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As ciências da vida: de Canguilhem a Foucault – PORTOCARRERO (TES)
PORTOCARRERO, Vera. As ciências da vida: de Canguilhem a Foucault. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2009, 260 p. Resenha de: LOPES, Fábio Henrique. Revista Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro, v.9, n.1, mar./jun. 2011.
Para além de ensaios: problematizações das ciências, da(s) vida(s) e das filosofias
Ensaios! Produção provisória e inacabada, exercícios de reflexão, conjunto heterogêneo. Em vários momentos, a filósofa Vera Portocarrero lembra a seus leitores que o livro que leem é constituído por ensaios em torno das ciências da vida. Mapeando, expondo e explorando as possibilidades históricas de investigação da vida, esses exercícios articulam, aproximam, distanciam e expõem, com precisão, as diferenças e as singularidades entre as proposições de Georges Canguilhem e de Michel Foucault, ou seria melhor dizer, entre a epistemologia do primeiro e a arque-ogenealogia proposta pelo segundo.
Ensaios, como a autora diz, pensados numa perspectiva quase fragmentária, aparentemente eclética, mas agenciados e problematizados a ponto de permitir a reflexão crítica em torno de determinadas formas filosóficas e históricas de problematizar a vida. Originais contribuições para várias áreas do saber e da filosofia: história das ciências, histórias das ciências biomédicas, história moderna e contemporânea, por exemplo.
Com a mesma clareza característica de sua narrativa, a autora também evidencia as ressonâncias e apropriações que mais marcaram suas investigações, indicando suas condições de possibilidade, os diálogos possíveis, e transpondo os limites de superficiais mapeamentos bibliográficos, historicizando e buscando articular hipóteses, contribuições e limites das obras selecionadas, como de cada parte de seu próprio livro. Não posso deixar de mencionar a justa medida com a qual a autora revela as suas hipóteses de trabalho, abertas e expostas em cada ensaio, em cada parte desse todo: sua obra. Dessa maneira, esclarecem-se ao leitor, inclusive para melhor marcar e destacar as contribuições e possíveis limites dos ensaios, os objetivos de cada parte, de cada texto, de cada reflexão.
Três problematizações estruturam a obra. Em primeiro lugar, a da história das ciências da vida, ou, como a autora diz, as “questões que fundamentam as metodologias em filosofia e história das ciências biomédicas” (p. 25). Em seguida, focaliza o problema da concepção vitalista da vida e de seu valor como conceito operatório nas análises históricas. Por fim, aborda as formas de investigação da vida no pensamento de Michel Foucault.
Na primeira parte, “Filosofia, história e ciências da vida”, a autora problematiza aquilo que se compreende por ciências da vida, partindo de suas historicidades, das implicações e desdobramentos de uma racionalidade científica, suas especificidades de saber, de força e de poder. Inicialmente, o objetivo é traçar uma preocupação com o tema das ciências da vida, sugerindo relações estabelecidas entre a metodologia histórico-filosófica e as ciências, em termos de objeto, objetividade, interdisciplinaridade, verdade, prática e relações de forças.
Para estudo da história das ciências e do objeto da história das ciências da vida, Canguilhem, Latour e Foucault são lembrados, e suas proposições destacadas. Conceito e historicidade, internalismo versus externalismo, práticas do saber, mola propulsora da produção científica, denúncia do caráter arbitrário da Razão, relações (e batalhas) de forças, dicotomia entre natureza, ciência e sociedade, métodos científicos de trabalho e reflexão, mudanças na forma de olhar o vivo, legitimação científica, concepções datadas de verdade, constituem as condições de possibilidade do saber, de discursos e de batalhas travadas com as ciências da vida e por meio delas.
O eixo do segundo momento da obra, “Vitalismo, epistemologia e arqueologia”, é o conceito de vida. A autora destaca e explora a emergência da noção de vida e as possibilidades de problematizar o conceito de vida. De forma articulada e perspicaz, situa a emergência das problematizações e dos objetos às suas condições de possibilidade; os enunciados, às suas produções e objetos; a relação das ciências, dos saberes, com relações e exercícios de poder que “disciplinam e gerem a vida dos indivíduos e das populações, para problematizar o perigo desta forma de dominação da vida que as ciências representam” (p. 77).
