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Rebeldia disciplinada? Introdução à ‘História como (in)disciplina’ | História da Historiografia | 2021
“Clio – Musa da História” | Pintura de Johannes Moreelse (antes de 1634)
À guisa de advertência
O dossiê que aqui apresentamos instaura, de imediato, uma situação curiosa, e não menos paradoxal: pretendemos trazer aos nossos leitores um panorama razoavelmente expressivo dos debates em torno da (in)disciplinarização da história, justamente em uma revista acadêmica, a qual integra sistemas de produção, avaliação e publicação altamente especializados e construídos dentro de uma lógica disciplinar que metrifica carreiras, desempenhos e programas de pós-graduação. Pode haver estranheza maior do que falar de indisciplina em um espaço tão profundamente disciplinado?
Talvez a resposta nos obrigue a considerar o peso que a cultura disciplinar ainda impõe sobre o trabalho intelectual especializado. História, Filosofia, Sociologia, Psicologia, Literatura, Antropologia, Economia, Geografia e outras designam “disciplinas” científicas. Platitude afirmá-lo, porém necessário. Há, pelo menos, dois modos elementares de compreender a gênese das disciplinas, sua sedimentação em domínios distintos circunscritos por fronteiras e as modalidades de intercâmbio entre elas – usualmente designadas de inter e/ou transdisciplinaridade. Leia Mais
Lugares da História no século XXI | Revista Latino-Americana de História | 2020
O trabalho historiográfico necessita de teoria e método, mas não se faz apenas um ofício. É necessário a/o historiador/a atribuir sentido ao que pesquisa. Através do engajamento, teoria e prática se encontram, ultrapassando os limites da universidade e, até mesmo, criando uma ponte entre essa e a comunidade.
A História precisa abarcar a todos, sem excluir suas particularidades. Necessita contemplar vários aspectos, incluindo diferentes ângulos, sendo crítica em seus olhares. O fazer histórico deve estar aliado à educação e, atualmente, à tecnologia, se fazendo conhecer entre os especialistas e o grande público. Leia Mais
História e Literatura | Contraponto | 2020
As relações entre a História e a Literatura permaneceram durante muito tempo influenciadas pelo conceito aristotélico que preconizava o caráter universal da Poesia, em oposição ao caráter particular da História. Segundo essa concepção, a História ocupar-se-ia essencialmente do real, dando testemunho da sociedade e fazendo referência a uma trama complexa e efetiva de fatos e acontecimentos. A Literatura, por sua vez, teria a liberdade de narrar considerando não apenas a mimetização dos fatos inscritos na própria história, mas até mesmo o irrealizável, além de todo um repertório de possibilidades e virtualidades que, escapando ao mundo concreto e referenciado do historiador, poderia ganhar vida e significado no universo imaginário do poeta ou do ficcionista.
Hoje, tendo em vista sobretudo a multiplicidade de tendências historiográficas e o vigor dos estudos que têm como centro as linguagens, multiplicam-se as perspectivas do repensar e repropor as relações entre História e Literatura, em bases mais convergentes, uma vez que, a partir desses novos paradigmas, o discurso historiográfico passa a privilegiar objetos não focalizados por óticas objetivistas e estruturais que predominaram por muitas décadas do século XX, voltando-se cada vez mais para o registro da vida cotidiana, das diferentes modalidades de crenças, dos costumes, das sociabilidades literárias, das relações familiares, da infância e outras idades da vida e para as dimensões imaginárias da sociedade. Esses novos interesses favoreceram, entre os historiadores, a redescoberta do discurso literário como um registro de alternativas ou virtualidades que, embora não necessariamente desenvolvidas no processo real dos acontecimentos, tornam-se testemunhos daquele meio social, expressão legítima de sua historicidade.
Tanto a Literatura como a História vêm colocando em plano secundário abordagens que apenas punham em relevo autores e obras, destacando as ideias por essas veiculadas, em abordagens ligadas à tradição da história das ideias, ainda de padrão iluminista, que se instaurou, ganhou corpo nos últimos dois séculos e cujas “origens” podem ser localizadas no século XVIII. Em que pese a força dessas práticas escriturísticas canonizadas, os estudos historiográficos e as perspectivas do campo das linguagens passaram a incorporar, para além da vida e da obra dos autores, outras variáveis analíticas, ancoradas no social, que podem não apenas explicar a especificidade intrínseca dessas obras, mas também evidenciar articulações mais consistentes entre História e Literatura, vista na sua complexidade de registro rico, tenso e criativo, que associa apreensões de vidas contadas e de mundos inventados. Desse modo, História e Literatura partilham cada vez mais o interesse por aquilo que diz respeito à vida cotidiana, às dimensões da subjetividade humana e às aproximações entre a vida social no seu sentido mais amplo e a vida literária.
Para além da obra em si, e das biografias realistas e imaginárias de seus produtores enquanto sujeitos da criação literária, interessa cada vez mais o estudo da História, não apenas para dar ênfase às conexões vida-obra, para realçar a vida pessoal na composição de biografias intelectuais, porém igualmente para definir (ou para lançar conjecturas) articulações entre essas vidas que têm (ou poderiam ter) uma marca singular e todo o universo social mais amplo que as configura, com graus variáveis de complexidade.
Embora o historiador tenha consciência de que a literatura, enquanto produto estético, resulta de procedimentos linguísticos e retóricos específicos, sendo dotada de plurissignificações, não se pode perder de vista a noção de que tanto o criador quanto a obra estão imersos em contexto social que também confere sentidos particulares ao produto ficcional. Daí a relevância de estudos integrados entre os pesquisadores dos diferentes campos das Letras e da História, em encontros que favoreçam a expansão e a criatividade nos usos de antigos e novos suportes de escrita, divulgação e leitura de fontes capazes de tornar a compreensão da Literatura cada vez mais como registro compreendido em sua historicidade. Nessa perspectiva, não apenas conjugando esforços, mas divulgando os resultados de pesquisas, críticos literários, estudiosos das linguagens nas suas mais distintas expressões, teóricos da Literatura e historiadores podem descobrir novas formas de utilização de diferentes acervos, gerando novos diálogos, enriquecer as respectivas áreas de saber construindo ou incorporando novas modalidades de interpretação.
Realçamos esses aspectos consensuais e de aproximação também para remarcar que eles não correspondem à riqueza dessas relações. Na longa continuidade das relações entre História e Literatura, essas relações guardam especificidades próprias em que cruzamentos interdisciplinares (ou sua recusa), interlocuções conflituosas e problemáticas, distanciamentos e deslocamentos maiores ou menores entre os dois campos, convergências, divergências e afinidades têm ocorrido, propiciando e favorecendo os enriquecimentos disciplinares, seja por meio de diálogos criativos e abertos, seja pelos conflitos mais intensos e de posturas mais agressivas. A emergência e o indiscutível vigor da História Cultural ao tempo em que pôs a nu esse cenário de disputas interdisciplinares, de âmbito global, terminou por criar as bases para novas relações que se estabeleceram entre as duas áreas do conhecimento.
Enquanto as décadas de 1960 a 1990 podem ser, de um modo muito geral, reconhecíveis pelas intensas disputas, criadores de novas divisões disciplinares e de novas relações de poder no âmbito das Ciências Humanas, se constituem como um tempo de vigor do pensamento social e das dimensões estabelecidas e então reconfigurados no espaço-tempo da cultura escrita. O desejo do voltar-se para as produções intelectuais desses tempos recentes nos induz a insinuar, de forma breve, as notáveis transformações, reconfigurações, disputas e partilhas instituídas e favorecidas por obras seminais, como as de Foucault (1986 [publicado originalmente em 1969]; 2019 [1970]), Certeau (2015 [1995]; 1985 [1993]), Veyne (1983 [1976]; 1987 [1983]), Ginzburg (1987 [1976]; 1989 [1986]), Chartier (2002 [1985]; 1996 [1985]; 2002 [2002], Darnton (1987 [1982]; 1992 [1991]), White (2001; 2019 [1985]) e Williams (1989[1973]), para relembrar apenas historiadores, filósofos e críticos literários implicados nessas mudanças e influentes, não apenas na cultura historiográfica, mas na cultura brasileira. Remissão no campo das Letras e das Linguagens não poderia ignorar os impactos continuados de Saussure (2012 [1916]), as leituras de Bakhtin (1990 [1975]), Barthes (1988 [1984]), Hutcheon (1991) e do já citado Hayden White.
No Brasil, a virada historiográfica dos anos 1980 repercutiu essa ebulição no campo das Ciências Humanas de maneira seletiva, enfatizando as interlocuções com a História Social – especialmente a de matriz inglesa. A partir sobretudo dos autores franceses e de seus sugestivos estudos centrados na Linguagem (o enraizamento social dos discursos, as práticas discursivas e suas tônicas, a atenção às retóricas constitutivas das diferentes formas de expressão escrita, o discurso como representação), atentou-se para a necessidade de problematizar as velhas epistemologias. Apesar das reconhecíveis disputas disciplinares na historiografia brasileira dessa época, uma leitura das obras de maior impacto entre os historiadores sugere que estávamos longe de experimentar as batalhas discursivas e as guerras por distinção que em certos momentos pôs em campo o paradigma estabelecido dos Annales, a História Social (marxista), os teóricos da Linguística e da Teoria Literária em suas versões mais críticas ao discurso do historiador e as sugestões de elisão de fronteiras em benefício da Teoria Literária. Essa movimentação do conhecimento e a emersão de suas novas formas, ao vergastar o estabelecido, sugeriu uma leitura metafórica do campo (de disputas): os inimigos batem à porta da História, a cidade historiográfica organiza a defesa e ocorre, seguramente, renovação da disciplina e alargamento que alcança não apenas o aspecto temático como igualmente suas epistemologias. Essa interpelação avassaladora vinda tanto do campo filosófico quanto do linguístico e literário alimentou fantasmas que, em certo momento, aterrorizaram os historiadores – o retorno visto como terrificante das narrativas do político e do sujeito – vistos como um flerte com o passado (e as compreensões dele) caricaturado nas influências e continuidades do modelo Langlois/Seignobos. No Brasil desses anos não tão distantes, essa inquietação foi nomeada como “crise dos paradigmas”.
Dessa “Era dos Conflitos” passou-se à “Era das Negociações”, na qual as fronteiras da Ciência, da História e da Arte vão se tornando mais maleáveis e transponíveis, remarcando a convivência e, para alguns, a passagem mesmo de um paradigma do social ao domínio do cultural, cujas porosidades indicam talvez a força de uma maior alteração na produção/difusão dos saberes e uma compreensão mais difundida das pluralidades das práticas sociais e de seu permanente devir. Não que essas passagens sejam necessariamente validadas. Durante a década de 1990 essas aproximações, bem como o emprego recorrente da noção de discurso como representação e também como prática, tornou ainda mais complexas e interligadas as insurgências e as acomodações nos diversos campos do conhecimento. Um dos resultados desses encontros e conflitos instáveis talvez seja o recuo daquelas fórmulas milenares vindas dos tempos de Aristóteles, mostradas no início desta apresentação.
Neste Dossiê é possível ter acesso a faces das relações entre História e Literatura, que guardam sintonia com algumas das cristalizações da tradição, bem como com os novos aportes que vêm sendo introduzidos – modificando, questionando, recusando ou simplesmente reelaborando as tradições anteriores e canonizadas. Percebe-se certo recuo da intensidade das interlocuções e dos desafios que tomavam a feição de retórica de antagonistas. Mesmo que pareça sutil esse deslocamento, já aparece como consolidação de uma tendência na produção das duas áreas. Evidentemente, sugerimos uma hipótese.
Colaboradores de quase todo o Brasil foram sensíveis à chamada, propiciando ao Dossiê a consecução do objetivo proposto pelos coordenadores:
[…] reunir artigos acerca das relações entre História e Literatura, através de reflexões sobre experiências de grupos ou sujeitos históricos inseridos em diferentes espaços e períodos. A partir de perspectivas interdisciplinares, busca-se coligir estudos que problematizem as historicidades dos autores e/ou suas obras – contos, poesias, crônicas, romances, dramaturgias, etc. Nessa proposta, a literatura, para além de seu caráter social, interligado a uma complexa rede de fatores enraizados nas experiências históricas de seus produtores e receptores, bem como um testemunho sobre determinadas realidades, sujeitos, sensibilidades, valores, ideologias, representações e códigos culturais. Dessas múltiplas relações e testemunhos, surge um amplo e diversificado horizonte de pesquisa a ser explorado, no qual podem ser contempladas diferentes temáticas, tais como história das mulheres, imprensa, escravidão, manifestações culturais, política, religião, saúde, entre outras (QUEIROZ, ELGEBALY, FERREIRA, 2020).As respostas não poderiam ter sido mais animadoras e o número de artigos recebidos para avaliação (56) mostra o interesse pela temática, a vitalidade de ambos os campos, além de uma aparente tranquilidade na convivência interdisciplinar, que apontam não só para relações relativamente pacificadas, o que não significa elidir as notáveis diferenças, como pode ser observado na visível influência norte-americana entre os estudiosos da Literatura em virtude da riqueza e diversidade assumidas pela Teoria Literária e um modo recente de adentrar na seara historiográfica, especialmente com os recursos teóricos e conceituais nomeados “metaficção” e “metaficção historiográfica”. Os estudos metaficcionais, como é sabido, tomam como referência teorias principalmente de origem anglo americana, entre os quais pontifica Hayden White. Entre os pesquisadores atuais, como Linda Hutcheon e Julia Kristeva, a pretensão de ampliar os estudos historiográficos sugere uma revisitação das narrativas construídas pelos historiadores, para nelas apor as virtualidades, os possíveis e, sobretudo, indicar os silêncios e fazer ecoar novas vozes. Evidentemente, há variações no campo e este Dossiê permite a observação de algumas. Os estudos metaficcionais afirmam outras modalidades de encontro/desencontro entre a História e a Literatura e apresentam as renovações na esfera dos Estudos Literários, bem como sinalizam para as multiplicidades de apropriação e reinvenção do passado. Com isso, a História e a Historiografia se tornam objeto da Literatura. A História (escrita) se torna fonte. Os empréstimos e trocas são cada vez mais perceptíveis e apontam para horizontes que aparecem associando os dois interesses.
Verificamos também a apropriação cada vez mais consistente da Literatura, em todos os gêneros, pelos pesquisadores da área de Educação. Identificamos igualmente o cuidado dos colaboradores com as múltiplas historicidades dos produtos, ou seja, cada vez mais uma expressiva consciência do tempo como o solo fecundo e incontornável das diferentes formas da escrita e das características de seus suportes materiais e imateriais.
Esse esforço colaborativo e essas permeabilidades de fronteiras não elidem as especificidades disciplinares e as diferenças nessas duas antigas tradições do conhecimento ocidental. O que se esvaiu, parcialmente, foi o polemismo que marcou as décadas finais do século XX no Brasil, o que pode ser bem exemplificado pelas disputas diretas ou sub-reptícias nas abordagens dessas relações em Nicolau Sevcenko (1992, 2003) e em Sidney Chalhoub (2003), historiadores muito representativos desses trânsitos disciplinares. Ao tempo em que a obra Nicolau Sevcenko é incorporadora das novas vertentes culturais [1] e interdisciplinar, flertando com o linguistic turn e inserindo a historiografia nas perspectivas ditas pós-modernas, Sidney Chalhoub professa continuada e reivindicada adesão à História Social (inglesa). Sob um substrato de diferenças, os autores compartilham a posição que foi bem expressa por Sevcenko: “Fora de qualquer dúvida; a literatura é antes de mais nada um produto artístico, destinado a agradar e a comover; mas não se pode imaginar uma árvore sem raízes, ou como pode a qualidade de seus frutos não depender das características do solo, da natureza do clima e das condições ambientais?” (SEVCENKO, 2003, p. 29).
No Brasil, especialmente no que diz respeito aos Estudos Literários, por muitas décadas tem prevalecido o cânone, tanto no sentido da continuidade de aportes teóricos fundados nas obras seminais de Antonio Candido, Luís Costa Lima e Alfredo Bosi – destacando-se a força da Escola Paulista e o domínio do conceito de formação do sistema literário –, como do ponto de vista da seleção dos autores/obras como objeto de interesse. Neste Dossiê, isso pode ser observado nas escolhas feitas – e oriundas em sua maioria dos cursos de pós-graduação em Letras – dos escritores renomados na literatura brasileira, como Machado de Assis e Aluísio Azevedo, cujas produções atravessam séculos sem mostrar sinais de esgotamento e sem redução das edições e das vendas [2]. Destaques para Machado de Assis, Aluísio Azevedo, Joaquim Manoel de Macedo, Alcântara Machado, Jorge Amado, Graciliano Ramos, José Lins do Rego e Júlia Lopes de Almeida [3]. Para o que nos interessa, queremos reforçar que o gosto pelo cânone não se expressa apenas na escolha dos autores-obras que suportam dezenas de análises, como igualmente nas interlocuções teórico-conceituais envolvendo os mais reconhecidos críticos literários brasileiros.
Para além do aspecto acima apontado, constata-se a ampliação do interesse pelas literaturas de várias origens e que são, seguramente, referências da cultura mundial, hoje. Os colaboradores trouxeram à cena literatos latino-americanos (Jorge Luís Borges), africanos (Mia Couto), europeus (Marcel Proust) e asiáticos (Xue Xinran). Nas escolhas realizadas pelos colaboradores, os destaques, considerando as clássicas periodizações da Literatura Brasileira, contemplaram o Romantismo e o Realismo, mas, sobretudo o Modernismo e a Literatura Contemporânea com suas variadas experimentações estéticas e retóricas. Entre as diversas correntes assumidas pelo Modernismo no Brasil realce para os autores nordestinos dos anos 30 e 40 do século XX, constituidores do nomeado Romance de 30, que se configura como uma das mais expressivas literaturas brasileiras do período, ao lado dos reconhecidos autores paulistas.
Também foram analisadas as literaturas de consumo regional, corroborando o esforço de levar ao proscênio outras possibilidades de expressão histórico-literárias, outrora silenciadas ou pouco conhecidas em recortes espaciais mais amplos. Nesse sentido, autores reconhecidos pela crítica especializada, porém, situados nas periferias da produção da cultura escrita nacional, ganham importância no Dossiê. Tomemos como casos exemplares Assis Brasil, Fontes Ibiapina, Ademar Vidal e Luiz Renato, através dos quais a historiografia e a crítica literária foram levadas a dar mais visibilidade a temas como a cidade, a pobreza, a modernização, os costumes, as práticas masculinas e femininas, a prostituição, as políticas urbanas, bem como a problematizar e colocar sob suspeição diferentes formas de exercício do poder.
As abordagens desenvolvidas em torno de livros, autores, editores, circulação de livros e formas de leitura sinalizam na direção do relevo conferido às expressões da censura promovida por regimes de exceção, marcadores de muitas décadas de gestão política especialmente na América Latina. Argentina e Brasil vivenciam as mesmas dificuldades e seus intelectuais se apoiam no sentido do usufruto mínimo do exercício da liberdade – experimentam uma liberdade restrita, mas possível, conforme aponta Bruno Rafael de Albuquerque Gaudêncio, ao se referir à prática literária da “autoria coletiva” e às inventividades dos autores e editores para escapar às censuras de seus respectivos países.
Pesquisadores de diferentes vinculações acadêmicas – História, Educação e Letras – nas suas muitas modalidades e nomeações (Literatura, Estudos Literários, Estudos Culturais, Estudos de Linguagens, Estudos Ortográficos, Linguística) conjugam-se neste Dossiê e apresentam suas descobertas e suas interlocuções principais, com o que podemos perceber o vasto espectro de leituras e as modalidades de apropriação, seja de teóricos reconhecidos em suas respectivas áreas de saber, seja das escolhas que guardam uma especificidade mais local. Esses panoramas de autores de referência podem ser vistos também no recurso a historiadores, teóricos da literatura e críticos brasileiros.
