Posts com a Tag ‘Cinema (d)’
Territorios, oralidad y memoria: huellas del pasado en el cine y audiovisual contemporáneo/Historia Regional/2023
El impulso del cine documental y testimonial de las últimas décadas trajo aparejado un incremento de la producción y difusión de testimonios orales. Este proceso no sólo colabora en la construcción de la memoria y de relatos sobre nuestra historia reciente, sino que también ha permitido pluralizar sus voces, funcionando como un propagador de ciertas experiencias históricas, a veces minoritarias, invisibilizadas, marginalizadas o no hegemónicas. Al mismo tiempo, el campo de la Historia Oral fue ganando en densidad, sofisticando sus metodologías y acumulando reflexiones críticas que lxs historiadorxs vienen realizando sobre su propio quehacer. Parte de esta reflexión implicó, entre otras cosas, tomar al cine como objeto de análisis, en tanto se constituye como síntoma y agente de la historia, pues narra de otra manera los procesos, resignificándolos desde una perspectiva subjetiva y estética (Acosta y Sasiain, 2007; Jameson, 1995). Además, si aceptamos que el cine constituye un elemento fundamental en la construcción y disputas por la(s) memoria(s), es necesario tener en cuenta las formas de producción y montaje de los testimonios, los soportes y las tecnologías que materializan su elaboración y difusión. Leia Mais
Cinema e Estudos Culturais: perspectivas em debate/ Albuquerque/2022
A atualidade do cinema e sua presença em novas formas de produção, distribuição e exibição (como o streaming, por exemplo), ampliando o espectro da representação e de temáticas de raça, gênero e sexualidades, entre outras, trazem à tona o debate sobre o consumo de imagens, as culturas visuais e midiáticas, bem como as pedagogias culturais que tais produções podem sugerir. Leia Mais
A cultura cinematográfica e sua história | Faces da História | 2022
Paulo Emílio Salles Gomes em aula na USP (Acervo Cinemateca Brasileira) | Imagem: O homem que amava o cinema e nós que o amávamos tantos/Revista Cult.
Não se faz cinema sem cultura
cinematográfica e uma cultura viva
exige simultaneamente o conhecimento
do passado, a compreensão do presente
e uma perspectiva para o futuro
(Suplemento Literário do jornal OESP,
23 mar. 1957)
Funções da Cinemateca,
Paulo Emílio Sales Gomes
Para José Inácio de Melo Souza (Cinemateca Brasileira), pesquisador incansável da cultura cinematográfica.
Existem diferentes formas de começar um texto sobre o fenômeno cultural de massa que encantou gerações, comoveu audiências e participou da invenção da vida moderna. Na substituição das antigas formas artesanais de diversão, eruditas e populares, os filmes suscitaram a profunda transformação de diferentes práticas sociais como rituais, comportamentos, simbologias e ideias que, sujeitas à atmosfera de diferentes épocas e contextos geopolíticos, foram transmitidas de geração em geração em diferentes grupos humanos. De todos eles, os rastros mais quentes podem ser encontrados nas trajetórias intelectuais de críticos, cronistas e historiadores que participaram da formação da cultura cinematográfica: os primeiros, implicados no sucesso artístico ou comercial dos filmes; os historiadores, concentrados na preservação e difusão do patrimônio cultural cinematográfico. Leia Mais
Cinema e história: políticas de representação | História – Questões & Debates | 2022
O dossiê “Cinema e História: políticas de representação” integra o volume 70 da revista História: Questões e Debates, reunindo artigos de renomados pesquisadores nacionais e internacionais, situados num campo interdisciplinar de estudos já consolidado e pautados pela abordagem da relação entre o cinema e a história em pesquisas que entrelaçam diversas metodologias e problemáticas.
Entre as várias possibilidades de pensar essa relação, o presente dossiê propõe considerar o cinema como um espaço de construção política e social por meio da reafirmação e reconfiguração de identidades e diversidades. Os filmes constantemente se relacionam, em suas mais variadas apresentações, com o fomento de narrativas sobre nação, região ou territórios; representações de gênero, de raça, de pertencimento, de geração ou comunidade. Nesse sentido, o cinema se torna objeto da História Cultural, Política e Social ao promover ou questionar imaginários, participar da memória coletiva e propagar discursos. Tal amplitude o torna também um lugar de narrativas confluentes ou dissonantes, um espaço de monumentalização e desmonumentalização da história, de engajamento e de resistência política. Leia Mais
Censura ao cinema nas ditaduras ibéricas | Ler História | 2021
1 Desde o início da história da imagem em movimento esta, à semelhança do que sucedeu com as performances teatrais, foi alvo de censura, não apenas em Portugal e Espanha mas em todos os países que a exibiam. A censura ao cinema existiu desde a origem do próprio cinema e, como argumenta Annette Kuhn (1988, 127) no seu estudo sobre a censura aos filmes no início do século XX, é um fenómeno complexo que deve ser entendido enquanto processo, na medida em que alia e resulta de diversas forças censórias que acabam por convergir. Neste sentido, e este é um aspecto comum a todos os países onde existiu censura ao cinema, e como os três artigos deste dossier concretamente demonstram, a censura não se pode reduzir a um conjunto de instituições e actividades institucionais predefinidas, mas está sujeita a constantes mudanças nos discursos, leis e práticas institucionais. Sue Curry Jansen (1991, 221) vai ao encontro destas reflexões definindo censura como um conceito que engloba todas as prescrições socialmente estruturadas que inibem ou proíbem a disseminação de ideias, imagens, informações, etc., obstruções estas que podem ser asseguradas por qualquer sistema de autoridade. Leia Mais
Narrativas (auto)biográficas no cinema | Revista Brasileira de Pesquisa (Auto)Biográfica | 2021
A temática “Narrativas (auto)biográficas no cinema” desperta e desafia diversas problemáticas inerentes às relações entre linguagem, pensamento, temporalidade, espacialidade e vida. Tratando de um conceito antigo, a história do termo “narrativa” produziu incontáveis polêmicas e nuanças quanto às suas possíveis definições. No campo das Artes, a narrativa implicou desafios poéticos e estéticos responsáveis por dúvidas e enigmas sobre o alcance de seu estatuto ontológico. Perguntas simplistas dirigidas às sete artes acerca de suas capacidades ou condições de produzirem ou de serem – ontologicamente – narrativas marcaram uma série de debates ligados a batalhas políticas e econômicas acerca da edificação de hierarquias relativas aos níveis do sublime acerca da representação suprema do bem e da beleza. Por vezes, a narrativa foi estabelecida como o critério fundamental para se definir classicamente a prática e a obra artísticas por excelência. Leia Mais
África, Literatura e Cinema em Língua Portuguesa: Direito a um Olhar Descolonizado | AbeÁfrica – Revista da Associação Brasileira de Estudos Africanos | 2021
É com satisfação que apresentamos o quinto número da revista da Associação Brasileira de Estudos Africanos, no qual se insere um dossiê sobre o cinema em países africanos de língua oficial portuguesa. Intitulado “África, Literatura e Cinema em Língua Portuguesa: Direito a um Olhar Descolonizado”, o dossiê teve como ponto de partida o simpósio “Literatura e Cinema”, realizado por via remota, nos dias 16, 17 e 18 de novembro de 2020, no âmbito do I Congresso Internacional do Programa de Pós-Graduação em Letras Vernáculas da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ: Vozes e Escritas nos Diferentes Espaços da Língua Portuguesa.
Concebendo literatura e cinema como artes críticas e transformadoras, nosso simpósio pretendeu efetuar discussões a partir de comunicações que tecessem diálogos com a história, de modo a investigar como a literatura e o cinema de países africanos de língua oficial portuguesa pensavam a nação, após suas respectivas independências. Leia Mais
Cinema e território na história audiovisual da América Latina, África e diásporas / Revista Transversos / 2020
O cinema mantém relação com o território desde o berço, se for considerada apenas a dimensão mais basal de territorialidade – o espaço. A fotografia, que lhe antecedeu, já era capaz de fixar as distâncias em imagens, mas o cinema inaugurou a possibilidade de representar sua ocupação. Entre as primeiras fitas produzidas no século XIX, são comuns as cenas apresentando pessoas e objetos deslocando-se entre as margens estáticas da câmera e da tela, apossando-se do vazio. Em uma espécie de arqueologia do cinema, Vanessa R. Schwartz explora o gosto do público pela realidade em Paris, no fim-de-século. Entre as práticas analisadas pela autora, estava o apreço de espectadoras e espectadores pelos panoramas, que consistiam em montagens fotográficas conectadas de modo a gerar a impressão de uma vista “real” de uma paisagem, efeito propiciado por uma série de elementos técnicos, tais como iluminação, ruídos e movimento. Embora o primeiro cinema não tenha correspondido logo a esse desejo, seus desdobramentos iriam se ocupar em dar a ver e interpretar paisagens, por meio de uma flânerie (perambulação despreocupada) virtual:
Não é mera coincidência que, além do interesse das pessoas pela realidade, as atividades descritas [neste texto] se deram com os grandes grupos de pessoas em cuja mobilidade residiam alguns dos efeitos realistas dos espetáculos. Essas práticas revelam que a flânerie não foi simplesmente privilégio do homem burguês, mas uma atividade cultural para todos os que participavam da vida parisiense. (SCHWARTZ, 2001: p. 436)
Esse traço incipiente seria aprimorado ao longo do século XX, conforme aumentavam os recursos narrativos à disposição dessa novidade tecnológica, que se consolidava como indústria e arte. Iniciaram-se as representações qualitativas do espaço – as cidades e, mais tarde, as áreas rurais, passaram a protagonizar películas e a propiciar um debate sobre o direito de ocupá-las; alguns países começaram a incorporar o cinema como parte de seus patrimônios culturais, formando-se a ideia de cinemas nacionais; povos sem território usaram o cinema na luta pela ocupação de um e a guerra de fronteiras se tornou tema de filmes; no século XXI, a busca por representações diferenciadas de um mesmo território, de ângulos inexplorados ou interditos, ganhou impulso com a democratização dos meios de produção de imagens.
Seguindo as observações de Dolores Hayden (2014), a palavra “lugar” é carregada de sentidos e, entre eles, está a referenciação do pertencimento ao mundo social, o que pode ser notado em expressões corriqueiras, como “mostrar a alguém o seu lugar” ou “o lugar da mulher”. Esse uso social do termo lhe dá uma história política, que pode sem esforço ser associada aos territórios – pertencer ou não a um lugar é matéria de formação identitária. Nesse percurso, o cinema habitou territórios contínuos ou multisituados, como no cinema de diáspora e de exílio. Territórios fractais, nos quais noções como cidadão e estrangeiro não se sustentam mais. E não apenas de espaços geográficos fala a longa relação entre cinema e território. Como no filme de Isaac Julien (Territories, 1984), territórios também dizem respeito a raça, classe e sexualidade, traçando uma geografia de terras e de corpos.
Ao longo da história, cinema e território seguem refazendo seus mapas, das imagens coloniais usadas como instrumentos de dominação às novas cenas realizadas por cineastas indígenas e africanos. Em terras latino-americanas, a relação com o território inaugurada pelo Cinema Novo / Nuevo Cine se desdobra em cinematografias diversas, especialmente as que são feitas nas margens – Cinema Negro, Indígena, Periférico. Talvez seja possível traçar rotas que levem do Pátio (1959) baiano de Glauber ao Quintal (2015) de periferia mineira de André Novais de Oliveira. De Vidas Secas (1963), de Nelson Pereira dos Santos, a Bacurau (2019), de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles. De memória do subdesenvolvimento (1968), de Tomás Gutiérrez Alea, a Nostalgia da luz (2010), de Patricio Guzmán, passando por sertões, desertos, becos, vielas, quebradas e favelas.
No cinema português, Pedro Costa destaca as vivências periféricas de Vitalina Varela e Ventura, cabo-verdianos que deambulam por Lisboa, outrora capital de um império colonial, enquanto Filipa César trabalha o arquivo fílmico da Guiné-Bissau como território identitário de um dos mais singulares processos de descolonização em África. Cineastas afrodescendentes, como o santomense Silas Tiny ou os guineenses Vanessa Fernandes e Welket Bungué, enfatizam a auto- representação na revisão da história e memória do colonialismo. Noutro sentido, Salomé Lamas trabalha de forma concêntrica a ideia de fronteira como mutação humana imposta aos territórios, nomeadamente o complexo mapa geo-político do Leste europeu após o colapso soviético (Extinction, 2018), as explorações mineiras nas cordilheiras andinas de La Rinconada e Cerro Lunar (El Dorado XXI, 2016), ou a floresta de concreto paulistana (Horizon Noziroh, 2017).
Em um momento em que vivemos as consequências de incapacidade histórica (branca ocidental) de compreender e de reverter o estrago que fizemos e seguimos fazendo na natureza, em nós mesmos e no outro, nessa barbárie operada desde a Modernidade e que é chamada de civilização, progresso e desenvolvimento, talvez seja o cinema a arte que possui mais recursos para realizar a quebra que Denise Ferreira da Silva vem experimentando a partir da idéia de “po-ética”: aquilo que vai contra o tempo linear que separa, classifica e ordena. A po-ética opera por composição e decomposição, juntando e compondo uma imagem. O cinema como o que nos retira do tempo linear ao colocar passado, presente e futuro simultaneamente. Histórias feitas são refeitas, denunciadas. Experiências de trauma, violência, amor, cuidado e cura podem ser compartilhadas e trabalhadas nos complexos processos de construção e afirmação de identidade, que passam tanto pela memória, quanto pela criação.
A po-ética do cinema é poética, é ética, é política. No jogo co(i)mplicado entre imagens, narrativas e sons, o cinema pode escolher fazer da tela um território para tudo o que a história deixou sem arquivos e sem vestígios, pois um filme é capaz de mobilizar sensações e experiências e de ir além, contribuindo para que novos sentidos históricos com relação a corpos e lugares sejam instituídos.
Para que novos sentidos históricos sejam instituídos é preciso multiplicar e garantir a presença de muitos e variados territórios, compondo o que a maioria dos espectadores entendem por “cinema”, para além das produções euro-americanas. Isso implica não apenas em um cinema que traga diferentes territórios e seus povos, modos de vida e perspectivas como tema, mas também a territorialização de recursos financeiros para fomentar produções de grupos situados à margem dos circuitos mainstream (que existem não apenas fora, mas também dentro mesmo do sul global) e sua distribuição, para que possam deixar cada vez mais de ser apenas um encarte, um suplemento, uma edição especial ou uma breve menção em festivais, cursos de cinema e na mídia.
Não poderíamos deixar de mencionar que este dossiê foi organizado ao longo da pandemia de Covid-19, na qual a relação entre desigualdade e territórios se tornou ainda mais evidente. A vulnerabilidade extrema de territórios quilombolas, indígenas, campesinos, de favelas e bairros proletários, constatada mesmo em um cenário de subnotificação de casos de pessoas infectadas e de mortes, expõe mais do que nunca as consequências das políticas de segregação, abandono, expropriação, exploração e extermínio da população afro-pindorâmica.
A pandemia tornou ainda mais explícito um cenário no qual uma parte hiper privilegiada da população pode manter seu estilo de vida, sua segurança “em casa” ou mesmo seus deslocamentos, valendo-se de e colocando em risco os mesmos corpos que sempre foram usados para garantir sua sobrevivência e conforto, enquanto esses últimos lidam com essa nova ameaça sem que as antigas cessem ou mesmo diminuam. Os territórios das favelas e periferias seguem perdendo o sono, a saúde e a vida (majoritariamente as vidas negras) em operações policiais, terras indígenas e quilombolas seguem sofrendo desapropriação ou sendo ameaçadas, assentamentos rurais são removidos. Reverter esse quadro envolve que a voz e a câmera estejam nas mãos desses povos e daqueles que a eles se juntam na luta por um mundo igual e justo. Segue a longa história entre cinema e território – passados, presentes e futuros; utópicos e distópicos; simbólicos e reais – fazendo-se presente mais uma vez.
Nosso dossiê explora o tema “Cinema e Território” em perspectiva transversal, entendendo, inclusive, que a própria ideia de território possa ser desfeita e refeita a partir de outras cosmovisões.
No seu texto, Tatiana Hora Alves de Lima investiga o imaginário utópico da construção de Brasília nos cinejornais financiados pela Companhia Urbanizadora da Nova Capital do Brasil (Novacap), empresa pública responsável pela construção e controle da cidade, abordando os encadeamentos entre tempo histórico e tempo narrativo nas mitologias do bandeirantismo e do “descobrimento” atualizadas nesses filmes, vinculadas aos ideais da refundação e do desbravamento do país e sob a égide do progresso. Nesses cinejornais, as menções a acontecimentos históricos situados no passado (a exemplo do “descobrimento” e do bandeirantismo) são sempre articuladas a referências ao futuro, num movimento constante entre historicizar e desistoricizar, havendo uma clara distinção entre sujeito e objeto. Há uma associação entre o olhar e o pensamento, em que os personagens capazes de pensar e criar são aqueles que podem assumir o ponto de vista da câmera, a exemplo do presidente Juscelino Kubitschek, o arquiteto Oscar Niemeyer, ou o urbanista Lúcio Costa, enquanto os operários são corpos unicamente engajados na ação física e numa relação de simbiose com as máquinas, como se a mão de obra compusesse o maquinário da construção da nova capital.
Wallace Andrioli Guedes, em A vida provisória: um conto de três cidades no pós-golpe de 1964, aborda o filme A vida provisória (Maurício Gomes Leite, 1968), realizado no imediato pós-golpe de 1964. O foco do artigo está no modo como o filme utiliza os espaços de três grandes cidades brasileiras – Rio de Janeiro, Belo Horizonte e Brasília – na narrativa, construindo um olhar melancólico para o contexto em que foi realizado. Além disso, explora os recursos narrativos mobilizados pelo filme para caracterizar cada um desses territórios, representativos de qualidades políticas (entendidas numa acepção ampla, que abarca a micropolítica) definidora do momento histórico enfrentado pelo país no contexto da criação da obra.
Amanda Danelli Costa, em A “Bahia de Todos os Santos” de Jorge Amado e Maurice Capovilla: na encruzilhada entre guia e documentário, realiza análise comparada de Bahia de Todos os Santos: guia de ruas e mistérios de Salvador, publicado em 1945 por Jorge Amado, e o documentário Bahia de Todos os Santos realizado por Maurice Capovilla à luz do guia, e exibido no programa Globo Repórter, da Rede Globo, em 1974. A abordagem demonstra como a crueza das condições de vida do povo baiano, e o encantamento de sua múltipla cultura urbana, são observadas de forma engajada pelo romancista e pelo diretor. Ainda, explora o modo como essa “baianidade” é entendida por ambos como sinônimo de brasilidade, tomando o território urbano e suas especificidades como um dos loci definidores da nacionalidade.
Pode a corporalidade expressar territorialidades e reterritorializações? O artigo Construção de Territorialidades Ancestrais por Meio do Samba em Aniceto do Império: em dia de alforria? de Fábio José Paz Rosa, transita por essa pergunta, regido pelo olhar de Zózimo Bulbul em seu filme Aniceto do Império (1981). O texto nos lembra como o cineasta, já em Alma no olho, seu primeiro curtametragem, realizado em 1973, “demonstra uma nova e potente estética ao apresentar os sujeitos negros livres em territórios africanos e sem os subjugamentos corpóreos, históricos e sociais nos processos pós-abolicionistas, por meio da mise en scène”. Busca então processos parecidos que evidenciaram também em Aniceto do Império a corporeidade como estética que referencial o passado para refazer o presente a partir de ancestralidades africanas e afro-brasileiras. Através da corporeidade e musicalidade de Aniceto, testemunhamos a favelização do Rio de Janeiro, mas também os afetos, o trabalho e a religião como espaços da luta entre liberdade e opressão. Pelo olhar e genialidade de Bulbul, a vida e obra de Aniceto do Império nos convida a revisitar Madureira, região do Porto e Morro da Serrinha, dando a eles novos sentidos e materialidade a partir da presença e herança negra.
Utilizando o método comparativo para traçar relações entre os modos de representação do trabalhador mexicano, o artigo Mãos à Obra: a Representação do Trabalhador Mexicano nos Estados Unidos em Salt of the Earth e Espaldas Mojadas, de Maurício de Bragança, nos guia pelo universo de dois filmes cronologicamente próximos e ideológica e simbolicamente separados por uma linha fronteiriça, que separa mais do que territórios geográficos (uma produção é mexicana e a outra, estadunidense). O contexto histórico-social do trabalhador mexicano nos Estados Unidos vai sendo delineado em uma retrospectiva inversa, dos tempos atuais até os anos de 1950, época de produção dos filmes. No trajeto por narrativas, imagens e canções dos filme Salt of the Earth, dirigido por Herbert J. Biberman em 1954, e de Espaldas Mojadas, dirigido por Alejandro Galindo em 1955, enriquecidos por dados oficiais e pela escolha de uma bibliografia latino-americana, emergem as distinções éticas que regem e sustentam cada olhar.
Em Corpos pós-coloniais e desterritorialização: gestos e movimentos afetivos em Bom trabalho (Claire Denis, 1999), Mariana Cunha e Catarina Andrade propõem uma análise do filme de Claire Denis, cuja narrativa se concentra nas memórias do sargento Galoup, expulso da Legião Francesa em Djibouti, e que retrata a ocupação colonial enquanto alerta para a sensorialidade dos corpos dos soldados da Legião através de imagens ritualísticas desses corpos nos espaços e na paisagem desértica de Djibouti. Mariana e Catarina refletem sobre a forma como o filme compõe os espaços e os corpos a partir da noção de desterritorialização em uma ampla acepção – ou seja, no sentido de deslocamento físico, mas também no sentido trazido por Gilles Deleuze (1983) em relação à imagem-percepção e à imagem-afecção. As autoras concluem ainda que as escolhas estéticas e narrativas evidenciam a tendência de Denis a priorizar os gestos e as performances dos corpos, assim como a inscrição desses corpos no espaço pós-colonial, em detrimento de uma narrativa pautada na causalidade histórica que pudesse estabelecer uma relação simbólica direta entre a violência e o trauma das identidades pós-coloniais.