Nesse segundo momento da obra, Foucault, Jacob, Canguilhem e Pasteur aparecem em destaque na tematização da vida. Além deles, Descartes e Kant também são evocados e articulados como possibilidade da própria reflexão.
Natureza e principais características da vida, a reprodução do organismo, hereditariedade, concepção vitalista da vida, transmissão, ser vivo como organismo, modalidades históricas de opor a vida à morte, microbiologia, vida microbiana, revolução pastoriana, positivismo, novos tipos de saber e de práticas médicas, formulações de conceitos, domínio das ciências biomédicas, condições de vida, ato vital, força vital, normalidade, normatividade, normalização, noções de ciência, episteme, passagem do estudo dos seres vivos para o estudo da vida, enfim, noção científica moderna de vida – lembrando que até o final do século XVIII, o conceito de vida não existe – formulam hipóteses, permitem os quatro ensaios dessa segunda parte. Indicam níveis diferentes de análise, como a epistemologia e a arqueologia, expõem para debate e reflexão uma histórica ordem discursiva, composta de interdições, controles, vontades e regimes de verdade, territórios de fala, produtos de saber, dispositivos e relações de poder, processos de normalização e normatividade.
Por fim, na terceira e última parte, “Vida, arqueologia e genealogia”, as proposições de Michel Foucault centralizam e permitem as hipóteses e os estudos. A noção de vida aparece como a) objeto de saber; b) objeto de saber-poder (incidindo sobre a vida dos indivíduos – anátomo-política do corpo -, e das populações – biopolítica); e c) como obra de arte. Em lugar de identificar e localizar a origem da noção de vida nas obras de Foucault, de revelar sua evolução e desnudar sua verdade oculta – operação e armadilha reflexivas negadas com muita clareza -, a autora constata que a noção é constituída por meio de um conjunto de problemas, os quais são apresentados, explorados e analisados. Para destacar a complexidade da noção e da pesquisa do conceito de vida na obra de Foucault, a autora ressalta as articulações com outros conceitos – tais como olhar, morte, homem, sexualidade, poder -, além dos diferentes níveis de análise – arqueologia, genealogia e estética da existência.
Níveis diferentes, descontinuidades temáticas, reformulações metodológicas, problematizações datadas, articulações, imbricações e rupturas que comprovam a possibilidade de pensar diferentemente o que e como se pensa, neste caso, a vida. Vida pensada na perspectiva de uma história do saber, de uma história da ciência, em nível das condições de possibilidade da existência dos saberes. Vida vinculada às formas, estratégias e dispositivos de poder imanentes aos saberes investidos em campos como o corpo, a população, a vida – uma análise do poder em sua forma de exercício específica a cada época. Vida concebida e pensada pelo estudo dos modos de subjetivação do indivíduo. Três problematizações, três movimentos, três domínios foucaultianos privilegiados na terceira parte do livro em que a filósofa Vera Portocarrero apresenta o tratamento da questão da vida nas análises de Michel Foucault.
Como nas duas partes iniciais do livro, a autora estabelece diálogo, fincando diferenças, aproximações e apropriações, entre a(s) filosofia(s) de Foucault, entre suas proposições e aquelas de Descartes, Kant, Jacob e Canguilhem. O homem, o sujeito, representações, organização epistemológica, possibilidades dos conhecimentos e das teorias, princípios de organização dos discursos sobre a vida, relações entre saberes e poderes em torno da vida, tecnologias modernas de poder, corpo, vida da população, dispositivos de regulação e de segurança, a vida como alvo, governamentalidade, governo, política, domínios de saber, poder disciplinar, disciplinas, esquadrinhamentos, exames, biopoder, racismo, guerra, nível de vida, ordenamento, duração da vida, longevidade, mortalidade, finitude, descontinuidades, intervenções, controles, positividade do poder, em suma, o estudo da vida na episteme moderna são temas que aparecem na própria trajetória das pesquisas de Foucault e que são explorados pela autora.