A surpreendente procura por este Dossiê é um indício da continuidade e quiçá do fortalecimento do interesse pelas duas áreas, da aproximação buscada entre a História e a Literatura e, de maneira tendencial, da vinda da Educação e do Direito, para a composição de novos estudos interessantes e instigadores são também os modos criativos e inumeráveis de apropriação das fontes e construção das narrativas, hibridizando autores e tendências que nos pareceriam inconciliáveis em décadas passadas.
Este Dossiê, inicialmente um projeto dos organizadores e dos editores da revista Contraponto, somente se viabilizou por ter se tornado um esforço coletivo, por ter encontrado boa recepção nos membros da comunidade acadêmica, que aceitaram o convite ao diálogo e disponibilizaram seus trabalhos ao escrutínio de um público mais amplo. Ao todo, foram mais de duzentos pesquisadores envolvidos na construção desta edição, profissionais que atuaram como autores, avaliadores, editores e secretários executivos, aos quais agradecemos o esforço e esmero empregados. Por fim, mas não menos importante, agradecemos ao professor Roger Chartier, que gentilmente aceitou o convite e disponibilizou um artigo para tradução, inédito em língua portuguesa e que, certamente, contribui para o constante repensar das relações entre História e Literatura.
Boa leitura!
Notas
- No Brasil, propor a cultura como tema, em épocas de governos autoritários, constituía, per se, uma insurgência e atraía um certo desprezo na própria universidade. O “literatura como omissão”, epíteto atribuído ao livro de Nicolau Sevcenko pelas esquerdas “uspianas” é sintomático da força desses preconceitos dos anos 1980 no que se refere à cultura como objeto de estudo e fornece a marca de um lugar, nos termos de Michel de Certeau (SEVCENKO, 2002; CERTEAU, 2015).
- Sobre a leitura, esse é um aspecto que deveria ser mais aprofundado, tendo em vista serem incompreensíveis essas continuidades sem um cuidadoso estudo de como funcionam o mercado editorial e as políticas públicas relacionadas aos livros escolares.
- As escolhas dos colaboradores recaíram sobre obras e autores que compõem o cânone brasileiro e que podem ser situados como atuantes desde os meados do século XIX até as décadas recentes. No caso, os autores contemporâneos podem ser representados por Carolina Maria de Jesus, Ana Miranda, Jomard Muniz de Brito e Luiz Renato.
Referências
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BOURDIEU, Pierre. A ilusão biográfica. In: AMADO, Janaína; FERREIRA, Marieta de Moraes. Usos e abusos da história oral. 8. ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006. p. 183-191.
CERTEAU, Michel de. A cultura no plural. 2. ed. Campinas: Papirus, 1995.
CERTEAU, Michel de. A escrita da História. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2015.
CHALHOUB, Sidney. Machado de Assis, historiador. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.
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CHARTIER, Roger. A História Cultural: entre práticas e representações. 2. ed. Lisboa: Difusão Editorial, 2002.
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DARNTON, Robert. Boemia literária e revolução: o submundo das letras no Antigo Regime. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.
DARNTON, Robert. Edição e sedição: o universo da literatura clandestina no século XVIII. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.
FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1986.
FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso: aula inaugural no Collège de France, pronunciada em 2 de dezembro de 1970. 2. ed. São Paulo: Edições Loyola, 2019.
GINZBURG, Carlo. Mitos, emblemas, sinais: morfologia e história. 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes: o cotidiano e as ideias de um moleiro perseguido pela Inquisição. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.
HUTCHEON, Linda. Poética do Pós-Modernismo: história, teoria, ficção. Tradução de Ricardo Cruz. Rio de Janeiro: Imago, 1991.
MOURA, Lucas Lima; LOPES, Maria Suely de Oliveira; LOPES, Sebastião Alves Teixeira. A escrita no espelho: ensaios de metaficção. Teresina: EDUFPI; Cancioneiro, 2020.
SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de Linguística Geral. 28. ed. São Paulo: Cultrix, 2012.
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SEVCENKO, Nicolau. Literatura como missão: tensões sociais e criação cultural na primeira república. 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.
SEVCENKO, Nicolau. Orfeu extático na metrópole: São Paulo, sociedade e cultura nos frementes anos 20. São Paulo, SP: Companhia das Letras, 1992.
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WILLIAMS, Raymond. O campo e a cidade: na História e na Literatura. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
Teresinha Queiroz – Doutora em História pela Universidade de São Paulo (USP). Professora do Programa de Pós-Graduação em História do Brasil da Universidade Federal do Piauí.
Maged Elgebaly – Coordenador do curso de Letras (Língua portuguesa e suas literaturas) em Aswan University (Egito). Pós- doutorando no Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa da Faculdade de Letras da Universidade do Porto (Portugal).
Ronyere Ferreira – Doutorando no Programa de Pós-Graduação em História do Brasil da Universidade Federal do Piauí.
QUEIROZ, Teresinha; ELGEBALY, Maged; FERREIRA, Ronyere. Apresentação. Contraponto. Teresina, v. 9, n. 2, jul./dez. 2020. Acessar publicação original [DR]
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A Ciência na História: construindo e desconstruindo fronteiras | Temporalidades | 2019
A História das Ciências enquanto disciplina e subcampo da História se institucionaliza, tomando a forma e o sentido como a entendemos hoje, principalmente, a partir da segunda metade do século XX.
No entanto, a obra pioneira de William Whewell (1794-1866), History of the Inductive Sciences, de 1837, já apontava na direção da criação de uma disciplina dedicada ao estudo da história das ciências, que o positivista Auguste Comte (1789-1857) já havia sugerido no início do século XIX. O próprio Whewell havia cunhado o termo “cientista” para ser referir àqueles que até então eram conhecidos como “filósofos naturais”, enquanto Comte havia criado a primeira classificação das “ciências positivas” até então conhecidas. Ernst Mach (1838-1916), por sua vez, lecionou a primeira cadeira de “história e filosofia das ciências indutivas”, entre 1895 e 1901, na Universidade de Viena. Leia Mais
Diálogos com a História: Estudos interdisciplinares / Projeto História / 2019
A segunda metade do século XX foi marcada por um novo alargamento do campo da História. Ainda que os Annales, já em sua primeira geração, tenham apontado para uma verdadeira “revolução” historiográfica, apresentando novos objetos, novas possibilidades de análise, novos problemas, novas metodologias e uma forte interligação entre as diversas ciências humanas, não resta dúvida de que esse processo se ampliou e, sobretudo, foi instrumentalizado na segunda metade do século XX. Esse alargamento tornou necessário, mais do que nunca, que se estabelecesse um diálogo com o referencial teórico-metodológico de outras áreas das ciências humanas. Pesquisas interdisciplinares buscam a integração de várias disciplinas e ramos do conhecimento para analisar um objeto, a fim de garantir maior profundidade analítica. Assim, o diálogo da história com a política, sociologia, educação, psicologia, literatura, antropologia e tantos outros campos do conhecimento, pode contribuir para lançar novas “luzes” sobre pontos obscuros de um determinado objeto. Dessa forma, a Revista Projeto História promove, neste Dossiê, um diálogo da História com várias áreas das ciências humanas.
A própria capa deste volume, uma arte de Claudinei Cássio de Rezende sobre pintura de Jean-August-Dominique Ingres, François Ier reçoit les derniers soupirs de Leonardo da Vinci, 1 1818, já nos remete à ideia da interdisciplinaridade. Leonardo da Vinci (1452-1519) talvez tenha sido o mais emblemático Homem do Renascimento. Ele não é apenas uma figura histórica memorável, a menção ao florentino na capa deste volume também diz respeito ao seu conteúdo: polímata, ninguém pôde ser mais “interdisciplinar” que Leonardo da Vinci, além disso, propomos uma justa homenagem por ocasião do quinto centenário de sua morte.
Ao longo deste volume, verificamos vários artigos que propõem uma discussão interdisciplinar, a começar pelo texto de Miguel Vedda, Alegorías de la Improvisación. A Propósito de los Cuadros de Ciudades en Calles en Berlín Y en Otros Lugares, de Siegfried Kracauer. O autor, especialista em Literatura Alemã e professor da Universidad de Buenos Aires (UBA), promove uma discussão sobre a vida urbana presente na obra de Siegfried Kracauer.
Na sequência, o segundo artigo deste dossiê apresenta uma discussão sobre uma obra de Jorge Amado – Os pastores da noite, um romance escrito às vésperas do Golpe Civil-Militar de 1964 – no qual verificamos o perfeito diálogo da literatura com a História e, também, uma “[…] discussão sobre a cidade e modos culturais do viver urbano, contribuindo especificamente com a obra aqui analisada para pensarmos a construção de ditaduras na sociedade brasileira”.
O artigo Literatura de cordel: conceitos, intelectuais, arquivos, analisa a produção intelectual sobre a literatura de cordel, promovendo uma discussão com a “literatura popular” e seu papel na construção da identidade nacional, mostra também o processo de criação de arquivos e instituições de pesquisa e como ocorre uma “monumentalização dos folhetos de cordel”.
Em seguida, ainda no campo da literatura, temos o artigo Culpas e traumas no pós-Segunda Guerra em O leitor, no qual os autores analisam essa obra – do jurista e literato alemão Bernhard Schlink – acerca dos traumas, culpas e memórias da Segunda Guerra Mundial.
No artigo seguinte – Ao Ritmo de Tambores e Maracás: Tambor de Mina e Pajelança no Maranhão de Meados do Século XX – o autor nos aponta sua preocupação em mostrar que no “[…] Maranhão de meados do século XX, […] observa-se que algumas modalidades de expressão das religiões de matriz africana começam, ainda que timidamente, a serem vistas, positivamente, como elementos da cultura nacional e regional”. No entanto, indica que apesar dessas mudanças, continua imperando preconceito e discriminação aos adeptos de religiões e religiosidades populares e de matriz africana.
O dossiê segue apresentando um artigo sobre vestuário e fotografia – Vestuário e Fotografia como fontes de pesquisa: uma abordagem interdisciplinar – que discute sobre algumas fontes empregadas nas pesquisas sobre moda, indumentária e vestimenta, indicando que o próprio traje se constitui como fonte importante, carregado de informações e, nesse sentido, quando já não mais existe o traje, a fotografia poderia assumir esse papel de documento histórico.
Hannah Arendt e o Diabólico Maquiavel, o sétimo artigo do dossiê, traz uma discussão sobre a concepção da filósofa alemã Hannah Arendt sobre Maquiavel a partir do conjunto dos textos da autora ao longo de sua maturidade intelectual, expressando prioritariamente as suas concepções em dois deles: um redigido originalmente em 1963, intitulado Sobre a revolução; e outro, Entre o passado e o futuro, por sua vez revisto e ampliado numa edição de 1968.
O artigo seguinte, intitulado A Composição do Ms. 10121 da Biblioteca Nacional de España (C. 1516-1543): O Livro dos Feitos entre a Epigrafia e a Paleografia, analisa um manuscrito sobre a vida do rei Jaime I de Aragão (1208-1276), um dos reis mais conhecidos do contexto territorial da coroa aragonesa. A partir de informações epigráficas e paleográficas do manuscrito e de propostas metodológicas voltadas para a ciência epigráfica e paleográfica, o autor do artigo, “[…] busca determinar o contexto de composição do manuscrito, principalmente considerando as características simbólicas de tais informações presentes no mesmo”. Concluindo que “[…] os aspectos simbólicos presentes neste documento devem ser considerados como principais para compreender o motivo de sua composição, ou seja, a partir de uma perspectiva interdisciplinar”.
Temporalidades de norte a sul: história de municípios narrada nos seus sites oficiais, o artigo que fecha a primeira parte do dossiê, analisa as narrativas históricas, existentes nos sites das prefeituras de duas cidades – Altamira no Pará e Foz do Iguaçu no Paraná – produzidas e divulgadas entre os anos 2012-2017. As narrativas foram problematizadas e os autores indicam que “[…] foi possível perceber a permanência de interpretações históricas hegemônicas no Regime de Historicidade futurista em nosso tempo presente”.
Entre os artigos livres, também podemos verificar uma discussão se aproximando da interdisciplinaridade, em especial, no artigo intitulado A “caixa-preta” da eucaliptocultura: controvérsias científicas, disputas políticas e projetos de sociedade, que discute os embates e disputas sobre o plantio de eucaliptos no Brasil.
Outros dois artigos completam essa seção, Da lógica de O Capital à “lógica” do capital: notas críticas a Helmut Reichelt, no qual o autor discute o pensamento de Helmut Reichelt e o artigo Charles Boxer e a Igreja Militante: Raça, Missionação e Império na Expansão Ibérica dos Séculos XVI e XVII, que apresenta um balanço da obra do historiador inglês Charles Boxer. Nesse artigo, o autor busca explorar o modo como Boxer compreendeu as políticas ibéricas de conversão dos nativos e seus entrelaçamentos com as próprias políticas de colonização.
O dossiê traz também duas resenhas – Entre a memória e a história: a influência estadunidense no Brasil em 1964 – sobre a obra 1964: O golpe, de Flávio Tavares, lançada em 2014 e As Marcas do Tempo no Espaço: Diálogos entre História e Geografia, que apresenta o livro de José D’Assunção de Barros – História, Espaço, Geografia: diálogos interdisciplinares – lançado em 2017.
Dentro da proposta da Revista Projeto História, de valorizar as pesquisas de seus pós-graduandos, temos duas Notícias de Pesquisas, textos de alunos da pós-graduação do programa de História da PUCSP, que apresentam as pesquisas em andamento. A primeira Notícia de Pesquisa é do mestrando Daniel Francisco da Silva, intitulada A atuação da imprensa na reorganização política em Pernambuco em 1954. Essa pesquisa, em andamento, tem como eixo temático a análise da imprensa pernambucana, atentando para sua atuação na reorganização política do estado após o suicídio de Getúlio Vargas, em agosto de 1954. A outra Notícia de Pesquisa, Formação política, organização e movimentos sociais: Encontros de Entidades Comunitárias (ENECOMs), foi produzida pela doutoranda Vera Lúcia Silva e trata das experiências de agricultores, pescadores, agentes de saúde, dentre outros trabalhadores, ligados a diferentes associações e instituições do campo e da cidade dos municípios cearenses de Camocim, de Barroquinha e Granja.
Finalizando o volume, gostaríamos de destacar a ótima entrevista, realizada por Glauber Biazo, com o professor Francisco de Oliveira, um dos grandes intelectuais brasileiros, que faleceu em 10 / 07 / 2019. Francisco de Oliveira trabalhou na SUDENE (Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste) ao lado de Celso Furtado, e com o Golpe Civil Militar de 1964 foi afastado e sofreu prisões e perseguições. Em 1970 – e até 1995 – integrou o CEBRAP (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento). Também participou da fundação do PT (Partido dos Trabalhadores) e, posteriormente, do PSOL (Partido Socialismo e Liberdade). Durante a década de 1980, foi professor do Departamento de Economia da PUCSP, saindo em 1988 para integrar-se ao corpo docente do Departamento de Sociologia da Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas da USP. O professor Francisco de Oliveira nos deixa um legado de obras, lutas e militância e recebe, neste volume da Revista Projeto História, uma justa homenagem.
Nota
1 Segundo Claudinei Cássio de Rezende, autor da capa desse volume, “Em 1818, Pierre-Louis Jean Casimir (1771-1839), embaixador francês em Roma, encomenda a Jean Auguste Dominique Ingres (1780-1867) a pintura A morte de Leonardo. Ingres, o mais destacado pintor da école davidienne, faz o painel em óleo, de dimensão modesta (40 x 50,5 cm), conforme ordenação do comitente. Neste painel vemos Francisco I (1494-1547) de França recebendo em seus braços Leonardo da Vinci (1452-1519) em seu último suspiro”. Sobre a “forte interdisciplinaridade” de Leonardo da Vinci, Rezende, nos alerta que: “[…] Leonardo aprende a técnica do desenho e da pintura, atividades que poderiam já lhe atribuir um estatuto de genialidade ao seu tempo histórico, especialmente se considerarmos o seu Tratado da pintura como a primeira teorização da estética e da história da arte, antecipando Giorgio Vasari (1511- 1574). Leonardo considerava que a cópia das pinturas, resultando sempre em cópia da cópia de menor qualidade, não era o bastante para avançar a ciência naturalista da pintura: os modelos precisavam advir da própria realidade, do próprio estudo da natureza. Assim, Leonardo se torna um estudioso da botânica, da geologia, da anatomia animal, da anatomia humana (incluindo um original estudo sobre os embriões) e da física (da luz e sombra). Por consequência, estuda de modo geral toda a ciência, desenvolvendo uma teoria rudimentar das placas tectônicas, por exemplo. Projetos de máquinas voadoras, tanques de guerra, e até um protótipo de helicóptero são elaborados por Leonardo. Estudou a óptica e hidrodinâmica. Desenvolveu maquinaria de metalurgia que, não obstante, entrou para o mundo da indústria sem os devidos créditos ao mestre florentino. Na última década de vida, após a morte de seu mecenas Ludovico, retorna à Florença recémconquistada por Lorenzo II (1492-1519), até se instalar na corte francesa de seu último patrono, Francisco I. Foi este que, àquela altura, encomendou a Leonardo um leão mecânico que andava para frente, abria o peito e relevava um ramalhete de lírio. Leonardo, criador da robótica?”.
Luiz Antonio Dias – Professor do PEPG de História da PUC-SP. Editor Chefe da Revista Projeto História
Vagner Carvalheiro Porto – Professor da Universidade de São Paulo, Museu de Arqueologia e Etnologia da USP. Editor da Revista do MAE-USP
DIAS, Luiz Antonio; PORTO, Vagner Carvalheiro. Apresentação. Projeto História, São Paulo, v.65, 2019. Acessar publicação original [DR]
Trinta anos da “Constituição cidadã”: contribuições da História e da Ciência Política / Estudos Ibero-Americanos / 2018
As constituições, de uma forma geral, possuem o importante papel de submeter o poder político ao direito, definindo “as regras do jogo” e subordinando o Estado à coletividade. Segundo Schmidt, elas garantem rigidez à estrutura de governo, delimitando as suas funções e, ao mesmo tempo, definindo os direitos e deveres dos cidadãos (SCHMIDT, 1982). Dessa maneira, o estudo dos textos constitucionais é passo importante para a compreensão de regimes políticos.
Entre os estudiosos da democracia, nas mais diferentes disciplinas, há um consenso sobre a importância da Carta Constitucional de 1988 para a compreensão do atual sistema político brasileiro. A carta magna ficou conhecida como “constituição cidadã” em virtude da ampliação dos direitos civis, políticos e sociais, não apenas em relação à constituição que ela substituiu – a constituição de 1967 –, mas também em relação às demais constituições brasileiras.
A Constituição Federal promulgada em 1988 (CF 88) é o sétimo documento constitucional do Brasil independente. A primeira foi promulgada ainda no Império, em 1824, logo após a independência de Portugal. Essa constituição ficou marcada pela restrição dos direitos políticos a uma pequena parcela da população privilegiada economicamente e pela concentração de poder nas mãos do imperador por meio do estabelecimento do poder moderador, entre outras características. Era, portanto, uma constituição monárquica e autoritária.