Michelle Sales e Ana Cristina Pereira oferecem, em Contracinema: Mulher e Território nos filmes Yvonne Kane (2015), de Margarida Cardoso, e Praça, Paris (2017), de Lucia Murat, uma reflexão sobre o “cinema de mulheres” como “contracinema”, numa proposta de analisar o olhar da mulher branca sobre a “outra”, no caso, a mulher negra. Nos dois filmes, produzidos nos dois lados do Atlântico, as autoras analisam a relação construída entre a subjetividade feminina das personagens em relação com a paisagem / território (seja em África ou no Brasil), que parece sublinhar uma tensão racial entre a mulher branca e a mulher negra, partindo de um olhar analítico construído a partir da teoria e crítica feminista de cinema e do feminismo interseccional.
Alexsandro de Sousa e Silva, em Cinema e transterritorialidade: uma entrevista com Suleimane Biai (Guiné-Bissau), conversa com o cineasta, formado em direção de cinema na Escola Internacional de Cinema e Televisão (EICTV), de San Antonio de los Baños (Cuba) e que trabalha no Instituto Nacional de Cinema e Audiovisual (INCA), na Guiné-Bissau. A entrevista explora a multiterritorialidade desse trabalhador do cinema em terras africanas, em relação com os legados sociais herdados do período de colonização europeia sobre a África. A pluralidade dos territórios que atravessam e são (foram) atravessados por Suleimane podem ser notados nas viagem físicas possibilitadas por sua formação e atuação profissional, e nas suas parcerias, como aquela empreendida com a artista visual portuguesa Filipa César, responsável pelo processo de digitalização do patrimônio fílmico do país, no projeto Luta ca caba inda (“A luta ainda não acabou”, em crioulo).
Na seção Experimentação, Clementino Luiz de Jesus Junior, Celso Sánchez e Dulce Maria Pereira narram o processo de realização do filme A Padroeira – Por um direito ao olhar, de Clementino Junior. Contam como o cineasta, que viaja para Mariana – MG com duas missões audiovisuais iniciais, acaba sendo surpreendido por um pedido local que se desdobra na obra que dá título ao artigo. O primeiro objetivo seria filmar depoimentos de atingidos pelo desastre criminoso da Barragem de Fundão e imagens do derramamento “de cerca de 55 milhões de metros cúbicos de lama com rejeitos de mineração ainda presentes mesmo três anos depois, do derramamento de cerca de 55 milhões de metros cúbicos de lama com rejeitos de mineração”. O segundo seria promover uma formação audiovisual para os atingidos da Barragem de Fundão, na intenção de buscar formas possíveis para uma educação ambiental emancipatória a partir de uma pedagogia que não se separasse do território. Ao chegar no município, Clementino recebe o pedido de Luzia, uma ativista local, o para que filme a festa da padroeira na igreja de Santo Antônio, única edificação que resistiu à “enchente de lama que praticamente extinguiu a localidade do mapa”. O resultado é o filme A Padroeira, que, em uma paisagem coberta pela lama e pela impunidade, retrata a resistência e a fé de um povo compulsoriamente deslocado de seu território.
Na seção de artigos livres, Mariana Queen Ifeyinweze Nwabasili, em Carnaval, carnavalização e discursos de representação negra no Brasil na construção estética e narrativa do filme Xica da Silva analisa a película de Cacá Diegues (1976) e seu contexto de criação, considerando a influência da literatura ficcional e científica sobre relações raciais e de gênero. O conceito de carnavalização, conforme trabalhado por Mikhail Bakhtin, tem papel central em sua abordagem. A autora mapeia os modos como Chica / Xica da Silva foi reelaborada pela literatura, desfiles de escolas de samba e pelo cinema, demonstrando o quanto a representação das pessoas negras (em especial, as mulheres) é devedora dessa trajetória seguida pela personagem.
Por fim, agradecemos às autoras e autores pela confiança e a todos e todas pareceristas pela valiosa colaboração, que muito contribuíram para garantir a qualidade das publicações. Esperamos que a leitura dos artigos deste número da Revista TransVersos contribua para a ampliação de debates e pesquisas sobre a exploração audiovisual de múltiplos territórios. Que o contato com esses textos possa incentivar leitores e leitoras a se lançar à busca de si, por meio de filmes e territórios.
Referências
HAYDEN, Dolores. “Urban Landscape History”. In: Jack Gieseking et al (eds.). The people, place and space reader. New York: Routledge, 2014.
FERREIRA DA SILVA, Denise. Toward a Black Feminist Poethics: The Quest(ion) of Blackness Toward the End of the World. The Black Scholar, Vol. 44, No. 2, States of Black Studies (Summer 2014), pp. 81-97.
MERCER, Kobena. Travel and See. Black Diaspora Art Practices Since the 1980s. London: Duke University Press. 2016.
NAFICY, Hamid. An Accented Cinema. Exilic and Diasporic Filmmaking. New Jersey: Princeton University Press, 2001.
ROSÁRIO, Filipa; VILLARMEA ÁLVAREZ, Iván (eds.). New Approaches to Cinematic Space. London: Routledge, 2018.
SCHWARTZ, Vanessa R. “O espectador cinematográfico antes do aparato do cinema: o gosto do público pela realidade na Paris fim-de-século”. In: Leo Charney; Vanessa R. Schwartz (orgs.). O cinema e a invenção da vida moderna. São Paulo: Cosac & Naify Edições, 2011.
Paulo Cunha – Professor Auxiliar no Departamento de Artes da Universidade de Beira Interior, na qual é diretor do Mestrado em Cinema. Membro do LabCom – Comunicação e Artes e colaborador do CEIS20 – Centro de Estudos Interdisciplinares do Séc. XX da Universidade de Coimbra. É Doutor em Estudos Contemporâneos pela Universidade de Coimbra, com uma Bolsa de Doutoramento da Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT). Actualmente, desenvolve pesquisa de pós-doutoramento no Programa de Pós-Graduação em Estudos Contemporâneos das Artes da Universidade Federal Fluminense. Investigador do projeto “O Império colonial português e a cultura popular urbana: visões comparativas da metrópole e das colónias (1945-1974)”, desenvolvido no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, com financiamento da FCT (PTDC / CPC-CMP / 2661 / 2014). Coordenador Editorial da Aniki: Portuguese Journal of the Moving Image (2018-2020), do Seminário Temático Cinemas Pós-Coloniais e Periféricos SOCINE (2016- 2019), do Grupo de Trabalho Cinemas Pós-Coloniais e Periféricos da AIM (2015-). Vice-Presidente da Federação Portuguesa de Cineclubes (2018-2020) e programador do Cineclube de Guimarães e do festival internacional de cinema Curtas Vila do Conde. Conferencista convidado em diversas conferências e palestras, nomeadamente: Universidade de São Paulo (USP, Brasil), Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ, Brasil), Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ, Brasil), Universidade Federal do Paraná (UFPR, Brasil), Universidade do Estado do Amazonas (UEA, Brasil), Universidade Estadual do Maranhão (UEMA, Brasil), Universidade Federal do Tocantins (UFT, Brasil), Universidad de Salamanca (USal, Espanha), Università degli Studi di Firenze (Itália), entre outras.
Liliane Leroux – Procientista na área de Artes (Faperj / UERJ). Pós- doutorado em Cultura em Periferias Urbanas – UERJ (bolsa Capes). Graduada em Ciências Sociais (Sociologia) pelo IFCS / Universidade Federal do Rio de Janeiro e doutora em Educação pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ (bolsa Capes). Professora associada da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Tema de Pesquisa: Cinema em periferias urbanas, Criadora e co-coordenadora do Núcleo de Estudos Visuais em Periferias Urbanas – NuVISU (CNPq / UERJ) e do projeto Caxias du Cinéma (FEBF / UERJ). Co-coordenadora do GT Cinemas Pós-Coloniais e Periféricos da AIM – Associação de Investigadores em Imagem em Movimento. Foi co-coordenadora do ST Cinemas Pós-Coloniais e Periféricos da Socine (2017-2019). Ampla atuação profissional em avaliação e pesquisa de projetos culturais (foco em cultura, audiovisual e novas tecnologias). Atuação como avaliadora do Programa Cultura Viva (MinC), parecerista da Secretaria Estadual de Cultura (Cultura digital e audiovisual). Consultora em projetos do INEP e SEEDUC (RJ) e pesquisadora da UNESCO. Atuou em projetos de telecentros comunitários em periferias do Brasil, África e países da América-latina. Membro da AIM – Associação de Investigadores da Imagem em Movimento de da International Sociological Association – ISA (WG – Visual Sociology e TG Senses and Society). Membro da SOCINE – Sociedade Brasileira de Estudos de Cinema e Audiovisual. Co-diretora (com Rodrigo Dutra) do filme Armanda (2017).
Carlos Eduardo Pinto de Pinto – Professor adjunto do Departamento de História do Instituto de Filosofia e Ciência Humanas (IFCH) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), em que atuou como Subchefe entre 2018 e 2019, sendo professor permanente do Programa de Pós- Graduação em História (PPGH-UERJ). Possui bacharelado e licenciatura em História pela UERJ (2001), mestrado em História Social da Cultura pela PUC-Rio (2005) e Doutorado em História pela UFF (2013). Usufruiu, no primeiro semestre de 2012, de Bolsa CAPES de Doutorado Sanduíche no Exterior, com atividades na Université Paris VIII e no Laboratoire d’Histoire Visuelle Contemporaine (Lhivc), vinculado à École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS). Pesquisador do Núcleo de Estudos sobre Biografia, História, Ensino e Subjetividades / UERJ (NUBHES), do Laboratório de História Oral e Imagem / UFF (LABHOI) e do Núcleo de Estudos Visuais em Periferias Urbanas / FEBF-UERJ (NuVisu). É membro do GT Imagem, Cultura Visual e História da Anpuh-Rio e do GT Audiovisual, Ensino de História e Humanidades. Tem experiência na área de História do Brasil República, atuando principalmente nos seguintes temas: história do Rio de Janeiro, cidades, arquitetura, representações, imagens, cinema, Cinema Novo, Chanchadas, subjetividades. É autor de romances, contos e poemas, utilizando o nome literário EDUARDO CHACON. Em 2019, publicou o romance A perna de Sarah Bernhardt, pelo Kindle / Amazon (e-book).
CUNHA, Paulo; LEROUX, Liliane; PINTO, Carlos Eduardo de. Apresentação. Revista Transversos, Rio de Janeiro, n.19, mai. / ago., 2020. Acessar publicação original [DR]
História e Cinema / Em Tempo de Histórias / 2020
O dossiê História e Cinema reúne trabalhos que tematizam o cinema com base em diferentes aportes teórico-metodológicos, buscando pensar o filme como documento histórico que deve ser interrogado a partir da especificidade da linguagem cinematográfica, da história do cinema, das tradições cinematográficas e do contexto histórico e cultural de produção, assim como das formas de circulação e consumo das imagens. Assim, o dossiê contém artigos que investigam a circulação de memórias hegemônicas ou subterrâneas, do imaginário social e político em diferentes gêneros, ficção ou documentário, animação ou série televisiva, e em diferentes suportes, películas ou digital. Também apresenta pesquisas que situam as discussões sobre a historiografia do cinema e o mercado cinematográfico.
Organizamos o dossiê em séries temáticas, buscando aproximar os trabalhos a partir de temas ou metodologias de abordagem comuns. A primeira série de artigos versa sobre as questões que envolvem o debate sobre as relações étnico-raciais, com destaque para o racismo e a produção de imagens estereotipadas das subjetividades constituídas na diáspora africana, seja no cinema brasileiro, seja no cinema estadunidense. Como contraponto a essas imagens, o artigo A Colonialidade e a Emancipação no filme Emitai de Sembène Ousmane (Senegal, Anos 1970), de autoria de Vinícius Pinto Gomes, analisa o filme Emitai (1971), dirigido por Sembène Ousmane, a partir de um diálogo com os estudos pós-coloniais e decoloniais, buscando uma perspectiva africana sobre as lutas contra a dominação colonial em África. Além do filme, o autor apresenta um rico corpus documental constituído por entrevistas do diretor e cartazes do filme produzidos em diferentes países. Renata Barbosa Melo do Nascimento analisa As representações do continente africano no cinema através dos filmes Hotel Ruanda (2004) e O último Rei da Escócia (2006), ancorada nos estudos decoloniais, buscando apreender as confluências entre as obras quanto às imagens e lugares atribuídos às populações do continente africano e desvendando conexões históricas e culturais na produção de imagens eurocêntricas estereotipadas sobre o continente africano.
Vanessa de Araújo Andrade, no artigo E o Vento Levou: cinema, racismo e silenciamento sobre a abolição da escravatura na Guerra Civil dos Estados Unidos, analisa a intertextualidade entre o livro que deu origem ao filme clássico de 1939, os silêncios sobre o tema da abolição da escravatura nos EUA e a questão racial advinda da libertação dos escravizados. O artigo de Leonardo Bentes Rodrigues, Colonialismo como laboratório: “A Batalha de Argel” e a tortura como projeto de controle político, problematiza a relação do cinema com o processo de descolonização através do filme do diretor Gilles Pontecorvo de 1965, traçando vínculos entre as experiências de tortura nas colônias francesas e a consolidação de seu uso como controle político nos regimes autoritários na segunda metade do século XX. A circulação de memórias sobre o movimento negro estadunidense é analisada em El movimiento negro estadounidense y las batallas por la memoria: una mirada desde The Boondokcs, das autoras Tereza Maria Spyer Dulci e Vania Macarena Alvarado Sadivia. Partindo da premissa de que os produtos audiovisuais são lugares privilegiados para as “batalhas da memória”, as autoras analisam os principais marcos do movimento negro estadunidense e a criação e recriação de memórias presentes no quadrinho The Boondokcs (1996), e na série de animação The Boondokcs (2006), do criador Aaron McGruder.
Nessa primeira série, também encontramos os trabalhos de ensino e pesquisa realizados a partir do cinema brasileiro. O artigo Cinema, história e educação: racismo e ensino de História em O Assalto ao Trem Pagador, dos autores Jairo Carvalho do Nascimento e Genilson Ferreira da Silva, analisa o filme O Assalto ao Trem Pagador (1962), de Roberto Farias, em duas perspectivas: buscando evidenciar e problematizar questões raciais presentes no filme e sua relação com o seu contexto de produção, bem como apresentar as possibilidades pedagógicas para o ensino de História no Ensino Médio em cumprimento à lei 10639. O artigo O filme Quilombo: uma outra história negra, de Rafael Garcia Madalen Eiras, analisa o filme Quilombo (1984), do diretor Carlos Diegues, relacionando o tratamento da escravidão no filme, a história do cinema brasileiro nos anos 1970/80, a revisão historiográfica sobre a história da escravidão e as questões pautadas pelo movimento negro no contexto da redemocratização brasileira.
Bárbara Brognoli Donini, em O filme que sai do armário: o Cinema Lésbico a partir da obra de Adelia Sampaio, analisa o longa de ficção Amor Maldito (1984), da cineasta afrobrasileira Adelia Sampaio que versa sobre o amor lésbico, como marco na criação de um Cinema Lésbico no Brasil.
Fechando a série, o trabalho de Janailson Macêdo Luiz, Estou aqui fazendo um filme: relações étnico-raciais e lutas pela memória em Osvaldão (2014), aborda o documentário dos diretores Vandré Fernandes, Ana Petta, Fábio Bardella e André Lorenz Michiles, que narra a história de Osvaldo Orlando da Costa, um dos mais conhecidos personagens da Guerrilha do Araguaia (1972–1974). O autor problematiza as representações sobre a história de vida do guerrilheiro e a tematização das relações raciais, situando o filme nos debates historiográficos mais recentes sobre o regime militar e a questão racial.
A segunda série temática trata das relações entre cinema e memória e cinema e propaganda em regimes autoritários, por meio da ficção, do documentário, do cinejornal e do filme de propaganda. Vinícius Alexandre Rocha Piassi, em Hoje (2011) e Trago Comigo (2016): imagens da estranha alteridade do passado, analisa filmes da cineasta Tata Amaral que problematizam o passado autoritário da ditadura militar e o prolongamento de traumas no presente democrático. Vinícius Viana Juchem, no artigo Cinema na ditadura militar: uma análise do filme A freira e a tortura (1984), aborda o filme dirigido por Ozualdo R. Candeias, relacionando a produção cinematográfica da Boca do Lixo e o seu gênero mais famoso, a pornochanchada, e os atos de censura da ditadura militar. Beatriz Costa Barreto e Marília Romero Campos, em O que pode o cinema? História e política em Cabra marcado para morrer (1984) de Eduardo Coutinho, examinam a potência do cinema e a sua relação com a história, a política e a memória.
Andrei Chirilã, em O documentário Dzi Croquettes (2009) e a construção de uma memória marginal, do subterrâneo e do esquecimento sobre a contracultura na ditadura civil-militar no Brasil, aborda o documentário da diretora Tatiana Issa como elemento de resgate de uma memória na historiografia da contracultura na década de 1970, e como esta memória monumentalizada ignora os elementos conjunturais que permitiram a criação do Dzi Croquettes, além de, anacronicamente, construir o grupo teatral como a origem do movimento homossexual no Brasil.
Isadora Dutra de Freitas, no artigo Cinejornalismo em perspectiva histórica: trajetória e usos políticos no Brasil, analisa os usos políticos dos cinejornais em diferentes contextos históricos: Estado Novo a partir do Cinejornal Brasileiro, o período democrático e o Cinejornal Bandeirante da Tela, e os cinejornais da ditadura militar.
Alvaro Eduardo Trigueiro Americano e Letícia Barbosa Torres Americano, em Disciplina e ordem nas telas do Cine Jornal Brasileiro: os “sócios” do poder no Estado Novo, investigam a relação entre as Forças Armadas e o Estado Novo através da propaganda política nas edições do Cinejornal Brasileiro (1938-1946). Rebecca Ferreira Dias, em Perseguidos pela Nação, exaltados pelo Cinema: o comunismo em A Revolução de Maio, identifica as representações do comunismo no filme A Revolução de Maio, dirigido por António Lopes Ribeiro – o cineasta do Estado Novo português – e lançado em 1937.
Na terceira série, encontramos trabalhos que problematizam a relação entre cinema e cidade a partir da análise de documentários e cinejornais. Leila Saads, em Cinema e memória urbana: documentário Estrutural e narrativas sobre a consolidação da Cidade Estrutural – DF, tece narrativas possíveis sobre a formação da Cidade Estrutural a partir do diálogo entre o filme de Webson Dias, lançado em 2016, e a produção acadêmica sobre essa ocupação urbana, para compreender as disputas políticas e territoriais representadas no documentário e as imagens de cidade que emergem a partir dessas representações. Cristiane de Assis Portela e Anna Lorena Morais Silva, em Enunciando Contra-Hegemonias: Narrativas Candangas de Vaqueiros Voadores, analisam a narrativa do documentário Romance do Vaqueiro Voador, de Manfredo Caldas (2007), que rememora a construção de Brasília sob a perspectiva de trabalhadores que a edificaram. A película é baseada em poema-cordel homônimo, de autoria de João Bosco Bezerra Bonfim, e pode ser entendida como um contraponto aos discursos tornados hegemônicos nas narrativas sobre o Distrito Federal.
Alisson Oliveira Soares de Santana e Luís Vitor Castro Júnior, em Corpo- Cidade: uma análise do Filme “Um Crime Na Rua”, de Olney São Paulo, discutem o curta-metragem Um Crime na Rua (1955), de Olney São Paulo, gravado no centro da cidade de Feira de Santana, Bahia, refletindo sobre as experiências e as diversas manifestações dos corpos no espaço urbano. Vinícius da Cunha Bisterço, em Utopia e destruição, ruína e progresso: a condição de marginalidade social no filme A Margem (1967), de Ozualdo Candeias, problematiza a construção da experiência dos marginalizados no filme e sua perspectiva crítica acerca do processo de modernização da cidade de São Paulo intensificado a partir dos anos 1950.
Na quarta série apresentamos os trabalhos que propõem uma reflexão sobre a narrativa cinematográfica e a narrativa histórica. Yuri Leonardo Rosa Stelmach e Lúcio Geller Junior, no artigo O príncipe e o poeta: o passado russo e transcaucásio pelas lentes de Sergei Eisenstein e Parajanov, abordam os filmes produzidos na União Soviética, Alexander Nevsky (1938), de Sergei Eisenstein, e A Cor da Romã (1969), de Sergei Parajanov, e discutem como os passados russo e transcaucásio são construídos pelos cineastas e como tais narrativas se aproximam da escrita histórica. Vanda Fortuna Serafim e Gabriella Bertrami Vieira, em Filmar é escutar: história, documentário e a escuta sensível da alteridade em Santo forte (1999), relacionam as práticas do cinema documentário e a prática historiográfica a partir dos conceitos de “alteridade” e “sensibilidade”, discutidos por Sandra Pesavento e François Hartog. Bruno José Yashinishi, no artigo A relação Cinema-História: fundamentos teóricos e metodológicos, procura elucidar a possível relação entre narrativa histórica e narrativa cinematográfica, compreendendo que ambas são capazes de organizar o conhecimento e a consciência histórica.