Totalmente articulados aos temas, abordagens e provocações dos ensaios, os apêndices “Vida, genealogia da ética e estética da existência” e “Governamentalidade e cuidado de si” funcionam muito bem em harmonia com o livro. Um momento em que a autora sintetiza e articula as pesquisas do filósofo francês em torno da estética da existência e da vida como obra de arte. Compreende e indica algumas rupturas e recuos na trajetória de Foucault, sua inquietação com o tempo presente, sua pretensão de pensar a ética como um modo de vida – mesmo sentido atribuído à filosofia -, as diferenciações possíveis entre ética e moral, a ousadia e a coragem do “dizer verdadeiro”, as modificações de si, o cuidar-se, uma arte de viver como governo da própria vida, cuidado de si, governo de si, conversão a si e posse de si, modalidades, inquietações e modos outros de problematizar a vida impossíveis de ser considerados em qualquer estudo, ensaístico ou não, sobre as ciências da vida.
Para concluir, lembro algumas inflamadas palavras de Deleuze, escolhidas livremente em dois textos. No primeiro, “Carta a um crítico severo”, ele nos remete à busca possível dos funcionamentos, das engrenagens de uma obra, de um discurso, e se pergunta “como ele [texto] serviu ou serve? Serviu para quê?” Assim, o que interessa é como alguma coisa anda, funciona, qual é a máquina! A interpretação de um texto remeteria à homogeneização do próprio acontecimento, do texto como acontecimento, do autor e do intérprete. Afetos, intensidades, experiências, experimentações são todos avaliados e os significados, atualizados por referências dadas e conhecidas anterior e antecipadamente. Na segunda obra, que escreveu com Claire Parnet, Deleuze diz que hoje devemos ler um livro como escutamos um disco: se gostamos, se a música nos toca de alguma maneira, se produz em nós efeitos, intensidades, afetos, seguimos ouvindo e ouvimos mais, mais e mais; mas se a música não nos toca, se ela não nos afeta, ou se nos afeta negativamente, abandonamos o disco, desligamos o rádio ou mudamos de estação. Com a obra de Portocarrero, é impossível não ser tocado. Fluxos novos, fruto de um laborioso trabalho de reflexão, mesmo sendo ensaística, como insiste a autora, são sedutoramente propostos por ela. Os textos funcionam como caleidoscópios, como experimentações, como fluxos, como provocações e desafios.
Ao contrário da escrita a ser interpretada, Deleuze sugere outra escrita, escrita-outra, escrita como fluxo, não como um código, a ser decifrado, a ter sua verdade e natureza encontradas, reveladas, resgatadas e, enfim, apresentadas e apreciadas. Com Deleuze, somos convidados a perceber as maneiras de ler um livro. Resumidamente, podemos considerá-lo como uma caixa que remete a um dentro, e então vamos buscar seu significado. Por isso, o comentário, a interpretação, as explicações se fazem necessárias, exigidas e defendidas. Porém existiria outra possibilidade: a leitura por intensidade, mais condizente com o livro de Portocarrero – o livro considerado como uma pequena máquina a-significante. Nada a explicar, nada a compreender, nada a interpretar. Leitura tipo ligação elétrica, fluxo entre outros, que entra em relação de corrente, contracorrente, de redemoinho com outros fluxos, não só os da fala.
É disso que se trata. Com Deleuze, reconheço agenciamentos, fluxos e intensidades entre proposições, temas, problematizações, objetos, métodos, saberes, subjetivações e poderes, todos alinhavados, em conexão, em tensão. Histórias, desafios, prazeres de uma leitura, de um texto preciso, ensaístico, mas intenso e maduro, fruto de uma trajetória filosoficamente vivida e instruída.
Fábio Henrique Lopes – Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), Rio de Janeiro, Brasil. E-mail: fabio.lopes@pq.cnpq.br
[MLPDB]As ciências da vida: de Canguilhem a Foucault – PORTOCARRERO (RFA)
PORTOCARRERO, Vera. As ciências da vida: de Canguilhem a Foucault. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2009. Resenha de: TERNES, José. Revista de Filosofia Aurora, Curitiba, v.21, n.28, p.259-262, jan./jun., 2009.
Os textos reunidos neste livro têm muito a ver com a própria biografia da autora. Não, claro, a da vida civil, mas outra, monástica, passada no interior da Academia. Uma trajetória intelectual.
Não é necessário, e seria cansativo, lembrar cada passo, cada texto, dessa démarche. Seu caráter ensaístico, sempre lembrado, tornaria quase impossível tal empreendimento. Insistiria em alguns tópicos, em algumas questões relevantes.
