principais órgãos repressivos à parte, Simonal foi um dos artistas mais engajados na defesa do orgulho negro e do enfrentamento ao racismo, temáticas que atualmente são fundamentais, mas que, naquele período, eram bastante secundárias. Ou seja, a partir da tese sustentada pelo autor, podemos afirmar que assim como as questões de gênero, as pautas relacionadas à igualdade racial também foram escamoteadas e que, portanto, precisam ganhar cada vez mais espaço no cinema e na história.
Já o segundo, escrito por Natália Batista, investiga as possibilidades de análise contidas no documentário Dzi Croquettes, que levou para as telonas a trajetória do grupo de teatro homônimo, que construía espetáculos nos quais o binarismo entre elementos considerados como tipicamente masculinos e femininos era quebrado constantemente, o que levou a uma experimentação que explorava a desconstrução dos padrões dicotômicos de gênero e de sexualidade. Por conseguinte, percebe-se que contrariamente a outras agremiações teatrais do período, que realizava peças com um teor político tradicional, os integrantes do Dzi Croquettes, que embora não fossem alheios a esses debates corriqueiros na esquerda nos anos 1960 e 1970, militavam muito mais por uma revolução nos costumes e pela ruptura com os valores conservadores que desconheciam fronteiras ideológicas.
Se a primeira parte é escrita por historiadoras e historiadores, na segunda, encontramos dois textos de profissionais que lidam diretamente com produções audiovisuais. A cineasta Anita Leandro assina o artigo “Testemunho Filmado e Montagem Direta dos Documentários” que discorre acerca de Retratos de Identificação, de 2014, dirigido por ela e cuja trama é desenvolvida a partir de um conjunto de 60 fotos que mostram quatro presos políticos. Esses materiais provenientes de arquivos dos órgãos de repressão referem-se, sobretudo, ao tipo de imagem que nomeia o filme: fotografias em preto e branco, realizadas no momento da prisão, que registram o prisioneiro, de frente e de perfil, segurando um número de cadastro inserido em uma cartolina pendurada junto ao pescoço. O relato de Anita sobre o seu próprio filme é bastante instigante porque ele nos informa qual foi o método escolhido por ela. Em contraposição à montagem convencional (perceptível tanto em documentários quanto em obras de história oral) que utiliza entrevistas dirigidas àqueles que contam as suas vivências e que geralmente ficam ausentes da edição (no caso do cinema) e da escrita (no caso da historiografia), a diretora subverte esse processo, já que ao invés de recolher depoimentos cujos resultados dependem de perguntas feitas previamente, ela faz com que haja contato com o documento (nesse caso, as fotografias) e assim, a interpretação daquele passado se torne um diálogo entre as testemunhas e os rastros do passado, isto é:
[…] a associação dos arquivos à fala durante as filmagens oferece, tanto ao historiador quanto ao cineasta, a ocasião de observar os efeitos de um encontro entre a testemunha e as marcas do passado […] Esse compartilhamento […] favorece o diálogo entre o passado e presente, sem o qual não há elaboração possível de uma memória […] Contemporâneos um do outro […] testemunhas e documentos se complementam mutuamente (AMATO, BATISTA, DELLAMORE, 2018, p.222).Por fim, há ainda o texto “BH Em Movimento: Memórias da Ditadura Militar na Capital de Minas Gerais Presentes no Acervo do Museu da Imagem e do Som (MIS)”, de Marcella Furtado, que possui como tópico uma breve descrição de um dos lugares onde aconteceu o já citado projeto de extensão, o Museu da Imagem e do Som (MIS) de Belo Horizonte, que possui cerca de 50 mil itens, sendo o maior acervo audiovisual de Minas Gerais. Por conta do tamanho do arquivo, o MIS é muito procurado por pesquisadores, já que lá há o registro fílmico de vários episódios relacionados à ditadura naquela cidade: o movimento pela anistia, greves estudantis, protestos, militares em comemorações e eventos oficiais, dentre outros.
Por fim, esse livro (que possui ainda capítulos que versam sobre documentários com outros assuntos: as relações do futebol com as ditaduras no Brasil e nos outros países do Cone Sul, o movimento operário no ABC Paulista e a Tropicália) por mais que abordem filmes documentais bastante distintos entre si, partem de uma mesma premissa: os/as partícipes do regime ditatorial são múltiplos, e consequentemente, a historiografia deve incorporar essa diversidade de memórias.