Barbara Mangueira do Nascimento, em Imagem, montagem e história em Videogramas de uma Revolução de Harun Farocki e Andrei Ujică, propõe a análise do filme Videogramas de uma Revolução (1992), de Harun Farocki e Andrei Ujică, a partir da relação entre imagem, montagem e história, e da problematização das noções de tempo histórico.
A quinta série de artigos é composta por trabalhos que tratam o sertão como um tema recorrente na história do cinema brasileiro. Marcelo Fidelis Kockel, em História, sertão e devir-sensível em Cinema, aspirinas e urubus, propõe analisar as construções discursivas sobre o sertão, a história e o devir-sensível dos personagens que aparecem ao longo do filme Cinema, aspirinas e urubus (2005), do diretor Marcelo Gomes. O autor compreende o filme como o próprio acontecimento, singular na sua materialidade sensível, modulada, e não um enunciado de reconhecimento sobre algo que lhe antecede.
A partir de outra perspectiva teórica, Diogo Cavalcanti Velasco, em Áridos Movies: o encontro da metodologia de Pierre Sorlin com o cinema sertanejo nordestino autóctone, examina como, nos anos 2000, novas correntes de representação cinematográfica, em especial o grupo de cineastas do Nordeste, Marcelo Gomes, Lírio Ferreira, Paulo Caldas e Karim Ainouz, passam a produzir novas asserções sobre o sertão, ressignificando-o de acordo com um mundo contemporâneo globalizado, característico daquele contexto histórico. Daniel Ferreira da Silva, em O minimalismo absurdo na animação Morte e Vida Severina de Afonso Serpa, analisa a estética minimalista do Teatro do Absurdo empregada para transformar a peça-poema Morte e Vida Severina em animação cinematográfica 3D, focando em elementos sonoros e cores monocromáticas que universalizam o sertão através do sentimento de espanto, da sensação de silêncio e vazio e de uma monotonia existencial.
A sexta série é constituída por trabalhos que privilegiam a análise da música e da intertextualidade presente em diferentes gêneros. Hellen Silvia Marques Gonçalves, em O Jazz como Elemento Catalisador da Tragédia Grega, segundo Friedrich Nietzsche, no Filme Crise (1945) de Ingmar Bergman, analisa a música como elemento narrativo de destaque no filme do cineasta sueco. Felipe Nascimento de Araujo, em A Música Antiga como elemento narrativo no cinema: uma análise dos coros gregos em Electra, a Vingadora (1962) e Hércules (1997) da Disney, aborda o uso das performances musicais antigas através dos coros gregos como elemento narrativo no cinema em gêneros distintos, relacionando tais obras ao seu contexto social de produção. Franco Santos Alves da Silva, em Pink Floyd – The Wall: uma distopia do auto isolamento no longametragem de 1982, analisa a intertextualidade entre o disco The Wall (1979) e o filme Pink Floyd The Wall (1982), com destaque para o papel fundamental da música na construção de uma narrativa distópica.
A sétima série trata das possibilidades pedagógicas do cinema na formação de professores e na História Pública. Luis Fernando Cerri e Rosângela Maria Silva Petuba, em A operação do filme na formação de professores de História: uma experiência em licenciatura na UEPG (2016-2018), apresentam a experiência de formação de professores por meio da análise histórica e didática de filmes fundamentada nos métodos ativos e na abordagem dos filmes como fontes históricas a serem estudadas por professores e aluno. Josias José Freire Júnior, em História pública e cultura histórica na produção audiovisual contemporânea, problematiza significados das narrativas audiovisuais veiculadas pela série televisiva Guia Politicamente Incorreto (2017), em articulação com as discussões da História Pública, da didática histórica e da cultura histórica.
A oitava série é composta por trabalhos que tematizam a elaboração da memória e do passado a partir do estudo comparado entre filmes. Yuri Barbosa Resende, em Oscar Wilde vai ao cinema: a construção da imagem do dândi em ‘Wilde’ (1997) e ‘Velvet Goldmine’ (1998), discute a construção da imagem de Oscar Wilde realizada por dois filmes de gêneros distintos: a cinebiografia ‘Wilde’ (1997) e o drama musical ‘Velvet Goldmine’ (1998). Monaliza Caetano dos Santos, em Um vácuo construído sobre um vazio”: cinema alemão oriental e o conflito geracional a respeito do passado, analisa as tensões entre pais e filhos, na Alemanha Oriental, em torno da colaboração com o nazismo na Segunda Guerra Mundial, representadas em dois filmes produzidos na Alemanha Oriental, em 1968 e 1971. Andreza Santos Cruz Maynard, em Luta honrosa ou infernal? A Segunda Guerra Mundial a partir dos filmes KV-1: Almas de ferro (2018) e A Passagem (2019), analisa como um filme russo e um filme italiano recentes abordam a Segunda Guerra Mundial, observando como constroem a participação dos seus respectivos países de origem no conflito.
Na nona série, temos trabalhos que tratam da construção do feminino em um filme épico e em um filme bíblico. Ramiro Paim Trindade Junior, em Conservadorismo no Cinema dos anos 1980: análise do Filme “Excalibur, a Espada do Poder”, discute as representações dos(as) protagonistas no filme Excalibur, a Espada do Poder (1981), relacionando as construções negativas das protagonistas femininas ao conservadorismo estadunidense vigente no contexto de produção do filme. Talita Von Gilsa, em Maria Madalena no cinema: os filmes épicos bíblicos e a cinebiografia de 2018, analisa a representação de Maria Madalena nos filmes épicos bíblicos, O Rei dos Reis (1961) e A Maior História de Todos os Tempos (1965) e na cinebiografia Maria Madalena (2018), dirigida por Garth Davis.
A décima série versa sobre pesquisas que investigam o mundo do trabalho e as lutas políticas no século XX, e na contemporaneidade. Maurício Knevitz e Alexandre Moroso Guilhão, em Anarquismo, conciliação e conflito em La Patagonia Rebelde (1974), propõem um debate sobre o filme La Patagonia Rebelde (1974), dirigido por Héctor Olivera, baseado em um livro de Osvaldo Bayer, articulando as lutas dos trabalhadores no contexto histórico de produção do filme e os estudos sobre o anarcossindicalismo na Argentina. Cíntia Medina e Adriano Parra, em O fetiche da tecno-produtividade digital em Ken Loach: a uberização do trabalho no filme Você não estava aqui, procuram traçar de modo crítico o atual cenário de uberização do trabalho em curso a partir da estética e narrativa do diretor Ken Loach no filme Você não estava aqui (2018).
A décima primeira série reúne trabalhos que tratam do debate teórico sobre a historiografia do cinema, sobre o mercado cinematográfico e as leis de incentivo, e a análise da atuação do cineasta e as condições de produção em contexto histórico específico. Vanessa Helena Montenegro Brito, em El “giro historiográfico” en los estudios sobre el cine: rupturas y continuidades, apresenta um estudo comparativo entre o desenvolvimento da historiografia do cinema anglo-nórdico e a historiografia do cinema na América Latina e alguns trabalhos sobre os diversos caminhos e linhas de pesquisa em voga na mais recente historiografia do cinema na América Latina. Renata Santos Maia e Fernando Rodrigues Oliveira, em Antes e além das telas: economia e mercado cinematográfico em países da América Latina, analisam as relações econômicas e o funcionamento do mercado audiovisual com destaque para o mercado de distribuição de filmes e as disputas desiguais entre o cinema latino-americano e a indústria de Hollywood. Rosiel do Nascimento Mendonça e Sérgio Ivan Gil Braga, em Glauber Rocha e a autonomia relativa do campo artístico: o caso do documentário “Amazonas, Amazonas” (1966), discutem as relações entre o artista engajado politicamente e os poderes instituídos através do estudo da passagem de Glauber Rocha pelo Amazonas visando a realização de um documentário sob encomenda.
Assim, o dossiê cumpre o objetivo de apresentar a potência do campo de investigação História e Cinema.
Profa. Dra. Angela Aparecida Teles
Organizadora
Artes, estéticas e vanguardas no Brasil: cultura, subjetividades e representações / Fato & Versões / 2019
Consideramos isso história, mas não nos esqueçamos de que são apenas palavras em uma página, palavras que foram parar lá por causa de certas regras para encontrar evidências, produzir mais palavras de nossa própria autoria e aceitar a noção de que elas nos dizem algo sobre o que é importante no terreno extinto do passado.
Robert A. Rosenstone
A História nos filmes, os filmes na História
Nas últimas décadas, a historiografia brasileira tornou-se um espaço propício para que debates novos se conformassem, notadamente no campo da chamada História Cultural. Na medida em que a ampliação das fontes históricas, a partir das décadas de 1970 e 1980, ousou contemplar objetos tais como filmes, jornais experimentais, produções musicais, peças de teatro, obras de artes plásticas, histórias em quadrinhos, campanhas publicitárias, etc., no Brasil, experiências históricas tais como os movimentos de vanguardas estéticas, notadamente aquelas que emergiam nos séculos XIX e XX, ocuparam espaço em trabalhos acadêmicos e demais obras que concernem ao ofício da História.
Trata-se, pois, de um campo que, a despeito de sua aparente especificidade, contempla caminhos que perpassam a conformação de grupos, conflitos sociais, movimentações cotidianas, relações familiares e de gênero, questões micro e macropolíticas, e, necessariamente, ajudam a demarcar diferentes experiências do tempo. Nas inúmeras pesquisas dessa ampla área de conhecimento, os objetos artísticos são elencados como elementos capazes de subjetivar uma dada realidade, possibilitando, a partir deles, a compreensão de processos históricos que ali se desdobravam.
Os artigos apresentados nesse dossiê demonstram a pluralidade de possibilidades advindas pela escolha em se trabalhar no campo da História Cultural, especificamente com as linguagens artísticas. Apesar das especificidades, observa-se que o elemento interdisciplinar entremeia cada um dos escritos aqui apresentados ao público, em um exercício crítico de acuidade teórico-metodológica de pesquisadores de diferentes instituições de ensino brasileira. Tal como a musa Clio, que tece o tecido da história com os fios colhidos em outras disciplinas, os objetos artísticos apresentados pelos autores demonstram as potencialidades de se dialogar com outros campos de conhecimento, estabelecendo-se trocas, diálogos, possibilidades, etc. sem que se perca, no meio do caminho, as especificidades do metier do campo historiográfico.
Sendo assim, há um duplo desafio a ser enfrentado nesse tipo de pesquisa. Por um lado, é necessário se compreender as particularidades da produção / elaboração dos objetos artísticos elencados, tanto no que diz respeito à sua natureza (cinema, teatro, moda, etc.), quanto ao seu contexto, recepção, autoria, temática. Por outro lado, é preciso compreender os desdobramentos teóricos e metodológicos advindos pela escolha dessa documentação, a fim de se possa delinear, a partir do olhar do historiador de ofício, os diálogos estabelecidos entre os binômios Arte e Sociedade, História e Cultura.
Tendo em vista essas e outras inquietações, o artigo “‘Lutar com o Super-8 é luta mais vã’: O Palhaço Degolado (1977) ou a maquiagem sorridente de um corpo sem cabeça”, de Fábio Leonardo Castelo Branco Brito, apresenta uma interessante análise do película do pernambucano Jomard Muniz de Britto a partir de um referencial teórico constituído a partir de autores tais como Georges Didi-Huberman, Gilles Deleuze, Félix Guattari, Michel Foucault e Paul Veyne.
Por sua vez, a historiadora Grace Campos Costa, em “Diálogos entre moda e cinema: Prêt-à-Porter (1994) de Robert Altman”, amplia o binômio Cinema / História ao trazer para o campo de discussão os diálogos estabelecidos entre o campo da moda e sua representação cinematográfica, em um duplo processo de influência. Sendo assim, o artigo tem como objetivo demonstrar que esses dois campos de produção são constantemente entrelaçados, seja porquê os filmes influenciam hábitos e vestimentas, seja porquê a indústria da moda serve, constantemente, como temática de diferentes películas, as quais se propõem pensar os impactos da mesma nos diversos campos da sociedade.
Ainda no campo dos estudos cinematográficos, a pesquisadora Lais Gaspar Leite, em seu artigo “O corpo do Vagabundo e o contraste com o Tempo Moderno”, apresenta aos leitores uma possibilidade da análise da personagem Carlitos, mundialmente conhecida pela produção de Charlie Chaplin em Tempos Modernos. A autora, em suas reflexões, busca estabelecer as relações existentes entre a commedia dell’arte e a produção cinematográfica chapliniana, a fim de demonstrar as marcas desse diálogo na construção da personagem vagabundo, especialmente na obra acima referenciada.
Tal como para Chaplin, observa-se nas produções do grupo carioca Dzi Croquettes uma grande influência dos vaudevilles e comédias populares. A criação do seu primeiro espetáculo, Dzi L’Internacionalli, é o objeto de análise do artigo produzido pela historiadora Talitta Tatiane Martins Freitas, no qual ela se propõe discutir a estrutura, as escolhas estéticas, bem como os índices de recepção da referida obra teatral. Sendo assim, em “Dzi L’Internacionalli: as ambiguidades sócio e cênica dos Croquettes em seu primeiro espetáculo”, os leitores poderão ter contato com o impacto produzido por esse grupo de 13 homens que, ao longo dos anos 1970, levaram para os palcos do Brasil e da Europa uma estética considerada transgressora por mesclar elementos femininos e masculinos, questionando os constructos sociais de gênero e de sexualidade.
Fechando o dossiê, a pesquisadora Stéfany Marquis de Barros Silva apresenta, nas páginas do artigo “As travessuras históricas da Curtinália teresinense: Sensibilidades e corporalidades urbanas em Teresina na década de 1970”, as condições históricas que propiciaram o surgimento do grupo de jovens Curtinália, o qual colocava em xeque os discursos normatizadores da sociedade teresinense em meados dos anos 1970. Analisando os escritos e filmes experimentais produzidos pelo referido grupo, a autora busca desvelar a maneira como esses jovens problematizaram os códigos de gênero e sexualidade estabelecidos socialmente, decodificando os seus corpos e relações para além dos moldes tradicionais de pensamento.
A partir dessas breves apresentações, esperamos que a diversidade e riqueza de análises reunidas neste dossiê possam encantar e inspirar nossos leitores. Uma boa leitura a todos!
Fábio Leonardo Castelo Branco Brito
Talitta Tatiane Martins Freitas
BRITO, Fábio Leonardo Castelo Branco; FREITAS, Talitta Tatiane Martins. Apresentação. Fatos e Versões, Campo Grande – MS, v.11, n.21, 2019. Acessar publicação original [DR]
História & Cinema | ArtCultura | 2018
O menu desta edição da ArtCultura é, como de praxe, bastante variado, mesmo que mais de cinquenta por cento dos textos nela agrupados integrem dois dossiês temáticos. Para não fugir à regra, pesquisadores de diferentes instituições aqui comparecem, estendendo o raio de colaboradores aos estados de Goiás, Minas Gerais, Piauí, Rio de Janeiro, Santa Catarina e São Paulo, a ponto de abarcar, portanto, as regiões Centro-Oeste, Nordeste, Sudeste e Sul, parcela expressiva de um Brasil que abriga múltiplos brasis.
Mas a ArtCultura 36, na trilha de outros números, não se acomoda à bitola da produção nacional. Transpõe as nossas fronteiras e estabelece linhas de conexão com a América do Sul e com a Europa. Tanto que a revista é aberta as contribuições de María Inés Mudrovcic, da Universidad Nacional de Comahue e do Conicet/Argentina, e de Gerard Vilar, francês radicado na Catalunha/Espanha, onde atua na Universitat Autònoma de Barcelona. Ela, historiadora que atrela boa parte de sua densa reflexão à Teoria e Filosofi a da História. Ele, prolífi co e profícuo intelectual que tem privilegiado nos seus escritos o campo da Estética e Teoria das Artes. E, de quebra, os dois nos deram a honra de acolhermos dois textos inéditos (no caso de María Inés Mudrovcic, uma palestra pronunciada em um evento internacional realizado meses atrás). Leia Mais
História, cinema e gênero: interseções nas telas / História Revista / 2018
Trabalhos de História-Cinema têm se avolumado no Brasil nas duas últimas décadas. Historiadores / as tomam o artefato audiovisual como fonte e objeto para analisar a representação do passado, os usos do passado, os lugares de memória, as encenações dos eventos e das trajetórias de personagens históricos nas telas.
Se, hoje, já é possível cartografar o campo de estudos nessa chave, no país, que compreende simpósios específicos e em eventos acadêmicos de abrangência nacional e internacional, além de teses e dissertações – produzidas em diferentes departamentos acadêmicos brasileiros – e outras publicações especializadas, os estudos de História-Cinema que se voltam mais detidamente para as questões de Gênero e sexualidade, que também reúnem certa produção, apesar de esparsa, têm adquirido corpo somente na última década.
A publicação deste dossiê, “História, cinema e gênero: interseções nas telas”, pela História Revista colabora para o preenchimento da lacuna historiográfica sobre a temática. Reúne artigos de pesquisadores (as) brasileiros (as) das áreas da História e da Comunicação que vem debruçando-se sobre artefatos audiovisuais, a fim de esquadrinhar suas possibilidades de análises, especialmente sobre as questões de gênero e sexualidade.
Do conjunto de textos, aqui reunidos, destaca-se a tendência de lançar luz sobre a produção cinematográfica de mulheres, de países como Estados Unidos, Cuba e Brasil. Outros dois artigos dedicam-se à análise de filmes, especificamente estadounidenses.
Os artigos sobre as cineastas e seus filmes dialogam com certa perspectiva da teoria feminista do cinema que, desde o final dos anos 1960, busca recuperar do esquecimento, quando não do ostracismo – produzidos por um campo marcadamente masculino que reproduziu (e ainda reproduz) valores retrógrados de inferiorização e exclusão das mulheres – cineastas e mostrar a relevância de suas cinematografias.
Neste dossiê, a designação autoria feminina no cinema não é aplicada diretamente, sendo que os textos apenas a tangenciam ao problematizarem a invisibilidade das mulheres em tal campo e ao analisarem suas obras fílmicas. Isso aproxima os textos da própria crítica feminista que, em diálogo com as teorias gerais sobre autoria, já alertou para a armadilha desse tipo de nomenclatura que pode remeter à ideia de naturalização do feminino, isto é, reiterar o escopo do determinismo biológico, que embasa a compreensão de que as diferenças entre homens e mulheres residem em certa essência biológica, seja genital, seja hormonal – desconsiderando, pois, que a definição de gênero resulta de construção social e, como tal, cultural e histórica, implicando, invariavelmente, relações de poder.
Faz-se necessário salientar, no entanto, que os estudos feministas também reconhecem que tal denominação reforça um aspecto político importante frente à ausência de uma expressão que dê conta de traduzir a questão que ela engendra, qual seja: o lugar assimétrico decorrente de relações desiguais de poder no campo da produção simbólico-cultural, que impingiram certa invisibilidade às mulheres cineastas e aos seus filmes.
Voltando aos textos. O artigo de Sandra Machado problematiza a História do cinema, concentrando seu olhar nos Estados Unidos e na Europa, para trazer ao público brasileiro a trajetória invisibilizada da cineasta Alice Guy-Blaché (1873-1968), que pode ser considerada, segundo a autora, uma das fundadoras “do cinema de ficção”. Ainda neste artigo é possível entrar em contato com as inovações técnicas, de estilo e com as temáticas abordadas por cineastas europeias como Leni Riefenstahl (1902-2003), Agnès Varda e Marguerite Duras (1914-1996). Em diálogo com as teorias feministas do cinema, Machado retoma as obras dessas realizadoras e de outras para observar como elas ousaram, inclusive ao estamparem nas telas o protagonismo de personagens femininas, sendo que, em alguns filmes, abriram espaço para a representação daquelas mulheres consideradas socialmente marginais, como, por exemplo, as lésbicas.
Ana Veiga, por sua vez, brinda os(as) leitores(as) com um artigo sobre a cineasta cubana negra Sara Gómez (1942-1974). Além de apresentar a diretora, a historiadora aborda como esta cineasta, inserida no denominado Novos Cinemas Latino-Americanos, mais especificamente no “Cinema Imperfeito” cubano, ligado à Revolução de 1959 e vinculado aos ideais socialistas, desenvolveu em seu filme, De cierta manera, lançado em 1974, a relação entre revolução e relações de gênero.
Outro artigo, de minha autoria, procura recuperar a trajetória da cineasta brasileira Vera de Figueiredo, que, em seu primeiro longa-metragem, de ficção, Feminino Plural (1976), não apenas rompeu com o cinema clássico, aproximando-se da tendência modernista e da experimentação, como apresenta certa leitura sobre a ditadura civil-militar em curso, estabelecendo diálogo com a historiografia do Brasil relativa ao período.
Já o artigo de Júlio Cesar Lobo volta-se para a análise fílmica de Retratos de guerra (1989) e Hemingway & Martha (2013), observando mais especificamente a representação da profissão de repórter-fotográfico de guerra exercida por personagem feminina. O texto, ao se concentrar na construção das protagonistas dos referidos filmes, suscita a discussão sobre as relações de gênero no jornalismo e em contexto de guerra, o que configura um tema atual e pouco discutido pelo público brasileiro.
Fechando o dossiê, o artigo de Miguel Sousa Neto e Aguinaldo Gomes aborda o filme Shortbus, de John Cameron Mitchell (2006). Os autores dirigem suas análises para o tema da corporeidade e, desse modo, analisam os afetos e desejos dos personagens, em meio ao contexto de globalização e de “amores líquidos” – ambientado no filme e no qual ele fora realizado.