A primeira constituição republicana do Brasil foi promulgada em 1891, e ela marca a institucionalização do Estado brasileiro como República Federativa presidencialista. Todavia, ainda apresentava profundas limitações à plena cidadania. Como exemplo, podemos destacar o fato de que os direitos políticos foram destinados apenas a homens e ainda que excluiu alguns setores da população numericamente relevantes no período, como a população analfabeta (BONAVIDES, ANDRADE, 2002). Além disso, o voto não era secreto, permitindo que poderes locais coagissem eleitores a votar de acordo com seus interesses, criando o chamado fenômeno do coronelismo (LEAL, 1975). Diante disso, tornou-se um consenso entre os estudiosos da temática que a primeira constituição republicana não representou uma garantia de cidadania e falhou na tarefa de submeter o poder político ao direito.
A terceira constituição – a segunda constituição republicana – foi promulgada durante o governo de Getúlio Vargas em 1934 e representou um avanço se comparada à sua antecessora. Entre os avanços registrados nessa constituição, convém destacar a ampliação do acesso aos direitos políticos, uma vez que estabeleceu eleições diretas, voto secreto e permitiu o voto feminino. O voto feminino, todavia, estava condicionado à autorização do marido quando a mulher fosse casada, entre outras restrições. Destaca-se ainda que a população analfabeta continuava excluída do sistema político. Por outro lado, alguns avanços foram registrados no âmbito dos direitos civis e sociais, em virtude da positivação dos direitos trabalhistas.
No entanto, apesar dos avanços registrados, essa constituição ficou vigente por pouco tempo: três anos depois, em 1937, Vargas outorgou uma nova constituição que ficou marcada pela concentração dos poderes nas mãos do chefe do poder executivo, forjando assim um caráter legal a um Estado autoritário que limitava os direitos civis e políticos. O estabelecimento de eleições indiretas para a presidência, a retirada do direito à greve, entre outras medidas, são exemplos de como a constituição de 1937 suprimiu várias liberdades previstas na sua antecessora (BONAVIDES, ANDRADE, 2002).
Com o fim do Estado Novo, em 1946, é instalada uma nova constituinte. A constituição que resultou desse processo marca o início de uma experiência democrática no Brasil, de acordo com Jorge Ferreira (FERREIRA, 2006). Com efeito, a constituição reestabeleceu a divisão de poderes e outros direitos sociais e políticos que haviam sido suprimidos pela constituição de 1937. Contudo, ela manteve a exclusão dos analfabetos.
Os avanços do período democrático que teve início em 1945 foram interrompidos pelo golpe de 1964, que procurou conquistar legitimidade política por meio da promulgação de uma nova constituição em 1967, a sexta constituição brasileira. O interesse dos militares em criar um arranjo político que combinasse características tradicionais de um regime democrático com a concentração de poderes nas mãos da cúpula militar e limitações à participação política, incentivou o governo a tentar manter a constituição democrática de 1946 nos primeiros anos após o golpe. Contudo, o caráter arbitrário dos atos institucionais se tornou ainda mais evidente com a multiplicação dos atos complementares, forçando os militares a promulgar uma nova constituição (ALVES, 2005, p. 65-123). Assim, a constituição de 1967 reuniu o aparato jurídico que pretendia justificar o Estado de direito mesmo diante de grandes impedimentos ao exercício da cidadania. Ao mesmo tempo, foram registrados avanços sociais (ROCHA, 2013, p. 33). Essa característica particular do regime militar brasileiro incentivou estudiosos a denominá-lo “regime burocrático-autoritário” (O’DONNELL, 1996), entre outras denominações.
Percebe-se que, ainda que teoricamente haja uma relação entre as constituições e a subordinação do Estado à coletividade (Cf. SCHMIDT, 1982; NASCIMENTO; MORAIS, 2007), no caso brasileiro, muitas vezes as constituições foram utilizadas para legitimar o arbítrio e os privilégios. Assim, no Brasil, o papel das constituições para a afirmação, o fortalecimento e a ampliação da cidadania nem sempre foi ativo, muito embora avanços tenham sido registrados entre os recuos e permanências da história constitucional brasileira. De qualquer maneira, constata-se que as constituições que representaram avanços tiveram pouco tempo de vigência e foram atingidas por golpes de estado que estabeleceram regimes autoritários que as substituíram.
Diante dessa trajetória histórica, é natural que a CF 88, que completa trinta anos em 2018, tenha se tornado um marco na história política nacional. O caráter “cidadão” atribuído à CF 88 refere-se à inédita adoção pelo Brasil de uma noção ampla de cidadania no texto constitucional. Para José Murilo de Carvalho (2015), partindo da definição proposta por Thomas MARSHALL (1967), a cidadania plena reúne a garantia de direitos políticos, civis e sociais, combinando “liberdade, participação e igualdade para todos” (CARVALHO, 2015, p. 14-15). Dessa forma, a sua existência está condicionada à ação do Estado em favor da garantia dos direitos ligados à participação do cidadão na vida política, os direitos fundamentais – tais como o direito à liberdade, à propriedade, à vida e à igualdade diante da lei – e os direitos sociais – relativos à distribuição justa das riquezas pela administração pública.
Os caminhos para se alcançar a cidadania plena se mostraram mais diversos do que a trajetória apontada por Marshall ao analisar a sequência de aquisição de direitos na Europa. O caso do Brasil, para Carvalho, evidencia a existência de trajetórias distintas, uma vez que, no Brasil, muitas vezes os direitos sociais antecederam os demais (CARVALHO, 2015). De qualquer maneira, pode-se afirmar que, no século XXI, a definição de cidadania plena relaciona democracia, liberdades individuais e justiça social.
A CF 88 afirma esses valores em seu texto. Em 1987, em um cenário marcado pela revitalização da participação popular, após décadas de “constitucionalização das normas antidemocráticas e das medidas de exceção por parte dos militares e dos seus aliados civis” (ROCHA, 2013, p. 29), a Assembleia Nacional Constituinte (ANC) foi instalada com a tarefa de destruir os resquícios autoritários, colocar fim ao lento processo de transição democrática e estabelecer uma relação entre democracia e cidadania no Brasil. Em seu discurso na promulgação da Constituição de 1988, Ulysses Guimarães, presidente da ANC refletiu sobre o papel da CF nesse processo:
“Ecoam nesta sala as reivindicações das ruas. A Nação quer mudar, a Nação deve mudar, a Nação vai mudar”. São palavras constantes do discurso de posse como Presidente da Assembleia Nacional Constituinte. Hoje, 5 de outubro de 1988, no que tange à Constituição, a Nação mudou. A Constituição mudou na sua elaboração, mudou na definição dos poderes, mudou restaurando a Federação, mudou quando quer mudar o homem em cidadão, e só é cidadão quem ganha justo e suficiente salário, lê e escreve, mora, tem hospital e remédio, lazer quando descansa. Num país de 30.401.000 analfabetos, afrontosos 25% da população, cabe advertir: a cidadania começa com o alfabeto. Chegamos! Esperamos a Constituição como o vigia espera a aurora. Bem-aventurados os que chegam (CÂMARA DOS DEPUTADOS…, 1988, p. 14380).
O histórico discurso de Ulysses Guimarães aborda a relação entre direitos sociais, direitos civis e direitos políticos, destacando a dimensão participativa do processo constituinte. Assim, a CF 88 marca uma etapa importante do processo de democratização no Brasil e ficou caracterizada pelo seu caráter “cidadão”, por afirmar a legitimidade da cidadania plena e o papel do Estado em garanti-la.
Ao longo dos últimos trinta anos, diversos estudos procuraram se debruçar sobre a constituição, no intuito de analisar o seu papel para a compreensão das mais variadas dimensões do regime e da sociedade brasileira. As mais diversas disciplinas procuraram trazer contribuições para a compreensão da Carta Magna, seus efeitos e limites, dentre as quais merecem destaque o Direito, a Sociologia, a História e a Ciência Política. É possível citar abordagens variadas: a análise do texto constitucional; o papel do judiciário após 1988; as implicações da carta nos planos social e cultural; a relação entre os três poderes; as reformas constitucionais; e, mais recentemente, a dinâmica do processo constituinte, entre outras.
Na Ciência Política, merecem destaque as contribuições que procuraram conectar a relação entre o autoritarismo dos militares, o caráter negociado do processo de transição e a dinâmica interna da Assembleia Nacional Constituinte (ANC) para a compreensão do documento promulgado em 1988 e o presidencialismo de coalizão pós-constituinte. A História, por sua vez, trouxe importantes contribuições sobre a mobilização popular que antecedeu a ANC e que trouxe a unificação da oposição em torno de alguns temas como direitos humanos, democracia, anistia política e constituinte. Assim, o diálogo entre as duas disciplinas parece apontar caminhos interessantes para a análise da CF 88 [1].
Em comemoração aos trinta da promulgação da constituição, o Centro Brasileiro de Pesquisa em Democracia (CBPD) da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) – em parceria com o Centre d’Études de la Vie Politique (CEVIPOL), vinculado à Université Libre de Bruxelas (ULB) –, se propôs a receber e reunir contribuições da História e da Ciência Política para a compreensão das múltiplas dimensões da CF 88, se beneficiando da distância propiciada pelo passar do tempo. Em um momento de intenso debate político, interessa, sobretudo, lançar um olhar sobre o cenário político atual que estabeleça a sua relação com o passado, para então refletir sobre os diferentes usos da constituição feitos atualmente. O resultado dessa proposta é apresentado neste dossiê que reúne cinco artigos de pesquisadores brasileiros e estrangeiros, revelando diferentes olhares sobre a chamada constituição cidadã.
O primeiro artigo apresentado pelo dossiê intitulado “Do escravo ao escravizado: o longo caminho para a construção dos Direitos Humanos no Brasil”, de autoria de Vitale Joanoni Neto, busca estabelecer essa relação entre o passado e o presente proposta pelos organizadores do dossiê. A partir de uma análise de longa duração, o autor se propõe a compreender as diferentes formas assumidas pela escravidão no Brasil desde o período colonial, lançando luzes para a compreensão da persistência dessa grave violação dos direitos humanos mesmo em tempos de constituição cidadã. Para o autor, a persistência de desigualdades sociais com profundas raízes históricas não impediu que a CF 88 desempenhasse um importante papel no combate a essa prática, uma vez que, ao afirmar a importância da cidadania plena, deslocou o sentido da expressão “condição análoga à de escravo”. Dessa forma, fortaleceu os discursos que combatem a prática, sejam eles provenientes da sociedade civil, sejam provenientes do próprio poder judiciário.
O artigo “A participação em conflito na Assembleia Constituinte: confrontos discursivos e racionalidade dos atores” de Marie-Hélène Sá Vilas-Boas busca analisar o papel da Constituição de 1988 para a compreensão da dimensão participativa na dinâmica da própria constituinte. Para tanto, a autora se volta para o estudo dos debates em torno dos direitos políticos e da saúde, a partir da análise dos trabalhos de duas subcomissões distintas relativas a esses temas. Para Vilas-Boas a mobilização social que marcou o período contribuiu para que a dimensão participativa fosse destacada ao longo da ANC por meio das emendas populares, audiências públicas e outras ferramentas que permitiram que setores sociais influenciassem o texto final. Por outro lado, ainda que as elites tenham concordado com a participação desses setores, o texto final destaca o caráter representativo da participação e o relega à esfera coletiva por meio de grupos organizados e comunidades. Apenas na década de 1990 o conceito de “participação cidadã” passa a se fortalecer, em detrimento do conceito de “participação coletiva”.
Françoise Montambeault também aborda a questão da participação no artigo intitulado “Uma Constituição cidadã? Sucessos e limites da institucionalização de um sistema de participação cidadã no Brasil democrático”. Focando-se nos efeitos da carta nessa dimensão ao longo dos trinta anos que se seguiram após 88, a autora buscar analisar o papel da Constituição para a abertura de canais institucionais da participação cidadã no Brasil. Para a autora, ainda que a carta tenha o mérito de ter inscrito o princípio participativo no documento final, conectando-o com o modelo de democracia adotado, a efetivação desse princípio esteve condicionada à combinação da vontade social com o compromisso político. Para a autora, essa combinação se concretizou apenas durante os anos de governo do Partido dos Trabalhadores (PT).
Em “Constituição de 1988: o avanço dos Direitos Humanos Fundamentais”, Maria Cecília Barreto Amorim Pilla e Amélia do Carmo Sampaio Rossi buscam compreender os avanços no âmbito dos direitos humanos fundamentais a partir da carta magna por meio da aplicação do método histórico-dialético. Para as autoras, a CF 88 reconheceu os direitos humanos fundamentais a partir de uma perspectiva ampla, porém o cenário global marcado pelo liberalismo impediu a plena implementação dos direitos sociais. Por outro lado, nesse cenário globalizado, a relação entre a constituição e os sistemas internacionais protetivos de direitos humanos contribuíram para o fortalecimento dos direitos fundamentais.
A sessão é concluída por Gustavo Müller, que contribui com o artigo ensaístico intitulado “Trinta anos nesta tarde: problemas endógenos e exógenos da trajetória democrática no Brasil pós-Constituição de 1988”. À luz dos preceitos constitucionais de 1988, o autor busca refletir sobre a atual crise vivida pelo sistema político brasileiro. Para Müller, fatores endógenos e exógenos explicam a atual crise e dificultam que os atributos da Carta Magna sejam capazes de impedir que o Brasil viva um processo de “des-democratização”.
Finalmente, o dossiê completa-se com a entrevista com Olivier Dabène, cientista político especialista em democracias na América Latina. A partir de um olhar comparado, o estudioso reflete sobre os trinta anos de democracia no Brasil, enfatizando os diferentes usos da chamada “constituição cidadã” em tempos de crise política.
Desejamos a todos uma excelente leitura!
Nota
1 Há uma farta produção tanto na Ciência Política, quanto na História sobre as diversas dimensões da constituinte e o seu papel para a compreensão do regime político. Entre elas, destacamos as seguintes: ARAÚJO, 2010; ARAÚJO, 2013a; ARAÚJO, 2013b; MONCLAIRE, BARROS FILHO, 1988; FIGUEIREDO, LIMONGI, 1999.
Referências
ARAÚJO, Cícero; CARVALHO, M. A. R.; Simões, J. (Org.). A Constituição de 1988: Passado e Futuro. São Paulo: Hucitec, 2010. v. 1. 273p.
ARAUJO, Cicero. A forma da república: da constituição mista ao Estado. São Paulo: Martins Fontes, 2013a. v. 1. 376p.
ARAÚJO, Cícero. O processo constituinte brasileiro, a transição e o Poder Constituinte. Lua Nova, São Paulo, n. 88, 2013b.
BONAVIDES, Paulo; ANDRADE, Paes. História constitucional do Brasil. Brasília: OAB, 2002.
CÂMARA DOS DEPUTADOS – Departamento de Taquigrafia, Revisão e Redação. Discurso de Ulysses Guimarães proferido na sessão de 5 de outubro de 1988. Escrevendo a História – Série Brasileira. Publicado no DANC de 5 de outubro de 1988. p. 14380- 14382. Disponível em: . Acesso em: 20 mar. 2018.
CARVALHO, José Murilo de. Cidadania no Brasil: o longo caminho. 19. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2015.
FERREIRA, Jorge. A democracia no Brasil (1945-1964). São Paulo: Atual, 2006. v. 1. 136p.
FIGUEIREDO, Argelina; LIMONGI, Fernando. Executivo e Legislativo na Nova Ordem Constitucional. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1999. v. 1. 232p.
O’DONNELL, Guillermo. El Estado burocrático-autoritário: trunfos, derrotas y crisis. Buenos Aires: Editorial de Belgrano, 1996.
LEAL, Victor Nunes. Coronelismo, Enxada e Voto. 2. ed. São Paulo: Alfa-Omega, 1975.
MARSHALL, T. H. Cidadania, classe social e status. Rio de Janeiro: Zahar, 1967.
MONCLAIRE, Stéphane; BARROS FILHO, Clóvis. Brésil: l’écriture d’une constitution. Politix, v. 1, n. 2, 1988.
NASCIMENTO, V. R.; MORAES, J. A cidadania e a Constituição: Uma necessária relação simbólica. Revista de Informação Legislativa, Brasília, a. 44, n. 175 jul. / set. 2007.
SCHMITT, Carl. Teoría de la Constitución. Madrid: Alianza Editorial, 1982.
ROCHA, Antônio Sérgio. Genealogia da constituinte: do autoritarismo à democratização. Lua Nova, São Paulo, n. 88, p. 29-87, 2013.
Teresa Cristina Schneider Marques – Doutora em Ciência Política pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), professora adjunta do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Pesquisadora do Centro Brasileiro de Pesquisa em Democracia (CBPD). E-mail: teresa.marques@pucrs.br
Fredéric Louault – Doutor em Ciência Política pelo Institut d’Études Politiques de Paris (Sciences Po – Paris), professor de Ciência política na Université Libre de Bruxelles (ULB). Pesquisador do Centre d’Études de la Vie Politique (CEVIPOL). E-mail: flouault@ulb.ac.be
MARQUES, Teresa Cristina Schneider; LOUAULT, Fredéric. Apresentação. Estudos Ibero-Americanos. Porto Alegre, v. 44, n. 2, maio / ago., 2018. Acessar publicação original [DR]
Ética, Pesquisa, História: desafios na produção do conhecimento / História & Perspectivas / 2015
Com o n. 52, História & Perspectivas mais uma vez traz a público um conjunto de contribuições à compreensão do processo histórico, nacional e internacional. As interpretações aqui presentes representam uma rica mostra do que se debate e se produz na historiografia atual.
O tema central deste número é “Ética e pesquisa no campo da História”, questão atemporal e que envolve todos os campos investigativos e não apenas a História ou o macro campo das Ciências Humanas e Sociais. E isso remete à necessidade de reflexão, tanto sobre a implementação propriamente dita da pesquisa como sobre a responsabilidade sócio-acadêmica dos que a praticam e dos usos que são feitos dos resultados que, desde muito, fazem parte do cotidiano de todos nós.
É nesse horizonte que o binômio ética e pesquisa tem sido um tema recorrente nos debates da área de Ciências Humanas e Sociais, especialmente se considerarmos o contexto das mudanças significativas que resultaram na sociedade do século XXI, decorrentes da intensificação dos processos de globalização das relações econômicas, culturais e científicas.
Ao longo do tempo, os humanos foram passando da condição de coletores para a de produtores de seus alimentos, de nômades para sedentários, de grupos dispersos para sociedades organizada. Aprenderam a curar suas feridas e a se utilizar da riqueza natural que os cercava, enveredando pelos mares, subindo as montanhas, dominando as florestas e as regiões áridas; enfim, passaram a ter domínio sobre suas condições de sobrevivência, num mundo a princípio inóspito, mas que gradativamente foi sendo submetido. Ao mesmo tempo, geraram regulamentos que garantiam condições variadas de sociabilidade, permitindo o planejamento de sua hegemonia e a das gerações futuras neste mundo, além de registrar e dar sentido à sua trajetória por meio da construção da História.
Esse é um processo longo e doloroso, só possível pela habilidade do homem de observar, registrar, lembrar, fazer relações e tirar conclusões sobre o que acontece à sua volta. Característica que, respeitadas as diferenças, o acompanha desde priscas eras e que passamos a chamar em certo momento de investigação científica ou simplesmente de ciência. Nos moldes em que a conhecemos hoje, passou a tomar forma nos tempos modernos, marcados pelo uso metodizado e contínuo da razão, do experimento na busca de melhorias que garantissem cada vez mais condições de conforto ao homem ou, até, a busca da felicidade.