Em primeiro lugar, o texto tal qual foi organizado. Percebe-se logo que estamos diante de uma coletânea de textos menores, produzidos em épocas diferentes, com tematizações diferentes e com finalidades também diferentes. Mas que sofreram também uma reordenação, muitas vezes uma reelaboração. Se é possível detectar repetições, antes que de defeito, trata-se de uma virtude. Mais do que com uma obra acabada, contamos com um pensamento aberto. Um formalista veria aí um impasse. Vera Portocarrero pertence à outra dinastia, a de Foucault, de Canguilhem, de Bachelard, de Blanchot, de Deleuze. Para todos eles, o caminho da filosofia, hoje, pode, ou deve ser mesmo este: o dos ensaios. O ensaio, certamente, não condiz com a solenidade tradicional de uma obra. É nele, porém, que, nas palavras de Foucault, encontramos “o corpo vivo da filosofia”. E é o que importa. O que não quer dizer que não há nenhuma proposição, nenhuma ideia a defender. Ao contrário, e apesar de tudo, há uma proposta a ser defendida nestes corpos vivos da filosofia.
O começo com Nietzsche é significativo, especialmente neste terreno aparentemente tão distante dele, o da epistemologia ou história dos saberes. A citação no começo da Introdução aponta, já, o objeto destas reflexões, mas diz mais: um certo modo de se entender o trabalho intelectual. Temos, desde o começo, a insinuação de uma filosofia. Em última instância, todos os filósofos, de Bachelard a Foucault, merecem o adjetivo nietzschiano.
Ao par dessa perspectiva ampla, nietzschiana, a temática, ou, se quisermos, com algum esforço, o objeto, vem esboçado desde o começo: tratase, sempre, de interrogar este campo vasto e fascinante das ciências da vida. E isto sob vários ângulos. Ora se interroga a maneira de se fazer história das ciências, distinguindo, particularmente, as histórias de alguns autores franceses, em que o conceito recebe privilégio especial, contra as histórias lineares, muitas vezes factuais, de outras tradições, ora se investe na pesquisa empírica, como a da “revolução pastoriana” e sua recepção no Brasil, ora entram em pauta temas teóricos como os do vitalismo em Canguilhem e F. Jacob, ou a noção de forças em Bruno Latour, ora a pesquisa se desloca para campos mais vastos, como a obra de Foucault e suas descontinuidades/continuidades internas. Mas há, como expressa o título do texto final, um nível único, ou comum, de análise: “o das formas de problematização da vida e das ciências da vida”, a partir de pressupostos metodológicos comuns ou, pelos menos, complementares: historicidade da ciência, conceito, saber e poder.
Duas hipóteses merecem destaque especial nessas leituras/ensaios: a complementaridade entre epistemologia histórica e arqueologia e, ainda, a complementaridade entre arqueologia do saber e genealogia do poder.
As relações entre epistemologia histórica e as histórias arqueológicas de Foucault são bastante conhecidas no Brasil, já desde a publicação do livro Ciência e Saber, de R. Machado, em 1981. Aí vemos, com precisão, os diversos deslocamentos operados por Foucault, preocupado com áreas de saber, como as ciências humanas, que talvez não possam ser submetidas aos critérios de julgamento da tradição epistemológica bachelardiana, particularmente os de progresso (da razão) e de matematização. Os estudos da Vera reconhecem, certamente, tais “deslocamentos”, mas, por seu lado, enfatizam “semelhanças”, principalmente entre a Arqueologia de Foucault e as histórias de Canguilhem e de Jacob. Os mesmos recortes históricos (idade clássica/ modernidade), os mesmos autores (Buffon, Jussieu, Lamarck), temas comuns ainda que polêmicos (o vitalismo), o mesmo objeto (a possibilidade da Biologia no século XIX). Penso que este modo de trabalhar, buscando correlações com outras análises, e não se trata somente de Canguilhem e Jacob, outros autores, como Bruno Latour, Dagognet, Serres constituem contrapontos interessantíssimos, penso que este modo de trabalhar se mostrou muito fecundo. Corre-se o risco, é claro, de sobrepor coisas estranhas entre si. Mas, o que seria uma filosofia sem riscos?