Os (as) leitores(as) encontrarão, pois, um dossiê robusto sobre cinema e gênero, cujos artigos, mesmo quando não circunscrevem seus objetos diretamente à História, destacando aspectos próprios da disciplina, não prescindem de rigorosa contextualização sobre o período em que as / os cineastas realizaram seus filmes ou os ambientaram.
À coordenação da História Revista, aos (as) autores (as) participantes deste dossiê e aos (às) diferentes pareceristas e colaboradores (as) só me resta render sinceros agradecimentos, o que o público leitor(a), certamente, poderá reiterar.
Alcilene Cavalcante de Oliveira (UFG)
Organizadora
OLIVEIRA, Alcilene Cavalcante de. Apresentação. História Revista. Goiânia, v. 23, n. 1, jan. / abr., 2018. Acessar publicação original [DR]
História e cinema: representações do feminino e o jogo das alteridades/Cadernos de Pesquisa do CDHIS/2017
As discussões em torno da questão de gênero e suas representações se tornam especialmente importantes quando confrontadas com os dados cada vez mais alarmantes em relação ao aumento dos chamados crimes de ódio em nossa sociedade, que incluem o feminicídio e toda sorte de violência contra aqueles(as) não inscritos(as) na heteronormatividade. Leia Mais
Escritas de si, literatura e cinema: diálogos (auto)biográficos | Revista Brasileira de Pesquisa (Auto)Biográfica | 2016
[A narrativa] está presente no mito, na lenda, na fábula, no conto, na novela, na epopeia, na história, na tragédia, no drama, na comédia, na pantomima, na pintura […], no vitral, no cinema, nas histórias em quadrinhos, no fait divers, na conversação. Além disto, sob estas formas quase infinitas, a narrativa está presente em todos os tempos, em todos os lugares, em todas as sociedades; a narrativa começa com a própria história da humanidade; não há em parte alguma povo algum sem narrativa; todas as classes, todos os grupos humanos têm suas narrativas […]
Roland Barthes1
Na epígrafe, Roland Barthes nos diz que as narrativas, por sua quase infinita diversidade (histórica, literária, biográfica, autobiográfica, cinematográfica…), e por sua onipresença na história da humanidade, representam formas de manifestação inalienáveis do ser humano, onde quer que ele se encontre, não importando o momento de sua vida, e em qualquer tempo histórico. Nessa quase infinita diversidade, os seres humanos encontram nas narrativas biográficas e autobiográficas um modo próprio de ser e de contar a história de vida de outrem (biografia) e a história de sua própria vida (autobiografia), constituindo e constituindo-se enquanto seres sociais, racionais, líricos, históricos, místicos, políticos, artísticos, míticos… Leia Mais
História, Cinema e Política / Cordis – Revista Eletrônica de História Social da Cidade / 2016
O número 16 da Cordis: Revista Eletrônica de História Social da Cidade aborda a temática História, Cinema e Política. Valendo-se de abordagens teóricas, métodos e fontes bastante amplas à problematização dos seus objetos de estudo, os autores aqui reunidos nos mostram reflexões consistentes e muito oportunas.
Atuantes em Instituições de Ensino Superior e Centros de Pesquisa no Brasil e no exterior, os autores aqui reunidos são formados em diferentes cursos de graduação e especialistas em distintas áreas. Estes docentes, alunos e pesquisadores demonstram, à luz do conjunto da obra, um debate dos mais enriquecedores, em particular aos campos das Ciências Sociais, Cinema, Desenvolvimento Local, Filosofia, História, Jornalismo e Política.
O presente número da Cordis possui 12 (doze) artigos e 2 (duas) entrevistas. Desejamos aos apreciadores destes textos uma agradável leitura. A todos os pareceristas externamos o nosso sincero muito obrigado. Também registramos a avaliação alcançada pela Cordis junto ao site Plataforma Sucupira – Periódicos Qualis. Em setembro de 2015, esta revista obteve na área de avaliação Artes / Música a classificação B2.
Gostaríamos de fazer uma menção à memória de um querido amigo. Lamentamos profundamente o súbito falecimento, ocorrido em setembro de 2015, de Carlos Danilo Oliveira Lopes, integrante do Núcleo de Estudos de História Social da Cidade (NEHSC) e um dos idealizadores e fundadores da Cordis. Carlos Danilo Oliveira Lopes, figura indelével em nosso meio, formou-se em Comunicação Social – Habilitação em Multimeios pela PUC-SP, em 2003. Pesquisador e colaborador em vários projetos, dentre outras atividades, exerceu a função de editor assistente na revista Cordis e secretariou as atividades do NEHSC e do Curso de Especialização em História, Sociedade e Cultura da PUC-SP. Neste breve registro em lembrança a Danilo, agradecemos a todos os incontáveis serviços por ele prestados à PUC-SP, e mais especificamente ao NEHSC e ao periódico Cordis.
São Paulo (SP), junho de 2016
Nataniél Dal Moro – Professor Doutor
Editor científico e organizador deste número da Cordis.
Dal MORO, Nataniél. Apresentação. Cordis – Revista Eletrônica de História Social da Cidade, São Paulo, n. 16, p. 1-2, jan. / jun., 2016. Acessar publicação original [DR]
História & Cinema no Brasil pós-1964 | ArtCultura | 2016
Para nós, a edição n. 33 de ArtCultura: Revista de História, Cultura e Arte se reveste de especial importância. Quando mais não seja, ela assinala a entrada em cena, como componente de nosso rol de colaboradores, de um dos mais notáveis sociólogos portugueses, José Machado Pais. Ele não só passa a integrar o nosso conselho consultivo como, logo de cara, já nos oferece o texto de abertura deste número, “Tessituras do tempo na contemporaneidade”, tema da conferência que proferiu em Uberlândia ao participar, em setembro deste ano, como convidado de honra, do IV Seminário Internacional do Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais e da XVI Semana de Ciências Sociais promovidos pelo Instituto de Ciências Sociais da UFU.
Investigador coordenador do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa (ICS/UL), José Machado Pais foi professor visitante de várias universidades europeias e latino-americanas. De seu vasto currículo, pode-se destacar sua atuação como consultor da União Europeia e do Conselho da Europa, tendo sido ainda vice-presidente do Youth Directorate of the Council of Europe. Com presença marcante na área editorial, ele ocupa atualmente a função de diretor da Imprensa de Ciências Sociais da UL. Publicou cerca de 40 livros – mais de 20 de autoria solo –, entre os quais A prostituição e a Lisboa boémia, Artes de amar da burguesia, Culturas juvenis, Consciência histórica e identidade, Sociologia da vida quotidiana e Sexualidade e afetos juvenis, além de um sem-número de artigos em diferentes partes do mundo, inclusive no Brasil. Por todas essas razões, sem falar de seu fino trato, nós nos sentimos orgulhosos em contar com sua contribuição que sela nossas afinidades transatlânticas. Leia Mais
História e cinema / Cantareira / 2015
Um escrito do câmera polonês Boleslas Matuszewski, de 1898, é identificado por Mônica Kornis, em um balanço histórico a respeito dos estudos históricos sobre cinema como o primeiro trabalho relativo ao valor do filme como documento histórico. Neste escrito de Mastuszewski, o autor defendia o valor da imagem cinematográfica como testemunho ocular verídico e infalível, sendo que estas observações se referiam ao filme documentário, produção predominante na época, e baseavam-se em um princípio de autenticidade do registro. Somente décadas mais tarde ela seria questionada em um debate acerca do cinema mudo entre os cineastas russos Dziga Vertov e Serguei Eisenstein. No debate, uma nova definição surgiria, e afirmaria que a natureza da imagem cinematográfica é também ela um constructo[2].
O historiador francês Marc Ferro, considerado o principal responsável pela incorporação do cinema na pesquisa histórica, viria a se referir a essa discussão em sua confrontação da ideia de que o documentário seria mais objetivo que a ficção, argumentando que ambos devem ser objetos de uma análise cultural e social. Alinham-se a essa perceptiva sobre as relações entre o cinema e a história, as considerações do escritor alemão Siegfried Kracauer, que contribuiu significativamente para os estudos nesse domínio ao estabelecer ligações entre um filme e seu meio de produção em suas análises, atribuindo aos filmes de ficção a capacidade de refletir a mentalidade de uma nação, revelando uma concepção realista do cinema que se consolidaria no campo da sociologia do cinema.
Tal identidade entre a realidade ou o meio de produção e o filme seria questionada posteriormente, sobretudo pelo crítico francês Pierre Sorlin, ao relativizar a autenticidade conferida à imagem fotográfica e problematizar a relação entre cinema e público. Acompanhando o histórico traçado por Kornis, percebe-se como a discussão sobre a linguagem cinematográfica esteve restrita aos cineastas e teóricos do cinema, em sua fase inicial, sendo que somente a partir da década de 1960 teve lugar um debate metodológico acerca das relações entre cinema e história, focalizando a questão da natureza da imagem cinematográfica.
Nesse sentido, é reconhecida a relevância da reflexão historiográfica francesa promovida nos anos 1960 e 1970 pelo movimento conhecido como Nova História, que destacou a importância da diversificação do uso de fontes na pesquisa histórica, abrindo caminho para a identificação de novos objetos e novos métodos que expandiram os domínios da história tradicional. Nesse campo, Marc Ferro é reconhecido como o principal expoente da incorporação do cinema como fonte aos estudos históricos, apontando para a presença do imaginário no cinema, bem como para o seu caráter de agente social e não apenas produto de uma época; na medida em que nele são expressas as crenças e as intenções de seus realizadores, podendo também servir de instrumento à doutrinação, glorificação ou conscientização de uma sociedade.
Ferro indicava, além disso, a necessidade de se considerar na análise fílmica elementos do filme assim como o que excede seu conteúdo, como as fontes a ele relacionadas. Portanto, sua proposta de análise distingue-se daquela apresentada por Sorlin, conforme bem observa Kornis, na medida em que este se atém à compreensão da linguagem cinematográfica, recusando a homologia estabelecida por Ferro, entre outros, entre um filme e seu contexto histórico, nos moldes de uma análise contextual[3].
Em discussão sobre as relações entre história e cinema nos escritos de Marc Ferro, Eduardo Morettin, retoma o movimento da História Nova ao analisar a incorporação do cinema como fonte documental aos domínios da pesquisa histórica, a partir dos anos de 1970. O autor discute a perspectiva de trabalho de Ferro com a fonte fílmica, segundo a qual o cinema é compreendido como um testemunho de sua época, tendo em vista uma articulação fundamental entre imaginário e cinema, o qual, não estando submetido ao controle das instâncias de produção social, viabilizaria uma contra análise da sociedade, segundo sua natureza histórica, enquanto possibilidade de revelar o inverso da sociedade. Nesse sentido, o filme agiria como um contra poder, revelando lapsos que se referem a uma realidade representada independentemente das intenções do operador. Morettin destaca, também, a marca da busca por uma realidade histórica em toda a obra de Ferro, que se relaciona a uma necessidade de se atingir a compreensão do que exatamente ocorreu no passado representado, orientada pelo princípio de que o fato histórico constitui o referencial da análise.
Contudo, o autor faz ressalvas a essa perspectiva sobre as relações entre cinema e história, recusando as dicotomias esboçadas por Ferro de modo a evitar simplificações no trato com a fonte fílmica, da qual ressalta o caráter polissêmico e aponta para as tensões próprias à sua linguagem. Nas suas palavras, “um filme pode abrigar leituras opostas acerca de um determinado fato, fazendo desta tensão um dado intrínseco à sua própria estrutura interna” [4]. Ele ressalta, ainda, a necessidade de por o cinema em primeiro plano nos trabalhos de história que mobilizem esse tipo de fonte a partir da análise fílmica, a qual, contudo, não deve se identificar às leituras da obra expressas pela crítica ou pelas falas do diretor, mas da qual deve emergir o sentido de sua estrutura.
Os artigos que integram o dossiê tomam por base esses apontamentos, apostando na pertinência da análise da fonte fílmica como realização integral, conforme preconizada por José D’Assunção Barros, para quem o seu exame não pode prescindir de uma metodologia multidisciplinar e pluridiscursiva, tendo em vista que “para compreender tanto as possibilidades formais e estruturais como os conteúdos encaminhados por um filme, faz-se necessário ultrapassar a análise exclusiva dos componentes discursivos associados à escrita (os diálogos e os roteiros, por exemplo)”[5].
Esses artigos são oriundos dos trabalhos de pesquisa apresentados no seminário “Fabulações Históricas: Reinventando o tempo através do cinema” – evento interno à Universidade Federal de Uberlândia (UFU), coordenado pela Profa. Dra. Ana Paula Spini, do Instituto de História da UFU, vinculado ao Grupo de Pesquisa CNPq “História, literatura e cinema: fronteiras metodológicas, apropriações e diálogos interdisciplinares”, realizado com o objetivo de promover a socialização e o debate das experiências de pesquisa dos alunos. O seminário ocorreu entre 16 de junho e 03 de julho de 2015, com uma mesa de debate por semana, em que foram apresentadas comunicações de seis alunos do curso de graduação em História da UFU, além de dois mestrandos em História, um da mesma instituição e outro da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
O dossiê conta também com uma entrevista realizada por alunos da UFU com Eduardo Morettin, professor na Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo. Autor de referência na área de História e Cinema, ele discute na entrevista questões atinentes ao seu envolvimento com esse campo de estudos, bem como aspectos de sua formação e percurso intelectual.
O artigo de Vinícius Alexandre Rocha Piassi, “Memórias no ecrã: os trabalhos de memória da ditadura no cinema de Lúcia Murat” arrola as primeiras observações de sua pesquisa de monografia acerca da filmografia da cineasta. A partir de uma análise transversal dos filmes em que Lúcia Murat aborda temas referentes à ditadura militar brasileira, busca-se identificar, em uma perspectiva de cinema autoral, as representações construídas sobre esse passado no qual estão imbricadas experiências pessoais da diretora. Analisando a mobilização das memórias da cineasta nesses filmes, articula-se à análise fílmica conceitos caros à psicanálise como trauma, luto e elaboração, para compreender os modos como ela lida com esse passado por meio da produção cinematográfica.
“Cuba libre? Laços de poder e jogos de azar na Máfia de Havana: Uma análise do filme O Poderoso Chefão: Parte II” é o desdobramento de um trabalho realizado por João Lucas França Franco Brandão para a disciplina de História da América III na UFU, no primeiro semestre de 2015. O tema desenvolvido alia a proposta da disciplina de abordar questões relativas ao século XX no continente americano, do qual se destaca a Revolução Cubana, e a interface história e cinema, na qual o aluno empreende uma pesquisa de Iniciação Científica vinculada ao CNPq. No presente artigo, o autor analisa no filme de Francis Ford Coppola de 1974 as representações construídas sobre o apogeu e o ocaso da máfia de Havana.
Suelen Caldas de Sousa Simião é mestranda em História na área de Política, Memória e Cidade na Unicamp, egressa do curso de graduação em História da UFU. O mestrado iniciado em 2015 tem como tema “Medianeras no cinema e na cidade: sensibilidades contemporâneas em El hombre de al lado (2009) e Medianeras (2011)”, de cuja pesquisa o presente artigo constitui um produto. Em “(In)visibilidade contemporânea: o olhar e a cena urbana em Medianeras (2011)”, a partir da opção pelo filme argentino de Gustavo Taretto, é desenvolvida uma análise das relações de seus protagonistas com a cidade de Buenos Aires em que se problematiza a prática da flanêrie contemporânea, ao lado do fenômeno da multidão das grandes cidades, como formas de socialização características do que se compreende por hipermodernidade.
Em “Tradição (re)inventada: a desconstrução do mito do cowboy em Crepúsculo de uma raça” Lucas Henrique dos Reis desenvolve o tema abordado em sua monografia detendo-se na análise do último western de John Ford, lançado em 1964, do qual são destacados os papéis representados por seus personagens em relação com os mitos nacionais dos Estados Unidos. Desse modo, é ressaltada uma perspectiva crítica de Ford em sua representação do cowboy no cinema hollywoodiano dos anos de 1960, interpretando uma narrativa fundadora da identidade nacional dos Estados Unidos do século XIX.
O artigo de Lucas Martins Flávio, “Da conquista do espaço às portas do Paraíso: a ficção científica entre utopias e distopias” está relacionado à sua pesquisa de mestrado no Programa de Pós-Graduação em História da UFU, financiada pela CAPES. Da pesquisa iniciada em fevereiro de 2015, intitulada “Reminiscências de uma Contracultura tardia: os filmes de ficção científica de George Lucas da década de 1970”, destaca-se a revisão da história do gênero de ficção científica, desde sua origem literária até suas expressões cinematográficas, com especial atenção para as relações do gênero com as questões da utopia e da distopia, situando nesse campo a produção do cineasta George Lucas nos anos de 1970, nos Estados Unidos.
“Dr. Fantástico, Ironia e Guerra Fria”, de Arthur Rodrigues Carvalho, é fruto de sua pesquisa de Iniciação Científica financiada pelo CNPq, iniciada em agosto de 2015, a qual se relaciona também à temática desenvolvida em sua iniciação científica, ainda em andamento. A partir da análise do filme Dr. Fantástico ou Como aprendi a parar de me preocupar e amar a bomba (1964) de Stanley Kubrick, é explorada a construção narrativa do período da Guerra Fria pelo diretor, com atenção especial para o uso do tropo linguístico da ironia no filme.
Os autores dos textos apresentados devem um agradecimento às professoras Ana Paula Spini e Mônica Brincalepe Campo, do Instituto de História da UFU, pelo apoio na execução das pesquisas e estímulo à publicação. Os artigos que integram o dossiê exemplificam formas diversas de abordagem da interface história e cinema, oferecendo perspectivas distintas sobre o uso da fonte fílmica na pesquisa histórica e expressam, dessa forma, o envolvimento de jovens pesquisadores nesse campo de estudos. Portanto, são convites a uma imersão no universo de relações em que se imbricam o cinema e a história, configurado por trilhas em movimento de sons e imagens
Notas
- KORNIS, Mônica. “História e Cinema: um debate metodológico”, Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 5, n. 10, 1992, p.240.
- KORNIS, op. cit., p.245.
- MORETTIN, E. V. “O cinema como fonte histórica na obra de Marc Ferro”. História: Questões e Debates. Imagem em Movimento: o cinema na história, ano 20, n. 38, jan. / jun. 2003. p.15.
- BARROS, José D’Assunção. “Cinema e história: considerações sobre os usos historiográficos das fontes fílmicas.” Comunicação & Sociedade, Ano 32, n. 55, jan. / jun. 2011. p.192.
Vinícius Alexandre Rocha Piassi – Aluno do curso de graduação em História da Universidade Federal de Uberlândia (UFU).
PIASSI, Vinícius Alexandre Rocha. Apresentação. Revista Cantareira, Niterói- RJ, n.23, jul / dez, 2015. Acessar publicação original [DR]
História e Cinema / Cordis – Revista Eletrônica de História Social da Cidade / 2015
Em seu número 15, a Revista Cordis: Revista Eletrônica de História Social da Cidade, apresenta a temática História e Cinema, que conta com 10 artigos de pesquisas interdisciplinares, tanto de instituições universitárias brasileiras, como de renomados campos acadêmicos internacionais.
Os artigos do presente número abordam suas pesquisas na vertente de que o cinema é uma representação da realidade social. Nessa perspectiva, o cinema é uma linguagem constitutiva da tessitura social e apresenta, por meio de interpretações realizadas por pesquisadores, experiências do cotidiano vivido das cidades, capturando por meio de textos verbais e não-verbais, as tensões, conflitos e embates presentes nas sociedades contemporâneas.
O cinema deixa fluir em seus planos e ângulos de filmagem imaginação, medo, desejo, angústia, prazer, paixão e possibilita, assim, retratar as vozes de diferentes sujeitos sociais, ora rompendo e antagonizando-se com regras sociais, ora engendrando outras e, por vezes, criticando-as. Assim, a linguagem cinematográfica é o meio de autores de produções fílmicas traduzirem a realidade social ao seu modo, de acordo com suas intencionalidades e concepções políticas. Entretanto, toma-se como pressuposto que nenhuma linguagem é concebida como espelho da realidade, mas como expressões da cultura humana.
Os artigos do presente número estão conectados aos diversos aportes teórico-metodológicos com vistas a captar pistas, vestígios e sinais das culturas plasmadas nos filmes. Nesse sentido, os artigos transitam por diferentes matrizes analíticas, por campos epistemológicos de tradições diferenciadas, de modo a possibilitar que ocorra de fato a construção da interdisciplinaridade na abordagem da temática História e Cinema.
Os artigos de Ailton Costa e José D´Assunção Barros retratam, respectivamente, os “Brasis” de Graciliano Ramos e Nelson Pereira dos Santos e as concepções citadinas presentes nos filmes ficcionais no decorrer das primeiras sete décadas do século XX. É importante observar que ambas as análises colaboram com interpretações significativas sobre o cotidiano nas representações fílmicas sobre os modos de viver na cidade.
Há também artigos, como os de Lara Rodrigues Pereira e Yvone Dias Avelino, em co-autoria com Marcelo Flório, que refletem sobre o cinema como fonte histórica em suas análises das realidades sociais apresentadas pelos filmes, produzindo interpretações sobre as possibilidades e trajetórias do fazer cinematográfico em épocas diferenciadas.