Muitos percalços foram enfrentados – o confronto com a religião, a luta pela garantia das liberdades –, usos condenáveis do conhecimento foram disseminados – tecnologias de guerra, de tortura, de manipulação das vontades –, mas, ao mesmo tempo, descortinaram-se benefícios infindos por intermédio da prática científica. E, com a dependência cada vez maior do homem em relação à ciência e à técnica, a reflexão sobre os usos, os procedimentos, as consequências das transformações geradas fora do circuito “natural”, gerando impactos e consequências para o meio ambiente para os quais nem o próprio homem estava preparado, geraram uma necessidade de se pensar não apenas os horizontes, mas também os riscos que se abriam e se abrem por conta da preeminência científica que a cada dia se avoluma. E essa reflexão se dá no âmbito da razão, em sociedades que respeitam regras comuns, que aceitam os direitos como patrimônio coletivo e que necessitam de assegurar tanto a convivência como a sobrevivência de todos, vislumbrando na ciência tanto a edificação de um futuro radioso como de uma catástrofe iminente.
Como superar esse impasse? Como conciliar os avanços da ciência com a preservação de valores, com o respeito ao ambiente que nos hospeda e à dignidade humana que construiu esse mundo que nos abriga? Em suma, ainda que seja unânime o reconhecimento do valor e da necessidade da ciência, também se consolidou uma visão comum da importância de se refletir sobre a prática investigativa e sobre a necessidade de se estabelecer parâmetros para sua implementação. É nesse espaço que a ética se apresenta, contribuindo para a reflexão sobre a relação do homem com o conhecimento científico. E é aí também que a História entra, ao inserir a perspectiva histórica nessa reflexão, a relação do homem com a produção e o usufruto do conhecimento ao longo do tempo.
Os textos deste dossiê não pretendem oferecer respostas ou soluções para esses e outros dilemas que assolam o ambiente acadêmico-científico brasileiro. De resto, todos nós sabemos que soluções desse tipo não existem. No entanto, contribuem significativamente para a ampliação da reflexão e para o embasamento teórico-metodológico dos pesquisadores e estudiosos sobre o debate recente em torno das resoluções emitidas pelo Conselho Nacional de Saúde regulamentando os procedimentos de avaliação e controle da prática da pesquisa no Brasil, sobre a formação do pesquisador nas universidades e nos institutos de pesquisa, sobre a pertinência da elaboração de códigos de ética para diferentes áreas, sobre a prevalência atual da bioética sobre as atividades investigativas, etc. O simples enunciado desses temas já permite ao leitor avaliar a dimensão da riqueza e do alcance dos argumentos esgrimidos pelos autores aqui reunidos, especialistas experientes tanto no tema como na prática da pesquisa, bem como na análise do processo histórico.
O presente dossiê, além disso, tem o mérito de oferecer estudos que desvelam os limites e as possibilidades da discussão em torno da regulamentação do agir investigativo, ao sinalizar para outros vetores da ética e da pesquisa, mas tendo em vista uma profícua reflexão sobre critérios centrados nas especificidades das Ciências Humanas e Sociais, em especial no campo da História, principalmente quando a relação pesquisador / objeto é matizada pela atuação intencional e planejada do cientista social. Assim, os textos do dossiê oferecem um fecundo panorama das condições de formação do pesquisador, da produção e divulgação dos conhecimentos científicos, colocando em relevo a forma pela qual a sociedade pode usufruir dos resultados da ciência sem que “prejuízos éticos” se manifestem ou reduzindo os riscos de sua ocorrência.
Repassamos agora ao público não só importantes resultados de pesquisa, mas também a responsabilidade pela leitura, pela avaliação e pela crítica, assim como pela continuidade do debate e da reflexão sobre as relações do homem com a natureza e com seus pares, mediados pela ciência.
Conselho Editorial
Ética, Pesquisa, História: desafios na produção do conhecimento. História & Perspectivas, Uberlândia, n.52, 2015. Acessar publicação original [DR].
Georges Canguilhem, a história e os historiadores / Intelligere – Revista de História Intelectual / 2016
“A obra do filósofo e médico Georges Canguilhem experimenta atualmente um extraordinário revival, que se produz tanto em escala nacional francesa quanto internacional, e com um alcance interdisciplinar, envolvendo as mais diferentes áreas. Essa ascensão do interesse pela obra de Canguilhem teve início antes de seu falecimento, e continua se manifestando através da multiplicação de colóquios sobre seu pensamento, publicações em forma de livros e revistas, traduções de seus escritos para diversos idiomas, além da organização de centros de investigação e de documentação que levam o seu nome.” [1]
Essa avaliação feita por Francisco Vázquez García tem se provado verdadeira também para o Brasil. O interesse renovado pelos textos de Georges Canguilhem (1904 – 1995), motivado pela descoberta de escritos inéditos e pela publicação das suas obras completas na França, também é verificado entre os pesquisadores brasileiros, fato que medimos pelo aumento de pesquisas de pós-graduação, livros, artigos e eventos dedicados ao seu pensamento [2]. É verdade que, graças a autores como Sérgio Arouca, Cecília Donnangelo e Ricardo Bruno Mendes Gonçalves, O normal e o patológico conhece uma prestigiosa reputação no Brasil desde os anos 70. Mas foi apenas nos últimos anos que vimos serem traduzidos os livros O conhecimento da vida e Estudos de história e de filosofia das ciências concernentes aos vivos e à vida, que apresentaram a um público mais amplo no Brasil as contribuições inovadoras de Canguilhem para a teoria e a prática da história do pensamento médico e biológico.
Pacifista engajado na juventude, a vida adulta fez de Canguilhem um combatente: membro do Comitê de Vigilância dos Intelectuais Antifascistas, Médico Tenente e Chefe do Estado-Maior político da Resistência Francesa durante a ocupação nazista. Combateu, também, pela história das ciências. Em 1983, recebeu a “Medalha George Sarton”, a mais prestigiosa honraria da área de história das ciências, concedida pela History of Science Society em reconhecimento “a uma vida de conquistas acadêmicas”. Essas conquistas estão concentradas no período entre 1955 e 1971, quando lecionou história e filosofia das ciências na Sorbonne, dirigiu o Institut d’histoire des sciences et des techniques e publicou seus textos mais conhecidos. Mas a abertura dos arquivos pessoais e de trabalho de Canguilhem, preservados no Centre d’Archives en Philosophie, Histoire et Édition des Sciences (CAPHÉS), revelou aos pesquisadores novos aspectos do seu pensamento e do seu diálogo com os historiadores.
Fomos apresentados ao “Canguilhem avant Canguilhem”, expressão de Jean-François Braunstein, já de uso corrente entre os comentadores que se dedicam aos textos produzidos entre 1926 e 1939, a partir dos quais é possível detectar o interesse precoce de Canguilhem pelos trabalhos dos historiadores de ofício. O rastreamento das leituras de Canguilhem nesse período e, principalmente, da utilização dos textos de historiadores em seus cursos de filosofia já na década de 30, permitiu que entendêssemos melhor a importância dos fundadores da revista dos Annales, dos historiadores agrupados em torno do Centre de Synthèse e dos historiadores das ideias para o desenvolvimento de uma técnica original de investigação histórica das ciências da vida e da medicina que começa a ser posta em prática já no Essai sur quelques problèmes concernant le normal et le pathologique, tese de doutorado em medicina publicada em 1943.
A compreensão renovada da problemática histórica na obra de Canguilhem também permitiu uma reavaliação dos seus débitos com a epistemologia de Gaston Bachelard, e, aparente paradoxo, fez crescer o interesse pela epistemologia histórica, hoje entendida cada vez menos como uma filosofia nacional francesa, e mais como um processo de historicização da epistemologia que repercutiu em diferentes pontos da Europa. Daí ser possível identificar, por meio de uma história intelectual comparada, um “ar de família” entre Canguilhem e o polonês Ludwik Fleck. Leituras menos preocupadas em enquadrar Canguilhem nos limites de uma suposta “escola francesa” passaram a destacar a importância de temas como a circulação das ideias, as continuidades e descontinuidades entre conceitos e mitos ou as relações entre ciência e ideologia para a concretização do seu projeto de historicização das ciências.
Pouco mais de vinte anos após a morte de Canguilhem, sua ausência é profundamente sentida por todos aqueles que ele ajudou a formar, direta ou indiretamente, através das suas lições ou dos seus livros. Não causa espanto que, diante dos problemas atualmente postos ao conhecimento da vida e da saúde, ao pensamento e à prática médica, à teoria e à prática da história das ciências da vida e da medicina, os pesquisadores continuem retornando à obra de Canguilhem em busca de respostas ou de pistas até elas. Os textos apresentados nesse dossiê são manifestações de reconhecimento da vitalidade de um pensamento que, mesmo interrompido há décadas, segue se provando original.
Notas
1. Francisco Vásquez García. “Redescubriendo a un filósofo híbrido: Georges Canguilhem”. In: Asclepio. Revista de Historia de la Medecina y de la Ciencia. 66 (2), julho-dezembro 2014.
2. O próprio Grupo de Pesquisa em História Intelectual organizou, em setembro de 2015, o colóquio “Canguilhem, a história e os historiadores” e, em abril de 2016, a mesa-redonda “Os objetos da história das ciências”, também dedicada ao pensamento de Canguilhem. Esses eventos contaram com o apoio do Departamento de História, do Laboratório de Teoria da História e Historiografia (LabTeo) e do Centro Interunidade de História da Ciência da USP.
Tiago Santos Almeida – Doutorando em História Social na Universidade de São Paulo Grupo de Pesquisa em História Intelectual (Departamento de História – USP) EXeCO – Expérience et connaissance (Université Paris 1 Panthéon-Sorbonne)
Comitê organizador:
Tiago Santos Almeida (USP)
Marcos Camolezi (USP / Université Paris 1)
Iván Moya-Diez (Université Paris 1)
Matteo Vagelli (Université Paris 1)
ALMEIDA, Tiago Santos. Apresentação. Intelligere – Revista de História Intelectual. São Paulo, v. 2, n. 1, 2016. Acessar publicação original [DR]
História e etnologia: diálogos interdisciplinares / História Unisinos / 2016
Ao longo das últimas décadas é possível constatar instigantes aproximações de reflexão teórico-metodológica entre historiadores e antropólogos, dentre as quais o emprego de conceitos e noções de natureza antropológica em pesquisas historiográficas e aos aportes de caráter diacrônico que deveriam informar antropólogos em seu trabalho de campo com os chamados “nativos”. Nesses tipos de abordagem, os diálogos interdisciplinares teóricos e metodológicos servem para alimentar a constituição do conhecimento sobre sujeitos localizados em outras épocas e / ou em outros lugares, cujos resultados tornam cada vez mais ricas e férteis ambas as áreas de conhecimento, na medida em que historiadores e antropólogos disponham de forma correta tais ferramentas analíticas. Tais aproximações, contudo, não são novas, tendo em vista, por exemplo, dois textos de autoria do etnólogo francês, de origem belga, Claude Lévi-Strauss.
Apesar de apresentarem o mesmo título – “História e Etnologia” –, os textos foram redigidos em distintos momentos da carreira do pai do Estruturalismo e não guardam relações intrínsecas entre si. O primeiro “História e Etnologia”, o mais conhecido dos dois, é parte da coletânea Antropologia Estrutural e foi publicado pela primeira vez sob a forma de artigo no final dos anos 1940. O segundo, resultado de uma palestra apresentada na Sorbonne em 1983, por ocasião de uma homenagem a Marc Bloch, foi publicado no início dos anos 1980 na revista dos Annales. Embora não sejam estas as intenções de Lévi-Strauss, muito mais interessado em um exercício de alteridade e de delimitação disciplinar, o fato é que rígidas dicotomias foram cristalizando-se ao longo do tempo no que diz respeito aos domínios da História e da Antropologia.
Em que medida a História continua como o campo por excelência da diacronia e do tempo, enquanto à Antropologia é reservado o lócus da sincronia e da estrutura? É válido ainda pensar que aos historiadores cabem somente os arquivos, enquanto aos antropólogos (etnólogos, como diria Lévi-Strauss) é reservado o trabalho de campo? Quais inovações teórico-metodológicas os diálogos entre historiadores e antropólogos podem engendrar? Qual o papel que historiadores como Carlo Ginzburg ou antropólogos como Marshall Sahlins têm nas aproximações e distanciamentos entre História e Antropologia? A proposta do dossiê é, portanto, oferecer um panorama dos encontros / desencontros de duas áreas do conhecimento que ainda têm muito a dialogar uma com a outra.
Livros, coletâneas, artigos científicos, monografias, dissertações e teses têm aparecido nos cenários acadêmicos nacional e internacional trazendo importantes contribuições para ambas as áreas do conhecimento no sentido mais amplo. Para tanto, conclamamos autores da Antropologia e da História a submeterem seus manuscritos ao dossiê.
A proposta deste dossiê foi a de reunir artigos em que sejam apresentadas conexões entre a História e a Antropologia, referindo-se a um mesmo objeto / sujeito de investigação. Foram aprovados quatro artigos que, de alguma maneira, promovem o diálogo transdisciplinar, seja conceitual ou metodológico.
O artigo de Guilherme Galhegos Felippe apresenta a correlação existente entre as narrativas mitológicas indígenas e as práticas rituais realizadas no cotidiano dos grupos do Chaco. O autor utiliza fragmentos de mitos coletados por missionários do século XVIII, bem como narrativas mitológicas de grupos chaquenhos contemporâneos. O autor demonstra que o mito pode ser de interesse analítico e uma das fontes para o pesquisador compreender a complexidade das relações interétnicas. Outro mérito de utilizar o mito como fonte de análise é permitir que distintas vozes sejam incluídas nas narrativas historiográficas, uma vez que, partindo da proposição de Levi-Strauss, o conhecimento indígena é de boa ordem, embora operada com outros caminhos intelectuais. A inclusão do mito na análise do contexto colonial pode suscitar novas questões e contribuir para a compreensão do ponto de vista dos indígenas.
No artigo Cultura em movimento: Natalie Davis entre a antropologia e a história social, Leonardo Affonso de Miranda Pereira e Julia O’Donnell analisam a obra de Natalie Zemon Davis, historiadora canadense e representante da História cultural. Essa autora dialoga com a Antropologia ao longo de sua trajetória, por meio do conceito de cultura, de análises que dão atenção a pessoas e grupos sociais marginalizados e pobres e às mulheres. O objetivo do artigo é refletir essas relações com a Antropologia, bem como mostrar como isso se processa ao longo do tempo na obra de Davis. Pereira e O’Donnell demonstram que Natalie Davis, ao aderir à perspectiva antropológica, elegeu a metodologia de análise mais microscópica, o que permitiu que a autora revelasse mundos não contemplados pelas grandes narrativas históricas, bem como segmentos sociais não contemplados por elas.
Iára Quelho de Castro e Vera Lúcia Ferreira Vargas procuram mostrar que novas ou renovadas concepções no campo da Antropologia permitem abordagens diferenciadas dos povos indígenas, que incluem suas percepções e adotam uma perspectiva histórica, possibilitando uma recomposição de suas experiências que escapa da história construída sob um único ponto de vista. O “desaparecimento” do grupo indígena Kinikinau, em Mato Grosso do Sul, constituiu-se como um produto histórico e teórico que se esfacelou frente à sua presença na sociedade brasileira e que invalidou todos os prognósticos pessimistas quanto à sua permanência. Trata-se, especificamente, de se apontar os recursos teórico-metodológicos que permitem conferir visibilidade a povos considerados desaparecidos, a partir da experiência da escrita da história dos Kinikinau, que exigiu um diálogo entre distintos campos dos saberes.
Finalmente, Cristiane de Assis Portela e Mônica Celeida Rabelo Nogueira propõem uma análise do indigenismo a partir de narrativas de autoria indígena que sinalizam novas epistemologias. Para tanto, investigam trabalhos produzidos a partir da inserção destes sujeitos coletivos nas universidades. O artigo apresentado foi produzido por meio da interlocução entre uma historiadora e uma antropóloga, rememorando a experiência compartilhada pelas autoras na orientação de trabalhos produzidos por estudantes indígenas em um curso de mestrado na Universidade de Brasília. Assim, a compreensão do indigenismo é realizada a partir de uma noção de autoria indígena que sinaliza novas epistemologias na contemporaneidade. Consideram, ainda, que a produção acadêmica de pesquisadores indígenas ainda não foi devidamente visibilizada ou analisada em suas particularidades, procurando explorar aspectos que reiteram a pertinência de reconhecer a autoria indígena como parte da ação política desses sujeitos no campo do indigenismo.
Os artigos reunidos para o dossiê, em suas particularidades, trazem uma contribuição para a multifacetada relação entre História e Antropologia. Com vigor, demostram que a perspectiva antropológica influencia historiadores e vice e versa. Não por coincidência, dos quatro artigos selecionados, três estão voltados à temática indígena, o que certamente demanda um diálogo transdisciplinar para que questões cruciais sejam mais bem compreendidas, tais como o poder colonial, as novas experiências de alunos indígenas nas universidades brasileiras e a ameaça de extinção de povos. O quarto artigo, que trata da trajetória de uma historiadora canadense que trabalhou em universidades estadunidenses, demonstra que a Antropologia pode contribuir enormemente para a constituição dos objetos da História.
Desejamos a todos boas leituras e instigantes reflexões sobre História e Etnologia!
Joana A. Fernandes Silva – Universidade Federal de Goiás.
Giovani José da Silva – Universidade Federal do Amapá.
SILVA, Joana A. Fernandes; SILVA, Giovani José da. Apresentação. História Unisinos, São Leopoldo, v.20, n.2., maio / agosto, 2016. Acessar publicação original [DR]
História e Historiografia da Ciência: abordagens e Diálogos Possíveis | Temporalidades | 2016
A histografia é uma reflexão sobre a história escrita. Ou seja, a história da história deveria ajudar os historiadores a refletir sobre sua prática. E refletir aqui, significa voltar-se sobre si mesmo. A história das ciências também tem como seu principal desafio fazer com que os cientistas, e toda a sociedade, sejam capazes de refletir sobre essa prática basilar da sociedade moderna que é a ciência.
Thomas S. Kuhn, em 1962, na introdução de sua obra seminal: “A estrutura das revoluções científicas”, apontava tal papel fundamental que a história das ciências pode desenvolver ao afirmar que: “Se a história fosse vista como um repositório para algo mais do que anedotas ou cronologias, poderia produzir uma transformação decisiva na imagem de ciência que atualmente nos domina.” [2] Leia Mais
Estudos africanos no Brasil: um diálogo entre História e Antropologia / História – Questões & Debates / 2015
Na última década testemunhamos um aumento importante de publicações (livros, artigos, coletâneas, etc.) sobre política, economia, cultura e história das sociedades africanas, tanto no campo da literatura, linguística, como no das ciências políticas e relações internacionais, porém, o incremento mais significativo aconteceu nos campos da história e antropologia. Este fenômeno não é aleatório, responde a um esforço comum de intelectuais, ativistas, acadêmicos e acadêmicas, entre tantos outros, de implementar uma reforma político epistemológica no campo da educação no Brasil, reforma que finalmente teve seu sustento legal na lei 10693 de 2003 e que envolveu, entre outras coisas, saldar uma dívida histórica ao estabelecer a obrigatoriedade de inclusão nos planos de ensino em todos os níveis, da história e cultura africana e afro-brasileira. O porquê desta dívida histórica, mesmo sendo uma questão de suma importância, não será tema deste dossiê, acreditamos que chegará um momento, neste multifacetado processo, de confrontar-se com os porquês destas omissões e embora já existam indícios bastante eloquentes na história nacional brasileira para compreender a exclusão dos currículos escolares da história e cultura africana e afro-brasileira, este debate será possível quando o campo dos “estudos africanos no Brasil” termine o seu processo de consolidação.