A outra complementaridade me parece igualmente importante. O debate acerca da unidade, ou da dispersão, da obra de Foucault é bastante conhecido. Nossa autora o mostra bem em suas referências ao livro L’ontologie manquée de Michel Foucault, de Béatrice Han. O que aconteceria se nos ocupássemos do Foucault filósofo, e não simplesmente daquele das ciências sociais? Essa pergunta parece atravessar todo o discurso destas pesquisas. E o próprio Foucault jamais admitira pertencer a uma única perspectiva. Ao contrário, prefere assinalar os “descaminhos” em sua démarche intelectual. Não se trata, certamente, aqui, de traçar uma unidade, ou uma continuidade. Trata-se, antes, de mostrar que temas, tratados na Arqueologia, reaparecem, mais tarde, nas análises genealógicas. O que os separa? Em que medida se poderia reconhecer conexões? O tema vida me parece o mais apropriado para esta aventura. Sua possibilidade epistêmica, descrita, principalmente em re mots et re choses, não pode ser reduzida a um simples “acontecimento na ordem do saber”. Podemos fazê-lo, penso, por uma questão de método. Mas o leitor de Foucault percebe logo que o nascimento da vida, na virada de século, tem, também, um forte peso político. E as pesquisas posteriores do filósofo, particularmente a partir de A Vontade de Saber, parecem compensar aquele mal-estar. A episteme que torna possível a Biologia e o jogo de forças que cria um biopoder não são acontecimentos exteriores e estranhos um ao outro. Foucault, em mais de uma ocasião, o diz com todas as letras: saber-poder.
Trata-se de um conjunto de textos, cronologicamente separados, mas inseridos num único projeto epistemológico. Todos eles exploram um mesmo solo, o das ciências da vida. Todos eles se inscrevem numa maneira bastante homogênea de lidar com a história, aprendida com os próprios autores trabalhados, mas também numa tradição que fincou raízes no Brasil e, com muita força, no Rio de Janeiro. Textos maduros, resultado de anos de pesquisa e de vivência nas instituições biomédicas. Textos bem escritos, bonitos, muito próximos da tradição que os inspira.
Mas há mais. Um livro não se esgota, como a maioria dos artefatos, no ato de sua fabricação. Ecce Líber, vemos em Blanchot, é também r livre à venir. O que fazem dele os seus leitores. Os campos possíveis de discursividade. É nisto que se reconhece, segundo Foucault, a importância de autores como Nietzsche, Marx e Freud, bem como, mais recentemente, a de Canguilhem. As ciências da vida, de Canguilhem. Aquém dos espetáculos ruidosos, bastante reqüentes na modernidade francesa, o epistemólogo permanecia quase anônimo, franzino fisicamente, intelectualmente discreto. “Mas suprimam Canguilhem e vocês não compreenderão mais grande coisa.”1 Sua importância certamente não estava onde se supunha: na ação comunicativa. Mas ali onde, segundo uma tradição que vai de Bachelard a Deleuze, e que pode, talvez, ser recuada até Comte, se coloca a pergunta acerca da própria natureza do pensamento: “uma filosofia do saber, da racionalidade e do conceito” (ibid). Sem forçar aproximações, talvez se possa incluir na mesma vertente estes ensaios de Vera Portocarrero.
Nota
1 Foucault, M. “La vie: l’expérience et la science”. Dits et Écrits. Paris: Gallimard, 1994, v.IV, p.763.
José Ternes – Professor aposentado da Universidade Federal de Goiás. Titular da Universidade Católica de Goiás. Doutor em Filosofia (USP). E-mail: joseternes@hotmail.com
Khronos | USP | 2008
Khronos – Revista de História da Ciência (São Paulo, 2008-) é uma publicação semestral do CHC – Centro Interunidades de História da Ciência da Universidade de São Paulo (fundado em 1988) – voltada para a história e epistemologia das ciências naturais, ciências da vida, ciências humanas, técnicas e áreas correlatas.
A perspectiva é interdisciplinar e visa estimular as possibilidades interpretativas dos processos de conhecimento científico e técnico em seus contextos históricos.
São publicados resultados de pesquisas originais relativas a temas desde a Antiguidade até o século 21, inclusive.
Além destes, são bem vindos textos de memórias de cientistas ou de instituições, bem como traduções inéditas, resenhas, notícias de projetos de pesquisa e outros assuntos de interesse para historiadores.
[Periodicidade semestral].