Os autores e as autoras dessa coletânea tecem críticas incisivas à noção de que memória e história são antagônicas e ao conceito de memória coletiva que fazem parte do trabalho de Halbwachs (2006): um elemento de tons oficiais no qual todos se identificam e em contraposição a esse conceito, eles evidenciam as memórias subterrâneas, descritas por Pollack (1989) como sendo aquelas pertencentes aos grupos minoritários e silenciados. Então, pode-se afirmar que o livro, através da análise de obras do cinema documentário, sublinha que não é apenas preciso, mas urgente, conferir notoriedade às memórias subterrâneas não só em relação ao aparato repressor, mas também na própria esquerda revolucionária das décadas de 1960 e 1970, cujas perspectivas de ação política não contemplavam devidamente a luta contra a misoginia, o patriarcado, a LGBTfobia e o racismo. Dessa forma, o livro contribui significativamente para pensarmos as relações profícuas que o cinema documental e a historiografia mantêm com as muitas memórias em torno do período ditatorial de 1964 a 1985 que, infelizmente, ainda é um passado doloroso e traumático e que, portanto, coloca muitos desafios para o tempo presente.
Notas
2 De acordo com Seligmann-Silva (2000), depois de Auschwitz, houve a percepção nítida de que a história não deve ser tomada como radicalmente oposta à memória e que o ofício de Clio deve questionar com afinco não só os pressupostos de cunho positivista típicos do século XIX, mas igualmente as noções de temporalidade linear e progressista advindas do Iluminismo. Portanto, diante dessa notável acolhida das manifestações memorialísticas, especialmente àquelas que possuem como pano de fundo experiências dos vitimados durante essas situaçõeslimite, houve a percepção de que seria preciso desenvolver um novo campo historiográfico. Então, em 1978, surgiu na França o Instituto de História do Tempo Presente (IHTP) Conforme aponta Dosse (2012), um dos fundadores do Instituto, François Bédarida, afirmava que a existência deste campo se devia justamente a dois fatores: as fortes críticas às noções positivistas de objetividade e de “verdade” históricas e as mudanças epistemológicas dentro do interior do fazer historiográfico, provocadas pela ascensão da memória. Nesse sentido, conforme apontam Franco e Levín (2007) muitos historiadores afirmam que esse é um campo historiográfico marcado pelos seguintes aspectos: a presença daqueles que vivenciaram um determinado passado e que podem oferecer os seus relatos para o historiador; uma memória social bastante intensa sobre esse passado e a proximidade e até mesmo a coincidência entre o tempo de vida e de atuação do historiador e o tempo alvo da pesquisa.
3 Uma definição sucinta, mas instigante do que seria essa temporalidade é a seguinte: o presente corresponderia a “aquele conjunto de experiências que não se tornaram ainda uma alteridade para nós” (LÜBBE, 2003, p.402 apud MATA; PEREIRA, 2012, p.15). O presente, de acordo com essa acepção, pode ser entendido como sendo a temporalidade na qual as fronteiras entre o passado e o tempo corrente são estreitas. Então, o pretérito não é considerado como “um outro”, uma vez que as suas questões frequentemente irrompem e desafiam as pretensas estabilidade e distância do hoje em relação às insistentes cobranças realizadas pelo ontem.
Referências
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SARLO, Beatriz. Tempo Passado: Cultura da Memória e Guinada Subjetiva. Trad. de Rosa Freire D’aguiar. São Paulo: Companhia das Letras; Belo Horizonte: Editora UFMG, 2007
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Samuel Torres Bueno – Mestrando em História pelo Programa de Pós-graduação em História na Universidade Federal de Ouro Preto. E-mail: samueltorresbueno@gmail.com
AMATO, Gabriel; BATISTA, Natália; DELLAMORE, Carolina. A Ditadura na Tela: O Cinema Documentário e as Memórias do Regime Militar Brasileiro. Belo Horizonte: Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, 2018. Resenha de: BUENO, Samuel Torres. Memória, História do Tempo Presente e Cinema: Representações da Ditadura Militar no Gênero Documental. Aedos. Porto Alegre, v.11, n.25, p.617-626, dez., 2019. Acessar publicação original [DR]