Em relação a este processo de consolidação dos “estudos africanos” na atualidade, precisamos antes fazer o devido reconhecimento do trabalho sistemático da produção acadêmica sobre o mundo africano, de uma série de instituições no âmbito acadêmico brasileiro desde a década de 1960 como o Centro de Estudo Afro Asiáticos da Universidade Cândido Mendes, ou o Centro de Estudos Afro –Orientais da Universidade Federal da Bahia, ou finalmente o Centro de Estudos Africanos da Universidade de São Paulo. Feito isto, precisamos explicitar esta ideia de processo relacionada ao significativo fenômeno de ampliação destes estudos para áreas de conhecimento que antes mostravam um manifesto desinteresse pela temática como seria o caso particular da filosofia, disciplina que por considerações de ordem histórica, infelizmente continua com o dogmático exercício da repetição de um dispositivo hegemônico de transferência de conhecimento eurocentrado. Mas também pela ampliação das escolhas sobre o que pesquisar relacionado às sociedades africanas, saindo de uma vez do enquadramento que significaram os estudos sobre escravidão, os quais se por um lado contribuíram de forma substancial para desmontar os modelos racistas de compreensão da história da população afrodescendente no Brasil, por outro, voluntária ou involuntariamente, condicionaram as escolhas de outros recortes e temáticas, também importantes para a compreensão diacrônica e sincrônica desta mesma população.
É nesta interface, possibilitada em grande parte também pela obrigatoriedade estabelecida pela legislação, que a produção bibliográfica nos campos da história e da antropologia aumentará e se diversificará consideravelmente. E este evento trará uma série de outras implicações no âmbito da pesquisa como, por exemplo, o caráter interdisciplinar que começa a ter maior peso epistemológico, assim como a ampliação dos recortes espaço temporais e temáticos, desta vez majoritariamente centrados no continente africano, começarão a ser privilegiados por pesquisadores e pesquisadoras tanto no nível da pós-graduação como também já na graduação, em projetos de iniciação científica.
Todos estes desdobramentos, ou “momento expansivo” [1] da formação deste campo de estudos africanos no Brasil, têm contribuído significativamente também para desessencializar a ideia da África como uma única totalidade exótica e a-histórica, incentivando a busca por um paradigma que explique integralmente os problemas africanos, redimensionando debates candentes, como os que envolvem a ansiedade em torno das relações raciais, revisitando a temática afro- -brasileira nos discursos sobre a formação nacional e ressignificando a própria leitura e difusão de clássicos africanistas que constituem o cerne desta área de interesse.[2] Ao mesmo tempo, essa abertura pressupõe uma multiplicação de perspectivas e a busca por explicações pluricausais, considerando a diversificação dos contextos / situações de pesquisa, as possibilidades e (ou) as limitações da língua portuguesa como veículo de acesso e de expressão de conhecimentos sobre o continente africano, e os vários diálogos estabelecidos em cenários de produção de saber transnacionais. O conjunto de artigos selecionados neste dossiê pretende ser uma amostra importante do mencionado no parágrafo anterior.
No presente dossiê, o artigo de Michel Cahen aponta para uma crítica ao conceito “pós-colonial – póscolonial – pós (-)colonial” na produção historiográfica em torno dos países do PALOPS (Países de Língua Oficial Portuguesa). Para ele, na maioria das produções, talvez dos últimos 30 anos, o conceito “pós” remeteria apenas a uma definição cronológica e não situacional. Esta opção traria consigo dois problemas fundamentais. O primeiro seria a superestimação do discurso em volta das elites independentistas nas antigas colônias portuguesas em detrimento das formações sociais realmente existentes. Como consequência desta opção se produziria uma espécie de hipertrofia historiográfica que impediria pensar os processos a partir das suas contradições próprias. Para explicar esta defasagem Cahen questiona, de maneira bastante pertinente, as leituras sobre os processos que cada movimento independentista teria vivido na construção da sua realidade política pós-libertação, constatando que essa leitura historiográfica ao se guiar apenas pelo discurso doutrinário dos partidos não só não conseguiriam explicar o porquê destes movimentos terem se identificado inicialmente com os princípios do socialismo, para tempo depois assumir ferrenhamente os princípios neoliberais tornados hegemônicos nos finais dos anos 80 do século XX. A explicação simplista da derrota dos princípios socialistas seria para Cahen insuficiente, pois se fosse uma derrota, esta acarretaria a substituição da elite “socialista” por uma outra. Entendendo que discursivamente socialismo e neoliberalismo seriam duas ideologias antagônicas, este antagonismo não impediu que praticamente em todos os países africanos ainda governem os mesmos partidos que iniciaram a libertação.
Outro aspecto que o autor chama atenção é que a partir da concepção cronológica do “pós-colonial” tanto a formação do partido único assim como seu imaginário político e social e o papel do Estado na consolidação do poder destes partidos, todos estes processos caríssimos à compreensão da realidade política contemporânea das antigas colônias portuguesas, são explicados com base em concepções ideológicas atreladas ao marxismo-leninismo, desconsiderando voluntária ou involuntariamente que estas formações políticas e seus próprios imaginários teriam uma origem múltipla e não seriam apenas opções dos partidos únicos governantes na atualidade, mas também de seus opositores políticos derrotados durantes as respectivas guerras civis que assolaram os países no pós-independência. Um terceiro e último aspecto que o autor traz ao debate é uma prática problemática na historiografia chamada “lusófona”, precisamente porque para o autor as realidades da cada um dos países ocupados pelos portugueses estariam mais vinculadas à sua localização regional e muito pouco à própria presença lusitana. Este aspecto é significativo, pois ao tornarem estes países “mais africanos e menos ex-portugueses” se abriria um leque de outras possibilidades de análise para entender as realidades sociais e políticas dos países em questão. Estes questionamentos nos parecem substanciais para uma revisão dessa produção historiográfica, daí a importância de incluir este texto neste dossiê.
No caso de Osmundo Pinho, a análise aponta para as vicissitudes e contradições dos processos de construção jurídica de estatutos como efeito da extensão da malha administrativa na produção do estado colonial português em Moçambique. Usando fontes e registros oficiais específicos da década de 40 do século XX, o autor discorre sobre as dificuldades e contradições do próprio processo de produção de estatutos jurídicos, entendendo o período como marcado por um contexto de debate antropológico e político-jurídico sobre as colônias africanas de maneira geral. Neste contexto conceitos como os de “razão etnológica” e “pluralismo jurídico” definiram as formas e condições do debate entre o funcionalismo antropológico britânico “triunfante” e um evolucionismo em vias de se tornar anacrônico aos olhos das ciências humanas, as mesmas se constituindo em processo acelerado. Segundo o autor, no mesmo contexto é possível identificar alguns aspectos substanciais ao processo de colonização como seria o caso da racialização (culturalização) africana, a qual teria caminhado ao par das estratégias de dominação política e à necessidade de elaboração de um arcabouço jurídico conceitual, capaz de conferir inteligibilidade aos processos administrativos, associando a diferença cultural à diferença racial como instrumento político de dominação. Neste contexto o funcionalismo antropológico britânico teria jogado um papel significativo na produção de uma “miragem” em relação aos sistemas sociais africanos paralelos aos criados pelo sistema colonial, outorgando aos primeiros um caráter homogêneo e criando a ideia da falta de temporalidade histórica das sociedades africanas, entregando de maneira insuspeita talvez a melhor justificativa ao discurso colonial. Outro aspecto bastante significativo na análise de Pinho está relacionado a dois discursos aparentemente antagônicos e separados temporalmente. Antagônicos por serem um eclesiástico e outro “socialista”, no entanto, e como mostra Pinho, o centro de cada um destes discursos apontaria para uma visão civilizatória e iconoclasta das práticas africanas referidas a condenar e justificar a desarticulação da poligamia, o lobolo e o levirato, entre os “usos e costumes” nativos mais atacados. Esta “semelhança civilizacional” dos discursos, mesmo apontando para projetos, em teoria, divergentes e antagônicos, torna o texto de Pinho da maior relevância para uma revisão histórica desde uma perspectiva mais situacional, perspectiva que é defendida neste dossiê.
O trabalho de Jefferson Olivatto da Silva incursiona no campo da medicina como dispositivo de controle dos corpos colonizados e as respostas africanas a estas práticas. Localizando seu trabalho nas regiões da atual Zâmbia e o Malawi durante finais do século XIX e começo do XX, e usando uma perspectiva de longa duração o autor reflete sobre os efeitos que a ocupação militar e o desenvolvimento e ingerência da medicina tropical nas políticas de reassentamento e controle de doenças – todos estes entendidos como agentes da colonização efetiva dos territórios recém mencionados – terão no desenvolvimento das resistências aos processos de mobilidade forçada que atingiram as populações nativas. Formas de resistências que durante muitos anos não foram consideradas enquanto tais pela historiografia africanista. Com efeito, como demonstra o autor, a situação colonial que descreve evidencia o não reconhecimento do comportamento social evasivo e adaptativo das populações afetadas pelas políticas higienistas, sob e égide do combate às epidemias que afetavam tanto a produção quanto o uso da mão de obra nativa, já que para os administradores, coletores de impostos, militares, missionários e médicos estas práticas eram entendidas como manifestações de esquiva pertencentes a um universo desprezado sem função social significativa. Um aspecto significativo ressaltado pelo autor é atrelar estes processos de construção de formas evasivas às políticas invasivas da administração colonial, devido ao seu caráter exógeno e violento, às formas atuais de resistências às políticas de controle de doenças como o HIV / SIDA. Novamente são evidenciados aqui práticas e agentes em um constante e tensionado relacionamento por definir o poder de autodeterminação frente ao controle sobre os corpos dos colonizados. A perspectiva de longa duração como princípio metodológico para a análise dos eventos e seus efeitos na configuração das sociedades africanas durante a colonização abre-nos uma nova possibilidade de revisar a história sobre o continente africano.
Quase no mesmo viés, Sílvio Correia, se debruça sobre como ciência e literatura se valeram de saberes locais para produzir um conhecimento rotulado como científico sem, contudo, reconhecê-los enquanto um conjunto de saberes, práticas e posturas com validade social nos lugares em que foram produzidos. Para tal centrará sua obra no período da descoberta do maior primata até então conhecido: o gorila. De acordo com sua linha de análise, se antes não havia consenso sobre o parentesco entre os primatas, a descoberta do gorila fomentou polêmicas e especulações que se inscrevem na produção de saberes que viriam a servir de suporte ideológico ao empreendimento colonial à época da “Partilha da África” e também ao longo da primeira metade do século XX. Este evento também incentivará o desenvolvimento de uma série de novas áreas consideradas naquele momento como científicas como os estudos de craniometria. Outro paradigma que ganhará força será a ideia de raças degeneradas, a qual assumirá um lugar importante no campo disciplinar da antropologia física. O “descobrimento” deste primata acentuará a tendência a comparar anatomicamente as “raças humanas mais degeneradas” com os macacos. Este aspecto terá desdobramentos muito mais complexos, pois de acordo com Correia, se na Antiguidade a comparação era entre o homem e o macaco, no pensamento moderno esta se racializa e se torna cada vez mais uma comparação entre o negro e o macaco. Para a antropologia do final do século XIX, a comparação entre “hotentotes”, “pigmeus”, gorilas e chimpanzés foi uma prática comum dos estudos de anatomia comparada. Mas alguns estudos extrapolavam a comparação anatômica, estabelecendo comparações em termos de comportamento. Mesmo que não houvesse consenso na comunidade científica, os “zoos humanos” não hesitavam em exibir “bosquímanos” e “pigmeus” como elos da evolução humana.
Finalmente o trabalho de Lorenzo Macagno analisa duas narrativas sobre o apartheid da década de 1980. O primeiro destes relatos engloba múltiplos microrrelatos: trata-se do trabalho do antropólogo norte-americano Vincent Crapanzano sobre os africâneres (ou bôeres) da África do Sul. Naquele momento Crapanzano teria realizado uma etnografia “plurivocal”, “polifônica” e “dialógica”, segundo o próprio autor um exercício de questionamento da “autoridade” etnográfica, segundo Macagno, uma discussão presente no debate pós-moderno da época. Sobre este aspecto bastante significativo para a produção antropológica, Macagno questiona pertinentemente quais são os limites do relativismo antropológico e das abstenções do juízo em relação a um regime que não admitia ambiguidade? Apesar das dificuldades que esta etnografia coloca para o debate disciplinar, Crapanzano teria conseguido mostrar alguns sinais diacríticos da identidade construída pelos próprios africâneres como a língua e seu distanciamento dos ingleses se colocando como um tipo de vítima do “imperialismo” inglês, eludindo, desta forma, uma importante questão: a relação com os negros sul-africanos. A outra narrativa é do jornalista sul-africano Rian Malan, sobrenome pertencente a “dinastia” Malan que fora um dos nomes que em 1948 implementara o apartheid na África do Sul. Uma das primeiras questões que Macagno questiona é: “é possível ser um Malan e ser contra o apartheid?”. Na análise do livro o autor descreve o caráter auto-irônico de Malan ao se confrontar com um sistema que por lei o privilegiava e que por outro lado gerava desconforto a uma pequena elite branca devido à violência praticada contra a população negra. Segundo Macagno, para Rian Malan, apesar das boas intenções, o papel dos brancos na luta anti-apartheid estava condenado por uma “lei de cumplicidade genética”. O livro do jornalista apresenta uma crônica das violências cotidianas decorrentes do apartheid. Malan articula e integra a descrição da violência política com as consequências que ela mesma produz na subjetividade dos atores envolvidos. Malan, como jornalista, vai em busca do saber antropológico. Sem cair no essencialismo – tão criticado por Crapanzano – traz ao seu universo de compreensão as forças simbólicas que ainda operam na África do Sul, procurando encontrar uma coerência e um sentido naquilo que, aparentemente, resulta arbitrário e caótico. Em suma, Macagno tentará refletir a partir destas duas narrativas sobre quais seriam as estratégias estilísticas, políticas e éticas escolhidas no momento de descrever o apartheid. Quais as consequências e os dramas morais produzidos por um sistema de segregação que não admitia ambiguidades classificatórias, nem dissidências políticas ou étnicas? Desde uma perspectiva comparativa o autor analisa estas duas narrativas, indagando sobre os efeitos do apartheid na subjetividade individual e coletiva de uma sociedade dividida.
Esse número da Revista História: Questões & Debates conta também com a sessão de artigos. O primeiro deles, de autoria de Valeska Alessandra de Lima e Dóris Bittencourt Almeida, é produto da pesquisa “Escritos de alunos: memórias de culturas juvenis (1940- 1960)”, que toma como objeto de investigação os periódicos produzidos por alunos de diferentes instituições escolares de Porto Alegre / RS. O estudo vincula-se aos pressupostos teóricos da História Cultural e inscreve-se no campo da História da Educação em suas interfaces com a Imprensa Escolar e a História das Instituições Educacionais. O foco da análise foi perceber as marcas deixadas pelos jovens no periódico “Colunas”, anuário produzido pelo Instituto Porto Alegre / IPA, procurando distinguir indícios de saberes e práticas escolares que evidenciam as identidades daqueles sujeitos. O segundo texto pertence a Christiane Heloisa Kalb e Mariluci Neis Carelli, analisando a importância do patrimônio industrial, especialmente no que se refere às ferramentarias de moldes e matrizes para a cidade de Joinville / SC. O artigo tenta mostrar a ligação entre a identidade dos entrevistados, em sua maioria ferramenteiros ativos ou já aposentados, com a cidade de Joinville conhecida por sua pujança industrial, por esse motivo merecedora de estudos mais aprofundados sobre o patrimônio cultural industrial em seus aspectos materiais e imateriais, a partir das memórias desses profissionais ferramenteiros. O último trabalho nesta sessão é de Helder Henriques e Carla Vilhena, que aponta para o estudo dos comportamentos chamados antissociais na infância e juventude em Portugal entre as décadas de 70 e 90 do século XX. Pretende identificar e analisar os principais discursos relacionados com este problema social no arco temporal previsto. Para isso apresentam o quadro histórico de evolução do sistema de justiça de menores em Portugal ao longo do novecentos, para depois tentar compreender as conceições de risco, tendências e influências sociopedagógicas e as formas de prevenção e de regeneração em articulação com o discurso do Estado, da Escola e da Família.
Notas
1. Marques, Diego Ferreira e Jardim, Marta D. da Rosa. “O que é isto: ‘a África e sua História’”? In: Trajano Filho, Wilson (Org.). Travessias Antropológicas: estudos em contexto africanos. Brasília: ABA Publicações, 2012. pp.31-62.
2. Chegen, Michael “Las teorías de la ciencia política como un obstáculo para entender el problema de la violencia política y de Estado en África”. ISTOR, Año IV, Núm. 14, 2003, pp. 32-47.
Héctor Guerra Hernandez
HERNANDEZ, Héctor Guerra. Apresentação. História – Questões & Debates. Curitiba, v.62, n.1, jan. / jun., 2015. Acessar publicação original [DR]
História e Filosofia: elos e confrontos entre genealogia e hermenêutica / Faces da História / 2014
História e Filosofia: elos e confrontos entre genealogia e hermenêutica na historiografia
Em seu segundo número, a revista Faces da História apresenta o dossiê História e Filosofia: elos e confrontos entre genealogia e hermenêutica.
As interfaces entre história e filosofia sempre se deram de forma mista: por vezes com importantes e produtivas interações; em outros momentos, todavia, uma surdez mútua ou mesmo rejeições caracterizaram esse difícil convívio.
Na historiografia contemporânea, dois importantes filósofos contribuem para a emergência de novas formas de diálogo entre os profissionais de ambas as disciplinas: Michel Foucault e Paul Ricoeur. A genealogia foucaultiana e a hermenêutica ricoeuriana constituem hoje importantes referenciais aos historiadores que se dedicam a uma reflexão crítica dos fundamentos históricos, epistemológicos, políticos e éticos que envolvem a produção e a recepção de um texto historiográfico.
Os trabalhos desenvolvidos por Michel Foucault buscaram, na esteira da genealogia nietzscheana, descrever as relações históricas entre saber e poder. Sua relação com os historiadores inicia-se desde a publicação de seu primeiro livro, História da Loucura na idade clássica, que, um ano após sua publicação, em 1962, recebeu uma resenha junto ao periódico então intitulado Annales. Économies, Sociétés, Civilisations, assinada por Robert Mandrou e Fernand Braudel. Esta relação se intensificou, principalmente, após a década de 1970, com a chamada terceira geração dos Annales. Se, por um lado, historiadores como Jacques Le Goff e Paul Veyne procuraram exaltar os textos de Foucault como um novo modo de pensar e escrever a história, por outro, historiadores como François Dosse e Carlo Ginzburg, por exemplo, não pouparam críticas às suas arqueologias e genealogias, sublinhando que elas possuíam caráter profuso e estetizante.
Ainda que a filosofia foucaultiana não tenha estabelecido bases teórico-metodológicas a serem seguidas, é inegável a presença desse pensamento permeando as discussões recentes tanto em torno do estatuto do saber historiográfico quanto contribuindo com problemas à prática de produção do conhecimento histórico; um uso como caixa de ferramentas, tal como o próprio Foucault propunha a leitura de seus trabalhos.
Quanto a Paul Ricoeur, após a publicação de Tempo e Narrativa (1983- 1985) e, principalmente, após A memória, a história, o esquecimento (2000), sua filosofia tornou-se mais conhecida entre os historiadores, ainda que a apropriação desta pela história seja bastante variável. Autores como Roger Chartier, François Hartog e Antoine Prost referem-se à filosofia ricoeuriana para debater questões ligadas às conexões e divergências entre memória e história, ao papel da narração em história, e para defender o discurso histórico enquanto produção que almeja a verdade, em oposição aos referentes ficcionais. Contudo, essa apropriação se dá ainda de forma parcial, cheia de reticências. Já outros historiadores como François Dosse, Patrick Garcia e Christian Delacroix concedem um espaço bem maior para a filosofia ricoeuriana: o pluralismo interpretativo, o círculo mimético e a hermenêutica histórica tornam-se referenciais em nível fundamental para a produção do conhecimento histórico com estes autores. As apropriações, críticas e dissociações entre a filosofia de Ricoeur e os historiadores são múltiplas e desiguais.