Já o artigo de Alex Moreira Carvalho e Robson Jesus Rusche aborda a relação intrínseca entre cinema, vida cotidiana e mídia, de modo a produzir reflexões pertinentes sobre a temática, enquanto o artigo de Felipe Eugênio de Leão Esteves contribui ao enveredar pelos estudos da mestiçagem e o de Luiz Alberto Gottwald analisa, de modo contundente, as relações dialógicas entre cinema e natureza. Os três artigos em questão enfocam áreas importantes do saber: a mestiçagem, a mídia e a natureza nas representações cinematográficas.
O artigo de Valdeci da Silva Cunha e Matheus Machado Vaz analisa o cinema de Orson Welles sob o viés do cinema de autoria, produzindo uma interpretação fulcral sobre um modo de fazer fílmico que influenciou diversas escolas cinematográficas no ocidente.
Por fim, as contribuições internacionais de Federico Pablo Angelomé e Gilda Bevilacqua trazem significativas interpretações, realizadas na Universidad de Buenos Aires, de modo a contribuir com a interdisciplinaridade no campo da História e Cinema, efetivando o diálogo Brasil / Argentina.
Convido a todos a enveredarem por essa jornada de 10 artigos, que tanto enriquecem a trajetória interpretativa sobre o cinema como objeto de estudo, trazendo contribuições epistemológicas relevantes para o referido eixo temático.
Marcelo Flório
FLÓRIO, Marcelo. Apresentação. Cordis – Revista Eletrônica de História Social da Cidade, São Paulo, n. 15, jul. / dez., 2015. Acessar publicação original [DR]
Relações de Gênero, Sexualidade & Cinema | ArtCultura | 2015
Ensaiar a explicação de uma obra é, sobretudo, saber e confessar o quanto ela nos atravessou, quanto ela nos ajuda a reconhecermo-nos através dela.
Octávio Paz
Este dossiê, idealizado e concebido a seis mãos, é fruto de uma paixão e uma fantasia partilhada. Um paixão pela magia embriagante do cinema, pelas ilusões diegéticas da narrativa e sua visualidade, pelas multidimensões sensoriais de sua operacionalidade maquínica no seio de diversas e diferentes culturas visuais, pela potencialidade de intervenção crítica no seio das práticas culturais das cidades, das mais distintas localidades, do modo fugidio como as imagens escapam das fronteiras pré-estabelecidas dos gêneros (cinematográficos), dos limites das produções (censuras, verbas, gramática, tecnologias), da forma dramática como os vários modos de se produzir um filme (dos clássicos à videoarte) marcam imaginários e imaginações.
A fantasia, nos termos como bem a colocou Joan Scott1 , é de transformar este conjunto de textos num amálgama de leituras que extrapolem a crítica por si mesma e invista no elo entre o saber e a confissão (conforme Octávio Paz), ou seja, o ato poético de entender e tensionar obras e práticas filmográficas, de diferentes idiomas e gramáticas, naquilo que elas têm de táteis, isto é, no seu poder de nos tocar ainda que tenham sido parte de um passado do qual jamais faremos parte. O ontem que vive hoje como aprendizado estético e político, mas também como estopim para autodescentramento e autodistanciamento, que nos faça ver nosso hoje com a alteridade crítica que ele requer. Nesse sentido, a fantasia de ir a diferentes países (Índia, Nicarágua, Guiné, Estados Unidos, México, Inglaterra), trespassando, interligando vozes (femininas, feministas, queer) que ousem dialogar ao mesmo tempo com formas de ver e entender dos que criam a maquinaria artística e a engrenagem da indústria cinematográfica e dos que se dispuseram e se dispõem a pensar os impactos e as atuações, enfim, os efeitos subjetivos e microfísicos desta usina de produções de sentidos, significados, emoções e racionalidades. Leia Mais
História, imagem e cinema / Nearco – Revista Eletrônica de Antiguidade / 2014
Este número da Revista Eletrônica de Antiguidade NEARCO ratifica o Núcleo de Estudos da Antiguidade (NEA / UERJ) como um lugar de divulgação e produção do saber acadêmico. Nesses dezesseis anos de organização estabelecemos diversas publicações que tiveram a preocupação não somente de publicar artigos de professores renomados, mas de alunos de graduação e de pós-graduação com propostas de trabalhos interessantes e inovadoras.
Estamos na modernidade, ou na pós-modernidade e como historiadores devemos acompanhar as transformações do mundo. Quando divulgamos pesquisas em meios eletrônicos, novas formas de mídia e internet, nós objetivamos estabelecer ações que valorizem o diálogo interdisciplinar que permita ao historiador importar técnicas, teorias, métodos e problemáticas de outras áreas da ciência, contribuindo para uma análise histórica abrangente que proporcione a comunidade científica abordar temáticas associadas à instrumentalização e utilização de novas tecnologias.
Partindo desse pressuposto, a Revista NEARCO publica alguns artigos oriundos da XI Jornada de História Antiga da Universidade do estado do Rio de Janeiro que abordou o tema “História, imagem e cinema”. Os trabalhos publicados discutem assuntos que complementam ou ampliam o que alguns livros tratam de forma mais generalizada. Assim, ao divulgarmos tais pesquisas históricas procuramos enriquecer, ampliar o debate, propor novas metodologias e potencialidades originadas do senso crítico dos pesquisadores.
Boa Leitura!
Maria Regina Candido – Professora Doutora.
Junio Cesar Rodrigues Lima – Professor Mestre.
CANDIDO, Maria Regina; LIMA, Junio Cesar Rodrigues. Editorial. Nearco – Revista Eletrônica de Antiguidade, Rio de Janeiro, v.7, n.2, 2014. Acessar publicação original [DR]
História & Cinema | ArtCultura | 2013
Edição especial: Ano XV
Como quem participa de uma corrida de obstáculos – o pão nosso de cada dia de todos os que têm pela frente a edição de periódicos universitários –, a ArtCultura 27 comemora o Ano XV da revista. Para nossa satisfação, as dificuldades encontradas ao longo do caminho foram em grande parte superadas graças ao esforço e colaboração de um sem-número de pessoas e agências. No caso destas, ressaltamos a injeção de recursos que, em diferentes momentos, recebemos do CNPq, da Capes e da Fapemig, bem como da Edufu.
Ao retomarmos as pegadas de sua caminhada, constata-se que uma publicação que nasceu ancorada num projeto relativamente tímido adquiriu, com o passar do tempo, adquirindo maior musculatura intelectual. Abriu-se, por assim dizer, para o mundo a ponto de acolher contribuições de distintos países das três Américas e da Europa (neste número, por exemplo, contamos com colaboradores radicados na Alemanha, Estados Unidos, França e Inglaterra). Ao convocarmos igualmente colegas brasileiros para juntarem-se a nós, a resposta obtida foi a mais positiva. Centenas e centenas de textos assinados por pesquisadores de todos os cantos do país chegaram até nós, o que nos possibilitou procurar manter a qualidade dos artigos publicados, algo atestado por nossos quase mil assinantes. Leia Mais
(Ab) Usos do Cinema em História / Revista de História da UEG / 2013
Prefácio: Alguns (ab) usos do cinema
Na sala escura, antes dos filmes que vemos na tranquilidade do nosso lar, são-nos apresentadas pequenas peças propagandísticas de outros filmes. Os trailers dilatam, prolongam e estimulam nosso desejo de assistir a mais filmes. Há, entretanto, uma dimensão da feitura do cinema que está além ou aquém da exibição do filme e só nos é possível acessá-la em casa ou nos cineclubes. É o que na língua inglesa se denomina making of (e já quase dispensa a tradução para o português, tamanha sua circulação entre nós). O making of é um recurso metalinguístico que registra e, algumas vezes, traz alguma reflexão sobre a execução de um filme.
É um remix entre trailer e making of a matéria do presente texto. Mas não só. Aqui, também, objetivamos apresentar um panorama de questões acerca dos (ab)usos do cinema na / pela história, enquanto área do conhecimento humano, partindo dos textos que integram esse dossiê (certamente, é isso uma justificativa prévia para uma “apresentação” tão extensa).
Atendendo a uma chamada pública divulgada há um semestre, alguns estudiosos acadêmicos lançaram-se à aventura criativa e responderam à provocação, submetendo suas reflexões ao público. O problema apresentado naquela oportunidade chamava esses estudiosos a refletirem sobre os (ab)usos do cinema em história. O recurso gráfico dos parênteses que delimitam o prefixo antes da palavra “usos” provoca certo movimento semântico. A palavra amplia-se em outra palavra possível, um significante a ampliar significados. Antes fixa, a palavra entra em movimento: duas coisas em uma.
Quaisquer usos podem se deslizar em abusos (e todo abuso não deixa de implicar um uso). “(Ab)Usos”, portanto, é uma palavra que se movimenta tal qual os fotogramas que, ao serem sequenciados acima de certa velocidade2, provocam a impressão do movimento, iludindo-nos. Esse fato técnico, mecânico e fisiológico paira por trás da complexa arte cinematográfica.
Portanto, por “(Ab)Usos do cinema em história” desejávamos, também, forçar a operação binária que hierarquiza (e cristaliza) a presença do cinema dentro das salas de aula ou das “oficinas históricas”. Afinal, todo uso é um abuso em potencial, como já dito. Por sua vez, todo abuso, por uma questão de ajuste, pode se transformar em um poderoso uso.
A expressividade do título também traz, para o primeiro plano da investigação, a prática, a vida, o fazer, o (ab) usar. É preciso não somente refletir sobre a prática, mas investigá-la como centro em torno ao qual se dá o processo de reflexão teórica. Assim, para enfrentar, desconstruir e propor, na chamada original, escrevemos:
O objetivo do dossiê é divulgar o resultado de pesquisas, reflexões, ensaios, notas de pesquisa e resenhas que problematizem os usos e abusos do cinema nas diversas dimensões do ofício histórico: no trato documental, na criação textual, na comunicação e no ensino / aprendizagem dos conhecimentos e saberes históricos. As relações entre a linguagem cinematográfica (em suas dimensões técnicas, artísticas, políticas, econômicas etc.) e o conhecimento histórico nem sempre são objeto de reflexão sistematizada. Possivelmente, as aulas de história constituem a situação em que melhor visualizamos o silenciamento sobre as demais dimensões da linguagem do cinema. A simples ênfase na narrativa / enredo / informação enunciada, em detrimento das demais dimensões, seria o principal “abuso” do cinema: o mais ordinário e, por isso, possivelmente, o mais forte. A dimensão textual (com suas especificidades de linguagem, comunicacionais, discursivas, ideológicas…) é quase sempre obliterada pelo “(ab)uso ilustrativo” do cinema3 .
Depois de um longo processo de reunião, avaliação e discussão, chegamos aos textos que constituem o presente dossiê4, cujo processo de organização, da gênese à publicação, também constitui um dado para ser analisado. As propostas submetidas atestaram uma prática muito forte quando nos colocamos diante do cinema (para além de simples espectador): a dificuldade em resistir à “impressão luminosa” sobre nossas retinas e a toda sequência de reações que ela provoca. O conteúdo enunciado em forma de luz ainda encanta nossa curiosidade e, talvez por isso, resistimos à valorização e à consideração de sua linguagem como constituinte / constituída do conteúdo. A simples análise e atenção dada ao conteúdo ainda é o elemento hegemônico nos estudos das estruturas expressivo-formais da matéria fílmica. Se assim o é nos textos acadêmicos, possivelmente, também o será nas aulas escolares. O conteúdo em primeiro lugar. A forma que lhe constitui, por sua vez, nem sempre interessa…
Por que isso acontece? Seria a linguagem cinematográfica mais complexa que qualquer outra linguagem, desmotivando seu enfrentamento? Certamente, não. É preciso romper com a dicotomia conteúdo / forma, como discute Rafael Borges, no texto A crítica da imagem eurocêntrica no ensino de história (2013), ancorando-se nas discussões de M. Bakhtin.
O (ab)uso conteudista precisa ser revisto, seja na produção ou na comunicação dos conhecimentos históricos. Há conteúdo para além das estruturas formais da linguagem cinematográfica? A análise do sentido fílmico não é possível fora de sua linguagem específica. Ao menos, não é possível dentro de uma compreensão complexa e substantiva do que venha a ser cinema. A simples análise de conteúdo desconsidera justamente o específico fílmico, isto é, o jogo complexo dos elementos que constituem sua especificidade de sua linguagem.
Nesse sentido, os usos tradicionais do cinema pela história (seja na produção desse conhecimento ou em sua comunicação) ainda constituem fetiches criados pela ilusão do conteúdo. Destarte, a crítica ao (ab)uso conteudista na abordagem do cinema passa por uma atitude de enfrentamento das estruturas da linguagem do cinema.
Por informar sobre esses elementos e seu funcionamento na realização dos filmes, é fundamental a contribuição da obra A linguagem secreta do cinema (2006), do criador cinematográfico francês Jean-Claude Carrière, resenhada no presente dossiê por Weverson Cardoso de Jesus.
Como sempre se ressalta nas obras que discutem os usos do cinema na sala de aula ou na produção do conhecimento histórico, o aluno / professor / investigador não precisa tornar-se um cineasta5. Mas é preciso o mínimo de conhecimento sobre as estruturas dessa linguagem. Senão, podemos desistir do seu uso em uma relação de ensino / aprendizagem. Senão, dificilmente, nós historiadores seremos lidos (e considerados) pelos que fazem cinema.
Quanto ao primeiro “senão”, destacamos o relato de um colega orientador de estágio de um curso de licenciatura. Num encontro de orientação, sua estagiária lhe confidenciou que teve muita dificuldade quando se propôs a usar um filme em certa aula preparada para uma turma de Educação de Jovens e Adultos. Depois de dizer que “passaria” um filme na aula, uma das alunas da escola-campo levantou-se com seus materiais e disse: “Professora, já que não vai ter aula, filme eu assisto em casa”. A estagiária ficou atônita e, a sala, esvaziada pela metade.
É fato. A simples exibição de filmes, como se seu conteúdo falasse por si, não é uma atitude de aprendizagem, muito menos de ensino. Infelizmente, a constante repetição dessa postura por parte dos professores criou a tradição segundo a qual o uso de filme “não é aula” ou uma “enrolação” que a substitui. A atitude da aluna supracitada, cansada depois da jornada diária de trabalho, é prova desse mau uso do cinema. Isso afeta, sobretudo, quem acredita no potencial do uso do cinema em sala de aula para o ensino / aprendizagem. Possivelmente, esse (ab)uso do cinema teria sido minimizado se, ao longo dos anos, o uso de filmes em aula tivesse, como condição mínima, valorizado os elementos expressivos do cinema. Afinal, dificilmente encontraríamos um aluno que não seja, mesmo eventualmente, um consumidor de filme.
Claro, “não devemos desconsiderar o efeito estético, emocional e argumentativo do discurso fílmico valorizando somente a dimensão técnica de sua linguagem”, argumentariam alguns. A linguagem cinematográfica por ela mesma, apartada do seu conteúdo, igualmente, não faria / faz o menor sentido para a criança, adolescente ou adulto que se encontra numa sala de aula, além de esterilizar a potência transformadora da sétima arte.
É preciso que cada um de nós tenha consciência da inter-relação entre forma e conteúdo, realidades intrínsecas imbricadas, para aprendermos a saborear a “maravilha” cinematográfica de forma autônoma e protagonista. Sair da condição de consumidor passivo precisa ser o objetivo maior de qualquer uso do cinema. E entender a relação conteúdo / forma, em cada especificidade discursiva, é a primeira atitude para resistir, reagir e transcender ao encanto que consome nossa autonomia diante de uma TV ou na sala escura de um cinema.
Portanto, na esperança de que o segundo “senão” seja rapidamente superado, convidamos o leitor a continuar conosco nas páginas seguintes, nas quais apresentamos algumas considerações sobre os textos que constituem o presente dossiê. De forma geral, os textos foram agrupados em duas grandes seções. A primeira trata dos (ab)usos do cinema na comunicação do conteúdo histórico, observados a partir do interior das salas de aula. A segunda reflete sobre os (ab)usos do cinema na produção do conhecimento histórico. Vejamos, então.
- O cinema na história, a história no cinema: (ab)usos de filmes na comunicação do conteúdo histórico
No artigo A crítica da imagem eurocêntrica no ensino de história (2013), Rafael Borges apresenta a importância dos conceitos bakhtinianos de dialogismo e hetoroglossia para um uso autônomo do cinema. A consequência imediata disso é o questionamento do (ab)uso dos filmes em sala de aula como apresentação objetiva da história enquanto processo (o que o autor chama de “uso acrítico” do cinema).
Apontando para uma atitude de descolonização das mentes e culturas, Rafael Borges inicia sua discussão problematizando a relação entre o cinema e o imperialismo cultural europeu. Para isso, toma por base a Crítica da imagem eurocêntrica, de Robert Stam e Ella Shohat (2006). Tal discussão trespassa o longo período, do qual as práticas colonizadoras europeias ainda hoje retiram sua força, em que foi forjado historicamente o “sujeito moderno”. O eurocentrismo não se limita ao fato de a Europa se ver como uma entidade geográfica mas, sobretudo, de se ver como o sujeito central da história da humanidade. Para entender seu funcionamento e força é fundamental o retorno ao processo de colonização da América. Foi a partir desse momento que, ao defrontar-se com o outro (americano), os europeus deixam seu lugar cultural periférico (em relação ao mundo muçulmano) para galgar à posição de senhores da cultura (universal e universalizante).
Contudo, como nos lembra Enrique Dussel, na obra 1492: O encobrimento do outro (1993), a construção da identidade europeia como centro do mundo – processo em que a pureza e a unidade foram os cosméticos que maquilaram discursivamente a face fragmentada e diversificada da Europa – resulta de um processo dialógico, em que a América foi a protagonista obnubilada, sem cachê e que não apareceu nos créditos finais – para (ab)usar aqui do léxico cinematográfico. E mais: o “papel” da América na constituição do eurocentrismo não foi somente a do Outro. Foi, sobretudo, a do Outro dominado. O argumento de Rafael Borges, retirado das reflexões de Dussel, bem poderia ser base para um roteiro de filme épico e “baseado em fatos reais”. Melhor: baseado em fatos históricos, pois já foi experimentado na pele por milhões de americanos, desde 1492.
Foi no processo “altamente centrípeto e homogeneizador” de conquista dos americanos, como diz Rafael Borges, que se deu o nascimento do sujeito moderno eurocêntrico. A Europa não se fez sozinha, inventou-se sobre (e às custas d)as vidas de milhões de indígenas americanos e, depois, de escravizados africanos.
Nessa altura da história contada por Rafael Borges, entra o estudo de Robert Stam (2000) a nos revelar os negativos ideológicos eurocêntricos das primeiras fitas cinematográficas, produzidas no final do século XIX, e que serão reproduzidas desde então. A repetição dessas imagens naturalizou paulatinamente a “superioridade do europeu e do branco, de uma forma geral, perante o resto do planeta”.
Aqui, deparamo-nos com um ponto fundamental quanto ao uso do cinema em sala de aula: o mediador precisa problematizar as representações eurocêntricas de forma que o espectador / aluno possa ter uma postura dialógica diante delas, posicionando-se de forma crítica, percebendo, de forma conscientemente controlada, que essas representações “são passíveis de ressignificação, rejeição e contestação variadas”, como escreve Rafael Borges (2013, p. 34). Entender o processo de produção do sentido é a primeira condição para superá-lo. Assim, o imaginário imagético monológico que retroalimenta as representações do colonizado (como pessoa selvagem, infantilizada, feminizada, virgem etc.) e do colonizador (o cientista, o pai, o penetrador) é desestabilizado, desnaturalizado. A postura dialógica do espectador frente ao discurso fílmico pode favorecer essa desconstrução. Nesse ponto, Rafael Borges retoma o (ab)uso do cinema pela história. É preciso
rejeitá-lo como apresentação mecânica do real e buscar, em casos de imagens eurocêntricas, estratégias que possam denunciar e contestar a representação ali engendrada, estratégias essas que a nosso ver, devem se pautar na percepção da natureza dialógica da linguagem (BORGES, 2013, p. 37).
Na segunda parte do texto de Borges, serão discutidas as ideias de dialogismo e heteroglossia. Ambos nasceram na tradição bakhtiniana e podem fundamentar uma metodologia que oriente o uso do cinema em sala de aula. Em que pese a discussão sobre a autoria bakhtiniana desses conceitos, a ideia de dialogismo propõe a compreensão da obra cultural tanto a partir da valorização do conteúdo quanto de sua forma. Nesse caminho, um filme, por mais realista que seja, como são apresentados aos alunos os documentários, por exemplo, não reflete a realidade. É, antes, uma refração e reflexão de outras esferas de sentido. Na criação cultural (no caso aqui observado, a audiovisual: artística ou não, documental ou ficcional, “histórica” ou não), não há separação entre “dentro e fora”, “conteúdo e forma”, “interior e exterior”, “texto e contexto”: essas dimensões se permeiam constantemente.
Assim, a análise fílmica não pode deter-se unicamente nas representações veiculadas (a poupa narrativa, o conteúdo, o enredo, a trama e os sentidos que o / a constituem) nem tampouco nos mecanismos da linguagem fílmica os quais dão matéria às representações por ela veiculadas. Apesar de que, como bem lembra Daniel Matos no texto Serial Killers e imaginários sociais (2013), citando Baczko (1985), muitas vezes, as representações dão origem e enquadram os acontecimentos.
Para refletir um pouco sobre o uso dos filmes em aulas de história, declinemos um pouco do texto de Rafael Borges para nos aproximar dos passos de Roland Barthes no seminal O discurso da história (2004), um pequeno, mas denso texto.
1.1. Os tempos da matéria
O professor de história, ao analisar o filme, precisa atentar-se tanto para o tempo da matéria enunciada quanto para o tempo da enunciação da matéria (BARTHES, 2004, p.163-180).
O tempo da matéria enunciada é, no interior do objeto fílmico, a forma como a história / enredo / narrativa é construída discursivamente por meio dos códigos específicos da linguagem cinematográfica. Nos filmes históricos, é “o passado” que (não podemos nunca nos esquecer) parece e quer se nos apresentar na tela. Precisamos, portanto, resistir a essa pretensão. Como nos informa Barthes, o passado nunca se apresenta por si só. A relação aí não é objetiva, apesar de a objetividade ser um argumento basilar para a pretensão científica da história.
O tempo de enunciação da matéria, por sua vez, é constituído pelo conjunto dos condicionantes da enunciação, inseridos em seu tempo histórico de produção, ou seja, suas estruturas de significação: temporais, sociais, econômicas, de classe, de gênero, de etnia, de região e quantas outras mais forem passíveis de detecção (e de construção).
Essa distinção de tempos pode ser acessada, nesse dossiê, em Bonnie e Clyde: um estudo do gênero de Gângster, texto de Tiago G. da Silva (2013). O filme a que se refere o artigo, dirigido por Arthur Penn, em 1967,
apesar de retratar os Estados Unidos na década de 1930, deve ser pensando como forma de estudar a sociedade norte-americana dos anos 1960, momento em que foi produzido, pois o discurso sobre o período histórico retratado na trama do filme é influenciado por uma série de questões referentes à realidade do tempo em que foi realizado […]. Ao se analisar a trama do filme e seus personagens, pode se perceber que há referência a um momento histórico que não é aquele que eles recuperam no longa-metragem (os anos 1930), mas sim aquele que existia na ocasião da produção da obra [os anos 1960] (SILVA, 2013, p. 120).
Em seu texto, Tiago Silva faz referência ao Motion Picture Production Office ou Código6. Estabelecido em 1930, mas efetivo somente a partir de 1934, o Código imputou a censura aos filmes estadunidenses. Ele obrigava a produção cinematográfica a respeitar certos valores morais e cristãos quanto ao trato da família, Igreja, sexo, violência, etc. Esse elemento exterior à produção cinematográfica acabou condicionando as representações e sentidos produzidos no interior dos filmes do período7. Ao analisarmos as obras cinematográficas produzidas nos EUA, de 1934 até o final da década de 1960, portanto, não podemos deixar de considerar os desdobramentos do código para a / na produção fílmica. Assim, fica claro que, se nos detivermos apenas no universo interior ao mundo diegético, não daremos conta de elementos que lhe são exteriores e que lhe influenciam sobremaneira. Aqui fica evidente a importância de, durante a análise fílmica, não separarmos as dimensões intrínsecas e extrínsecas, forma e conteúdo, textual e contextual.
Um risco que corremos em nossa análise dos elementos contextuais, ou seja, histórico-sociais da produção fílmica, é gastar todas as nossas energias e tempo nessa etapa, chegando exauridos à análise do próprio filme. Talvez isso seja resultado do procedimento analítico de se partir do todo para o particular. Muitas vezes, quando o autor “chega” ao filme, tem pouca energia para analisar os conteúdos, sentidos, representações existentes no filme. Na maioria das vezes, negligencia a linguagem dessa produção. O desafio na análise fílmica, portanto, é sempre fazer, paralelamente, o jogo de escalas: do texto para o contexto, do conteúdo para a forma e assim sucessivamente, percebendo e evidenciando suas interpenetrações.
Desperdício de energia não é o que faz Tiago Silva. Seu artigo distribui, em sua exata primeira metade, as questões contextuais para, a partir delas, dedicar-se a uma observação mais pontual do filme analisado. Possivelmente, a problematização do enredo do filme em relação ao seu contexto de produção, sem dúvida um benemérito de Tiago Silva, teria sido potencializada se tivesse o autor valorizado a dimensão da linguagem na produção desses sentidos.
Na esperança de maior objetividade na discussão sobre o tempo da enunciação e o tempo da matéria enunciada, tomemos por exemplo o filme Danton, o processo revolucionário, de Andrzej Wajda (1982).
1.2. Danton(s) enunciados
O tempo da matéria enunciada no filme é a Revolução Francesa, especificamente, o período do Terror Revolucionário. Ali observamos microhistoricamente dois importantes protagonistas: Danton e Robespierre. O primeiro quer “fazer recuar o Terror que ele mesmo ajudou a instaurar”. Nas palavras do diretor do filme, representa o mundo ocidental liberal (e capitalista). Robespierre é a meticulosa, inflexível, dogmática (e moralista) mente “linha dura” à frente desse mesmo Terror, a defender sua necessidade para levar a cabo o processo revolucionário. Representa o mundo do Leste comunista (e totalitário).
O período de produção (“o presente”) do filme, o início da década de 1980, nos traz pistas sobre o tempo de enunciação da matéria do filme. Mas, para abarcá-lo, é necessária uma aguçada visada analítica, o que fez o historiador Robert Darnton no ensaio Cinema, Danton e o duplo sentido (1990). Ao ler esse texto, percebemos que Danton foi recebido de forma diametralmente oposta em dois países diferentes: na França esquerdista, do presidente Mitterrand (que bancou sua produção orçamentária) e na Polônia comunista, do diretor Wajda. Apesar de o filme ser “ambíguo demais para oferecer uma moral definida para o presente”, nas palavras de Darnton, vários aspectos foram recebidos pelos espectadores poloneses como uma “crítica ao controle sobre a liberdade de pensamento dentro de seu país”, denunciando o doutrinamento (e a historiografia) stalinista que vitimaram muitas pessoas com o seu desaparecimento sob a ditadura militar (DARNTON, 1990). Claro que a ambiguidade, para além do gênio criativo do diretor, é uma condição necessária para se produzir (e sobreviver) em meio a estruturas opressivas. Talvez por isso o filme tenha lotado as salas em que foi exibido na Polônia, num exercício de catarse coletiva, em que liberavam energia destrutiva contra a ditadura militar de seu país, através da sétima arte.
Movimento contrário a tudo isso aconteceu na França. O filme gerou um escândalo entre a esquerda: contrarrevolucionário, falseador da história francesa, anunciaram os jornais e intelectuais. O Danton reabilitado de Wajda destoava do Danton dos livros escolares (e da historiografia) franceses, corrupto e vendido à contrarrevolução dos nobres. O Robespierre do diretor polonês também não se encaixava no modelo heroico francês que o representava como o estrategista ideológico que orientou o movimento no caminho da revolução social (DARNTON, 1990).
Assim, a partir dessa análise sobre o tempo de enunciação da matéria, Darnton conclui que o filme de Wajda evidencia a força do mito da Revolução Francesa (ao menos na visão ortodoxa comunista), pois “controlar o mito é exercer poder político”. Por esse motivo, ocorreu tamanho burburinho contra o filme: o diretor eliminou as referências ao contexto de extrema pressão vividos pela população sob o Terror; reduziu a Revolução a um duelo parlamentar entre alguns oradores burgueses; retirou o povo da Revolução, embora tivesse sido um levante das massas… Em verdade, para esse historiador estadunidense, as reclamações sobre as imprecisões históricas no filme disfarçavam a insatisfação dos franceses contra a representação do diretor polonês “mais ambígua e menos heroica” das figuras dos livros escolares. O filme desvelou, na França, o poder simbólico, o discurso político. Por isso, tanta preocupação com a “ordem dos fatos no tempo e os heróis encaixados nas categorias certas”, afirma Darnton. Enfim, assevera que o debate sobre o filme nos mostra que “os fatos não falam por si sós”. Apesar de único, o filme “não foi o mesmo em Varsóvia e Paris. Sua capacidade de gerar um duplo sentido sugere que o próprio significado é modelado pelo contexto e que a significação da Revolução Francesa nunca se esgotará” (DARNTON, 1990).
Relembremos a argumentação feita por Rafael Borges: não podemos prescindir de uma postura dialógica: o tempo da enunciação interpenetra o tempo da matéria enunciada.
1.3. A dimensão política do (Ab)Uso conteudista do cinema em sala de aula
Com pequena margem de erro, podemos afirmar que a análise fílmica em sala da aula, em sua quase totalidade, começa e acaba na representação existente no filme, ou seja, em seus conteúdos (pretensamente históricos). A ênfase no conteúdo é o maior e o mais perene (ab)uso do cinema em história na sala de aula. Por esse motivo, podemos chamá-lo também de o (ab)uso tradicional do filme. Talvez por conta dessa ênfase no conteúdo, outro (ab)uso muito recorrente no uso do cinema nas aulas é tomar a narrativa fílmica como ilustração de certo conteúdo curricular.
Rafael Borges traz o conceito de heteroglossia como uma forma de ultrapassar o uso meramente ilustrativo do cinema. Um mesmo sujeito fala de modo diferenciado dependendo da situação discursiva em que se encontra. Então, um mesmo discurso fílmico pode ser recebido e interpretado de formas diferentes em relação ao lugar de fala / escuta do espectador ou ao seu território, ao período de produção do filme, à identidade de gênero do receptor, às diferentes gerações dentre outras chaves para interpretação. Dessa forma, o ato de se assistir ao filme pode transformar-se em um acontecimento dialógico.
A partir da obra Nós que aqui estamos, por vós esperamos, o texto de Julia Matos (2013) traz reflexões simples e objetivas que podem auxiliar o professor no uso do cinema em sala de aula. Para isso, é importante entender o aluno também como protagonista da atividade e não somente como espectador passivo das informações. Para tanto, é fundamental que o professor prepare a atividade, com pesquisa, reflexão e dedicação. Ou seja, tudo o que as condições atuais do trabalho docente (como é compreendido pela maioria dos gestores públicos municipais e estaduais) não possibilitam plenamente.
Não somente para o uso de filmes na sala de aula, mas para que qualquer atividade seja efetiva para a boa relação ensino / aprendizagem, contribuindo substantivamente para a formação humana e profissional do aluno, o professor precisa de condições mínimas de trabalho, o que não encontramos na maioria das redes municipais e estaduais. O que vemos são professores entendidos, pelos gestores da educação pública, apenas como executores de atividades previamente pensadas e estabelecidas. Diante desse processo, a autonomia docente para o trabalho dos conteúdos curriculares em sala de aula diminui cada vez mais. Preocupados com os exames (e o consequente ranqueamento das escolas via Índice de Desenvolvimento da Educação Básica), os governos constroem cada vez mais um processo educativo frio e, literalmente, calculista apenas preocupado com índices e taxas (de aprovação, de evasão, de progressão…). Esse processo é um câncer silencioso a corroer a curiosidade e o interesse dos discentes pela aprendizagem e o empenho, estímulo, dedicação de seus professores pelo ensino.
Lançando mão do ágil e poderoso recurso midiático, os governos gastam milhões com propagandas mentirosas, maquilando aos olhos da população, a doença de uma escola que não ensina e de crianças e adolescentes que não aprendem.
Muitos estados ainda pagam seus professores com salários inferiores ao valor estabelecido em lei. Recebendo pouco, estes precisam aumentar sua carga de trabalho ou se dedicar a outras atividades e bicos para complementar a renda. Assim, gastam sua vida e saúde com uma carga horária de trabalho semanal desumana, dividindo-se entre várias escolas, atividades, disciplinas, restando pouco ou nenhum tempo e energia para as aulas a preparar… ou a se preparar para as aulas.
Diante desse cenário, como pode o professor usar, em suas aulas, recursos e atividades que exigem certo tempo e atenção como o cinema? Tempo para assistência e fruição do filme? Antes disso, tempo para constituição de um capital cultural, sem o qual o cinema vira mero entretenimento? Como comprar livros, participar de cursos, de palestras com o salário que os professores recebem?
Por isso, o uso de filmes de uma forma significativa na formação dos alunos – e não apenas uma possibilidade fácil para matar o tempo ou para substituir um professor faltoso – passa, antes de tudo, por reflexões sobre poder, sobre a gestão de poderes, sobre política. Essa é uma discussão que pouco vimos nos artigos, textos e livros sobre o uso do cinema em sala de aula. Mas é fundamental e deve ser enfrentada sempre.
Não podemos entender, pesquisar, avaliar o uso de filmes nas escolas pensando somente na condição pessoal e particular do professor, pois sua atividade e a forma que ele as executa não lhe é algo pessoal e particular. A prática docente insere-se em uma estrutura maior que a abarca.
Por isso, em nossa reflexão sobre (ab)uso do cinema, precisamos dar atenção aos elementos que ultrapassam as paredes das salas de aula, os muros das escolas, as fronteiras municipais e estaduais… é necessária, também, uma visada histórica, já que essas estruturas não nasceram hoje, sob nossa responsabilidade.
Diante das condições atuais de exercer seu trabalho, como simplesmente apontar metodologias para o professor? Como investigar academicamente o (ab)uso de filmes nas escolas? Como responsabilizar o professor pelo sucesso ou fracasso do uso de filmes? Por que gastar nosso tempo com discussões e reflexões epistemológicas, teóricas, metodológicas que estão a anos-luz da realidade escolar?
Apesar de hercúlea, para nós que acreditamos no potencial de ensino / aprendizagem do cinema (não somente na sala de aula, mas em todos os espaços em que hajam pessoas, pois o cinema é uma importante face da condição humana) a tarefa da investigação e da reflexão sobre as dimensões teóricas e metodológicas do uso de filmes é incontornável.
1.4. Outros (Ab)Usos
De forma rápida e certeira, a exemplo dos protagonistas dos filmes do Velho Oeste, podemos incriminar certos (ab)usos dos filmes nas escolas. Quem nunca teve um professor que “passava um filme” acreditando que a simples exibição valeria pela aula?8 Qual coordenadora pedagógica (e, às vezes, até mesmo o professor) não entendeu que a exibição de um filme servia para substituir o professor faltoso? Qual professor nunca teve um insight fantástico de relacionar tal filme, tal cena a certo conteúdo escolar (mas não planejou o uso de forma devida e por isso o resultado não foi assim tão estimulante quanto imaginado)? Ou então que correu à locadora e não encontrou aquele filme? Ou que achou disponível na internet, mas não conseguiu baixa-lo? Ou que fez o download, mas o filme veio sem legenda ou sem versão dublada? Ou ainda (que essa sequência de situações já está pra lá de angustiante – e esse parágrafo também) que, na aula, não conseguiu operar o equipamento? Qual professor nunca se irritou (minimamente) com a turma de alunos que fez chacota do seu filme amado, após tê-lo exibido em sala com tanto respeito e deferência? Para enfrentar todas essas situações, é preciso planejar o uso de filmes. E isso demanda tempo e dedicação do professor.
Aqui, voltemos então às contribuições de Júlia Matos (2013). A autora nos ajuda a visualizar alguns (ab)usos clássicos do cinema nas aulas de história. Talvez o mais recorrente seja o uso do filme como mera ilustração dos conteúdos curriculares. Mas esse tipo de uso, além de ensinar pouca coisa (propriamente quase nenhuma em relação ao conteúdo curricular), pouco ajuda na transformação do espectador passivo em sujeito do processo de comunicação. Aqui reside a potência de autonomia adormecida a cada vez em que o professor leva um filme para a sala de aula.
O filme é sempre testemunha de seu tempo. Assim como aquela assertiva que diz que todo presente constrói seu passado, o filme (mesmo o dito “histórico”) sempre remete às estruturas do tempo da enunciação da matéria, como dissemos atrás. Então, se assistirmos a um filme sobre Maria Antonieta rodado na década de 30, 60 ou nos anos 2000, veremos que, apesar de a personagem histórica, do tempo cronológico e dos fatos, ser praticamente a mesma, cada década imaginou esse passado de uma forma diferente. Seja no figurino, na aparência, nas palavras, no jeito de falar ou nas ideias, valores e teses sobre os acontecimentos cada um se difere do outro. É por isso que Marc Ferro entende o filme como contra-análise da sociedade passada (FERRO, 1992).
Outra questão levantada pelo texto de Júlia Matos é a forma como as produções cinematográficas representam o passado. Na obra Nós que aqui estamos, por vós esperamos (1998), o diretor Marcelo Masagão apresenta uma narrativa que retoma grande parte da história do século XX. Para Matos, esse diretor constrói uma cinebiografia do “breve século” passado. Esse documentário é um exemplo de como o cinema pensa a história. Não é, obviamente, uma escrita tal qual a produz a historiografia, mas é uma certa escrita cinematográfica da história.
O que não podemos, enquanto professores, é apresentar aos nossos alunos essa escrita cinematográfica (mesmo outras que também possuam altas pretensões historiográficas) como sendo conteúdos históricos, autoevidentes e autoenunciados por si mesmos. Um filme nunca será uma obra de história.
Não temos aqui as condições suficientes para explanar sobre isso, mas, de forma resumida, podemos apresentar dois simples argumentos certeiros para mostrar o abismo que separa as escritas fílmicas e historiográficas do passado. Primeiro por uma questão de linguagem: a história faz uso da linguagem textual e o cinema possui sua própria linguagem: a audiovisual. A história parte de procedimentos teórico-metodológicos (e, às vezes, técnicos) bastante diferentes das questões teóricas e técnicas que importam ao cinema. Então, tomar o discurso fílmico pelo discurso histórico é um equívoco “arrasa quarteirão”.
Talvez, a maior contribuição do cinema à história (principalmente do filme histórico, ou seja, do cinema que toma o passado como matéria ou como argumento de sua narrativa) seria servir de fonte de alimentação do imaginário da sociedade acerca de seu passado. Como bem citou Daniel Matos (2013), em seu texto do dossiê, na sociedade do espetáculo em que vivemos, o alcance da linguagem audiovisual é bem maior que as linguagens escrita e oral. A linguagem do cinema é facilmente acessível (em sua dimensão mais “objetiva”) ao grande público. Por isso, o cinema é constituído e constituinte do imaginário social, repositor constante das representações que se constroem sobre e a partir dessa sociedade.
Nesse sentido, em particular, o cinema é concorrente da historiografia, pois ambos oferecem à população os passados reinventados em sua escritura específica. Em termos quantitativos, o cinema certamente é muito mais eficaz e poderoso que a historiografia. Os passados imaginados e reconstruídos pelo cinema são mais populares, mais vistos e influenciam mais a memória coletiva do que as teses defendidas nas academias pelos historiadores, certamente. Afinal, na sociedade do espetáculo, quem tem olho (e ouvido) é rei. A história, principalmente, enquanto discurso científico, apresenta aos olhos da maioria da população um emaranhado de palavras, às vezes, articuladas de forma complexa e intrincada. A história escolar, como estamos cansados de escutar, é chata e desinteressa aos nossos jovens e crianças.
Por sua vez, o cinema é sedutor: traz tudo pronto, perfeitamente embalado em imagens, sons, palavras, sentidos, sensações que nos emocionam e sequestram nossa atenção e, na maioria das vezes, nossa capacidade de raciocinar, nossa cognição. A autonomia psíquica e racional é transformada magicamente em passividade contemplativa. Em vez de pessoas, transformamo-nos e somos transformados em títeres conduzidos pelas mãos fílmicas. Prazerosamente, deixamo-nos levar, entregamo-nos como escravos.
Mas, se essa é a perdição que o cinema nos apresenta, é também por meio dela que podemos nos salvar. Paradoxalmente, esse é o grande poder do cinema: alienar e / ou conscientizar, distrair e / ou informar, formar e / ou entreter… Por si e em si, o cinema não é uma coisa nem outra. Mas pode sê-lo dependendo da forma como é operado pelos realizadores de filmes ou contraoperado por quem os consome. E assim, o cinema pode despertar a boa consciência, problematizar questões, relativizar posturas, retomar discussões, rever posições, levando consigo todos os seus espectadores. É esse potencial que aproxima o cinema do objetivo maior de toda aula: a (trans)formação.
Aqui entra em cena a grande possibilidade da história escolar. Talvez, ela teria, nesse sentido, mais poderes que a história científica, pois tem maior possibilidade de interferir na forma como a memória coletiva imagina o passado que a historiografia acadêmica. Dessa forma, o uso do cinema pela história escolar seria mais poderoso que a acadêmica. Legalmente, toda a população é obrigada a estudar história em sua infância e adolescência, não? Então, ao trabalhar com o cinema, o professor de história pode potencializar ainda mais seu poder de interferir na forma como a população imagina seu passado. Assim, Julia Matos assevera em seu texto:
O filme pode tornar o distante próximo do olhar do aluno, que ao invés de investir na imaginação abstrata do passado, consegue ter um ponto de referência imagético para construir sua memória e representação do passado (MATOS, 2013, p. 12).
Passemos, agora, ao segundo grupo de reflexões do Dossiê: o (Ab)Uso do cinema pela história. Certamente, é nesse grupo que tradicionalmente localizam-se os diálogos da história com o cinema.
- O Cinema da História, a História do Cinema: (ab)usos de filmes na produção do conhecimento histórico
No artigo Conversão com diversão? Ou como o catolicismo fez as pazes com o cinema durante a Primeira República em Goiás, com seu estilo de escrita histórica peculiar, Eduardo Quadros (2013) nos apresenta uma visada histórica sobre a história da chegada do cinematógrafo em Goiás, no início do século XX. O historiador costura as breves e objetivas notas pescadas nos jornais goianos de antanho dando corpo ao seu texto. Quadros, guiado por uma abordagem fenomenológica, começa o texto reinventando, em nosso tempo, a experiência vivida pelos vilaboenses no espaço de projeção dos filmes nos idos de 1909. Para ficar mais próximo à tela, o espectador teria que desembolsar dois “mi’rréis” (ou vender quatro dúzias de ovos!, nos conta).