Genealogia e hermenêutica, portanto, tornam-se duas efêmeras rubricas. Elas cumprem o esforço de construir uma direção, ainda que provisória, a um conjunto de relações diversificadas entre a filosofia e a história. Relações estas que não se fiam somente nas figuras de Foucault e Ricouer.
Poderíamos, diacronicamente, nos remeter também aos diálogos e críticas de Friedrich Nietzsche a Friedrich Schleiermacher, aos debates suscitados por Wilhelm Dilthey, à crítica documental da escola metódica, à sociologia de Max Weber, às leituras desiguais da obra de Martin Heidegger por Hans-Georg Gadamer e pelos próprios Michel Foucault e Paul Ricoeur, a filosofia de Gilles Deleuze; enfim, as ressonâncias entre genealogia, hermenêutica, História e Filosofia são inúmeras e fundamentais para a historiografia contemporânea.
Os quatro artigos reunidos neste dossiê, assim, demonstram o quão múltiplas são as temáticas e as abordagens possíveis.
De início, temos a contribuição de Fabrício Pinto Monteiro que, a partir das memórias de alguns autores / militantes do chamado anarquismo pós-estruturalista, procura pensar as interfaces entre propostas políticas e formas de escrita da história. Para isso, perpassa pelas narrativas de diversos autores – cuja orientação política se alinha a essa renovação da política ácrata emergente na segunda metade do século XX -, e destaca a importância que os pensamentos de Max Stirner, Friedrich Nietzsche e Michel Foucault tiveram na constituição dos trabalhos desses intelectuais.
As relações entre a intelectualidade e a sociedade são o principal eixo da reflexão desenvolvida por Diogo Quirim. O autor propõe discutir o papel do intelectual a partir de uma perspectiva que não o aparte de sua imersão na sociedade e no tempo. O texto perfaz um duplo movimento: em primeiro lugar, o autor se debruça sobre o mito da caverna, de Platão, e sugere, como alternativa a esta imagem, a noção de kairós – oportunidade, ocasião ou circunstância particular -, de Isócrates, que propõe uma filosofia que não precisaria afastar- se da multidão para ter sua legitimidade; em seguida, esse debate é atualizado em função das diferentes formas pelas quais Carlo Ginzburg e Dominick LaCapra compreendem a historiografia.
Lucas Almeida Pereira, em seu texto O ser e a história: Uma análise da ontologia histórica em A memória, a história, o esquecimento de Paul Ricoeur, trata de um tema essencial para a historiografia contemporânea: a ontologia histórica de Ricoeur. Os debates epistemológicos dos historiadores há muito contornam as questões ontológicas, seja em função do distanciamento que se estabeleceu entre história e filosofia ao longo do século passado, seja para evitar os conflitos relacionados às teorias da história. O autor aborda com bastante clareza os temas da memória, narrativa, ontologia e representância na filosofia de Ricoeur e apresenta as possibilidades abertas por esses debates aos historiadores de ofício.
O artigo intitulado O Conceito Dialético de Interpretação na Filosofia Hermenêutica de Paul Ricoeur, de Filipe Caldas O. Passos, organiza-se em torno da filosofia de Ricoeur e da forma como ela abre espaço para vários níveis de análise, diferenciando-se por isso tanto da tradição hermenêutica quanto da tradição crítica. Demonstra tal objetivo a partir de certo elo que Ricoeur estabelece entre epistemologia e ontologia, tendo como foco o conceito de interpretação e os níveis dialéticos relativos a essa operação.
Além desses quatro artigos, João Rodolfo Munhoz Ohara nos apresenta sua tradução ao texto Tudo está estremecido: por que a filosofia da história floresce em tempos de crise?, de Hermann Paul – professor de Teoria da História da Universidade de Leiden, Holanda.
Por fim, o dossiê encerra-se com a entrevista do professor Dr. José Carlos Reis. Professor da Universidade Federal de Minas Gerias e com uma vasta contribuição bibliográfica às áreas de Teoria e Filosofia da História e História da Historiografia, Reis aborda o tema com o conhecimento de quem se dedica já há um bom à área. As questões abordadas são tratadas de forma franca e com a clareza que uma entrevista deve comportar. Sem dúvida uma contribuição impar para os estudantes e pesquisadores da área de Teoria e Filosofia da História.
Boa leitura!
Assis, 20 de dezembro de 2014
Hélio Rebello Cardoso Júnior
Rodrigo Bianchini Cracco
Tiago Viotto da Silva
Editores
CARDOSO JÚNIOR, Hélio Rebello; CRACCO, Rodrigo Bianchini; SILVA, Tiago Viotto da. Apresentação. Faces da História, Assis, v.1, n.2, jul / dez, 2014. Acessar publicação original [DR]
Didática da História e Ciência Histórica: possibilidades e limites da ciência do aprendizado histórico / Revista de Teoria da História / 2014
A organização de um dossiê sobre Didática da História em uma revista de Teoria da História não é algo que pode ser considerado comum, cotidiano, banal. Por muito tempo, a didática da história foi considerada uma área estranha à ciência histórica e aos historiadores. Se hoje a teoria da história se interessa pela didática da história, isso ocorre tanto porque a teoria tem ampliado a sua compreensão sobre a ciência histórica, como porque a didática da história tem legitimado a sua importância no interior dessa ciência.
A teoria da história, enquanto meta-teoria (Historik), investiga os fatores e fundamentos da ciência histórica. Ao perceber que tal ciência surge da própria vida humana no presente e exerce sobre ela uma função de orientação temporal, ela torna a didática uma de suas preocupações fundamentais. Ao mesmo tempo, a didática da história, ao deixar de ser uma simples reflexão sobre como ensinar história nas escolas e passar a se preocupar com a relação entre a história (todas as histórias e dentre elas a ciência histórica) e a vida, torna-se uma área inerente ao pensamento histórico e relevante para a teoria da história. Leia Mais
Discursos da História e Linguagens da História da Arte / História, Histórias / 2013
A história e a história da arte, embora possam parecer tão próximas, possuem cada uma objetos e métodos próprios. Nos trabalhos que se seguem, não se pretende “chover no molhado” retomando os limites e problemáticas que são próprios a cada uma das disciplinas. Nossa intenção, ao nos aproximarmos dos discursos produzidos pela história e pelas linguagens expressadas pela história da arte, é a de nos determos mais atentamente ao tempo, ao espaço e à representação, categorias que são caras a ambas as disciplinas.
A partir dos anos 70, a história passou a encontrar no objeto de arte testemunhos importantes dos eventos históricos. No deslanchar desse processo, vivido paralelamente com a crise dos paradigmas, os historiadores da arte Aby Warburg, Erwin Panofsky e Meyer Schapiro tornaram-se referências teóricas essenciais para os historiadores, em especial os medievalistas. A história da arte por sua vez, ao organizar a pesquisa e o ensino, apoderou-se, não sem alguma resistência, das “idades” da história – antiga, medieval, moderna e contemporânea – como marco temporal na escolha dos temas de estudo. Não se tem conhecimento de que os historiadores e os historiadores da arte tenham se reunido para discutir os possíveis pontos de interseção das duas disciplinas.1
Para os historiadores, as possibilidades abertas por Warburg, Panofsky, e Shapiro permitiram o acesso a uma nova dimensão da história, constituída pelo imaginário e o simbólico, o que renovou em especial a história política.2 Para os historiadores da arte, a despeito da reação de alguns profissionais com relação a uma periodização que atrela a história da arte à história, alguns historiadores da arte têm se mostrado inflexíveis quando o objeto de arte analisado escapa aos padrões temporais ou mesmo regionais impostos tradicionalmente.3 A opção por uma história da arte que ignore as balizas temporais da história e busque nos estudos regionais, ou estilísticos, uma temporalidade longa revelada pelas formas, enfrenta quase sempre uma reação desfavorável. Enfim, para muitos, a história da arte continua a ser vista como uma sucessão de ciclos de vida, morte e renascimento. “O discurso histórico não ‘nasce’ nunca. Ele sempre recomeça”.4
Desde o final do século XX, nos anos 90, Georges Didi-Huberman sacudiu com veemência as velhas certezas dos historiadores da arte e dos historiadores. Dentre elas, a crença inabalável na vitória sobre o anacronismo. Em Devant le Temps. Histoire de l’art et anachronisme des images, Didi-Huberman demonstrou com clareza que o tempo da imagem não é o mesmo da história.5
Este dossiê se inspirou em questões que tocam a história e a história da arte. Mais precisamente, o discurso da história e a linguagem da história da arte. O ponto de partida é Brasília, cidade capital, por excelência, dos espaços. Um espaço que foi pensado, segundo Elisa de Souza Martinez, para o “florescimento de um metadiscurso sobre a história do pensamento brasileiro”, um “laboratório de novas ideias” que, no entanto, não se concretizou. Estudando os escritos de Mário Pedrosa, a autora colheu uma questão, Brasília ou Maracangalha? e a transformou no fio condutor de suas reflexões, onde buscou abordar o confronto entre a utopia e a realidade a partir das proposições de Lúcio Costa, “o inventor de Brasília”.
A proposta deste dossiê se inspirou, portanto, no espaço idealizado, ou se preferirmos, na utopia da nova capital federal. Uma espécie de terra nova, prenhe de criatividade e reprodutora dos mais variados discursos e linguagens. Uma oportunidade única para traçar “os limites e os intercâmbios entre as artes plásticas e/ou visuais, rompidos no início do século XX”, conforme lembra Roberto Conduru ao abordar a realização do Congresso da AICA (Associação Internacional de Críticos de Arte) em Brasília, cujo tema foi “A cidade nova e a síntese das artes” – um tema rebatido por Lúcio Costa, que ponderou tratar-se de “integração mais do que síntese”. Em Razões da Nova Arquitetura, o arquiteto urbanista afirmou que “arquitetura, escultura, pintura, formam um só corpo coeso, um organismo vivo de impossível desagregação.
As preocupações utópicas que cercaram a construção de Brasília, tão contemporâneas e presentes, fazem, ao mesmo tempo, parte do passado. Giulio Carlo Argan escreveu que “a ideia de cidade ideal está profundamente arraigada em todos os períodos históricos, sendo inerente ao caráter sacro anexo à instituição e confirmado pela contraposição recorrente entre cidade metafísica ou celeste e cidade terrena ou humana”.6 Em História da Cidade como História da Arte, Argan afirma que “cenário e sujeito da história, construída a partir de um modelo no qual as tradições culturais expressam valores, a cidade projeta a sua própria história através de múltiplas facetas que revelam o que são, o que deixaram de ser e o que pretendem vir a ser”.7 Assim, tendo Brasília como inspiração inicial, as palavras de Argan foram tomadas por empréstimo, buscando-se “no cenário e sujeito” as múltiplas facetas que permitam compreender os discursos da história e as linguagens da história da arte.
A ideia do espaço urbano construído “de acordo com modelos e tradições que expressam valores que oscilam no que são, no que deixaram de ser e no que pretendem vir a ser” é evidenciado por Françoise Vergneault-Belmont, para quem a planta de uma cidade é o testemunho de um passado. Cartógrafa por formação, Vergneault-Belmont decifra nos traçados das ruas uma lógica de um itinerário ou de um limite. Para ela, as plantas da Paris permitem compreender as relações entre a sociedade e o espaço. Debruçando-se com um rigor fino sobre três séculos de planos traçados para a capital francesa (séculos XVI, XVII e XVIII), ela concluiu que as plantas são denominadas de portrait8, do verbo pourtraire. No sufixo da palavra, composta por dois elementos, o verbo traire, tirer, assume seu antigo sentido, dessiner, tirer un trait. Isto é, segundo a autora, a planta é como um retrato de uma pessoa, ou do rei, ultrapassando a descrição para revelar a natureza e a essência do que é representado. Isto significa que desde a sua origem, em suas palavras, estabeleceu-se um “estreito parentesco semântico e simbólico entre a planta e o retrato como efígies do poder”. Os sucessivos planos da cidade de Paris procuraram interferir diretamente na sua urbanidade, eram projetos urbanos nos quais Vergneault-Belmont enxergou um testemunho da história.
É sobre testemunhos que nos fala Susani Silveira Lemos França, referindo-se aos cronistas quatrocentistas e viajantes estrangeiros que passaram por Lisboa no século XV. Esses escritos contribuíram de forma decisiva para a “consolidação de um passado selecionado” que fez de Lisboa “a cabeça” de Portugal. Susani França os vê como “peças-chave” na configuração da imagem e da história de Lisboa. Ela chama atenção para o fato de que em uma época em que outras cidades marítimas, tais como Veneza, Gênova, Ceuta e Constantinopla, eram descritas minuciosamente, Lisboa não era vinculada ao oceano: a sua história interna se sedimentava na memória religiosa e nas condições comerciais. No discurso da crônica, Lisboa aparece como o palco de cenas memoráveis que envolvem o rei e a corte régia. Ressalta-se, igualmente, o valor bélico e os eventos memoráveis, tais como as procissões e outras manifestações sagradas ou políticas vinculadas às cortes. Mas, como se sabe, a corte era itinerante, passando, portanto, por outras cidades. A beleza das cidades associava-se então, ao que nelas acontecia e a como os seus habitantes atuavam. A ordenação dos edifícios e a arquitetura (tão cara aos historiadores da arte) só eram citadas pelos cronistas enquanto cenários de acontecimentos extraordinários, tais como o sepultamento de relíquias e o albergamento das cortes. São, portanto, questões internas memoráveis que promovem Lisboa como “cidade grandíssima e cabeça de Portugal”, e não como cidade marítima.
A memória religiosa e comercial das cidades modernas é fruto de um movimento longo da memória coletiva. Memória, aqui, compreendida como vida em permanente mudança. A chamada modernidade não renasceu das cinzas de um passado sepultado, e, muito menos, rompeu com a Idade Média. Para os medievais, a notoriedade de uma cidade estava vinculada às suas catedrais, nas quais se guardavam um tesouro de objetos preciosos, incluindo as relíquias de um santo. A riqueza ostentada pela catedral e a importância das feiras realizadas na praça da cidade asseguravam a grandeza e a celebridade da cidade.
Clara Bargellini e David J. Weber, estudando o território das missões na América Espanhola, demonstram com propriedade como franciscanos e jesuítas transportaram para o Novo Mundo práticas religiosas que foram constituídas ao longo da Idade Média e continuaram vivas até o século XVIII. Em La Maison Dieu, Dominique Iogna-Prat pergunta: por que e quando Deus se tornou de “pedra”; e por que, e quando, a Igreja se impôs na paisagem do Ocidente? A partir de quando a Igreja passou a ocupar espaços e territórios? Para Iogna-Prat, a doutrina sozinha não explica a reunião dos cristãos em um “edifício de pedra” que recebe a mesma denominação da comunidade dos fiéis. Ele considera que a Igreja é também um conjunto de bens eclesiásticos, o que permite que se interrogue de forma mais ampla a relação dos homens com o espaço em uma época onde os termos Igreja e sociedade são coextensivos no lugar das estruturas eclesiásticas de fixação e controle das populações.9
Analisando os bens eclesiásticos da missão jesuítica de Becerac no norte da Nova Espanha, Clara Bargellini inventariou um impressionante acervo constituído de altares, ornamentos diversos, prataria e outros objetos de adorno do culto. Tais objetos apontam, ao mesmo tempo, para o uso de materiais preciosos e para a habilidade dos artífices, permitindo que sejam identificados como objetos de arte, de função comemorativa permanente. Trata-se de comemorações importadas para a América pelos franciscanos e jesuítas. A suntuosidade dos ornamentos e objetos tem como cenário uma arquitetura magnífica tanto nas fachadas exteriores, quanto no interior.
Apesar da semelhança entre as duas ordens, Bargellini chama atenção para diferenças que apontam para a história de cada uma delas. Enquanto os franciscanos recordam o “seu papel missionário como fundadores da Igreja na Nova Espanha, apoiados pela monarquia dos Habsburgos, os jesuítas insistiram na individualidade dos membros da Companhia, ativos e heroicos representados na iconografia da Igreja, seguidamente sozinhos, ou em grupo, mas sempre identificados. Ambas as ordens, em todas as etapas da produção artística, imprimiram um valor simbólico aos objetos. Ao estabelecerem uma missão, as necessidades artísticas se centravam especificamente nos ornamentos, na prataria e nos objetos de uso na missa. Para os jesuítas, as imagens ganhavam uma função especial voltada para a catequese (uma resposta aos ídolos indígenas). A arquitetura do edifício da igreja e as coleções interiores de objetos de importante valor material e artístico respondiam à necessidade vital da identidade e da transcendência, conforme afirma a autora. Porém, guardando as devidas proporções de tempo e espaço, poderíamos dizer que são seguidamente, “coextensivas”, conjugando seguidamente os poderes da Igreja e da monarquia.
David J. Weber ressalta a importância da arquitetura na forma de igrejas missionais, assim como da pintura, da escultura, da música, dança e teatro para impressionar os indígenas com o poder e a glória de Deus. Adverte, todavia, que o uso das artes pelos missionários para promover conversões e sustentar a fé fez, das mesmas, coadjuvantes na pedagogia do medo.
Em síntese, os trabalhos de Bargellini e de Weber, que integram um projeto institucional que reuniu estudiosos dos dois lados da fronteira, México e Estados Unidos, evidenciam como os fins doutrinários e expansionistas da Igreja, apoiada nas monarquias ibéricas, promoveram uma integração das artes, arquitetura, escultura, pintura, ourivesaria, música, dança e teatro no território das missões. Se ousássemos pensar em termos contemporâneos e rompêssemos as barreiras do tempo, poderíamos ver nas Missões da Nova Espanha a realização da síntese das artes que veio a ser almejada alguns séculos mais tarde. A realização dessa “síntese” com base na doutrina cristã prometia, aos que se convertessem, a salvação, isto é, o Paraíso: lugar, que vários historiadores veem como uma utopia medieval10, uma espécie de lugar idealizado, sempre almejado e jamais encontrado.
Considerando as abordagens feitas aos espaços, aos tempos, aos discursos e às linguagens, este dossiê espera favorecer o debate entre historiadores e historiadores da arte. Foram convidados historiadores de diferentes formações, que enriqueceram o dossiê, possibilitando a sua publicação. Agradecemos a generosidade, presteza e paciência de cada um. A Elisa Martinez, Roberto Conduru e Susani França, participantes fiéis desde o início desta “empreitada”. Nossa gratidão, em particular, à viúva de David Weber, que permitiu a publicação do seu trabalho, bem como a Clara Bargellini, que intermediou o consentimento. Nossos sinceros agradecimentos a Françoise Vergneault-Belmont, pela inestimável contribuição prestada aos historiadores de várias partes do mundo. Nosso muito obrigado a Flávio Fonseca e Matheus Silveira pelo auxílio essencial na transposição e configuração dos textos em língua estrangeira.
Brasília, novembro de 2013.
Maria Eurydice de Barros Ribeiro (Universidade de Brasília)
Notas
1 Os historiadores e historiadores da arte encontram-se ou em simpósios temáticos ou em participações isoladas de historiadores ou historiadores da arte em eventos específicos promovidos pelas associações das disciplinas (Associação Nacional de História – ANPUH, Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas – ANPAP, Comitê Brasileiro de História da Arte – CBHA). Não há registro de que historiadores e historiadores da arte tenham promovido um evento específico visando discutir questões pertinentes às duas disciplinas.