A “liberdade” existente no momento de exibição dos filmes está no interior da problemática desenvolvida por Quadros. Muitas vezes era o “eletricista” (aquele que operava o projetor e responsável pela sessão) quem escolhia os pequenos filmes a serem exibidos. O historiador interessado pelas práticas e sentidos religiosos em Goiás, questiona-se sobre a posição da Igreja Católica diante do cinema, já que esse constituía uma importante expressão da modernidade, condenada oficialmente pela autoridade papal desde 1864. A modernidade é a pedra de toque que desencadeia o processo de secularização à medida que possibilita mais autonomia para as esferas sociais perante os valores (e controles) religiosos, nos conta Quadros. Começa aí a peleja entre os donos do Céu e os viventes do Mundo. Com poucas concessões, ainda hoje faíscas desse processo chispam nossos corpos (principalmente as partes íntimas).
O artigo de Eduardo Quadros contribui para que entendamos um novo poder nascido junto com o cinema e, depois, tornado adulto pela linguagem cinematográfica: o poder de ficcionalização do real travestido de realidade. Nesse processo, a aura da obra de arte transfere-se para as maravilhas criadas pela técnica: ver a realidade reproduzida diante dos olhos fez as mentes da virada do século XIX para o século XX excitarem-se diante das imagens. O Mundo Vivido encanta-se diante do Mundo Emulado pelo cinema. A realidade saltava da tela sobre os corpos do espectador. Tal maravilha dava-lhe (e a nós também) o poder de sair da vida para entrar na vida, ao mesmo tempo. Ou não é isso o que acontece quando nos abrimos para a experiência cinematográfica (ou quando ela sequestra nossa subjetividade)?
O alto grau de identificação da mercadoria cinema com seus consumidores, dos criadores com as criaturas, provoca uma alienação tal qual a religião, asseverou Marx (2006 apud QUADROS, 2013). A Igreja via, portanto, o cinema, como discurso concorrente. E, por isso mesmo, passou a combatê-lo, como defende Eduardo Quadros. Foi Walter Benjamin (1988) que nos alertou para o poder das imagens cinematográficas: “O cinema é a forma de arte correspondente aos perigos existenciais mais intensos […] corresponde a metamorfoses profundas do aparelho perceptivo…”. Explica-se: a mudança de imagem constante interrompe a associação de ideias do espectador, deixando-lhe em estado de choque, pois “precisa ser interceptado por uma atenção aguda”. Fica o espectador sequestrado: faz-se escravo por seu próprio consentimento (BENJAMIN, 1988, p.192).
Outro texto que se lança na seara do “cinema da história” é Bonnie e Clyde: um estudo do gênero de gângster, de Thiago G. da Silva (2013). Ao valorizar o estudo dos gêneros cinematográficos, o autor nos apresenta as contribuições dessa abordagem. É nuclear, na questão dos gêneros, a relação entre a dimensão da produção industrial e mercadológica dos filmes e a sua audiência, sua recepção popular. Essa é uma abordagem que valoriza a escala social como um procedimento de análise. Os filmes, como nos informa Schatz (1981), “são gerados por um sistema de produção coletivo, que honra certas tradições narrativas (ou convenções) concebidas para um mercado de massa” (apud SILVA, 2013, p. 118). Assistir a um filme, mesmo sozinho em nossa casa, não é uma prática isolada e individual: é uma prática cultural e, diante da tela, estamos inseridos numa relação social. Produzir um filme, tampouco. “A forma com que as audiências respondem a um filme influencia no desenvolvimento das histórias e tramas” (SILVA, 2013, p. 118).
Aqui podemos relativizar a tese segundo a qual a leitura de um romance ou a assistência de um filme é uma atitude que nos retira da vida social e nos condiciona numa prática individual. Só conseguimos fazer isso (e fazemos por isso) porque essas atitudes nos remetem diretamente ao Outro, ao Nós (mesmo que emulado em imagens ou ficcionalizado em palavras). Consumir cinema é estar em relação direta com os sentidos que nos constituem e são constituídos por nós, para refletir aqui a partir do conceito semiótico de cultura apresentado por Geertz (1989).
O desafio que se apresenta para o autor do texto sobre Bonnie e Clayde, portanto, é praticar o jogo de escalas entre a análise social e a análise da linguagem do filme, a partir de suas estruturas específicas de construção de sentido.
O filme deve ser tratado, segundo afirma Valim (2012),
como um conjunto de representações que remetem direta ou indiretamente ao período e à sociedade que o produziu. A análise das narrativas e do momento de produção dos filmes comprova que estes sempre falam do presente, dizem algo a respeito do momento e do lugar que constituem o contexto de sua produção (apud SILVA, 2013, p. 120).
Mais uma vez, insistimos: o (ab)uso conteudista do cinema, expresso pela atenção a seus valores ideológicos, às representações constituídas pelo / no filme não pode estar apartado das estruturas que lhe dão forma. Essas estruturas são acessadas via elementos da linguagem do cinema. Se não observamos suas estruturas de linguagem não há nenhuma diferença consistente em se trabalhar com documentos textuais, audiovisuais, musicais, etc. Todas as fontes ficam homogeneizadamente condicionadas a uma única perspectiva analítica. Aqui, ainda se evidencia o peso da argumentação bakhtiniana de se fazer a análise do conteúdo em relação à forma, como salientou Rafael Borges no texto apresentado anteriormente.
No texto de Tiago Silva, temos outro exemplo do uso do cinema enquanto objeto da produção do conhecimento histórico para se produzir a “história do cinema” quando o autor nos informa sobre o Código de censura dos filmes nos EUA, entre 1930-60 ou quando ele historiciza o star system dos estúdios cinematográficos.
Analisando o filme Aparecidos (2007), do diretor argentino Paco Cabezas, Salatiel Gomes (2013) constrói seu texto a partir da relação de compromisso do filme com seu contexto sócio-histórico de produção: “a necessidade de reabertura do passado e sua reparação / ressignificação no presente, mais especificamente no que diz respeito aos que sofreram em seus corpos a ação violenta do Estado terrorista entre os anos 1976 e 1983” (GOMES, 2013, p. 48). Assim, Gomes revela no interior desse filme, elementos que lhe são maiores.
A exemplo da fotografia, o filme torna presente um passado, dá corpo a um ausente, motivo pelo qual Kracauer refere-se a ele como um modo de redenção da realidade física. Redenção é um conceito também presente na filosofia de História de Benjamin, segundo a qual os passados cativos devem ser redimidos, na atualidade, pelo trabalho da memória, instância reconstituidora do passado. Dessa definição decorre a noção de que as expectativas frustradas no passado, embora não possam ser revividas no curso dos acontecimentos, podem ser reabertas / ressignificadas / reparadas / pelo trabalho da memória (GOMES, 2013, p. 47-48).
Analisando o filme Aparecidos (2007), Salatiel Gomes constrói seu texto a partir da relação do filme com seu contexto sócio-histórico de produção. Revela no interior do filmes, os seus condicionantes maiores.
Outro autor do Dossiê também percorre um itinerário metodológico parecido. Carlos Silva dos Santos (2013) analise o filme Mon Oncle (1958), do diretor francês Jacques Tati revelando-nos os aspectos socioeconômicos da sociedade francesa e as representações veiculadas no filme. Conclui o autor:
As tensões sociais presentes na película […] constituem-se enquanto consequências da peculiar rapidez com que foi operada a recuperação e subsequente desenvolvimento econômico da França nos primeiros dois decênios após o fim da Segunda Guerra Mundial. Sob forte influência financeira e cultural dos Estados Unidos, aquela nação europeia colocou em marcha um processo que no país americano se desenvolveu ao longo de um período sensivelmente mais extenso. Seria do embate da tradição cultural francesa com as demandas oriundas da inserção de elementos que lhe eram externos, que se fundamentaria a França atual (SANTOS, 2013, p. 95).
Refletindo sobre o filme Cerro Corá (1978), dirigido por Guillermo Vera, cineasta paraguaio, Fabio Ribeiro de Sousa (2013) aproxima os valores veiculados na película ao processo de revisionismo historiográfico acerca da Guerra do Paraguai, que reabilitou a figura do Marechal Solano López. Tal processo teve seu auge durante o longuíssimo regime ditatorial paraguaio (de 1954 a 1989).
O filme financiado pelo regime de Alfredo Stroessner tornou-se um instrumento fundamental para a disseminação de uma matriz historiográfica – a revisionista – tipicamente paraguaia. Cerro Corá (1978) tornou-se uma das maiores produções cinematográficas de seu país, ajudando, além de reproduzir a corrente revisionista acerca da guerra, a influenciar o modo como o confronto é enxergado, até os dias atuais, no Paraguai (SOUSA, 2013, p. 113).
- Créditos finais
A partir das supracitadas questões, o dossiê contribui efetivamente para aqueles que se interessam pelo uso do cinema na produção ou na comunicação do conhecimento histórico. Apesar da dificuldade e da complexidade exigida pela aproximação com o cinema, cada vez mais ela se torna necessária. Numa sociedade espetacularizada por imagens e sons, por imagens em movimento, é preeminente criar as condições para enfrentar o olho que tudo vê ou “nos perderemos entre monstros da nossa própria criação?”.
Notas
1. Coordenador e organizador dos textos que compõem o dossiê “(Ab)Usos do Cinema em História”, que compõe esta edição da Revista de História da UEG, V. 2, N. 1, Jan-Jun / 2013.
2. A substituição sequencial de 16 fotogramas por segundo já provoca em nossas retinas a ilusão do “movimento”. No cinema analógico, consagrou-se o padrão de 24 fotogramas por segundo. Desde então, esse número só aumentou: no cinema digital, são 30 foto / s; no cinema em alta definição (HD), 60 foto / s.
3. Texto veiculado na chamada de artigos da Revista de História da UEG, divulgada no site da revista e circulada por e-mail aos acadêmicos de várias instituições de ensino superior entre março e junho de 2013.
4. Nesse processo, registramos as importantes contribuições da professora Ana Lúcia Vilela e do professor Leo Carrer Nogueira.
5. Apesar de defendermos que “a condição da realização” seja fundamental para uma maior intimidade entre a prática do fazer e a observação / análise dessa prática. Nesse sentido, sugere-se aos professores o exercício, possível e barato, em nossos dias, da produção de obras audiovisuais a partir das câmeras dos celulares. Há um grande e intenso esforço de inclusão audiovisual entre os estudantes, estimuladas pelos editais das operadoras telefônicas e das agências públicas e privadas de fomento e, principalmente, por festivais especializados (ou por aqueles que os contemplam em sua programação) nos chamados “vídeos de bolso”.
6. Daniel Ivori de Matos, autor de outro texto do dossiê, também lhe faz referência.
7. Em Hitchcock (2012), recente filme dirigido por Sacha Gervasi, é representada uma sessão de debates entre o diretor Alfred Hitchcock com o responsável pela censura estadunidense aos filmes. À época, o diretor filmava o inovador Psicose (1960) e, como nós sabemos, a cena do assassinato de Marion Crane no chuveiro muito questionava as posturas defendidas pelo Código.
8. Há uma piadinha sobre certo professor que gostava tanto de “passar filmes” que, quando a duração do filme era maior que o tempo da aula, ele dizia: “Continuamos na próxima aula”.
Referências
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STAM, Robert. Bakhtin: da teoria literária à cultura de massa. São Paulo: Ática, 2000. VALIM, Alexandre Busko. História e Cinema. In: CARDOSO, Ciro Flamarion, VAINFAS, Ronaldo (Orgs.), Novos domínios da história. Rio de Janeiro, Elsevier: 2012, pp. 283-300.
Euzébio Fernandes de Carvalho1 – Mestre em História pela Universidade Federal de Goiás, docente do curso de graduação em História da Universidade Estadual de Goiás, unidade Cora Coralina. Coordenador e organizador dos textos que compõem o dossiê “(Ab)Usos do Cinema em História”, que compõe esta edição da Revista de História da UEG, V. 2, N. 1, Jan-Jun / 2013. Universidade Estadual de Goiás Cidade de Goiás – Goiás – Brasil. E-mail: euzebiocarvalho@gmail.com
CARVALHO, Euzébio Fernandes de. Editorial. Revista de História da UEG, Morrinhos – GO, v.2, n.1, jan / jul, 2013. Acessar publicação original [DR]
Nordeste: coisa de cinema / Mnemosine Revista / 2013
Nordeste, meu amor ou: Está o Nordeste para o Brasil assim como o Oriente para o Ocidente?
Representar o “Outro” constitui um dos maiores desafios, mas também uma das mais avassaladoras tentações do ente que convencionamos denominar “ser humano”. Talvez não seja despropositado afirmar que o impulso – cognitivo e emocional – que nos impele ao conhecimento e, consequentemente, ao ordenamento do mundo, é uma marca universalmente partilhada, ainda que apresente variações (por vezes dramáticas ou, ao contrário, apenas sutis) segundo os períodos históricos, ideologias políticas, preceitos morais e religiosos, contextos socioculturais, imperativos econômicos, interesses políticos e / ou mercadológicos, e assim por diante. Ainda assim, os múltiplos idiomas por meio dos quais os sujeitos procuram conhecer, reconhecer e representar os seus (nossos), “outros” guardam um quê de mistério – ou melhor, emergem a partir de uma necessidade imiscuída a um sentimento de incompreensão ou impotência e é justamente essa qualidade que (n)os leva a imaginá-los, fantasiá-los, idealizá-los, subjugá-los, amá-los ou odiá-los.
Poderíamos aqui divagar, recorrendo a uma infinidade de histórias – narradas por uma extensa linhagem de autores que inclui desde Homero a Daniel Defoe e Joseph Conrad – que nos falam de encontros envolvendo antigas civilizações (reinos, impérios, cidades- estado, tribos, etc.) e ilustram a fascinante saga humana no contato com o “Outro”. Entretanto, para além d e imagens romanceadas, a História nos brinda igualmente com episódios nos quais tais encontros degeneraram, quando não em guerras sangrentas, em representações no mínimo controversas acerca desse “Outro”. Lembremos, por exemplo, da obra magistral de Edward Said [2] , na qual o autor nos mostra como no “Ocidente” (ou no seio dos principais Estados imperialistas ocidentais, sobretudo o britânico e o francês) se construiu e se cristalizou um olhar (homogeneizante) sobre o “Oriente”. Recorrendo ao escrutínio de textos produzidos por literatos, viajantes e políticos, Said constrói sua denúncia contra “o modo ocidental de encarar, dominar, reestruturar e exercer o poder sobre o Oriente”; “um conjunto de ideias circunscritas a valores, apresentados de modo generalizado, características do Oriente”. Said não foi o primeiro, tampouco o último intelectual a insurgir-se contra as formas de dominação – política, econômica, social e simbólica –, empreendidas pelas grandes potências ocidentais sobre o “resto” do mundo [3].
Mas, afinal de contas, o que isso tem a ver com o Nordeste brasileiro, ou, melhor dizendo, com a maneira pela qual essa região vem sendo representada (sobretudo a partir do século XX) em jornais, revistas, filmes, canções, romances, telenovelas e o que (e como) tais representações dizem sobre o Nordeste e os nordestinos? Uma resposta a essa questão pode ser encontrada no primoroso trabalho do historiador Durval Muniz de Albuquerque Júnior [4] , no qual o autor explora o modo e o porquê de determinados signos (como a seca, a saudade, a religiosidade popular, os ritmos) emergirem e se cristalizarem como aspectos quase metonímicos dessa região na “paisagem imaginária” nacional.
Estabelecendo uma ponte entre Albuquerque Júnior e Said, poderíamos conceber esse fenômeno histórico por meio de uma analogia entre o Nordeste (Oriente) e o Centro-Sul brasileiro (Ocidente). No bojo de ambos os processos representacionais, o Nordeste brasileiro, tanto quanto o Oriente imaginado pelos europeus, foi (e continua sendo) submetido a uma leitura desqualificadora da qual nada escapa: o clima, a vegetação, o solo, os costumes, o idioma (ou sotaque), a compleição física, a cultura, a política, a economia, etc. Porém não nos enganemos. Essa leitura, longe de ser empreendida numa via de mão única, ou seja, a partir de um olhar “externo” foi, em grande medida, alimentada por alguns dos maiores pensadores (sociólogos, romancistas, políticos) nordestinos, por homens do porte de Gilberto Freyre [5], ansiosos na busca de uma identidade regional ou mesmo nacional.
A propósito, como esquecer aquele (ou esse!) Nordeste retratado (ou seria inventado?) nas obras de autores como José Américo de Almeida, José Lins do Rego, Rachel de Queiroz, Graciliano Ramos, nas quais encontramos tanto o flagelo da seca e as consequentes misérias e injustiças sociais quanto a força (ressaltada por Euclides da Cunha [6] , por exemplo) de um povo e sua capacidade de indignar-se, mas também de orgulhar-se.
Porém, não é nada fácil representar um lugar, um a população ou mesmo um indivíduo sem recair em imagens simplistas, estereotipadas ou ambíguas. O próprio Albuquerque Júnior, refletindo sobre esta “formulação discursiva e imagética” que é o Nordeste brasileiro, admite a dificuldade para a “produção, difusão e poder persuasivo de uma nova configuração de „verdades‟ sobre esse espaço”. Verdades? Mas quais seriam as verdades hegemônicas, estabelecidas e, por outro lado, que verdades subordinadas, silenciadas ou ainda alternativas estariam sendo (não) produzidas sobre o Nordeste brasileiro?
Talvez o que os sete artigos que compõem o presente dossiê – escritos não só por historiadores e antropólogos, mas também por pesquisadores das áreas de comunicação social, publicidade e desenvolvimento regional – tenham em comum – através da análise crítica de alguns filmes que têm o Nordeste (ou uma certa imagem inventada de um [in]certo Nordeste) como cenário e “o” nordestino como personagem – seja o questionamento dessas supostas “verdades”.
O primeiro artigo, de Danilo Alves Maia e José Benjamim Montenegro, parte da leitura de Jesuíno Brilhante, o cangaceiro, filme de 1973, dirigido por William Cobbet. Nele, os autores refletem sobre a relação entre cinema e história tomando o cangaço, movimento sociocultural que se deu no Nordeste entre o final do século XIX e parte do XX, como texto. Retomando a perspectiva teórica defendida pelo antropólogo Clifford Geertz [7], diríamos que o que Maia e Montenegro fazem nesse artigo consiste em interpretar a interpretação que um cineasta empreende sobre o fenômeno do cangaço.
O filme Viajo porque preciso, volto porque te amo, de Marcelo Gomes e Karin Aïnouz, produzido em 2009, é objeto de análise de Ronaldo da Silva e Adelino Pereira da Silva no segundo artigo deste dossiê, onde os autores procuram escrutar imagens, sons e silêncios por meio dos quais se constrói um Nordeste hiperreal, povoado de estereótipos comumente associados ao homem sertanejo. Tal viés crítico também nos é apresentado por Joachin Azevedo Neto no artigo dedicado ao filme Vidas Secas (lançado em 1963) de Nelson Pereira dos Santos, e ao romance homônimo que lhe deu origem, escrito por Graciliano Ramos, editado pela primeira vez em 1938. Tanto no texto de Fábio R. da Silva e Adelino P. da Silva quanto no de Joachin Neto, nos deparamos com a tensão potencialmente disjuntiva entre imagens produzidas, difundidas e legitimadas midiaticamente e sua distância em relação a imagens “concretas”. Ora, quem e o que de fato é representado e reconhecido em tais “produtos”?
No quarto artigo, apresentado neste dossiê, Silvia Tavares da Silva parte da leitura do filme O Homem que Virou Suco, dirigido por João Batista de Andrade em 1981, para analisar o modo como os nordestinos que migram para o Sudeste brasileiro são retratados, além dos conflitos que permeiam a construção e a negociação de suas identidades em meio a um contexto significativamente distante e distinto de seu lugar de origem. Porém a autora não se limita ao conteúdo imagético construído e expresso no e pelo filme, procurando também compreender a formação e a visão política do diretor, bem como a conjuntura social e histórica dentro da qual o filme foi produzido.
A aridez do clima e da paisagem, o suposto tradicionalismo dos costumes e a forte religiosidade popular são marcas costumeiramente acionadas por artistas quando buscam, em suas obras, representar o Nordeste. Em seu texto, Josélio S. Sales toma O Auto da Compadecida, filme de Guel Arraes realizado em 2000 e inspirado na peça escrita por Ariano Suassuna em 1955, para destrinchar o que Sales chama de “estereótipos” e “velhos clichês culturais” em nada condizentes com a realidade, senão com as mentes fantasiosas e nostálgicas de Arraes e Suassuna.
No artigo seguinte, Glauco Fernandes Machado e Greilson José de Lima interpretam o filme Baixio das Bestas (lançado em 2006), de Cláudio Assis, à luz da crítica Pós-Colonial, o que lhes permite problematizar a equação tão arraigada e etnocêntrica através da qual a imagem do Nordeste é erigida, quase que concomitantemente, associada a determinadas manifestações culturais (ou caricaturais) como o Maracatu, e, o que lhes parece mais questionável, à violência, ao decadentismo, ao exotismo.
Rosilene Dias Montenegro e Túlio Augusto Paz e Albuquerque, encerram o dossiê e, diferentemente dos demais autores, optaram por analisar, em conjunto, títulos representativos de dois dos principais movimentos que marcaram a história da produção fílmica no Brasil, o chamado Cinema Novo e o Cinema de Retomada, no intuito de perquirir como a região Nordeste foi representada cinematograficamente. Os autores entendem “que o cinema constitui uma linguagem privilegiada para a análise da sociedade, cotidiano e história” e que filmes podem ser tomados metodológica e epistemologicamente como “lugar de representação e produção de sentidos e fonte histórica”.