2 Foram os medievalistas os primeiros a chamar a atenção para a importância das imagens como fonte para o historiador. A renovação da história política partiu também de um grupo de medievalistas liderados por Jacques le Goff pelo viés de uma nova disciplina, a Antropologia Histórica.
3 Ver MARTINEZ, Elisa de Souza; RIBEIRO, Maria Eurydice de Barros. Anti-medieval ou anti-moderno? As fronteiras do estudo da história da arte na contemporaneidade. In: História da Arte: 50 anos. Rio de Janeiro. http://wordpress.com/
4 DIDI-HUBERMAN, Georges. L’image survivante. Histoire de l’art et temps des fantômes selon Aby Warburg. Paris: Minuit, 2002, p.11.
5 DIDI-HUBERMAN, Georges. Devant le temps. Histoire de l’art et anachronisme des images. Paris: Minuit, 2000.
6 ARGAN, Giulio Carlo. História da arte, como história da cidade. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 73-74.
7 Idem, p. 74.
8 Portrait, retrato, em português, vem do italiano ritratto, originado do latim retractus: significa fazer a efígie de uma pessoa. Sugere, assim, os mesmos significados apontados por Françoise Vergneault. Conferir no texto da autora.
9 IOGNA-PRAT, Dominique. La Maison de Dieu. Une histoire monumentale de l`Église au Moyen Âge. Paris: Seuil, 2006, p. 17-18.
10 Deve-se naturalmente, tomar cuidado com a palavra utopia, pelo fato da mesma não existir na Idade Média (como se sabe, a palavra foi utilizada pela primeira vez por Thomas More em 1516). Todavia, os medievais idealizaram vários lugares, frequentemente, ilhas, onde o clima seria ameno, com abundância de frutos e fartura de alimentos, e onde a natureza seria bela e clemente.
Questões indígenas contemporâneas: História e Antropologia em fronteiras / História Unisinos / 2011
Os textos reunidos no dossiê Questões indígenas contemporâneas: História e Antropologia em fronteiras resultam das pesquisas de sete historiadores de diferentes pontos do país que tem procurado estudar a História Indígena da perspectiva do presente, em fronteiras disciplinares, tarefa ao mesmo tempo difícil e fascinante. Assim, os temas abordados refletem os diálogos travados por cada um deles com outras áreas do conhecimento, tais como a Psicologia, o Direito, a Educação e, notadamente, a Antropologia. O que aproxima os textos é a tentativa de compreensão, por parte dos autores, de uma trama histórica complexa e que durante muito tempo foi negligenciada pela historiografia tradicional. Já vai longe, portanto, o tempo em que para os índios não haveria história, mas apenas etnografia, como anunciara Varnhagen, no século XIX.
Anna Maria Ribeiro Fernandes Moreira da Costa apresenta a simbologia que envolve o espaço fluvial dos grupos indígenas Nambiquara do Cerrado, localizados a Oeste do Estado de Mato Grosso. O espaço Nambiquara é, dessa forma, apreendido em suas representações, imagens e concepções, sendo construído em função de seus sistemas de pensamento e de suas necessidades.
Por sua vez, Carlos Alberto dos Santos Dutra instiga o leitor a rever a história da ocupação do território sul-mato-grossense, lançando um olhar sobre os conceitos de poder e violência e buscando revelar que muitas terras indígenas demonstram ter sido bem mais que simples áreas de migração de grupos autóctones isolados. Os conceitos de nação, identidade, território / territorialização / desterritorialização, dominação, poder e cultura são analisados pelo autor a partir da história dos Ofayé.
Giovani José da Silva apresenta informações a respeito da construção da Estrada de Ferro Brasil-Bolívia, bem como dos impactos que esta construção provocou sobre a vida das populações indígenas, especialmente sobre os Chiquitano (e os estigmas a estes impingidos). No caso dos Kamba, descendentes dos Chiquitano, esse impacto se traduziu na saída de uma determinada parcela das proximidades de Roboré, Tapera e San Jose de Chiquitos e de sua entrada no Brasil, em meados do século passado. A construção da ferrocarril (1939-1954) provocou o engajamento de grande número de indígenas bolivianos, muitos dos quais penetraram em território brasileiro de forma clandestina aos olhos oficiais.
Já Rosely Aparecida Stephanes Pacheco mostra que uma análise mais ampla dos desafios que os povos indígenas têm enfrentado em relação a seus direitos territoriais na América Latina, passa por um desvelar histórico sobre a forma como a questão territorial foi tratada nestes países, tanto administrativa quanto juridicamente. Para o estudo do tema, cujo foco são as lutas e reivindicações dos Guarani (Kaiowá e Ñandeva), a autora buscou referenciais teóricos em diversas áreas do conhecimento: a História, a Antropologia e o Direito.
Edson Hely Silva percebe, por meio dos relatos orais dos índios Xukuru do Ororubá, de Pernambuco, acontecimentos que expressaram o cotidiano, os espaços e os momentos de sociabilidade vivenciados na Serra do Ororubá, além do significado de Cimbres como um espaço de referência da memória mítico-religiosa para a afirmação da identidade daquele grupo indígena.
Léia Teixeira Lacerda apresenta reflexões realizadas desde o final da década de 1990, no campo da Educação e da Saúde Preventiva das DST (Doenças Sexualmente Transmissíveis) e da Aids com professores indígenas que habitam e atuam em escolas no Pantanal Sul-mato-grossense. A autora realiza uma breve análise pedagógica, psicológica e histórica dos Programas de Prevenção das DST e da Aids desenvolvidos com professores indígenas daquela região.
Finalmente, Vanderléia Paes Leite Mussi discute como os Terena no contexto urbano de Campo Grande, Mato Grosso do Sul, constroem sua etnicidade, nos “entre lugares” das relações fronteiriças, mantendo os laços de continuidade com seus antepassados, isto é, com sua tradição. A partir dessa abordagem, a autora mostra como esse grupo indígena foi construindo diferentes estratégias de inserção e negociação no entorno da sociedade não indígena para garantir a sua sobrevivência, tendo como principal impulsionador o trabalho.
Em comum, os historiadores participantes do dossiê utilizaram fontes orais em suas pesquisas, mas sem a pretensão de “dar voz” a quem quer que seja, muito menos aos indígenas. Antes, cada um deles procurou “dar ouvidos” às narrativas contadas pelos Nambiquara, Chiquitano, Guarani, Terena, Ofayé, Xukuru do Ororubá, Kadiwéu e Kinikinau. Convidam-se, então, os leitores a também “ouvirem” essas vozes, ainda não inscritas nos cânones oficias, porém repletas de significados e simbologias. Boa leitura!
Giovani José da Silva – Organizador
SILVA, Giovani José da. Apresentação. História Unisinos, São Leopoldo, v.15, n.2., maio / agosto, 2011. Acessar publicação original [DR]
História, Historiadores, Historiografia / Projeto História / 2010
I
O leitor poderá observar no presente dossiê como os autores, ao refletir sobre os fundamentos historiográficos que nortearam a análise de seus temas específicos, os situaram no interior das novas e também antigas preocupações inerentes ao historiador: a recuperação do real a partir das abstrações razoáveis possíveis, dados os vestígios históricos disponíveis e o instrumental analítico selecionado.
Desde o debate na antiguidade grega sobre os problemas dos métodos para o resgate da história, concepção que recupera a necessidade da questão de caminhar a partir da identificação dos pontos considerados frágeis na argumentação do historiador – e “não na mera desqualificação da obra como um todo” –, até os debates atuais postos no campo da gnosiologia sobre a verdade e a história, ficam objetivados no presente dossiê.
A perspectiva da validação historiográfica a partir do argumento, ou como meros embates discursivos, nos quais as opiniões se equivalem, e que, por vezes, remete o historiador ao campo da literatura, é contraposta à da cientificidade deste campo do conhecimento, capaz de objetivar a dinâmica histórica em suas contradições internas, a posição relativa de cada uma das diversas forças sociais em permanentes e distintos embates em dadas particularidades históricas. A identificação dessas tendências arrima a mobilidade de ação do ser social, porquanto a abdicação desta o torna mero expectador.
O espectro gnosiológico que hoje assume a primazia no campo da historiografia parece conferir validade à crítica de Políbio a Timeu sobre o “direito de criticar com o objetivo de conferir valor aos próprios argumentos por meio da correção ou redimensionamento dos argumentos alheios”. Tal “guinada hermenêutica” confere ao termo historiografia sentidos muito distintos, conforme aponta um dos autores presentes neste dossiê.
“Ora aparece nomeando um certo ajuntamento de obras históricas, sinônimo então de bibliografia especializada, ora surge identificando linha de pesquisa voltada para os estudos de história da história, ou seja, exame consistente das obras enquanto manifestação cultural ancorada em contextos históricos específicos (…). Entretanto, as extrapolações para os contextos mais gerais quando muito terminam por marcar a temporalidade das obras, mas não sua historicidade”.[1]
Será que poderíamos agregar a esta reflexão a de outro autor que considera ser a produção historiográfica um “museu do saber” que “aspira uma unidade estética, cuja finalidade é dispor uma aparência e um reconhecimento dos objetos com os quais as várias especialidades se envolvem”? Ou seja, sequer se resgata o preceito de Walter Benjamin, recuperado aqui por outro autor, de que, “o narrador colhe o que narra na experiência própria ou relatada. E transforma isso outra vez em experiência dos que ouvem sua história”? Ou ainda, cumpre a historiografia a função de controle sobre o saber, parafraseando os termos de Foucault, conforme assertivas de outros aqui presentes? Deixamos a pergunta ao leitor, esperando que este dossiê incentive as reflexões.
A ampla diversidade de abordagens, métodos, instrumentos, documentos a compor hoje o campo historiográfico a que nos remete o conjunto dos textos, poderia ser também interpretado como a expressão de uma crise dos sujeitos historiadores? É notória, diz o autor, a situação de “crise” que a disciplina história enfrenta.
“(…) Desde os anos da década de 1970, com a emergência do pós-estruturalismo, a corporação de historiadores enfrenta desafios compreensivos inesperados oriundos dos estudos da linguagem e da semiologia, reconhecidos como linguistic turn ou semiotic challenge. Além da fragmentação disciplinar há a ameaça de um relativismo fantasmático pairando no horizonte das pesquisas”.[2]
Ou, contrapondo-se a tal ideia, revela-se uma profícua retomada da historiografia que, imbuída de novos recursos e mais livre para buscar os fundamentos de suas interpretações, não apenas amplia a base conceitual, parte em busca de novas evidências históricas e também revisita com maior frequência historiografias, ou consagradas, ou esquecidas, ou pouco reconhecidas no momento mesmo de sua produção.
Exemplo desta retomada são os balanços, como, por exemplo, o que analisa a produção historiográfica sobre a Revolução Russa. Ao retomar desde os autores clássicos até as principais obras mais recentes, “incluindo as que tentativamente parecem marcar novos paradigmas de investigação no período pós-soviético”,[3 ]as visualiza no interior dos diferentes contextos históricos em que cada produção historiográfica ocorreu e, assim identifica as dificuldades para a objetividade analítica nas reflexões sobre tal tema.
A mesma questão sobre a objetividade está posta no texto que analisa a produção historiográfica sobre o missionário jesuíta José de Anchieta, cujas biografias, segundo o historiador, desde os séculos XIX e XX tiveram o “objetivo de evidenciá-lo (…) como precursor da nacionalidade brasileira, guardião da moral e exemplo de santidade (…) e de destacar condutas consideradas fundamentais para a sociedade brasileira em diferentes momentos da história política brasileira”,[4] cumpre a finalidade de defender sua beatificação, que, para se consolidar demanda ainda que se evidenciem os milagres requeridos para sua canonização.
Um viés historiográfico apontado também no balanço sobre outro tema, ainda que totalmente diverso, se evidencia na historiografia sobre o movimento Punk dos anos 70 com a perspectiva de “um acontecimento social que abalou a sociedade e a cultura num panorama de mudanças estruturais profundas em curso na América do Norte e na Inglaterra”,[5] mas cuja perspectiva analítica tende a reduzi-lo a um movimento de jovens de classe média. Já outro analista demonstra como um debate sobre os indígenas no Brasil revela “uma reflexão política e uma operação historiográfica sobre identidade nacional e o futuro da formação social brasileira”, [6] durante a segunda metade do século XIX. A análise dos embates entre o etnólogo alemão Curt Nimuendaju e o intelectual paraense Jorge Hurley expressa como tais autores intervieram na conformação de políticas sobre as questões indígenas e como foram capazes de definir um campo historiográfico sobre a questão.
Se, por um lado, o reconhecimento da diversidade hoje posta na reflexão dos historiadores leva alguns a enfatizarem que se trata de uma crise e outros a perceberam aí uma profusão de novas possibilidades para o historiador, por outro lado, um terceiro grupo se detém sobre os conceitos produzidos pela historiografia.
Uma pergunta, não obstante, se impõe: produz a historiografia conceitos cuja pertinência está na capacidade de expressar o real concreto e cuja validade se põe a partir de novas evidências empíricas abstraídas pelo historiador quando este se permite ampliar seu espectro analítico?
Ratifica esta questão, verbi gratia, os artigos que debatem o tema das fronteiras. Um dos analistas desvela como tais conceitos necessitam ser revisados à luz da geopolítica. Pois a transnacionalização do capital obriga os historiadores a reconhecer que as noções de territorialidade / fronteiras, antes restritas ao Estado-nação, hoje se expressam na inter-relação entre as mais diferentes culturas e sociabilidades. Ou, conforme outro, a conceituação é sempre relativa em face de novas evidências antes não destacadas, como ocorre, segundo o exemplo, quando se contrapõem as informações sobre fronteiras provinciais no Brasil, grafadas em mapas cartográficos, aos dados advindos de outras documentações. Adentrando ainda à discussão sobre estratégias, métodos e instrumentos analíticos, este mesmo ressalta que, como qualquer outro elemento iconográfico, a analítica cartográfica revela uma historicidade particular, “construída em função de elementos culturais próprios e pertinentes ao momento de sua criação”.[7]
O que remete às discussões sobre os aspectos metodológicos que envolvem outro tipo de material iconográfico, muitas vezes tomado, assim como ocorre com a cartografia, como simples material auxiliar a corroborar ou não informações advindas de outras fontes documentais, a fotografia. Desde a clássica discussão sobre a correspondência ou não entre a concretude social e a representação que dela fica gravada na imagem, ou sobre os limites postos pelo foco da imagem, até o seu reconhecimento como expressão de uma dada forma de interação com o mundo naquele momento, observa-se a preocupação dos analistas com a validade de suas fontes documentais e os métodos mais apropriados para seu tratamento. Revelam estas, conforme se coloca o autor, a essência dos modos de interagir, mas não a essência das coisas com as quais se interagiu?
Observa-se assim que tais historiadores situam no interior da discussão o impacto que trouxe para os analistas, a ampliação do corpus documental validado também enquanto expressão das vivências cotidianas nos mais diversos tempos, incluindo-se aí o primado do reconhecimento das informações verbalizadas para os historiadores ou dos relatos de vidas privadas grafados em correspondências particulares. Pois também para a história oral se requisita um campo analítico próprio, metodologias de pesquisa e de análise particulares, principalmente quando, segundo o autor, se tem por objetivo “preparar documentos gravados e transcritos para serem utilizados pelos pesquisadores do futuro”.[8] Centrando a análise, sempre no campo gnosiológico, encontramos em outro analista um exemplo que explicita os questionamentos sobre a relação entre a história e a história do ponto de vista dos resultados da abordagem. Conforme suas reflexões, com o intuito de desvendar os discursos de poder utilizados no confronto conhecido como a revolução constitucionalista de 1932 em São Paulo, observa este que a historiografia “concentrou seus esforços em diretrizes opostas, recaindo, ora no sentido de elucidar a luta de classes, ora na valorização do caráter espontâneo do levante”, mas que, mesmo assim, acabam por reproduzir “a plataforma aburguesada que se arvorava como revolucionária, embora não primasse por mudanças significativas no país”.[9]
É interessante observar que, das reflexões sobre o campo conceitual, se pode abstrair certa ênfase na percepção do que configura a identidade de um país, de uma nação. Coloca-se assim outro aspecto do embate. Enquanto uns ressaltam, conforme apontado acima, o desaparecimento do Estadonação, para outros, a ênfase atual está no reconhecimento das identidades políticas, nacionais, culturais. Neste sentido, o texto mais representativo nos parece ser o que retoma a obra do historiador francês Fernand Braudel: L’Identité de la France (1986). Representativo também do conjunto dos aspectos fundam este dossiê: o debate historiográfico, as correntes ou tendências em curso ao longo do século XX, a validação de múltiplas e distintas fontes, a pertinência ou não das abstrações formuladas a partir dos dados empíricos, a interdisciplinaridade, enfim, o corpus que resulta da relação entre historia, historiadores e historiografia.
Situando, assim como a maior parte dos historiadores deste número de revista o fazem, o discurso historiográfico de Braudel nas circunstâncias que o condicionam, o autor demonstra como esta obra expressa a necessidade posta naquele momento para os franceses, de reafirmar uma identidade nacional que respondesse a dois imperativos: as contradições de uma conjuntura internacional marcada pela Guerra Fria que conjugava uma pregação pela paz com uma política militarista contra países que questionavam o capitalismo e para a manutenção do mapa artificialmente desenhado após a segunda guerra. Por outro lado, punha-se o imperativo de redesenhar a memória sobre o colonialismo exercido pela França nas regiões afro-asiáticas em um momento em que esta nova ordem mundial em construção reeditava os valores civilizatórios de uma Europa mediterrânea. Ou seja, reafirmando o conceito de longa duração, “Braudel constrói um discurso político ao redor da identidade francesa visando relativizar as contradições da história nacional (…). Na França da virada dos anos 80, o debate girava em torno do ensino de História, da dissolução da memória nacional e da perda dos grandes referenciais, fazendo com que os historiadores se voltassem aos temas nacionais. Ou seja, o livro encaixou-se como uma luva!”.[10]
O mesmo teor reflexivo encontra-se em outro artigo que retoma como a construção do discurso sobre a modernidade no período do Estado Novo no Brasil, com o claro intuito de configurar “identidades individuais e coletivas” foi apropriado também por “práticas disciplinares – ciência, tecnologia, epistemologias – que, em um movimento simbiôntico, procederam a uma troca com ambientes institucionalizados e institucionalizantes edificando aquilo que será conhecido como moderno”,[11] o que faz a partir da recuperação da trajetória intelectual do historiador Alfredo Ellis Júnior, entre 1938 e 1956.
Temos, por fim, mais dois artigos travando debate acerca da contribuição historiográfica de Capistrano de Abreu. Num primeiro, é discutido o movimento de ruptura na própria obra do historiador cearense, o que enseja a sua recolocação como divisor de águas de toda uma geração historiográfica brasileira – desde a primígena ideia de uma revolução burguesa à brasileira, até sua posição como protopositivista; num segundo momento é identificado, pela autora do artigo, o papel de Capistrano de Abreu em José Honório Rodrigues.