Autores como Stuart Hall [8] , Arjun Appadurai [9] e Néstor Garcia Canclini [10] produziram estudos de fôlego no intuito de compreender questões relacionadas à reconfiguração das identidades coletivas no contexto da nova economia cultural global. Appadurai, por exemplo, refletiu sobre a tensão entre os processos de homogeneização e heterogeneização culturais, atentando para o que o autor denomina como os “múltiplos mundos idealizados” constituídos pelas imaginações historicamente situadas das pessoas e dos grupos disseminados pelo mundo, possibilitando apontar para as formas fluidas e irregulares dessas paisagens. Appadurai estabelece que as imagens identitárias produzidas / veiculadas por filmes, músicas, programas de televisão, etc., “são interpretações profundamente perspectivas, modeladas pelo posicionamento histórico, linguístico e político das diferentes espécies de agentes”. Canclini, por sua vez, observa que questões de identidade social e / ou pessoal muitas vezes são respondidas pelo consumo de bens e dos meios de comunicação de massa. A partir da disseminação de imagens através da mídia, assistimos e vivenciamos a emergência de comunidades transnacionais de consumidores. Não se trata de meras cópias ou de processos homogeneizantes, mas do fato de que narrativas e identidades são coproduzidas.
Os artigos que compõem o presente dossiê, por outro lado, trazem à tona os problemas intrínsecos às formas de se representar um suposto “Outro” (ou um suposto “Nós”) nas quais nem todos se (nos) reconhecem(os). Como veremos a seguir, este é um dos muitos méritos dos autores aqui apresentad os, ou seja, o de questionar leituras simplistas sobre o Nordeste e o “ser” nordestino.
Em tempos de intensa circulação de ideias, imagens e pessoas; numa era marcada por deslocamentos e processos de reterritorializações cada vez mais dinâmicos e difusos, é enganoso (e muito enfadonho) ficar assistindo ao eterno retorno do mesmo forçadamente essencializado, o qual não abre espaço para a apreensão de signos diferencialistas alternativos, tampouco para semelhanças positivamente valoráveis. E este é mais um mérito dos textos aqui reunidos.
Certamente, para quem já teve a oportunidade de assistir aos filmes objeto de análise deste dossiê, será impossível revê-los com o “mesmo” olhar de antes. E para aqueles que ainda não o fizeram, tenho certeza de que correrão para vê-los e que ali (des)encontrarão um “Nordeste” na tela que pouco ou em nada coincide com os “nordestes” onde vivemos, que nos habitam, povoam nossas memórias pessoais e afetivas, em suma, que incendeiam nossas mentes e preenchem nossos corações.
Notas
- SAID, Edward. Orientalismo: o oriente como invenção do ocidente. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
- Ver, por exemplo, BHABHA, Homi. O local da cultura. Belo Horizonte: UFMG, 2001; HALL, Stuart. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: UFMG, 2003; MCCLINTOCK, Anne. Couro imperial: raça, gênero e sexualidade no embate colonial. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2010.
- ALBUQUERQUE JR., Durval Muniz. A invenção do Nordeste e outras artes. São Paulo: Cortez Editora, 1999.
- FREYRE, Gilberto. Nordeste. 6ª ed. Rio de Janeiro: Record, 1989.
- CUNHA, Euclides da. Os sertões. Edição crítica de Walnice Nogueira Galvão. São Paulo: Ática, 1996.
- GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 1989.
- HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP & A, 2000.
- APPADURAI, Arjun. “Disjunção e diferença na economia cultural global”. In: FEATHERSTONE, Mike (Org.). Cultura global: nacionalismo, globalização e modernidade. Petrópolis, RJ: Vozes, 1994.
- CANCLINI, Néstor García. Consumidores e cidadãos: conflitos multiculturais da globalização. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1999.
Martinho Tota – Pós- doutorando no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional / Universidade Federal do Rio de Janeiro; Doutor em Antropologia Social pelo Museu Nacional / UFRJ. Pesquisador associado do Laboratório Integrado em Diversidade Sexual e de Gênero, Políticas e Direitos (LIDIS) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). E-mail: martinho.tota@gmail.com
TOTA, Martinho. Apresentação. Mnemosine Revista. Campina Grande, v.4, n.1, jan./jun., 2013. Acessar publicação original [DR]
História e Cinema / Esboços / 2012
História, Cinema e música / Tempos históricos / 2011
Ao propor o dossiê com essa temática – HISTÓRIA, CINEMA E MÚSICA – tivemos por objetivo, em primeiro lugar, apresentar nesta revista trabalhos que permitissem estabelecer diálogos os mais diversos, primeiramente a partir do encadeamento de cada um desses termos – História e Música, História e Cinema, Cinema e Música, História, Cinema e Música. Com isso, visamos também estabelecer um diálogo com estudiosos dos campos os mais diversos, que pudessem trazer novos aportes e abrir campos de reflexão para os historiadores.
Nos últimos anos, tem havido um grande interesse por parte dos profissionais da História de buscar o cinema e a música como fontes para a proposição de pesquisas. Nos congressos que têm sido levados a cabo principalmente na última década, muitos historiadores têm tido a possibilidade de compartilhar reflexões sobre essas fontes com profissionais de outras áreas, com resultados bastante significativos. Isso tem propiciado que uma mesma temática seja objeto do olhar de diferentes estudiosos a partir de perspectivas teóricas distintas, de preocupações as mais diversas, ampliando o conhecimento desses campos para além das fronteiras do nosso país.
O resultado aqui apresentado sinaliza algumas questões. De início, destacamos o caráter interdisciplinar presente no conjunto dos textos. As preocupações com as questões propostas são compartilhadas por diferentes pesquisadores a partir das diferentes disciplinas e áreas de estudos. São diversos, portanto, os olhares direcionados para o cinema e a música, para os filmes e os gêneros musicais ou as músicas e músicos.
Por outro lado, o conjunto sinaliza possibilidades de trocas, ou seja, de compartilharmos metodologias, formas de análise, para as discussões das problemáticas apresentadas. Ou seja, não existem limites entre as especialidades aqui presentes. Um olhar para si também implica um olhar para ao outro.
Walter Benjamin, no texto A obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica (1993: 165-196), enfatiza o caráter revolucionário da invenção da fotografia – e do cinema – exatamente porque ambos trazem no seu cerne a necessidade da sua difusão. Essa invenção propiciou a emancipação da obra de arte, pela primeira vez na história, do seu caráter parasitário: destacada da sua função ritual, ela se relaciona, cada vez mais, com as massas. Mais: ela modificou a relação da massa com a arte: “Retrógrada diante de Picasso, ela se torna progressista diante de Chaplin” (1993:187). O cinema, portanto, permite uma nova abertura, ou novas formas de fruição do que é novo.
O que vale para o cinema também vale para a música, assim como para a música inserida no cinema. A reprodutibilidade dos sons, aliada ou não à da imagem, também propiciou um alargamento das formas de expressão dos grupos sociais, dos indivíduos, das comunidades, das nações.
Por isso mesmo, apresentamos nesse Dossiê tanto artigos que discutem a relação Música / Cinema, quanto aqueles que especificamente discutem o Cinema e outros que se voltam especificamente para a Música. Mas o fazemos na perspectiva de que os limites entre essas diferentes linguagens são fluidos e permeáveis, de que facilmente se pode passar de um a outro.
Os quatro primeiros artigos problematizam a relação do cinema com a música que constitui a trilha sonora do filme. Guilherme Maia parte do cinema, para examinar, com base nas premissas metodológicas adotadas pelo Laboratório de Análise Fílmica (Facom / UFBA), as estratégias musicais dominantes no contexto do filme noir clássico (Ensaio sobre a música do cinema noir clássico: um panorama de O Falcão Maltês e A Marca da Maldade). Já Julio Ogas, valendo-se inclusive da semiótica, problematiza o trabalho do compositor Charly Garcia na realização do filme Púbis Angelical, trabalhando em colaboração com o diretor Raúl de la Torre, abordando tanto a temática do cinema nas gravações desse músico, quanto a relação estabelecida pelas canções com a temática do filme, no artigo Canções, filmes e divas de Pubis Angelical na música de Charly Garcia (1972-1982). Segundo o autor, a música em certo sentido se torna independente do filme, mas ao mesmo tempo não se separa dele, e dialoga com as temáticas sobre o feminino ali evidenciadas. Hernán D, Perez analisa, em Narrative Cueing: a música como elemento de conotação na tradição cinematográfica norte-americana, a incorporação da música ao cinema hollywodiano clássico, a partir da migração aos Estados Unidos de compositores europeus, os quais estabeleceram alguns parâmetros que definiram, por muitos anos, essa relação. Já Rodrigo Carreiro aborda o trabalho do compositor Ennio Morrricone na passagem do cinema clássico para o moderno, atuando na realização dos spaghetti westerns, do diretor Sérgio Leone, introduzindo novos referenciais musicais para os filmes em Notas sobre o papel da música de Ennio Morricone na passagem do cinema clássico para o moderno.
Num segundo bloco estão artigos que dialogam prioritariamente com a questão do cinema, seja para discutir temas como o colonialismo (Ana e o Rei ou a justificação do colonialismo através do cinema , de Susana Guerra) ou o incesto (Das utopias e revoluções: representações sobre o incesto em Le Souffle Au Coeur de Louis Malle , de Débora Breder). Outros três artigos abordam as realizações do cinema brasileiro nos anos 1960 e os caminhos do Cinema Novo, um dos quais se refere especificamente à relação com a bossa nova, aproximando-a das produções de Domingos de Oliveira (Todos os desafios do mundo: a geração de 1964 no Cinema Novo, de Carlos Eduardo Pinto De Pinto); a ele seguem-se Carlos Diegues, entre o CPC e o Cinema Novo: uma reflexão sobre a função do artista no início da década de 1960, de Mariana Barbedo, e Arte e política no cinema de Glauber Rocha: uma análise do filme Deus e o Diabo na Terra do Sol, de William Vaz De Oliveira e Eduardo Nunes Álvares Pavão. André Luiz dos Santos Franco, em O movimento armado de 1930: a representação fílmica da história, tematiza a produção do audiovisual “A Revolução de 1930” por Sylvio Back cinqüenta anos depois desses acontecimentos, problematizando a relação do documentário com a ficção. Finalmente, em Construções e reconstruções: uma ressignificação do olhar para com as musas, Shirley Elias Vilela parte da elaboração de determinadas imagens da mulher pelo cinema para discutir depois a produção de estereótipos sobre a beleza feminina que perduram por décadas.
Num último bloco, situam-se artigos que abordam especificamente questões relacionadas ä música. Mariana Oliveira Arantes aborda os movimentos musicais que se processaram no Chile nos anos 1960, ou seja, o Neofolclore, a Nova Onda e a Nova Canção Chilena, e discute o engajamento dos músicos que se ligaram à campanha e ao governo da Unidade Popular (Sonoridades urbanas e engajamento juvenil no Chile dos anos de 1960); Manuela Areias Costa aborda a questão das bandas de música, que foram tão comuns em determinadas épocas, problematizando especialmente a formação de bandas civis a partir de apropriações de elementos marcantes nas bandas militares (Música e história: um estudo sobre as bandas de música civis e suas apropriações militares), e Iolanda Macedo aborda o RAP nas vinculações do cenário nacional com o internacional, argumentando sobre a ocorrência de um processo de reapropriação deste gênero musical no Brasil após sua introdução via mídia e indústria fonográfica (A linguagem musical RAP: expressão local de um fenômeno mundial). O dossiê se encerra com o artigo de Manoel Dourado Bastos abordando os posicionamentos teóricos do pesquisador José Ramos Tinhorão, presentes nos seus inúmeros trabalhos, sempre citados por pesquisadores que discutem questões musicais, mesmo apresentando discordâncias com suas afirmações (Um marxismo sincopado: método e crítica em José Ramos Tinhorão).
Referência
BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas – Magia e Técnica, Arte e Política. São Paulo: Brasiliense, 1993.
Geni Rosa Duarte – Professora do Colegiado de História e do Programa de Pós-Graduação em História da Unioeste
DUARTE, Geni Rosa. Introdução. Tempos Históricos, Paraná, v.15, n.1, 2011. Acessar publicação original [DR]
História e Cinema / Fronteiras – Revista Catarinense de História / 2010
O número 18 de Fronteiras – Revista Catarinense de História é o primeiro a ser publicado de forma exclusivamente digital, através da World Wide Web, no sítio eletrônico da ANPUH-Seção SC. Esperamos com isso ganhar mais agilidade na produção e na disseminação da revista e alcançar um número maior de leitores!
A publicação on line está também associada ao projeto RCH Digital, desenvolvido pela Diretoria da ANPUH-Seção SC (Gestão 2010- 2012), e que objetiva disponibilizar na rede mundial de computadores, no sítio eletrônico da entidade, todas as edições do periódico, desde 1990. Cada edição da revista registra, a sua maneira, debates, percepções, fazeres e perspectivas do campo historiográfico. Ao procurar garantir o acesso à totalidade dos números editados da Revista Catarinense de História (em 1998 transformada em Fronteiras – Revista Catarinense de História), a Diretoria da ANPUH-Seção SC quer contribuir para uma melhor avaliação das propostas e dos projetos delineados na publicação, ao longo de sua trajetória, através de diferentes sujeitos e a partir de distintos lugares de fala. Em suma, a análise de rupturas e permanências, balanço ao qual os historiadores costumeiramente se entregam e que merece ser efetuado também em relação a esse periódico teimosamente editado há 20 anos.
Neste número 18, que é relativo a 2010 mas que, lamentavelmente, pôde ser editado apenas em 2011, os anos 1960 e 1970 estão significativamente presentes, em todas as seções da revista.
No dossiê História e Cinema, aquele período histórico é abordado em três artigos: “Travessuras em superoito milímetros: o cinema em liberdade de Torquato Neto”, de Edwar de Alencar Castelo Branco; “O terceiro cinema em Florianópolis: duas ficções e um documentário experimentais (1968 a 1976)”, de Sissi Valente Pereira; e “Imagens e história da industrialização no Brasil: a pesquisa histórica e a produção do documentário Libertários”, de Lauro Escorel Filho (1976), de Rafael Rosa Hagemeyer.
As “travessuras” torquateanas são remetidas a dois filmes em superoito, feitos em Teresina, que Torquato Neto roteirizou, dirigiu e nos quais atuou: O Terror da Vermelha e Adão e Eva do Paraíso ao consumo. Através de Torquato Neto, busca-se pensar percepções e ações de uma geração de jovens que, em vários locais do país, interrogavam seu mundo e, em especial, sua relação com a linguagem. Temas que são discutidos em livro organizado pelo autor do artigo e que é, aliás, objeto de uma das resenhas que compõem este número 18, elaborada por Fábio Leonardo Castelo Branco Brito. Sissi Valente Pereira aborda três filmes de curta-metragem que, entre 1968 e 1976, em Florianópolis, dialogaram com o cinema experimental, revelando preocupações estéticas, filosóficas e políticas peculiares, bem como novos olhares sobre a cidade. Já o artigo de Rafael Rosa Hagemeyer convida à reflexão sobre as interações entre Cinema e História a partir de um instigante relato sobre as condições de produção do documentário Libertários. Problematiza as relações do filme com os temas e os materiais de arquivo nele enfocados (relativos à experiência anarquista brasileira do início do século XX) e com o próprio momento histórico em que foi produzido.
Debruçando-se sobre outro período, Bianca Melyna Filgueira, em “A mise-en-scène do Estado Novo e os filmes premiados pelo DIP: reflexões metodológicas para uma análise”, ensaia a análise do filme Pureza, de 1940, premiado pelo Departamento de Imprensa e Propaganda – DIP.
Em um dossiê onde predominam experiências cinematográficas no Brasil (enfocadas em quatro dos cinco artigos), José Luis de Oliveira e Silva se diferencia por trazer reflexões acerca de uma produção estadunidense, Atividade paranormal, de 2009. O autor concentra-se na análise dos elementos próprios à construção da narrativa de terror mobilizados no filme, dando destaque para a forma com que são nele agenciadas as categorias de tempo e espaço. Note-se que o artigo também dialoga com questões abordadas em outros textos do dossiê, como os limites tensos e tênues entre o documental e o ficcional cinematográficos.
Mesmo fora do dossiê, dois outros artigos continuam a tematizar manifestações artísticas. Em “Entre imagem e história – Lindonéia”, Mara Rúbia Sant’Anna e Monike Meurer propõem reflexões sobre o contexto político e cultural brasileiro na segunda metade dos anos 1960 a partir da personagem “Lindonéia”, presente em obra pictórica de Rubens Gerchman e em canção de Caetano Veloso interpretada por Nara Leão. Já em “Sinais em trânsito: Roadsworth e a arte de asfalto”, Daniel Pereira Xavier de Mendonça destaca as obras de artista canadense contemporâneo que relê os signos urbanos, desafiando sua banalidade ao propor conexões inesperadas e desenhos inusitados no asfalto pisado pelos passantes – intervenções que desestabilizam os olhares sem negar a transitoriedade de sua presença.
O último artigo apresentado é justamente aquele que foi primeiramente enviado para este número da revista, ainda em fevereiro de 2010. Augusto da Silva e Adenilson da Rosa, em “Antes do Oeste Catarinense: aspectos da vida econômica e social de uma região”, problematizam, sobretudo a partir de inventários post mortem, aspectos econômicos e sociais, entre o final do século XIX e 1930, da região que ficaria conhecida como “Oeste Catarinense”, oferecendo preciosos elementos de reflexão acerca de sua história.
A propósito do centenário da morte de Joaquim Nabuco, comemorado em janeiro de 2010, fecha o número da revista a resenha de Ademir Luiz da Silva, sobre o livro O encontro de Joaquim Nabuco com a política: as desventuras do liberalismo, de Marco Aurélio Nogueira. Aos autores, nossos agradecimentos por colaborarem com a revista.
Aos leitores, nossos votos de uma boa e proveitosa leitura.
Janice Gonçalves
GONÇALVES, Janice. Editorial. Fronteiras: Revista catarinense de História. Florianópolis, n.18, 2010. Acessar publicação original [DR]
Fotografia e cinema em Minas Gerais: Olhares / Revista do Arquivo Público Mineiro / 2009
Linguagens visuais
Em 1999, o Museu da Imagem e Som de São Paulo patrocinou uma exposição dedicada à história da fotografia no Brasil. No encarte intitulado Minas: minas. IV Mês Internacional da Fotografia, o fotógrafo mineiro e organizador da seção de Minas Gerais, Bernardo Magalhães, afirmou: “[…] nenhum estudo crítico jamais foi feito sobre a Fotografia em Minas Gerais, verbete praticamente inexistente na História da Fotografia no Brasil”.[1] Leia Mais
História & Cinema | ArtCultura | 2006
Para nossa alegria, que queremos compartilhar com nossos colaboradores, ArtCultura: Revista de História, Cultura e Arte vem colhendo, dia após dia, bons frutos. Nos últimos tempos, aumentou, sensivelmente, o rol de seus leitores e assinantes, fato que se traduziu, inclusive, no crescimento significativo das contribuições submetidas à apreciação do corpo de pareceristas da revista. Ao lado disso, conquistamos igualmente o reconhecimento institucional. Na mais recente avaliação do Qualis/Capes, ArtCultura foi classificada como publicação nível “A Nacional”, agora não apenas em sua área específica, História, mas também em Artes/ Música, que engloba a produção no campo de Artes Cênicas e Visuais. Para culminar, tanto o CNPq como a Capes resolveram aplicar uma injeção de recursos na revista, o que nos possibilitará, ainda em 2007, ajustar os passos com o calendário civil, lançando as edições n. 14 e 15 no seu ano de referência.
Com entusiasmo redobrado, portanto, oferecemos aos nossos leitores a ArtCultura n. 13, que leva adiante a proposta de valorizar as redes de interlocução entre História, Cultura e Artes em geral. Esta edição se abre com 8 textos que compõem o dossiê História & Literatura, a começar por um artigo inédito de Roger Chartier, na esteira de sua estada em Uberlândia durante seminário internacional promovido pela Linha História & Cultura do Programa de Pós-graduação em História da UFU. Outra novidade fica por conta da estréia da seção Polêmica, na qual Sidney Chalhoub põe em questão alguns aspectos da abordagem de John Gledson a respeito da fatura literária de Machado de Assis. Leia Mais
Cinema- História | Fênix – Revista de História e Estudos Culturais | 2006
Os artigos aqui reunidos, que compõem o dossiê Cinema-História da Fênix – Revista de História e Estudos Culturais, expressam com muita riqueza, diversidade e confluência o que são hoje os estudos em torno da História no Cinema e da História do Cinema.
São certamente o resultado do cruzamento de visões e, sobretudo de novas formas de apropriação do cinema como fonte, produto, como atividade e prática social pela disciplina histórica. São, em alguma medida, um espelho onde se projetam diferentes concepções e abordagens possíveis a partir de mudanças e ampliações no escopo dos Estudos de Cinema, da História Cultural e da Historiografia que, felizmente, tem convergido e ampliado a compreensão das inúmeras questões que aí se põem, como poderemos ver, pela diversidade dos textos aqui apresentados. Leia Mais
História & Cinema | ArtCultura | 2005
Organizadora
Kátia Rodrigues Paranhos – Editora.
Referências desta apresentação
PARANHOS, Kátia Rodrigues. Apresentação. ArtCultura. Uberlândia, v.7, n. 10, jan./jun. 2005. Acesso apenas pelo link original [DR]