II
Há que pontuar algumas questões que se apresentam nesse espectro de confluências e divergências no campo historiográfico. Ao se contrapor às formulações de Ferdinand Lassale, o autor do Manifesto Comunista de 1848 se vale dos estudos magistrais do filósofo Giambattista Vico (1668-1744). O filósofo napolitano escreveu a obra ímpar A Nova Ciência, publicada pela primeira vez em 1725. Reescreveu-a pela terceira vez no ano de sua morte, em 1744, nos legando categorias da história que fez Jules Michelet, Herder e o próprio Marx, tomá-lo como referência teórica. Uma delas explicitada por Marx em O Capital que – ao refletir sobre os instrumentos de produção e da tecnologia – se pergunta: “Será que não merece igual atenção a história da formação dos órgãos produtivos do homem social, da base material de toda organização social específica?”. Recorde-se que Marx não abandonava por um só instante a determinação histórica dos seres sociais e das coisas existentes. Nessa direção, o filósofo alemão formula outra questão: “E não seria mais fácil reconstituí-la já que, como diz Vico, a história dos homens difere da história natural por termos feito uma e não a outra?”.[12]
Ao destacar que o homem só pode conhecer aquilo que faz, Vico acrescentava que sendo Deus o criador da natureza só ele poderia conhecê-la a fundo. Verum et factum convertuntur. Por essa razão, nós conhecemos o efetuado praticamente, o homem é um ser autoproducente. Alguns autores reconheceram certas afinidades entre Marx e Vico, como Adrienne Fulco que faz convergir, entre outras, o impulso à objetividade, ao reconhecimento das determinidades concretas que se encontram no mundo in flux. Ambos, acrescenta Fulco, também “compartem a crença de que a consciência é a característica distintiva do homem; o centro essencial de sua humanidade. Para ambos, a consciência, em sua forma mais geral, é a capacidade de todo homem de conhecer-se a si mesmo e ao mundo que o rodeia. A consciência, com efeito, não é somente uma atividade própria da mente, mas também uma atividade de caráter social determinada”.[13]
Pense-se, nesse último passo, nas contribuições do filósofo húngaro György Lukács, autor de Prolegômenos para uma ontologia do ser social, [14] no que tange ao papel da consciência nos lineamentos histórico-materialistas inscritos na obra de Marx. “A ontologia marxiana se diferencia da de Hegel por afastar todo elemento lógico-dedutivo e, no plano da evolução histórica, todo elemento teleológico. (…) Aqui, no plano ontológico, não existe nada análogo. Todo existente deve ser sempre objetivo, ou seja, deve ser sempre parte movente e movida de um complexo concreto. Isto conduz, portanto, a duas consequências fundamentais. Em primeiro lugar, o ser em seu conjunto é visto como um processo histórico; em segundo, as categorias não são tidas como enunciados sobre algo que é ou que se torna, mas sim como formas moventes e movidas da própria matéria: ‘formas do ser, determinações da existência’”.[15]
Vico escrevera que “Somente os homens fizeram esse mundo (…). Mas tal mundo surgiu, sem dúvida, de um espírito quase sempre diverso, às vezes inteiramente contrário e sempre superior às finalidades particulares que os homens haviam proposto”.[16] Marx dispõe essa síntese histórica para seus correligionários em sua correspondência, e, de forma mais apropriada a sua visão do mundo histórico, na obra O 18 de brumário de Luís Bonaparte, quando analisa as determinantes histórico-sociais do golpe de Estado de 2 de dezembro de 1851 desferido por Luís Bonaparte em analogia com o golpe do tio, principia-a com essa refutação de qualquer finalismo a reger o processo histórico: “Em algumas passagens de suas obras, Hegel comenta que todos os grandes fatos e todos os grandes personagens da história mundial são encenados, por assim dizer, duas vezes. Ele se esqueceu de acrescentar: a primeira vez como tragédia, a segunda como farsa. (…) Os homens fazem a sua própria história, contudo, não a fazem de livre e espontânea vontade, pois não são eles quem escolhe as circunstâncias sob as quais ela é feita, mas estas lhes foram transmitidas assim como se encontram. A tradição de todas as gerações passadas é como um pesadelo que comprime o cérebro dos vivos”.[17]
A interpretação de Agnes Heller pode lançar luz à improcedência dos autores que insistem na imputação de determinismos à concepção marxista da história e do caráter teleológico inscrito no processo histórico. “A teoria segundo a qual os homens fazem sua própria história, mas em condições previamente dadas, contém as teses fundamentais da concepção marxista da história: por um lado, a tese da imanência, e, por outro, a da objetividade. À primeira vista, o princípio da imanência implica no fato da teleologia, ao passo que o princípio da objetividade implica naquele da causalidade; os homens aspiram a certos fins, mas estes estão determinados pelas circunstâncias, as quais, de resto, modificam tais esforços e aspirações, produzindo desse modo resultados que divergem dos fins inicialmente colocados, etc.”.[18]
Essa posição dialética, cuja premissa se assenta no fato de que as ações humanas constituem o ponto em que se resolve momentaneamente a tensão constante entre liberdade e necessidade, foi ressaltada por uma das principais historiadoras brasileiras, Emília Viotti da Costa, em seu estudo sobre a rebelião de escravos em Demerara, em 1823. Numa parte mais desenvolvida, atada à concepção materialista, salienta: “A história é feita por homens e mulheres, embora eles a façam sob condições que não escolheram. Em última instância, o que interessa é a maneira como as pessoas interagem, como pensam e agem sobre o mundo e como, ao transformar o mundo, transformam a si mesmas”.[19]
Tal imputação de finalismo no processo histórico também foi refutada por István Mészáros, porquanto “A abertura radical da história – a história humana – criada historicamente é, então, inescapável, no sentido de que não há meio de se predeterminar, teórica ou praticamente, as formas e modalidades da automediação humana, porque as condições teleológicas complexas dessa automediação, através da atividade produtiva, só podem ser satisfeitas – uma vez que estão sendo constantemente criadas e recriadas – no curso dessa própria automediação. É por isso que todas as tentativas de produzir sistemas de explicação histórica nitidamente fechados e encerrados em si próprios resultam ou em alguma redução arbitrária da complexidade das ações humanas à simplicidade grosseira de determinações mecânicas ou na superposição idealista de um tipo ou outro de transcendentalismo a priori à imanência do desenvolvimento humano”.[20]
Contra outra visão de história bastante disseminada, o mundo se passaria no tropo, um dos mais renomados intérpretes da micro-história, o historiador Carlo Ginzburg vem estabelecendo um consequente embate contra os cépticos que professam o relativismo do conhecimento histórico. Além disso, o historiador italiano se insurge contra os riscos do negacionismo, corrente reacionária que tenta negar a existência do Shoah (Holocausto), da fustigação, massacre e genocídio de milhões de indivíduos de origem semita pelo terrorismo oficial do estado nazista.
Ao ser questionado por Perry Anderson sobre o uso da palavra “prova” ao invés de “testemunho”, Ginzburg mostra para a primeira sua ineliminável presença na pesquisa histórica. Dessa maneira, alinha que “Provare (provar) significa, por um lado, ‘validar’ e, por outro, ‘experimentar’, como observou Montaigne falando de seus próprios ensaios. A linguagem da prova é a de quem submete os materiais da pesquisa a uma aferição permanente: ‘provando e confirmando’, como rezava a famosa divisa da Academia (científica florentina) del Cimento. (…) Caminhamos às apalpadelas, como o luthier que bate delicadamente, com os nós dos dedos, na madeira do violino: uma imagem que Marc Bloch contrapôs à perfeição mecânica do torno, para sublinhar o inextirpável componente artesanal do trabalho do historiador.”[21]
As teses cépticas têm o condão de reduzir toda historiografia a uma dimensão narrativa ou retórica, desprezando, com isso, o trabalho concreto e específico do historiador. O relativismo céptico, em uma de suas versões, contrapõe a retórica à ideia de prova. Carlo Ginzburg escarafuncha a raiz desta concepção descobrindo o núcleo dela, segundo à qual essa concepção se estrutura: a filosofia de Nietzsche. Em verdade, suas reflexões sobre a linguagem. Segundo Ginzburg, em Acerca da verdade e da mentira, pode-se constatar que “a existência de diversas línguas é citada como prova do abismo que separa palavras e coisas: a linguagem não pode dar uma imagem adequada da realidade”.[22] Dessa forma, no estudo relacional de culturas torna-se impossível a compreensão de sua historicidade e concretude social. Em seu duelo com as concepções agostinianas de verdade, Nietzsche acaba por produzir um pensamento com sinal contrário ao cristianismo. A tomada de posição sobre a superioridade de certos povos ou mesmo da língua em relação a outra cultura aponta para um traço definidor da ideologia da historiografia relativista. “O limite do relativismo – seja na versão branda seja na versão feroz – é o de escamotear a distinção entre juízo de fato e juízo de valor, suprimindo conforme o caso um ou outro dos dois termos. O limite do relativismo é, ao mesmo tempo, cognitivo, político e moral”.[23]
Há que questionar, portanto, essa visão redutora do campo de possíveis das atividades práticas humanas à retórica ou a meras figuras de linguagem, que resultam nas imputações arbitrárias e exteriores aos objetos em sua integridade histórica. Se a raiz é nietzscheana, os alvos do historiador italiano são os cépticos relativistas, entre os quais, Roland Barthes e Hayden White. Figuras díspares, mas que esposam alguns pressupostos comuns: “a historiografia, assim como a retórica, se propõe unicamente a convencer; o seu fim é a eficácia, não a verdade; de forma não diversa de um romance, uma obra historiográfica constrói um mundo textual autônomo que não tem nenhuma relação demonstrável com a realidade extratextual à qual se refere e textos historiográficos e textos de ficção são auto-referenciais tendo em vista que estão unidos por uma dimensão retórica”.[24]
Dessa maneira, em posição contrária, a tese de Carlo Ginzburg, ancorada na tradição aristotélica, demonstra que as provas, longe de serem incompatíveis com a retórica, constituem o seu núcleo fundamental. Por essa razão, o conhecimento histórico é possível. Porquanto, “ao avaliar as provas, os historiadores deveriam recordar que todo ponto de vista sobre a realidade, além de ser intrinsecamente seletivo e parcial, depende das relações de força que condicionam, por meio da possibilidade de acesso à documentação, a imagem total que uma sociedade deixa de si. Para ‘escovar a história ao contrário’ (die Geschichte gegen den Strich zu bürsten), como Walter Benjamin exortava a fazer, é preciso aprender a ler os testemunhos às avessas, contra as intenções de quem os produziu. Só dessa maneira será possível levar em conta tanto as relações de força quanto aquilo que é irredutível a elas”.[25]
Há que escovar a história a contrapelo! O que significa posicionar-se da perspectiva dos vencidos. Extrair das tensões, conflitos e contradições sociais, as alternativas que não vingaram, que se arruinaram, os projetos sociais que ameaçaram as bases materiais antagônicas do metabolismo social. No plano historiográfico, insurgir-se contra a versão oficial, a dos polos dos vencedores.
Decorridos setenta anos, após ter vivenciado os horrores de um campo de concentração (Camp des Travailleurs Volontaires em Nevers), sem ter o visto que lhe permitiria sair da França, acuado e premido pelas constrições e armas das forças franquistas, Walter Benjamin se suicida a 22 de setembro de 1940, em Port Bou, na Catalunha. Sua desaparição, no entanto, não fez soçobrar seus esforços na crítica dialética do mundo da barbárie. Seus escritos mantêm vivos os embates contra os “Estados de Exceção”! Decepcionado com o Pacto de não agressão entre Stálin e Hitler, de 23 de agosto de 1939, escapando da prisão se dedica a elaboração das Teses “Sobre o conceito de história”. Segundo Benjamin, “O materialismo histórico precisa renunciar ao elemento épico da história”, nessa direção, anota em suas Passagens: “A primeira etapa desse caminho será aplicar à história o princípio da montagem: Isto é: erguer grandes construções a partir de elementos minúsculos, recortados com clareza e precisão. E, mesmo, descobrir na análise do pequeno momento individual o cristal do acontecimento total. Portanto, romper com o naturalismo histórico vulgar”.[26] Contra a dominância das formas do positivismo e dos acentos positivos do progresso do sistema social, o que põe um ponto final na história no que diz respeito à ordem social, Benjamin premido pelo terrorismo imposto pelo fascismo desde as fímbrias do cotidiano às expressões políticas, pontua na oitava das Teses que “A tradição dos oprimidos nos ensina que o ‘estado de exceção’ no qual vivemos é a regra. Precisamos chegar a um conceito de história que dê conta disso. Então surgirá diante de nós nossa tarefa, a de instaurar o real estado de exceção; e graças a isso, nossa posição na luta contra o fascismo tornar-se-á melhor. A chance deste consiste, não por último, em que seus adversários o afrontem em nome do progresso como se este fosse uma norma histórica. – O espanto em constatar que os acontecimentos que vivemos ‘ainda’ sejam possíveis no século XX não é nenhum espanto filosófico. Ele não está no início de um conhecimento, a menos que seja o de mostrar que a representação da história donde provém aquele espanto é insustentável”.[27]
Vivemos uma temporalidade terrível com o futuro constantemente ameaçado, em que as energias humano-societárias materializadas nas riquezas se esvanecem, o desgoverno do sistema do capital em seu desmonte transforma multidões sem nenhum amparo, as individualidades se fragmentam e se apequenam numa vida dilacerada. Todavia, como recorda nossa historiadora: “Todo tempo é tempo de mudança – mas alguns são mais do que outros. Todo tempo é tempo de conflito – mas há momentos históricos em que as tensões e os conflitos isolados que caracterizam a experiência cotidiana subitamente se aglutinam num fenômeno amplo e abrangente, que ameaça a ‘ordem social’. Nesses momentos as queixas individuais havia muito existentes se transformam numa crítica global ao sistema de poder. Desafiam-se as pressuposições das elites acerca do mundo”.[28]
A tentação óbvia, diante de nossa quadra histórica – o estancamento das transições, o revigoramento das forças do capital, a supremacia bélica norte-americana, a hegemonia absoluta da “usina do falso” na cultura mundializada –, é o de olhar para trás e reconstruir o utopismo em lutar por uma nova sociabilidade livre das bases materiais antagônicas. Todavia, há que salientar as sucessivas greves e rebeliões que eclodiram em várias partes desse cotidiano minado pelas contradições do capital mundializado. Operários, estudantes, mulheres, camponeses se juntaram em manifestações contra o desemprego, a miséria, a privatização da educação, na Grécia, Turquia, Itália, Portugal, e tantas outras formações sociais, como a greve geral de 29 de setembro na Espanha, etc. Na Bolívia, os trabalhadores sustaram por meio de paralisações a elevação dos combustíveis… Em Túnis, capital da Tunísia, um jovem engenheiro desempregado, como tantos outros, surrado por tentar vender frutas numa praça, acabou por se imolar… Com este ato extremo, detonou um represamento incontido de um processo social que alija as maiorias do próprio trabalho assalariado, um amplo movimento social que pôs fim à sangrenta ditadura de Zine al Abidine Ben Ali, que estava instalado no poder há mais de duas décadas.
Está claro que o “futuro ausente” que se apresenta como molde atual, dado pelas circunstâncias históricas, pela conservação de estruturas autocráticas, pelos voos desmesurados dos impérios financeiros, pela crise estrutural do capital que a tudo absorve em sua universalização, que produz a enormidade da população de reserva na escala de milhões de desempregados, mas que ao invés de nos fazer recuar deve nos lançar ao encontro de uma permanente busca de alternativas, regrado por um “otimismo ponderado”, que vislumbra um traçado radical necessário à luta contra essa impotência e apodrecimento sob a própria pele. Porque, como assegurava um crítico dessa particular forma de metabolismo social, “donde o futuro humano, se futuro houver, será posto pela possibilidade emergente das perspectivas da síntese do saber – a fusão entre o melhor e mais avançado do saber científico-tecnológico e o mais agudo e universal do saber humanista, ou seja, da aglutinação natural entre o saber do mundo e o saber de si. Hoje, o homem já está se tornando o demiurgo da natureza, falta se converter no demiurgo de si mesmo. Numa palavra, capacidade ilimitada de produção material, domínio da vida de seu próprio gênero e do planeta, e humanismo, no sentido de capacidade de produção do humano. Em síntese, capacidade de produção da vida, inclusive da genuína vida consciente”.[29]
Notas
1. Cf. Políbio Contra Timeu, ou o Direito de Criticar de Breno Battistin Sebastiani, nesta edição, p. 210.
2 Cf. o artigo de Carlos Alvarez Maia, p. 354.
3 Cf., neste volume, o artigo de Angelo Segrillo, p. 65.
4 Cf. o artigo de Eliane Cristina Deckmann Fleck, p. 157.
5 Cf. Ivone Gallo, nesta edição, p. 298.
6 Cf. Aldrin Figueiredo, neta edição, p. 317.
7 Cf. Airton José Cavenaghi, nesta edição, p. 385.
8 Cf. Maurílio Rompatto, p. 345 desta edição.
9 Cf. João Paulo Rodrigues, p. 152.
10 Cf. Guilherme Ribeiro, p. 108.
11 Cf. Diogo da Silva Ruiz, p. 219.
12 MARX, Karl. O capital – crítica da economia política, vol. 1, tomo 2. Tradução de Regis Barbosa e Flávio R. Köthe. São Paulo: Abril Cultural, 1984, p. 8.
13 FULCO, Adrienne. Vico y Marx: consciencia humana y estructura de la realidad. In: TAGLIACOZZO, G. Vico y Marx: afinidades y contrastes. México: Fondo de Cultura Económica, 1983, p. 123.
14 LUKÁCS, György. Prolegômenos para uma ontologia do ser social. Tradução de Lya Luft e Rodnei Nascimento . São Paulo: Boitempo, 2010. Nesta obra estão expostas as principais categorias ontológicas da filosofia de Marx.
15 LUKÁCS, G. O jovem Marx e outros escritos de filosofia. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2007, p. 228.
16 VICO apud COUTINHO, C. N. O estruturalismo e a miséria da razão. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1972, p. 13. Ver VICO, Giambattista. A Ciência Nova. Tradução de Marco Lucchesi. Rio de Janeiro, Record, 1999, p.487.
17 MARX, K. O 18 de brumário de Luís Bonaparte. Tradução de Nélio Schneider. São Paulo: Boitempo, 2011, p. 25. Grifos nossos.
18 HELLER, Agnes. O cotidiano e a história. 8.ª edição. Tradução de Carlos Nelson Coutinho e Leandro Konder. São Paulo: Paz e Terra, 2008, p. 11.
19 COSTA, Emília Viotti da. Coroas de Gloria, Lágrimas de sangue. A rebelião dos escravos de Demerara em 1823. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 19.
20 MÉSZÁROS, István. Filosofia, ideologia e ciência social. Tradução de Ester Vaisman. São Paulo: Boitempo, 2008, p. 129. Grifos nossos.
21 GINZBURG, Carlo. Relações de força: história, retórica, prova. Tradução de Jônatas Batista Neto. São Paulo: Companhia das Letras, 2002, p. 13-14.
22 GINZBURG, Carlos. Relações de força. In: Op. cit., p. 28.
23 Idem, p. 38.
24 Idem, p. 48.
25 Idem, p. 43.
26 BENJAMIN apud SELIGMAN-SILVA, Márcio. A atualidade de Walter Benjamin e de Theodor W. Adorno. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2009, p. 62-63.
27 BENJAMIN apud LÖWY, Michael. Walter Benjamin: aviso de incêndio. Uma leitura das teses “Sobre o conceito de história”. Tradução de JeanneMarie Gagnebin e Marcos Lutz Müller. São Paulo, Boitempo, 2005 p. 83.
28 COSTA, Emília Viotti da. Coroas de Gloria, Lágrimas de sangue, op. cit., p. 23.
29 CHASIN, J. Rota e Prospectiva de um Projeto Marxista. In Ensaios Ad Hominem 1 – Tomo IV – Dossiê Marx. Santo André: Estudos e Edições Ad Hominem, 2001, p. 72-73.
Antonio Rago Filho
Vera Lucia Vieira
VIEIRA, Vera Lúcia; FILHO RAGO, Antonio. Apresentação. Projeto História, São Paulo, v. 41, 2010. Acessar publicação original [DR]